RENATA RIBEIRO DE MORAES “PARA JOÃO ANTÔNIO, PELA FORÇA AOS NOVOS E À LITERATURA”: Dedicatórias como elementos constituintes de um projeto literário ASSIS 2014 RENATA RIBEIRO DE MORAES “PARA JOÃO ANTÔNIO, PELA FORÇA AOS NOVOS E À LITERATURA”: Dedicatórias como elementos constituintes de um projeto literário Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutora em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientadora: Ana Maria Domingues de Oliveira ASSIS 2014 Dados internacionais de catalogação-na-publicação Moraes, Renata Ribeiro de M827 “Para João Antônio, pela força aos novos e à literatura”: dedicatórias como elementos constituintes de um projeto literário / Renata Ribeiro de Moraes; orientadora Ana Maria Domingues de Oliveira. – Assis, 2014. 232 f. il. : color. ; 30 cm. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Universidade Estadual Paulista. Área de conhecimento: Literatura e vida social. 1. João Antônio (1937-1996). 2. Dedicatórias. 3. Projeto literário. 4. Rede de sociabilidade. I. Moraes, Renata Ribeiro de. II. Oliveira, Ana Maria Domingues de, orient. III. Universidade Estadual Paulista. IV. Título. CDD 809 Bibliotecária responsável Beatriz Cristiane de Araújo CRB 8/9252 Para meu pai José Moraes, minha mãe Dirce dos Santos e minha irmã Rejane Patrícia – dedico-lhes com amor. Agradecimentos Desenvolver um trabalho por aproximadamente quatro anos envolve muitos nomes. Não agradeço somente, mas, sobretudo, torno público o meu apreço a todos aqueles que passaram por mim, nessa caminhada. Agradeço ao CNPq, pelo apoio durante o período de escrita. Agradeço à Professora Ana Maria Domingues de Oliveira, pela oportunidade de desenvolver esta pesquisa e pelas apreciações feitas durante o decorrer do trabalho. Agradeço aos amigos que acompanharam os passos os quais me permitiram chegar onde estou: Rachel Müller, Ana Paula da Silva, Lúcia Kunieda, Elaine Diniz, Kelly Ribeiro, Lélia Rosiano, Mário Pinna, José Guimarães, Elaine, Tokiko, Geraldo, Antônio, Joanir Fernandes, Anderson, José Calderon, Alexandra e Jussara, Lélia, Yumi, Ana Paula Barros. Aos amigos Deise e Orlando Gallantini, sempre presentes em todos os momentos. Aos funcionários da Biblioteca Mário de Andrade, Nathan Serzedelo e Beatriz Araújo, pela força e paciência. Aos funcionários da Pós-Graduação de Assis, UNESP, Monique, Marcos e Iria. Agradeço ao Professor Rony Farto Pereira pelas considerações a respeito do texto. Agradeço ao Professor Juvenal Zancheta pelo apoio e carinho, pelo aprendizado e pela amizade. Aos que participaram da defesa, em especial, Luciana Correa e Érica Ferreira (sobrinha de João Antônio). A Caio Porfírio Carneiro e a Fernando Paixão pela atenção e disposição em me atenderem. À Clara e Medeiros, amigos presentes. Amizade que se iniciou há 15 anos. À banca de qualificação, pois sem as sugestões levantadas, o resultado não seria exitoso. Aos componentes da banca, pela leitura atenta e pelas sugestões recebidas. À Professora Sandra Aparecida Ferreira, com seus apontamentos que tornaram possível o aperfeiçoamento da escrita. Agradeço à Professora Regina Célia pelo reencontro e considerações atentas. À Irene Messias Franco e Lucila Franco Vieira, pelo apoio constante, desde minha graduação. Agradeço, por fim, a João Antônio, pelo legado deixado à cultura nacional. MORAES, Renata Ribeiro de. “PARA JOÃO ANTÔNIO, PELA FORÇA AOS NOVOS E À LITERATURA”: Dedicatórias como elementos constituintes de um projeto literário. 2014. 232 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2014. RESUMO Esta pesquisa analisa textos de dedicatórias enviadas a João Antônio (1937- 1996) por escritores que mantiveram contato com o autor paulistano. Tais paratextos se apresentam como elementos constituintes de seu projeto literário. Da coleção de obras dedicadas, enviadas entre as décadas de 1960 e 1990, elegemos alguns paratextos os quais abordam assuntos como o mercado editorial brasileiro da época supracitada, as filiações literárias do dedicatário (João Antônio), conhecidas pelos dedicadores, a profissionalização do escritor e outras que mostram os laços afetivos, de respeito e de admiração que os autores tiveram pelo contista. De um lado, autores como Jorge Amado, Caio Porfírio Carneiro e Cassiano Nunes, com suas respectivas dedicatórias, trazem à discussão as questões referenciadas acima. Por outro lado, a escolha de outros nomes, como os de Clarice Lispector, Cleonice Rainho, Nélida Piñon e Nelly Novaes Coelho, evidencia os posicionamentos de autoras brasileiras frente à produção literária nacional, cuja criação de autoria feminina demonstra os modos como se inseriram num universo marcadamente masculino, tendo em vista o maior número de autores publicados. Por meio desses dedicadores, portanto, verticalizamos nossa análise a partir das produções de escritores contemporâneos a João Antônio, permeadas pelos assuntos das dedicatórias, permitindo que se apresentem como elementos constituintes da formação do projeto literário desse escritor. Palavras-chave: João Antônio. Dedicatórias. Projeto Literário. Rede de Sociabilidade. MORAES, Renata Ribeiro de. “TO JOÃO ANTÔNIO, FOR THE STRENGHT YOU GIVE TO THE NEW ONES AND THE LITERATURE”: Dedications as constituent elements of a literary project. 232 pg. Thesis (Doctorate in Languages and Literature)– College of Sciences, Languages and Literature, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2014. ABSTRACT The present research analyses the contents of the dedications sent to João Antonio (1937-1996) by some renowned writers who had contact with the author from São Paulo. Such dedications appear as constituent elements of the story writer´s literary project. From the collection of dedicated works, sent between the decades of 1960 and 1990, we have selected some paratexts. They approach themes like the Brazilian editorial market at the mentioned time, João Antônio´s literary affiliations, his professionalization as a writer and others, that show the affection, respect and admiration links towards the addressee. Authors like Jorge Amado, Caio Porfirio Carneiro and Cassiano Nunes, with their respective dedications bring to discussion the themes above referred to. The dedications sent by Clarice Lispector, Cleonice Rainho, Nélida Piñon and Nelly Novaes Coelho, on the other hand, show the position of Brazilian female authors in face of the national literary production and whose creations show the ways they inserted themselves into a universe remarkably masculine, having in view the greater number of male authors published. From the context of authors who sent dedications, our research will attain to the paratexts whose authors were contemporary to João Antônio, for our goal is to demonstrate in what degree the dedications can be seen as constituent elements of this story writer´s literary project formation. Key words: João Antônio. Dedications. Literary Project. Sociability networking. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 12 1 DEDICATÓRIAS DE OBRA: HOMENAGENS DE JOÃO ANTÔNIO ........ 22 1.1.1Dedicatórias de obra: inventário de circunstâncias. ........................................ 26 1.1.2Dedicatória de obra e prefácio em Malagueta, Perus e Bacanaço: marketing editorial.....................................................................................................................29 1.2Vivência familiar e a relação com as dedicatórias impressas............................. 43 1.2.1“À muito feminina nossa madrinha Nair Cardoso Gomes – avó -” ................ 43 1.2.3“João Antônio Ferreira - meu pai – ainda firme na luta” ................................ 46 1.2.4Em nome do pai: homenagem a Daniel Pedro ................................................ 49 1.2.5“Para Afonso Henriques de Lima Barreto, pioneiro” ..................................... 50 1.2.6“À beleza de estilo de jogo do muito considerado mestre Carne Frita” ......... 56 2 DEDICATÓRIAS E A FORMAÇÃO DA COMUNIDADE DE ESCRITORES: CONSTITUINTES DO PROJETO LITERÁRIO DE JOÃO ANTÔNIO ..................................................................................................................... 60 2.1 Estudos paratextuais no contexto das dedicatórias manuscritas ...................... 60 2.2 Dedicatórias de Jorge Amado a João Antônio ................................................. 66 2.2.1 Primeiros contatos entre Jorge Amado e João Antônio ............................ 68 2.2.2 Segundo contato: “com o abraço do velho Jorge Amado” ....................... 70 2.2.3 “Para / João Antônio, / agradecendo os Lambões de Caçarola” .............. 73 2.2.4 Práticas da comunidade de escritores: texto de Apresentação realizado por Jorge Amado ........................................................................................................... 76 2.2.5 Capitães, O Menino Grapiúna e Gabriela: inter-relações estabelecidas na década de 1980 ........................................................................................................ 81 2.3 Perfil de Caio Porfírio Carneiro ....................................................................... 89 2.3.1 Dedicatórias de Caio Porfírio Carneiro a João Antônio: o Trapiá conhece o Malagueta............................................................................................................. 90 2.3.2 “Para o amigo João Antônio, gente boa, e muitas referências ao Trapiá” 94 2.4 Cassiano Nunes: poeta da solidão .................................................................. 103 2.4.1 Cassiano Nunes e João Antônio: encontro poético e narrativo estendido pelas dedicatórias manuscritas .............................................................................. 104 2.4.2 “A João Antônio, que revela os ambientes esquecidos com mestria e poesia” - década de 1980. ...................................................................................... 110 2.4.3 "A João Antônio, autor importante que nos revela a vida do submundo, este ensaio que dá voz aos humildes” - 1990 ........................................................ 118 3 COMUNIDADE DE ESCRITORES-LEITORES E O BOOM DA LITERATURA BRASILEIRA .................................................................................. 128 3.1 Dedicatórias manuscritas: registros de momentos e vivências entre escritores..... ........................................................................................................... 128 3.2 "Para João Antônio, companheiro de lutas” .................................................. 132 3.3 “João Antônio, espero que te agrade esse estudo – inevitavelmente apaixonado pelo nosso Lima Barreto” ...................................................................................... 140 3.4 "Para Paulinho Perna Torta e Joãozinho da Babilônia e João Antônio – escritor” ................................................................................................................. 145 3.5 "Para João Antônio o Paulo Emilio”.............................................................. 147 4 PRODUÇÃO LITERÁRIA FEMININA: AUTORIA E PUBLICAÇÃO DE ESCRITORAS E AS INTER-RELAÇÕES COM JOÃO ANTÔNIO POR MEIO DAS DEDICATÓRIAS .............................................................................................. 149 4.1 De Clarice Lispector a João Antônio: amizade intelectual e pessoal ............ 150 4.2 Nélida Piñon: encontro com outra narrativa feminina ................................... 156 4.3 Nelly Novaes Coelho: olhar da admiradora e da crítica ................................ 162 4.4 Encontro em Minas Gerais com Cleonice Rainho ......................................... 165 CONCLUSÃO ............................................................................................................. 174 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 184 ANEXO ........................................................................................................................ 192 12 INTRODUÇÃO O título deste trabalho faz alusão a uma das dedicatórias enviadas a João Antônio e aborda o tema que aqui se propõe apresentar: a formação do projeto literário desse escritor. A dedicatória foi escrita por Jeferson Ribeiro de Andrade1, em 1976, o qual apareceu como um dos autores que manteve contato assíduo com João Antônio. Além da amizade estabelecida, vivenciaram momentos comuns à comunidade de escritores. Com outros autores manteve contatos e isso lhe permitiu estar próximo a vozes que objetivavam um único tema: fazer literatura. A formação do projeto literário de João Antônio abrange diversas ações como os contatos profissionais mantidos com outros escritores, encontros com estudantes, trabalho na imprensa, assim como as correspondências trocadas com intelectuais e escritores. Por fim, as dedicatórias manuscritas ainda fazem parte da constituição de seu projeto literário. Trazem à tona diversos assuntos tratados entre a comunidade de escritores-leitores e, dessa maneira, essa fonte primária ajuda a compor a movimentação intelectual do escritor João Antônio entre demais autores de seu métier profissional e pessoal. Com base na apresentação e no estudo das dedicatórias manuscritas, também se volta à observação e análise das dedicatórias impressas que João Antônio formulou, em todos os seus livros publicados. O conteúdo das dedicatórias impressas abre este estudo. Por isso, todas essas manifestações combinam-se à formação familiar do escritor, que o levou a buscar leituras variadas, pois, desde muito jovem, elas o acompanharam, formando-se por meio de influências literárias que o despertaram para um olhar crítico diante da realidade que o circundou, permitindo-lhe a composição de sua obra. Escolhemos como corpus de estudo as dedicatórias enviadas por renomados escritores, num rol de 1100 livros dedicados que compõem, hoje, a coleção de obras com dedicatórias. Dentre muitos escritores-dedicadores, nomeamos Jorge Amado, Caio Porfírio Carneiro, Cassiano Nunes, Clarice Lispector, Nélida Piñon, Nelly Novaes Coelho e Cleonice Rainho, que ilustram a análise. Essa seleção de autores foi feita 1 ANDRADE, Jeferson Ribeiro de. Edições marginais - 2. Belo Horizonte: Copibel, 1976. Dedicatória manuscrita: "Para João Antônio, pela força aos novos e à literatura, os cumprimentos do amigo. Jeferson / 17/7/76." Esse escritor nasceu em 1947 e publicou 12 obras, dentre as quais Anna de Assis – história de um trágico amor (1987). Na década de 1970, começou a publicar pequenas edições de livros mimeografadas, pois a censura, em Belo Horizonte, não dava tréguas à literatura. Participou dos jornais O Pasquim, Movimento, O Estado de Minas. O autor morreu em 2013. 13 porque os escritores-dedicadores explicitaram muitas das temáticas abordadas por João Antônio, em inúmeros textos jornalísticos e ficcionais que escreveu. No primeiro capítulo, analisa-se a função das dedicatórias, na grande maioria dos casos, veiculadas nas primeiras folhas dos livros e funcionando, muitas vezes, como manifestações das ideias de autores da obra remetida. Esses paratextos referem-se aos ideais de João Antônio ou ao teor que se encontra no texto ficcional oferecido. Tal função, originariamente legitimada como meio de se agradecer por algo, ganha novos parâmetros a partir do século XVIII, quando os autores não têm mais que agradecer a algum mecenas. A dedicatória aparece, portanto, como parte da obra, relacionando-se ao tema proposto por seu criador ou ao seu fazer estético. Quando, por exemplo, o dedicador recorre a outro escritor de sua preferência e coloca trechos da obra do dedicatário, pode-se indicar que determinado escritor está também entre suas filiações literárias. Em outros casos, surgem nomes de familiares que, de alguma forma, puderam colaborar para a feitura do livro, observando-se, deste modo, os movimentos extraliterários vivenciados pelo escritor-dedicatário. Por isso, a família de João Antônio é relacionada em dedicatórias impressas e compõem esse capítulo inicial as figuras da avó materna, seu pai e seu filho. João Antônio teve a possibilidade de iniciar contato com a escrita, por meio de incentivo especial: o da família. Observou, desde criança, as atitudes do pai, cidadão português, casado com uma mulata e apreciador de boa música, que concretizou melodias e ritmos, com olhar de amador, segundo declarações da família Ferreira. Outra figura forte e marcante em sua vida, além do pai, foi a avó Nair, madrinha do coração, geniosa e com o sangue da geração afrodescendente. Assim, a relação familiar é frequente referência em suas obras, quando João Antônio os homenageou, oferecendo-lhes dedicatórias impressas. Com esse clima familiar, observa-se que as homenagens se tornam constantes no conjunto da obra do escritor e jornalista João Antônio, difundidas por meio de dedicatórias impressas, outra possibilidade de análise que se atrela a este trabalho. O que se extrai desses paratextos é a caracterização de seres humanos que, de alguma forma, permitiram ao escritor o contato e o encontro com o mundo e com tudo o que o cercou, desde artimanhas econômicas e sociais até momentos de fabulação interna. Logo, o capítulo versa sobre esse momento de homenagens dedicadas e nele há a possibilidade de se mapear o quanto a família foi importante na trajetória do contista. Ainda nesse primeiro capítulo, desdobra-se a análise a partir da primeira dedicatória 14 impressa, realizada por João Antônio, em seu livro de estreia Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), verificando de que maneira dedicatória e crítica de orelha são vistos como impulsionadores para sua carreira de escritor. O autor de MPB2 (1963), Leão-de-Chácara (1975a), Casa de Loucos (1976), Dedo-Duro (1982) e Abraçado ao meu rancor (1986), destacando algumas de suas obras, envolveu-se com outros escritores, por meio de cartas, com jornalistas, editores e tantos outros. Esses contatos mostram sua formação intelectual, possibilitando que se conheça o cabedal de leitura, pesquisa e reflexão que João Antônio encontrou e vivenciou, ao longo de toda sua trajetória profissional, formando, assim, seu projeto literário. Dessa forma, analisa-se o quanto as dedicatórias impressas formam um inventário de circunstâncias, visto que promovem variados nomes, cada qual com sua importância na vida do escritor João Antônio. Outro ponto relevante, neste primeiro capítulo, é o quanto MPB se revela como marco inicial para o marketing editorial de João Antônio, já que é sua obra de estreia e traz referências a outros nomes de sua vivência familiar e intelectual, além do valor da própria obra, que o leva a inúmeras consagrações3. Nessa parte do estudo, elencam-se os intelectuais que impulsionaram, de certa maneira, a carreira do escritor, como essas relações aconteceram e de que modo se atrelam à constituição de seu projeto literário. No segundo capítulo, são apresentadas as dedicatórias manuscritas que, de modo geral, resgatam os assuntos caros a João Antônio, discutidos durante toda sua relação com a escrita. Mostram-se, nesse capítulo, dedicatórias diversas, com autoria variada, mas que se relacionam aos assuntos tratados pelo escritor e (re)conhecidos por sua comunidade. Com Jorge Amado, por exemplo, e suas respectivas dedicatórias, há três aspectos relevantes a serem destacados. Primeiramente, observa-se como as filiações literárias de João Antônio, assumidas pelo dedicatário, confirmam não só os gostos literários do contista como também a sua escolha de formação cultural. Aquele autor reconheceu o quanto Lima Barreto, com seus livros, tornou-se, para João Antônio, um dos autores de leitura de cabeceira e de posteriores pesquisas sobre sua obra. Lima 2 A sigla MPB refere-se ao primeiro livro de João Antônio, Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) e ela será usada no decorrer do trabalho. Quando nos referirmos ao conto, seu título virá entre aspas. 3 “Seu primeiro livro, MPB, reeditado 12 anos após seu lançamento, ganha agora sua quarta edição. Um ‘clássico velhaco’, segundo Marques Rebelo.” (Literatura brasileira em fontes populares. Porto Alegre, Diário de Notícias, 4 set. 1976.) 15 Barreto foi, sem dúvida, para o contista, um dos escritores que melhor soube retratar sua nação. Com a criação de personagens que caracterizam a representação do povo brasileiro, deu-lhes espaço quando o que mais se fazia era priorizar, em muitas obras de ficção, as altas sociedades do século XIX, as quais ainda reproduziam padrões europeus e não nacionais. O segundo assunto referenciado nas dedicatórias remetidas por Jorge Amado é o trânsito de João Antônio na região baiana, constituindo-se como uma experiência vivida pelo autor e compartilhada com o dedicador. Além desses dois aspectos, há o terceiro, que é a amizade e a admiração estabelecidas entre os dois, desdobrando-se em trabalho profissional que foi a apresentação feita por Jorge Amado em um dos livros de João Antônio, intitulado Dedo-Duro (1982), objeto de análise em capítulo especificado a seguir. Em relação ao contato que João Antônio manteve com o escritor Caio Porfírio Carneiro4, nota-se um número significativo de obras dedicadas que totalizam dez paratextos e respectivos livros. O contato entre os dois iniciou-se na década de 1960, mesma época de estreia literária de João Antônio, quando o outro já se consolidava na história da literatura brasileira. Ao longo dos anos, muitas cartas foram trocadas5 entre os dois, escritores e amigos, inúmeros encontros se realizaram, e incontáveis trabalhos profissionais se avolumaram em igual medida a eles. No que tange às dedicatórias, visualizam-se quatro instâncias fundamentais que compõem “certa irmandade” entre ambos: a homenagem, o apreço, a admiração e, acima de tudo, a amizade. Essas representações de afeto proporcionaram-lhes, mutuamente, pedidos de divulgações de obras, realização de prefácios e apresentações em suas produções, paralelamente a muitas conversas literárias que lhes permitiram ser críticos de si mesmos. No caso de Cassiano Nunes6, o número de livros dedicados, diante da coleção de dedicatórias, é o que mais chama a atenção, haja vista a assiduidade em enviar a João Antônio as suas obras dedicadas. São 23 livros que estão na coleção, todas dedicadas ao 4 Caio Porfírio Carneiro (1928) conta com 30 publicações, entre contos, novelas, romances e crônicas. Com Os meninos e o agreste, conquistou o prêmio Afonso Arinos e, com O casarão, ganhou o Jabuti. O mais recente livro é Veredas da caminhada, publicado pela RG Editores, em 2011. Caio Porfírio trabalha, atualmente, na União Brasileira de Escritores, sediada em São Paulo. 5 ANTÔNIO, João. Cartas aos amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas. São Paulo: Ateliê Editorial; Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2004. 6 Cassiano Nunes foi professor da UnB (Universidade de Brasília), poeta, ensaísta, crítico literário, dramaturgo e jornalista (1921-2007). Em 1958, foi um dos fundadores da Faculdade de Letras de Assis (UNESP), ao lado de Antonio Candido e Antonio Soares Amora. Sua trajetória e publicação de obras serão descritas no decorrer deste estudo, em subcapítulo dedicado ao escritor, que, junto com João Antônio, deixou sua marca literária no panorama cultural brasileiro. 16 contista, abordando temáticas variadas, tanto os livros de Cassiano Nunes quanto o teor das dedicatórias. Há muita afetuosidade, saudade causada pela distância e registros pela falta de tempo de se encontrarem, devido aos seus trabalhos, além de muita admiração e declarações de amizade sincera. O dedicador não se esconde de seus sentimentos e, enquanto fã confesso de João Antônio, soube expressar, por meio das dedicatórias manuscritas, os temas caros ao contista, como os ambientes esquecidos retratados, sua visão crítica sobre a imprensa nacional e a TV, a leitura de suas obras realizada pelo fã- escritor e pedido de divulgação, caso João Antônio as lesse. Outro assunto focalizado diz respeito ao reconhecimento de Cassiano Nunes em relação ao apreço que João Antônio teve diante da obra de Lima Barreto, igualmente lembrada por Jorge Amado. Assim, o que chama a atenção, realmente, não é o número de livros dedicados, mas o conteúdo das dedicatórias que atuam, em muitos casos, como críticas literárias sobre suas próprias produções, sucintamente bem realizadas, se se pensar no espaço visual que uma dedicatória dispõe em um livro. Quando se evidenciam enquanto críticas, estas, tomadas então como minicríticas ou minirresenhas, são vistas como desdobramentos de muitos dos assuntos enfatizados por João Antônio em palestras, encontros com leitores, com o público estrangeiro e na publicação de seus textos jornalísticos e ficcionais. No terceiro tópico dessa pesquisa, há a análise de alguns temas recorrentes para o dedicatário, tais como a profissionalização do escritor, assunto muito discutido por ele e por seus dedicadores, além das referências às suas personagens, as quais aparecem elencadas nos teores dos paratextos. Nesse capítulo, também vem à tona a fórmula clássica, “De X para Y”, denotando, portanto, que os dedicadores, muitas vezes, remetiam as dedicatórias e seus livros como simples protocolos de contato e pedido de divulgação. O quarto capítulo tematiza as autoras Clarice Lispector, Nélida Piñon, Nelly Novaes Coelho e Cleonice Rainho, e suas atuações destacam-se por suas movimentações no cenário literário nacional, entre as décadas já mencionadas. Essa análise tem o intuito de discorrer sobre as escritoras que mantiveram contato com o escritor, de sorte a mostrarem suas aparições no cenário editorial, suas publicações e reconhecimento, tudo com base na obra dedicada. Além desse aspecto, a abordagem de autoria feminina é pertinente na medida em que as escritoras ganham voz e espaço no meio literário, muitas vezes marcado pela massiva publicação de escritores. As obras dessas escritoras inter-relacionam-se à produção de João Antônio, uma vez que o 17 diálogo se estabeleceu tanto pelas dedicatórias quanto pelo envio de textos jornalísticos sobre o dedicatário, caso de Cleonice Rainho, ou de entrevistas realizadas por João Antônio, nas quais referenciava a obra de determinada escritora, caso como o de Nélida Piñon. E de que modo, seja a dedicatória manuscrita, seja impressa, atua nos estudos do campo extraliterário, quando se pretende entender os momentos de sociabilidade de determinada comunidade de intelectuais? Por meio das dedicatórias, sejam manuscritas ou impressas, demonstra-se o quanto João Antônio divulgou e apresentou nomes e os perpetuou, graças ao dinamismo do mercado editorial. Com essas duas ocorrências – dedicatórias manuscritas e impressas – compusemos o repertório reflexivo que pretende mapear os caminhos literários e extraliterários – intelectuais e pessoais – percorridos pelo escritor João Antônio. O jogo estabelecido pelas dedicatórias pode contribuir para o entendimento do seu universo, como também dos demais escritores que acompanharam sua trajetória e que participaram da história literária nacional. Ao lhe remeterem obras, os assuntos que se vincularam ao ato de se dedicar uma produção artística desvendam situações que, de certa forma, serviram como práticas constituintes de projetos literários, quer efêmeros, quer legitimados, haja vista os nomes de escritores consagrados pela crítica literária. Estes apontamentos mostram os estudos diante do universo das fontes primárias registram ainda possibilidades de entendimento não só de um único autor, mas de toda a sua comunidade. Observadas como fontes de registros que dimensionam o leitor a entender as realizações intelectuais de João Antônio, constituem documentação historiográfica e literária, permitindo a composição de um inventário consistente e delineador da herança cultural de determinado escritor. Dessa coleção fazem parte inúmeros escritores, veteranos e iniciantes, detentores de uma única obra ou de várias, parceiros, amigos, confidentes, escritores que, de algum modo, pensaram sobre a sociedade brasileira, mostrando, em obras dedicadas, situações e discussões referentes às décadas de 1960 a 1990. O objetivo é identificar os temas que interessaram a João Antônio, ao longo de sua jornada profissional, como assim se referia. Embora a profissão de escritor não tenha sido legitimada pela sociedade de sua época, o autor sempre trouxe para discussão esse tipo de tema. Por essa recorrência – a profissionalização do escritor – demonstramos, nos textos das dedicatórias, o quanto os escritores-dedicadores também abordaram o tema supracitado. 18 Quanto às suas filiações literárias, nomes como Lima Barreto, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Graciliano Ramos e Antônio de Alcântara Machado são descritos nas dedicatórias manuscritas, dado que pode revelar o leitor João Antônio, pois tais nomes compuseram sua formação literária e intelectual. João Antônio, na condição de leitor das obras oferecidas, autoriza o dedicador a fazer-lhe um pedido de leitura e consequente divulgação, já que o autor manteve empenhado trabalho na mídia impressa. Outros aspectos observados são o reconhecimento dos demais escritores quanto aos temas que o contista abordou, ao longo de sua obra, como composição de personagens e temáticas abordadas, além dos ambientes que essas personagens percorreram. Para ilustrar esse argumento, é possível conferir os teores das dedicatórias manuscritas, elencadas a seguir, que confirmam tais explanações. A primeira, retirada da obra A luta literária (1964), de Fausto Cunha, teve como tema a referência a MPB: Para João Antônio, o vitorioso autor de Malagueta, Perus e Bacanaço, com a amizade - tão recente e já tão funda! - e a admiração desde a primeira hora / do Fausto Cunha / Rio 22.V.65 (CUNHA, 19647) Quanto à dedicatória de Fernando Py, na obra Antiuniverso (1994), o dedicador também se referiu ao primeiro livro de contos de João Antônio: Ao caríssimo João Antônio, criador de gente extraordinária, como Malagueta, Perus e Bacanaço, este Antiuniverso, e o melhor abraço amigo do leitor e admirador, Fernando Py / Rio, março 96. (PY, 19948) São estas algumas das manifestações que norteiam a análise quanto ao que se pretende demonstrar, a partir das dedicatórias e que, de certa forma, ajudam a entender a constituição do projeto literário de João Antônio. Com vistas a elaborar um panorama das relações do autor com demais escritores e com o contexto literário de sua época, as dedicatórias configuram-se como marcas autorais que evidenciam o mapeamento das 7 CUNHA, Fausto. A luta literária. Rio de Janeiro: Lidador, 1964. 8 PY, Fernando. Antiuniverso. Rio de Janeiro: Sette Letras; Petrópolis-RJ: Firmo, 1994. 19 representações de práticas socioculturais. Contextualizadas, as dedicatórias possibilitam o entendimento da construção da memória nacional e do panorama literário - e, consequentemente, cultural -, do cenário político e econômico, tornando-se relevantes para o mapeamento da história literária do país. Nesse sentido, as obras dedicadas, impressas e manuscritas, permitem analisar uma prática social bastante utilizada pela comunidade, traduzida em sentimentos de apreço, admiração, produção cultural, formação, dentre outros temas. Os paratextos manuscritos, enviados pelos escritores aqui elencados, possibilitam que se mapeie a trajetória de João Antônio, a fim de se entender como se constituiu seu projeto literário. Enquanto gêneros textuais, as dedicatórias orientam-nos a compreender o percurso de João Antônio no meio literário e, por isso, elas aparecem como desdobramentos elucidativos a respeito da sua manifestação artística e da crítica articulada e reflexiva ante sua comunidade, além dos ideais de diversos escritores que igualmente se relacionaram com os do autor-dedicatário. Uma dedicatória testemunha o contato com elementos pertencentes aos bastidores da cena literária e, por esse viés, o livro dedicado torna-se representativo, quando se revela como meio cultural e configura a aparição de um escritor entre demais contemporâneos. Descortinam-se ideias expressas em um texto, a princípio conciso e restrito, feito para circular em determinada rede de sociabilidade. Para que se entenda melhor como foi construído o projeto literário de João Antônio, é interessante ressaltar o quanto os aspectos brasileiros discutidos por ele não ficaram apenas no âmbito do universo cultural, como a literatura brasileira, música ou artes e afins. Assuntos relacionados à política e à economia também lhe fomentaram ideias e pensamentos comprometidos e empenhados a partir de sua realidade, resultando em matérias jornalísticas ou em temas para contos, o que também se nota em alguns textos dedicados9. 9 "A João Antônio, cujo nome vi hoje na primeira página do Pasquim, como combatente de Maluf, o abraço afetuoso do antigo fã Cassiano 8/8/84" (NUNES, Cassiano. O "Sonho Americano" de Monteiro Lobato. São Paulo: Copidart, s.d.) Complementando esse assunto político, há a seguinte passagem, destacada por João Antônio em entrevista a um jornal: “Inclusive – e João Antônio enche o peito – concordo plenamente como decano dos escritores brasileiros, o grande Jorge Amado, que diz que mudará de País se esta figura tenebrosa for eleita para a Presidência. Temos que apelar para Deus, para o Diabo, para as forças auxiliares, até para as entidades transcendentais árabes, para que Maluf não chegue ao poder. Ele é o maior cínico da história política do País, um indivíduo cuja grande arma é a corrupção. A sua chegada ao poder seria a vitória do pior obscurantismo, da direita mais radical e vingativa. Até a própria direita se assusta com ele. Então, todas as oposições devem se unir para que ele não chegue ao poder. Este homem é a desgraça...” (MONTEIRO, Nilson. “João. O das quebradas.” (Acervo João Antônio). 20 Essa diversidade de temas, em certa medida, fez com que o autor discutisse com outros escritores os seus propósitos de trabalho. Ao se resgatar sua trajetória na imprensa10 e no campo literário, vê-se o quanto João Antônio se empenhou em divulgar autores estreantes ou consagrados, e sobre os quais anunciou as mais variadas informações, por isso a alusão à dedicatória que abre o título deste trabalho – “pela força aos novos e à literatura”. Sob esse ponto de vista, destaca-se o quanto o autor preocupou-se em difundir novos nomes os quais apareceram em seu ciclo profissional, alguns desses nomes compondo a história da literatura contemporânea11. Além dos novos autores que despontavam, o escritor tinha a preocupação de preservar escritores consagrados, como numa espécie de culto ao patrimônio cultural à qual a literatura também tem a função de perpetuar. Por meio da análise das dedicatórias, há reflexões sobre como João Antônio participou da cena literária nacional com o intuito, igualmente, de divulgar novos nomes da literatura e cultura brasileiras, como referido anteriormente. Enquanto jornalista do Tribuna da Imprensa, por exemplo, entre 1993 e 1996, teve a possibilidade de escrever sobre alguns dos livros dedicados.12 Atualmente, tanto as obras dedicadas quanto os demais livros que constituem sua biblioteca pessoal estão no Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP), situado no campus Assis, da Universidade Estadual Paulista (UNESP). A coleção de livros com dedicatórias figura no Acervo João Antônio e permite o resgate de obras ficcionais de diversos escritores, obras presenteadas ao autor com respectivos textos dedicados. Esses textos são vistos como fontes que formam parte da história cultural brasileira, embasada por 36 anos (1960 a 1996) de participação ativa de João Antônio e consequente comunidade de escritores-leitores. Como outros materiais que figuram em seu Acervo, as dedicatórias oferecem possibilidades de pesquisas frente ao legado deixado pelo escritor, por manifestarem opiniões de autores oriundos de diversas regiões do país. Para se compreender um pouco mais a história de formação pessoal e cultural de João Antônio, vê-se que esse escritor, de origem simples, teve referências pessoais e 10 Jornal do Brasil (1964), Revista Realidade (1966), Panorama (1975), Jornal Última Hora (1976), Tribuna da Imprensa (1993), O Estado de S. Paulo (1995) dentre outros. 11 "Para João Antônio - mestre de longa data - ofereço este meu primeiro livro de aprendiz. Com o abraço do autor Edson Amâncio Santos 14/9/86" (AMÂNCIO, Edson. Em pleno delito: contos. Santos-SP: Idiomax, 1986.) 12 JESUS, Cleide Durante Assis de. A crítica de João Antônio na Tribuna da Imprensa. Dissertação de Mestrado. UNESP-Assis, 2001. (178 p.). 21 intelectuais; aquelas, a partir de seu local de vivências, em Presidente Altino, distrito de Osasco, também vivenciadas nas ruas da periferia. Percorreu o centro de São Paulo e andou em botequins e, por essas vivências, João Antônio apareceu como um dos intérpretes da cidade de São Paulo, assim como outros nomes da literatura brasileira, como Mário de Andrade e Antônio de Alcântara Machado. Ao se transferir para o Rio de Janeiro, trabalhou em redações de jornais e nelas sobreviveu por meio de sua escrita. Esteve também em casas de amigos; não só firmando amizades, mas principalmente compondo alguns de seus textos ficcionais, já que muitas vezes lhe faltava um ambiente que lhe permitisse centrar-se em sua escrita. Percorreu outras terras, cercadas por suas cores locais e, por isso, mais do que singulares. Um exemplo de trabalho profissional que levou João Antônio a outras terras aconteceu na cidade de Londrina, de vivência breve, mas significativa passagem pela cidade paranaense, onde obteve trabalho fora do eixo Rio-São Paulo13. Outra de suas atividades, repetidas vezes feitas por João Antônio, foi a de proferir palestras em várias regiões do país e de outros lugares do mundo, casos como a Alemanha, Holanda, Cuba, Espanha, divulgando sua obra, algo que gostava muito de fazer, entrando em contato com o leitor. Essas investidas, em diferentes lugares do mundo, podem ser vistas nos textos das dedicatórias e, por isso, fornecem elementos que confirmam todo o trânsito cultural vivido pelo escritor. Assim, todos esses aspectos, relacionados às dedicatórias, realizam-se entre tantos assuntos tratados pelos demais escritores, aqui eleitos para embasarem este estudo e que funcionam como legitimadores, juntamente com suas dedicatórias, do projeto literário do escritor João Antônio. 13 MORAES, Renata Ribeiro de. João Antônio de pés vermelhos: a atuação do escritor-jornalista em Panorama. Dissertação de Mestrado, UEL, 2005. (Trabalho orientado pela Profª Drª Regina Célia dos Santos Alves). 22 1 DEDICATÓRIAS DE OBRA: HOMENAGENS DE JOÃO ANTÔNIO O conceito de paratexto tem origem nos estudos de Gérard Genette, na obra Paratextos Editoriais (2009), que se detém nesse tipo de temática e aprofunda seus questionamentos a partir de observações e avaliações de obras, como as de François Rabellais, François Chateaubriand, Pierre Corneille, Honoré de Balzac. Esses escritores, assim como muitos outros, adornaram seus livros com os paratextos, e estes, para Genette, configuram-se como “[...] aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público” (GENETTE, 2009, p. 9). Eles exprimem características espaciais (de localização no livro)14 e pragmáticas. Em se tratando de sua função pragmática, a que se detém em sua efetiva demonstração pessoal ou intelectual ao dedicatário, os paratextos impressos registram o quanto os envolvidos e vindos a público são vistos como “inspiradores ideais”. Ou seja, “[...] o dedicatário é sempre, de alguma maneira, responsável pela obra que lhe é dedicada, e à qual ele leva [...] um pouco de seu apoio e, portanto, de sua participação” (GENETTE, 2009, p. 124). As dedicatórias de obra são sucintos textos impressos, tipos textuais que se vinculam ao texto ficcional e seu lugar de aparição se instaura nas páginas iniciais da obra, destacando nomes que, de alguma forma, se ligam ao fato literário ou aos caminhos percorridos pelo autor, até que se chegue à publicação e divulgação ao público. Antecedem o texto ficcional, mostrando inter-relação entre autor, obra e público. O nascimento das dedicatórias impressas configurou-se no século XVI, na Europa, no período clássico, em que autores e patrocinadores das obras se relacionaram com objetivos de prestígio e que culminaram em agradecimentos a nomes eminentes da aristocracia, ou seja, o público leitor. Sob o crivo dos homens de poder, o rei ou o príncipe, estes viram os seus nomes perpetuados em verdadeiras obras de arte, já que os adornos utilizados nos livros obtinham requinte e sofisticação, valor real a que uma obra de arte como o livro deve usufruir. 14 “O lugar canônico da dedicatória de obra, a partir do final do século XVI, é evidentemente no começo do livro, e, com mais exatidão, atualmente na primeira página ímpar depois da página de rosto. [...] A dedicatória terminal é muito mais rara” quando colocada ao final do texto narrado ou de um posfácio. “Dentro do livro [...] E sem falar no grande número de coletâneas de poemas, novelas ou de ensaios nas quais quase cada elemento traz sua dedicatória particular [...]” (GENETTE, 2009, p. 116-117) 23 Com a circulação das dedicatórias de obra, ou seja, as impressas, em ambientes imponentes e detentores de poder, notabilizaram-se autor e soberano, cujo prestígio recíproco teve duas funções. Para o primeiro, conseguir benefícios da corte, bajulações e publicações posteriores. Ao rei ou ao príncipe, a dedicatória de obra, a qual registrou a referência aos soberanos, desdobrou-se em enaltecimento de seu poder. Dessa forma, a receptividade da obra fluiu de modo a impulsionar o nome do artista e, consequentemente, de seu patrocinador. Este, instituído como incentivador das letras, participou de uma prática editorial comum para a época, na qual se realizou ao ver seu nome impresso e perpetuado entre outros de igual posição aristocrática. Um texto de dedicatória impressa e sua respectiva obra caracterizam certo poder sobre as ações dos outros, principalmente quando do período supracitado em que os protocolos sociais foram rígidos e instaurados com base no bem material ou simbólico que se possuía, ou seja, objetos materiais ou titulações honoríficas. Um bom exemplo disso vem das bibliotecas de reis, instauradas a partir de um crivo rigoroso, comandado pelo desejo de estar apenas diante de “[...] livros que constituem seu prazer” (CHARTIER apud BARATIN; JACOB, 2006, p.183). As bibliotecas de reis formaram-se de acordo com o depósito de pelo menos cinco obras escritas por autores, as quais foram subdivididas em “[...] dois exemplares para a biblioteca do rei, um à comunidade dos livreiros-impressores, outro ao chanceler, e o último deve ir [...] para as conhecidos Gabinetes dos livros” (CHARTIER apud BARATIN; JACOB, 2006, p. 183). Portanto, essa prática existiu com a finalidade de oferecer prazer e deleite pessoal ao soberano, mas encontrou uma vertente pública, haja vista que essas coleções organizadas e compiladas foram registros de “[...] salvaguarda, que protegem do desaparecimento todos os livros que merecem e estão abertas aos sábios e aos eruditos” (CHARTIER apud BARATIN; JACOB, 2006, p. 184). Na obra A ordem dos livros (1999), Roger Chartier relata que os modos de composição de uma biblioteca articularam-se por meio de questionamento único: como as relações com o texto se transformaram ao longo dos séculos, sobretudo porque as relações sociais se moldaram à medida que as descobertas e invenções surgiram, além de outros aspectos sociais, culturais, econômicos, dentre outros. Se, para tudo há uma ordem, para os livros também há; com intenções variadas do autor ou com o conhecimento de mundo do receptor, às vezes erudito, outras, limitado, ou ainda por meio das convenções sociais que se atrelaram ao livro, logo, existindo uma ordem instaurada pela obra. Talvez uma imposição, “[...] apropriação [...] 24 ou inquietações dos seus diferentes públicos” traga uma pluralidade de significados, principalmente porque se tem aquelas diferentes possibilidades de inter-relação (CHARTIER, 1999, p. 10). Os paratextos também ganham outras dimensões de entendimento e interação com a obra e, por isso, se tornam elementos que registram as relações realizadas ao longo da história cultural de um momento. No Brasil, as dedicatórias impressas que datam do período régio e da época da aristocracia joanina também se apropriaram desse ato sociocultural, apresentando-se como meios de se demonstrar determinada posição social que certo autor ocupava. Desde o século XVI até os dias de hoje, por exemplo, quando o assunto percorre os desdobramentos da produção intelectual, em se tratando de obras literárias ou científicas, a recorrência à dedicatória impressa foi e é bastante habitual e comum. Em um dos trabalhos que versa sobre esse tema paratextual, em particular, na época de D. João, a pesquisadora Delmas enfatiza: O grupo de letrados da elite era dotado ou procurava dotar-se de instrumentos materiais e culturais que lhe permitisse[m] assegurar o monopólio da cena política, do privilégio e da concentração do poder; em geral, tempo livre e capital cultural. No caso desse grupo de intelectuais que oferecia suas obras em homenagem observa-se, principalmente, o acesso ao conhecimento acadêmico, a habilidade com o uso da retórica, a capacidade de produzir uma publicação cujo conteúdo fosse do interesse das pessoas certas. Soma-se a essas características a capacidade de produzir um bem cultural digno de ser oferecido, e que também pudesse ser reconhecido pelos demais como símbolo de afirmação e enaltecimento do poder do rei - um bem cultural que fizesse uma declaração pública do poder real expressiva a ponto de ser recompensado por isso. (DELMAS, 2008, p. 27). Diante desse contexto de relações, a dedicatória impressa instituiu-se cada vez mais no ambiente do soberano, possibilitando que o escritor recebesse prestígio financeiro ou social. Essas inter-relações consolidam-se como simbologias trocadas em forma de oferecimento e homenagem, e esta última, algumas vezes, não garantiu ao escritor a mesma retribuição em troca de favores ou o estreitamento de relações com a corte. Tais ações resultantes de práticas que se iniciaram no século XVI existem até hoje, porém, denotam outras intenções e, por esse motivo, atuam como textos que não mais se atrelam à prática do mecenato. 25 Hoje, o ato de se dedicar um livro, em se tratando das dedicatórias impressas, para João Antônio, constituiu-se como prática muito utilizada, pois em todas as suas obras há esta marca paratextual. Desde a publicação de sua primeira obra, Malagueta, Perus e Bacanaço15 (1963), até a edição da última Dama do Encantado16 (1996), o autor realizou dedicatórias impressas, homenageando nomes e relembrando-os, pois, para ele, foram pessoas e personalidades importantes em sua trajetória de formação. A primeira constatação que se faz acerca de suas relações as quais resultaram em paratextos impressos é o fato de que João Antônio não se esqueceu de sua família, pois, para enaltecê-la, empregou dedicatórias e a notabilizou em suas obras. Além do filho Daniel Pedro de Andrade, homenageou a avó, Dona Nair Ferreira Gomes, a figura feminina a lhe suscitar admiração e respeito, pela história de vida e de coragem que essa matriarca vivenciou e, com suas experiências, as passou aos netos. Quanto ao pai, João Antônio Ferreira, outro homenageado, foi um cultivador de orquídeas, além de um chorão apto com o manejo de instrumentos de corda, sendo lembrado pelo autor em algumas de suas obras. Assim, esses três nomes de sua composição familiar receberam homenagem, atenção e respeito enquanto o contista produzia sua literatura. O autor teve a família como ponto de partida para sua formação enquanto homem e escritor. Trazer à tona essa filiação familiar marca o quanto esta possui relevância na trajetória do autor, porque esses três nomes se constituem como elementos importantes, representando, igualmente, nomes que ajudam a compor seu projeto literário. Por isso, a formação de seu projeto literário não se dissocia de sua relação familiar, aliada às experiências pessoais, pelo contato com outras narrativas provenientes de filiações literárias, pelo gosto de se trabalhar com aquilo que se conheceu e vivenciou, e, portanto, com o que gostou e teve afinidade. Ao constituir seu projeto literário (obras, dedicatórias impressas e manuscritas, prefácios, apresentações, resenhas em jornais, fortuna crítica, cartas, encontro com 15 Nas três partes desse livro de contos, há histórias compostas a partir de fatos corriqueiros, do dia a dia, mas que não versam sobre personagens comuns. Incomum também é seu leitor, cúmplice das histórias urbanas, ambientadas no espaço e esfera social da cidade de São Paulo da década de 1960. No contato com o mundo das personagens, o interlocutor apropriou-se não só de narradores em primeira ou em terceira pessoa, mas também se deteve sobre acontecimentos interiores os quais desestabilizaram os pensamentos das personagens de papel, fazendo com que se refletisse sobre a condição dos excluídos socialmente num país colonizado e que, ainda hoje, enfrentam uma estrutura política e social que os massacram. 16 O livro Dama do encantado reúne textos que versam sobre Aracy de Almeida, Noel Rosa e outros nomes da cultura brasileira. 26 leitores e autores), demonstrou sua preocupação com seu fazer literário e intelectual. Percorrendo escolas e faculdades, foi ao encontro de seu maior incentivador cultural: o leitor. Além de dar espaço e voz à comunidade considerada marginal, traçou perfis como os de Noel Rosa, Aracy de Almeida, Darcy Ribeiro, Garrincha, Cartola, Paulo Gracindo etc. Teceu, portanto, sua verve crítica em relação não só ao submundo, rótulo que o acompanhou por ser considerado porta voz da marginalidade, mas também por discorrer sobre nomes da cultura brasileira, que contribuíram para a elaboração de momentos sociais referentes ao período no qual viveram. Se o projeto literário de João Antônio foi embasado em fontes primárias, tais como a fortuna crítica, imensa lista de textos epistolares, os livros dedicados os quais recebeu, ao longo dos anos, as obras consideradas clássicas, com respectiva marginália, às quais recorreu frequentemente, entre outras fontes de pesquisa, é pertinente pensar que o escritor se preocupou com os rumos que a memória cultural de seu país delineava. Sempre se questionou em relação a essa preservação memorialística, tanto em entrevistas quanto em cartas aos amigos jornalistas e escritores. Torna-se relevante entender que a construção ideológica e prática de seu arquivo vem de uma autoconsciência crítica. Esta, atenta à necessidade de se preservar materiais primários, permite compreender fatos importantes e representativos da história literária, cultural e social brasileira, para além da própria obra do escritor. Com o trânsito no meio intelectual, o autor se movimentou entre vários escritores, com vistas a ser lido, discutido, comentado e divulgado, o que lhe propiciou o (re)conhecimento de seu trabalho com a palavra. 1.1.1 Dedicatórias de obra: inventário de circunstâncias Trilhar um inventário das dedicatórias torna-se relevante, na medida em que há a possibilidade de se compreender os momentos de produção que uma obra literária apresenta. Há ainda outros dois propósitos substanciais a serem analisados: discutir seus modos de movimentação editorial e intelectual, além de refletir sobre como as dedicatórias atuaram como meios de representações socioculturais entre a comunidade, 27 compondo uma inter-relação e, dessa forma, atendendo ao projeto literário de João Antônio. Com o passar dos tempos, a configuração inicial e tradicional da dedicatória de obra ganhou novos rumos, imprimindo nos contextos editoriais marcas mais livres e autorais, tendo em vista a evolução e desvinculação aristocrática frente ao ato de se dedicar um livro. O escritor dissociou-se da ideia de oferecer um livro ao seu protetor financeiro, ao seu patrocinador, e é interessante destacar o que Honoré de Balzac asseverou, ao se referir a essa prática, já enfraquecida quando de sua revelia a oferecer “forçadamente” sua produção cultural: “Senhora, o tempo das dedicatórias acabou” (BALZAC apud GENETTE, 2009, p. 113). Tal repúdio ao ato “contratado” – entre dedicador e dedicatário – ganhou mais adeptos a partir do século XIX, cujo pensamento e ações afloraram de modo menos ritualístico e obrigatório. Nasceu, naquele momento, a opção pela escolha, ou seja, a dedicatória de obra recebeu atenção de seu criador, porque para os escritores com maior “poder sobre a opinião pública”, atingindo o seu leitor, antevia-se o texto ficcional cerceado pela dedicatória, realizada espontaneamente, sem regras ou associadas a um nome que suscitou obrigações. A composição de dedicatórias de obra realizada por João Antônio permite entender o exercício frequente de perpetuar um nome de seu convívio social ou simbólico, e essa consciência de atitude não se desvencilhou do projeto literário que arquitetou, durante seu momento de escritor. Cada nome representou algo para o autor e cada um apareceu sob instâncias de criação as quais pressupõem leituras antes de se chegar ao texto ficcional. Nos tempos modernos, o pensamento pautado em escolhas livres, na liberdade de se comunicar, mostrou novos rumos dos meios editoriais. Perpetuar um nome, vinculando-o a uma obra, por meio de uma dedicatória, apresentou-se não somente pelo fato de se divulgar uma admiração de cunho pessoal. Por isso, as marcas paratextuais saem do âmbito privado e passam a circular em esfera pública, apresentando os contatos mantidos entre os escritores. Em termos mais abrangentes, as dedicatórias trouxeram ao público a participação do dedicatário de maneira mais efetiva e participativa, na vida e na obra do criador. Um ponto de destaque, resultando da prática de divulgação do outro em sua escrita, recaiu sobre o discurso paratextual o qual não figurou apenas como a fórmula clássica “De X para Y”, mas, acima de tudo e, de modo mais amplo, participou como 28 uma informação relacionada à obra ficcional. As dedicatórias receberam maior atenção quando se apresentaram em tons de elogio, configurando-se, como demonstra Genette, em epístolas dedicatórias: portanto, além de textos mais longos, eram ainda eloquentes e reflexivas. Esta definição de epístolas dedicatórias mostra um caminho incorporado de sensações de cunho informativo, descrevendo ora a gênese da obra, ideias do autor, frente ao seu momento de criação, ora posicionamentos inerentes à ocasião factual na qual se inseriram. A expressão “epístola dedicatória” atua também como um prefácio, apresentando obra e autor, e não mais tem o intuito de mostrar a figura do mecenas ao público. Se os textos discursivos são mais extensos, entende-se o quanto esta inter- relação entre paratexto e ficção procurou posicionar o leitor diante do que se propôs a ler e é ele que pode dirigir a leitura. Um nome que se apresenta em um gênero discursivo como a dedicatória pode resgatar uma relação que nenhum outro vivenciou, não noticiado por nenhum telejornal, por crônica impressa em jornal de boa circulação ou em qualquer press-release. E é a partir dessa não divulgação que se desvendam e se desvelam os preceitos estéticos do autor João Antônio, cujo objetivo também foi partilhado pelos demais escritores de seu tempo. Formula-se, por todas as dedicatórias de obra que realizou, um convite para se refletir sobre a escolha de se eleger determinados nomes para figurar em suas obras. Destaca-se essa prática como um dos elementos de formação estética que um autor pode vivenciar, haja vista os diferentes tipos de mensagens paratextuais veiculadas nos exemplares de obra a que se tem acesso. Inventariar dedicatórias, qual é o propósito? Quais são as contribuições oferecidas pelos gêneros textuais, como as dedicatórias impressas, quando um estudo é idealizado? Como podem ser vistas, no contexto de formulação da historiografia literária, por exemplo? No tocante às de exemplar, ou seja, as manuscritas, por que a divulgação desse gênero textual? Se elas atuam como possibilidade de desvendamento do projeto literário de João Antônio, fato é que mapeiam seus propósitos e objetivos, cujas afinidades e intuitos comuns se amarram aos textos ficcionais e ao dedicatário. Ressalta Gérard Genette: Qualquer que seja a dedicatória oficial, sempre existe uma ambiguidade na destinação de uma dedicatória de obra, que sempre 29 tem em vista pelo menos dois destinatários: o dedicatário, é claro, mas também o leitor, já que se trata de um ato público no qual o leitor é de algum modo chamado a testemunhar. Tipicamente performativa, como já disse, pois constitui por si só o ato que se supõe descrever, portanto, não é apenas: “Dedico este livro a Fulano” (isto é: “Digo a Fulano que lhe dedico este livro”), mas também e às vezes muito mais: “Digo ao leitor que dedico este livro a Fulano”. Mas, por isso, igualmente: “Digo a Fulano que digo ao leitor que dedico este livro a Fulano” (em outras palavras: “Digo a Fulano que lhe faço uma dedicatória pública”). (GENETTE, 2009, p. 123). O instante marcado pelo contato entre dedicador e dedicatário torna-se único, singular, mas, ao mesmo tempo, torna-se público e impulsiona um diálogo para além de relações literárias. É um jogo que enfocou não mais a simples admiração, mas as vicissitudes de posicionamentos que convidaram a traçar um método de atitudes, ensejando princípios pessoais e profissionais. As formalidades discursivas retratadas pelos contatos intelectuais, com a dedicatória de obra, propagaram ideais de escritores compromissados com sua arte e com a realidade vivida. Foram, nesse caso, as circunstâncias vividas pela comunidade de escritores, com seu olhar crítico sobre seus momentos de aparição, registrando situações cotidianas em suas narrativas, sobrepostas, sempre que atraentes para o autor, às dedicatórias de obra. 1.1.2 Dedicatória de obra e prefácio em Malagueta, Perus e Bacanaço: marketing editorial Mapear o percurso do projeto literário de um escritor permite desvendar sua atuação no cenário intelectual. A constituição desse projeto fez com que João Antônio transitasse entre um sistema socioeconômico e cultural, por meio do trabalho profícuo que realizou com a literatura. Todo seu empenho vindo de esforço pessoal proporcionou-lhe ampla movimentação entre contemporâneos de escrita e leitores cuja trajetória e objetivo literários foram envoltos por ideias e preceitos conduzidos pelo que vivenciou, nos anos de 1950 a 1990. Observa-se, sob a perspectiva da construção e legitimação de seu projeto artístico, que as atividades profissionais do escritor também se apresentaram por meio dos paratextos. 30 Para compreender a dimensão que as dedicatórias expressaram, é necessário conhecer outras formas de manifestação escrita que o autor desenvolveu, ao longo dos anos. Depois de todo o percurso literário e jornalístico que realizou e que é tão representativo para a história da literatura brasileira, é possível ver João Antônio como um arquivista. Houve uma preocupação e consciência em guardar diversos materiais, como jornais, referindo-se a sua obra e à de outros escritores; livros enviados por editoras para sua apreciação ou mesmo como simples cortesia; as correspondências que manteve com outros intelectuais; os manuscritos ficcionais e jornalísticos e, por fim, a coleção de livros dedicados que chega ao número de 1100 títulos, além das dedicatórias impressas. Aparece, desse modo, o homem preocupado em preservar o seu ato criativo, concomitantemente ao de diversos nomes da literatura brasileira. Se as dedicatórias manuscritas fornecem fatos e artefatos para composição de seu projeto literário, as dedicatórias impressas também se apresentam como modos de constituição desse projeto. Esses paratextos homenagearam alguns nomes relevantes da sociedade brasileira e, de certa maneira, atuaram como meios de agradecimentos e inter-relações frente a fatos pessoais, sociais e literários. O movimento intelectual de João Antônio aliou-se a sua produção literária e, consequentemente, consolidava-se a constituição de seu projeto literário. Toda essa movimentação ajuda o leitor a entender seus propósitos e funções, enquanto intelectual empenhado, durante 40 anos de atuação. O território literário difundido pelo escritor leva a inferir que os caminhos constitutivos de seu projeto divulgam o contato com os bastidores de sua produção literária e intelectual, além das ações comuns dos demais escritores. Entende-se que seu empenho diante da escrita, movimentando-se entre o universo de produção de outros escritores, além do seu posicionamento quanto à crítica realizada, fez com que todo esse jogo de relações de João Antônio fosse visto como maior motivador de suas ações. O resultado foi o de figurar na história da literatura brasileira, disponibilizando ao público, crítica e companheiros de ofício, sua ficção. Acumulou termos que criou, ao longo de suas experiências com o meio literário e intelectual, tais como as expressões “imprensa nanica”, “corpo-a-corpo com a vida” e “merdunchos”. 31 O contista publicou a primeira obra em 1963, pela Civilização Brasileira, e, por meio desse livro de contos, obteve reconhecimento de crítica e de público. A primeira edição se esgotou “rapidamente”, ainda no ano de lançamento; em se tratando de Brasil, um caso raro, se se pensar na época de publicação de MPB. Um exemplo dessa recepção crítica, no ano de lançamento, pode ser verificado na afirmação de João Alexandre Barbosa, publicada no Jornal do Comércio (Recife), em 17 de novembro de 196317. Entre outros aspectos, o crítico referiu-se à temática usada por João Antônio, observada no conto “MPB”: Com este conto, a meu ver, João Antônio vem muito cedo firmar-se entre o que existe de melhor na nossa ficção urbana. Na linha de um Manuel Antônio de Almeida, de um Lima Barreto, de um Alcântara Machado, de um Mário de Andrade, de um Marques Rebelo, de um Gastão de Holanda. Nomes muito diferentes mas que são marcados por preocupações semelhantes: as vias de existência que podem oferecer as cidades com seu túmulo de lugares e gentes, embora vistas sob diversas perspectivas. (BARBOSA, 1980, p. 139). Outro ponto de vista sobre essa primeira obra vem com os comentários críticos de Clara A. Ornellas, a qual observou que, por meio dos temas escolhidos, a linguagem poética também se sobrepôs e “essa relação amorosa com a linguagem poética ocorreu porque a palavra escrita lhe oferecia outros patamares de reflexão sobre a vida e as relações sociais” (ORNELLAS, 2008, p. 30). Essas duas opiniões críticas relacionam-se ao que o próprio autor registrou sobre sua composição estética, ou seja, ele expressou os objetivos de trabalho, já formando seu projeto literário: [...] o de que carecemos, em essência, é o levantamento de realidades brasileiras, vistas de dentro para fora. Necessidade de que assumamos o compromisso com o fato de escrever sem nos distanciarmos do povo e da terra. (ANTÔNIO, 1987, p. 316). 17 BARBOSA, João Alexandre. Malagueta, Perus e Bacanaço. In: Opus 60: ensaios de crítica. São Paulo: Duas Cidades, 1980. 32 Esse compromisso assumido pelo escritor pautou a composição de seu trabalho com a palavra, durante sua trajetória literária, e, nesse sentido, a obra de estreia retratou a apreensão da vida dos marginalizados e do submundo paulistano, além de denunciar o temor singular vivenciado na ambiência dos subúrbios e centro de São Paulo. Logo após o lançamento e do sucesso obtido com MPB, João Antônio mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1964, para trabalhar no Jornal do Brasil, firmando sua trajetória de jornalista, a qual perdurou até o final de sua vida. Ele realizou, dessa maneira, boa parte da produção literária e jornalística na capital fluminense18, cidade que o absorveu e o envolveu, fazendo com que se sentisse completamente em casa. Essa identificação com o Rio de Janeiro resultou em cenário para muitas produções e, prova disso, foram as referências à Cidade Maravilhosa, no livro de contos Malhação do Judas Carioca: Nem chuva renitente, nem camburão de Polícia, nem abaixo-assinado impedem a malhação do Judas no Sábado de Aleluia nos lugares em que o costume é tradição viva na Zona Norte. A rapaziada trata de remexer, com espírito e humor, muita vez expresso em palavrões e licenciosidade, a vida e o amargo da vida suburbana. Por uma coincidência fotogênica, o Rio esquecido, pobre, ignorante salta para os corpos dos Judas. (ANTÔNIO, 1975b, p. 113, grifo nosso). Presidente Altino, São Paulo, Rio de Janeiro, Londrina; Alemanha; Argentina, Espanha, Venezuela e Tchecoslováquia; mundos díspares e, muitas vezes, caóticos em suas particularidades, apareceram, em alguns momentos, como elementos espaciais de extrema importância para se entender o contexto pessoal e formativo de João Antônio. Escritor traduzido, ganhando espaço por meio de seus contos, esse trânsito estrangeiro atestou e confirmou a universalidade de sua produção. A passagem por lugares diferentes de seu local comum foi vista positivamente pelo escritor, já que, ao regressar para o local de origem, dizia ver sua literatura firmar- se em solo brasileiro. 18 João Antônio chegou a voltar para São Paulo, posteriormente à sua primeira experiência no Rio de Janeiro, mas esse retorno durou apenas dois anos (1967-1968), já que novamente ele voltou para a capital fluminense. Em 1975, ele muda-se para Londrina, porém, residiu na cidade paranaense somente por três meses. À exceção dessas duas investidas, o Rio de Janeiro se firmou, de fato, como a cidade de seu encantamento até a sua morte, em 1996. 33 Mesmo desenvolvendo temas relacionados à realidade brasileira, sua obra obteve repercussão internacional, tendo em vista o foco central de sua produção: o homem marginalizado, das grandes cidades, com suas angústias e lutas constantes para garantir a sobrevivência. Portanto, os textos de João Antônio publicados no exterior podem ser vistos como textos universais, pois segundo o próprio autor: Os formalismos e modas em geral não têm nada a ver com o recado visceral de uma literatura realmente brasileira. E mais. Desde Cervantes, Dostoievsky, Stendhal, Balzac, Zola, o universal sempre coube no particular pela captação e exposição da luta do homem e não de suas piruetas, cambalhotas, firulas e filigranas mentais. (ANTÔNIO, 1987, p. 318). Por meio desse depoimento, verifica-se que a questão do universal relacionou-se com os propósitos estéticos de sua obra. Os temas abordados pelo escritor não são vistos apenas por marcações temporais (1950 ou 1970) ou espaciais (São Paulo, Rio de Janeiro ou Londrina). São temáticas já trabalhadas por Fiodor Dostoiévski e Lima Barreto e estão em qualquer ponto do planeta. Com efeito, a temática que ele optou em trabalhar dialogou, principalmente, com o fato de o ser humano se questionar, refletir sobre seu momento, buscar entender suas apreensões, ainda que muitas vezes não tivesse a oportunidade de confidenciá-las a outrem. Ao compor suas narrativas, o autor trabalhou para que seus doze livros fossem publicados, o que resultou em reconhecimento da crítica brasileira, cada qual com uma apreciação estética margeada por análises bem fundamentadas e representativas19. O crítico Antonio Candido assim se manifestou a respeito da coletânea MPB: 19 Fausto Cunha, ainda no ano de lançamento de MPB, assim se reportou à obra do estreante: “[...] ele [João Antônio] possui uma qualidade que contrabalança quase tudo: autenticidade vivencial. João Antônio estabelece uma ligação direta e por vezes instantânea entre o leitor e os seres humanos que enfoca. Transmite inclusive um código de fala, que dá o sopro de vida. [...] A meu ver, o melhor de João Antônio, o que mais promete do ponto de vista criador, não está nos excelentes contos da “Sinuca”. Não está certamente nos ruins contos da “Caserna” ou no péssimo “Fujie”. Está em “Busca” e na esplêndida “Afinação da Arte de chutar tampinhas” (CUNHA, 1963). Outro apontamento crítico sobre a coletânea MPB é feita por Marques Rebelo, nomeando a obra como “clássico velhaco”, pois segundo sua visão crítica, o livro de estreia pode ser considerado como um clássico. 34 João Antônio publicou em 1963 a vigorosa coletânea Malagueta, Perus e Bacanaço; mas a sua obra-prima (e obra-prima em nossa ficção) é o conto longo “Paulinho Perna-Torta”, de 1965. Nele parece realizar-se de maneira privilegiada a aspiração a uma prosa aderente a todos os níveis da realidade, graças ao fluxo do monólogo, à gíria, à abolição das diferenças entre falado e escrito, ao ritmo galopante da escrita, que acerta o passo com o pensamento para mostrar de maneira brutal a vida do crime e da prostituição. (CANDIDO, 1989, p. 210- 211). Essa legitimação literária, também (re)conhecida pelo próprio escritor, demonstrou o respeito e a admiração expressa por seus contemporâneos de escrita e críticos, seja por meio das avaliações analíticas, seja com sua representatividade por meio dos paratextos. Estas apontam como os bastidores de produção se articularam por meio das relações estabelecidas e por isso permitem igualmente que se confirme o quanto sua produção ocupou lugar de destaque no rol da crítica brasileira, por exemplo, entre as inúmeras entrevistas ou textos de jornais sobre ele ou sobre sua obra. Desde sua morte, há vários trabalhos acadêmicos em desenvolvimento e alguns concluídos20. Todos são significativos e reveladores, pois dão suporte a muitos outros que ainda estão por vir. Esses podem ser vistos como fruto da luta e insistência de João Antônio em construir seu projeto literário, porque se dedicou muito a ele, a fim de que pudesse se tornar um membro reconhecido em sua comunidade. Por isso, pode ser visto como um nome importante da narrativa das décadas de 1960 a 1990. Esses trabalhos contribuem, além disso, para a formação da crítica acadêmica, a qual se debruça cada vez mais ao estudo da obra joãoantoniana, possibilitando ao pesquisador entender seu percurso literário em consonância com os contemporâneos. A função de um paratexto, no caso da dedicatória impressa, atua como eterno avaliador da obra. Assim, Paulo Rónai e Mário da Silva Brito são homenageados pelo escritor João Antônio, quando da publicação de MPB. Por essas aproximações intelectuais e profissionais, vê-se que as dedicatórias impressas, vinculadas às obras literárias, não se dissociam. Para Genette, é preciso observar que as obras literárias não são publicadas como textos nus, já que podem vir cercadas por elementos diferentes e que, de certa forma, se relacionam a elas e as “[...] prolongam, exatamente para 20 Alguns desses trabalhos estão disponíveis, na íntegra, no site do Acervo João Antônio, em http://www.assis.unesp.br/cedap/acervo_joao_antonio/Pesquisas.htm 35 [apresentá-las], para garantir sua presença no mundo, sua ‘recepção’ e seu consumo” (GENETTE, p. 9, 2009) Na primeira edição de seu livro de estreia, Paulo Rónai21 e Mário da Silva Brito22 receberam a homenagem, como se comprovou no livro MPB: Ilustração 1: Dedicatória impressa em Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) Transcrição da dedicatória impressa: “Para Paulo Rónai e Mário da Silva Brito” (ANTÔNIO, 1963) 21 Paulo Rónai (1907-1992) nasceu em Budapeste, Hungria. Atuou como tradutor, ensaísta, professor. Desde criança sentia pelos idiomas uma espécie de paixão. Foi por meio deles que incursionou pelo território da tradução, cujo trabalho pode ser visto no romance Os Meninos da Rua Paulo (1971), de Ferénc Molnar. Atualmente, seu Acervo foi adquirido pela USP e conta com mais de 7 mil livros e mais de 60 mil documentos, entre cartas e diários. Seus principais prêmios são Silvio Romero e Machado de Assis, ambos da Academia Brasileira de Letras. 22 Mário da Silva Brito (1916) nasceu em Dois Córregos, São Paulo. Estudou na capital paulista e se formou em direito em 1943. Interessado em movimentos literários e colaborando desde cedo na imprensa, Mário manteve várias colunas de livros e trabalhou como assessor de editores de São Paulo e do Rio de Janeiro. Editor, poeta, crítico, historiador do modernismo, jornalista. Recebeu o prêmio de conjunto de sua obra da Academia Brasileira de Letras, em 1976, além do prêmio de Poesia Francisco de Paula Ferraiol, instituído pela revista Juca Mulato, Itapira, pelo livro Universo, em 1961. 36 Os dois nomes homenageados, de grande importância no cenário nacional das décadas de 1960 e 1970, impulsionaram a carreira do escritor, visto que acreditaram na temática desenvolvida, no estilo e forma de escrita do jovem autor que despontava. Paulo Rónai e Mário da Silva Brito apareceram nessa primeira obra e receberam a atenção do autor como modo de retribuição, porque os denominou padrinhos literários que lhe abriram caminhos. Segundo Gérard Genette, o fato de os nomes aparecerem em primeira folha representa notoriedade e perpetuação da obra literária. Acrescenta o estudioso: A palavra dedicatória designa duas práticas evidentemente aparentadas, mas que é importante diferenciar. Ambas consistem em prestar uma homenagem numa obra a uma pessoa, a um grupo real ou ideal, ou a alguma entidade de outro tipo. (GENETTE, 2009, p. 109). Devido à amizade, pelo respeito e admiração de seus trabalhos, João Antônio vinculou a sua obra de estreia aos nomes dos dois intelectuais. À época do lançamento do primeiro livro, 1963, Paulo Rónai e Mário da Silva Brito ocupavam lugar de destaque como críticos literários, pois ambos eram nomes que tinham proeminência cultural e social, no cenário da crítica literária nacional. Ao observar algumas das correspondências depositadas no Acervo João Antônio, constata-se que, antes de publicar o primeiro livro, o então jovem candidato a autor tinha contato assíduo com os dedicatários. Mário da Silva Brito o auxiliou na reescritura dos originais perdidos em razão do incêndio ocorrido em um dos cômodos pertencentes à casa do escritor. Paulo Rónai, por meio de pontos de vista referentes à obra, permitiu a João Antônio refletir sobre sua incursão no gênero conto, como atesta o enunciado a seguir, retirado de uma carta do crítico ao contista, datada de 1962: Prometi-lhe em minha última carta ler a sua novela na primeira folga que tivesse. Esta veio afinal e incontinenti me dediquei à leitura. Você tinha razão em reconstituir o original perdido no incêndio. Dou- lhe parabéns por Malagueta, Perus e Bacanaço, que é realmente um trabalho ótimo, original, bem arquitetado e muito bem escrito; li-o com o mais vivo interesse até o fim, apesar de não ter a menor noção de bilhar, nem conhecer a respectiva terminologia. As suas personagens são vivas, saborosas, exatas. Vejo agora que o seu 37 verdadeiro setor é o conto (ou a novela) desenvolvido em ambientes especiais que você conhece e sabe reviver. É neste rumo (e não no das notas críticas) que você deve prosseguir, não tenho dúvidas sôbre a futura repercussão de seus escritos nesse gênero. A única coisa de que não gostei na novela são as dedicatórias, excessivamente espalhafatosas e pretenciosas (sobretudo a segunda). (“Carta de Paulo Rónai a João Antônio”, 3 ago 1962 – Acervo João Antônio) [destaque de Paulo Rónai]. Nesse trecho, há um evidente interesse e incentivo de Paulo Rónai ao então jovem e iniciante escritor. Além do olhar atento às qualidades de escrita de João Antônio, tem-se a observação do crítico quanto às dedicatórias que o autor realizou, atreladas à narrativa. Esse exemplo auxilia no entendimento das razões que levaram o escritor estreante a dedicar seu primeiro livro também a Paulo Rónai. Tratou-se de um ato interessado em homenagear renomado intelectual e ainda de reconhecer alguém que acompanhou de perto seu primeiro exercício literário, com vistas à publicação em livro23. Se, por um lado, verifica-se essa relação de reconhecimento e homenagem, por outro, percebe-se uma ressonância de vozes que ampliou o ato da dedicatória para além da publicação. O crítico húngaro, além de atuar como professor de francês e latim, desempenhou os ofícios de revisor e tradutor. Suas diversas formas de trabalho configuraram-no como um expoente do cenário intelectual brasileiro, tanto ao ocupar espaço representativo, nas editoras de sua época, quanto por conviver e trabalhar com escritores e poetas reconhecidos como Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, entre outros. Não foi diferente o papel que ocupou Mário da Silva Brito. Manteve constante produção crítica na imprensa, atuando no mercado editorial como editor da Civilização Brasileira, por aproximadamente 15 anos, além de atuar como poeta e historiador da literatura brasileira. O crítico incentivou João Antônio a publicar MPB, providenciando um espaço na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, para que reescrevesse seu conto. Essa relação de afeto e amizade para com o então jovem escritor paulistano resultou na crítica de orelha da primeira edição de MPB. 23 Posteriormente, Jorge Amado faria o mesmo exercício crítico, analisando a obra Dedo-Duro (1982), de que nasceu o texto de apresentação para esse livro de contos. Em capítulo subsequente, há uma análise referente à atuação de Jorge Amado enquanto leitor e crítico de João Antônio. 38 Tais relações envolveram os três sujeitos. Os dois críticos reconheceram o trabalho de João Antônio e por isso houve a oportunidade para publicar sua primeira obra. Além disso, a editora Civilização Brasileira alcançou significativa notoriedade cultural, que, sob a direção de Ênio Silveira, tornou-se uma das principais editoras do país. Foi grande patrocinadora dos escritores brasileiros, proporcionando-lhes publicação, tanto dos nomes conhecidos, quanto dos desconhecidos. Neste último caso esteve João Antônio. O autor paulistano estreou no contexto literário em uma das editoras de maior sucesso daquele período, um dos espaços mais aclamados do cenário intelectual daquela época. Essa ascensão auxilia no entendimento quanto à função de um paratexto, pensando no contexto da história do mercado editorial, de sorte a compreender que a dedicatória feita por João Antônio aos dois nomes descritos acima se multiplicou para centenas de leitores interessados em acompanhar as produções da Civilização Brasileira. Um conjunto de relações históricas e pessoais atestou sua vinculação a um dado momento da literatura brasileira. Todo esse contexto de produção pode ter proporcionado o sucesso de vendas de seu livro. Tamanha foi a repercussão de MPB que, logo no ano seguinte ao seu lançamento, 1964, João Antônio publicou a narrativa “Paulinho Perna Torta”, na coletânea Os Dez Mandamentos, também pela Civilização Brasileira, ao lado de nomes como Marques Rebelo, Jorge Amado, Orígenes Lessa, Helena Silveira e Carlos Heitor Cony24. O crescimento literário de João Antônio demonstrou que o apoio recebido de Paulo Rónai e Mário da Silva Brito foi significativo, pois semelhantes críticos não avaliariam a escrita do jovem autor se esta não fosse boa. O sucesso de MPB denotou o quanto os posicionamentos críticos de Paulo Rónai e Mário da Silva Brito estiveram corretos acerca da escrita de João Antônio. Outro aspecto histórico que envolveu o primeiro livro de João Antônio deve ser referido. Segundo Antonio Candido (1989, p.140-162), a literatura da década de 1960 voltou-se, entre outros aspectos, para os problemas do subdesenvolvimento do Brasil. Questionando-se as origens colonizadoras baseadas na exploração do homem e das riquezas do país, perpetuada através dos séculos, houve também o saldo negativo da inserção de uma modernidade não planejada. Dentro dessa perspectiva, dar voz às 24 ANTÔNIO, João et al. Os dez mandamentos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. Nesse livro, a crítica de orelha é realizada por Ênio Silveira. 39 camadas socialmente oprimidas esteve em evidência como forma de contrapor-se à ambiência de poder dominante, o qual impôs uma visão positiva de progresso e desenvolvimento. Viveu-se, em síntese, a vontade de utilizar a literatura como meio de reflexão e foi nesse segmento que se firmou o caso da obra de estreia do contista. Este último dado reafirmou outro viés que permite entender as razões pelas quais Paulo Rónai e Mário da Silva Brito apoiaram a escrita do autor paulistano; afinal, tratou-se de uma abordagem de ordem literária diretamente vinculada às preocupações da ordem do dia daquele período. E a resposta positiva do público à coletânea também ratificou o quanto a abordagem das classes marginalizadas e do submundo de grandes cidades despertou o interesse pela obra. São aspectos de ordem histórica que podem ser comprovados quando se recorre a outro paratexto, presente em MPB. Conforme foi aludido, Mário da Silva Brito foi quem fez a crítica de orelha do livro. É interessante verificar como esse crítico – e também editor responsável pela primeira publicação de João Antônio – posicionou-se a respeito da coletânea de contos MPB. É preciso ressaltar que coube ao editor, Mário da Silva Brito, fazer a nota de orelha. Somente a partir de outras publicações de João Antônio é que Ênio Silveira passou a escrever sobre as obras do contista. Assim, na nota de orelha Mário da Silva Brito correlacionou-se a escrita do autor paulistano a autores como Alcântara Machado e Damon Runyon25, porém, a diferenciou, apontando particularidades: João Antônio lembra Antônio de Alcântara Machado, mas dele se diferencia porque envolve os seus personagens num clima de drama e solidão. Lembra também o universo de Damon Runyon, povoado de marginais e, especificamente, de jogadores e malandros às voltas com a polícia. A arte de João Antônio, conquanto imediatamente faça emergir da memória a personalidade, forte e marcante, daqueles dois escritores, é muito dele mesmo, nada deve a ambos, não se lastreia, como inspiração e realização, nesses ou em outros modelos. João Antônio é João Antônio e só. (BRITO apud ANTÔNIO, 1963). Ao longo da sua crítica, Mário da Silva Brito denominou-o um mestre na arte de narrar, cuja temática abordada, aliada à linguagem usada pelo jovem escritor, pluralizou 25 Alfred Damon Runyon (1880-1946), escritor americano, tem muitas obras publicadas, dentre as quais Guys and Dolls (1932), Money From Home (1935) e My Old Man (1939). 40 as personagens e lhes deu voz, envolvendo o leitor no universo da malandragem. Ao discorrer sobre fatos reais, o trabalho literário do escritor contribui para a formação da cultura do coletivo. Se “cultura” é o cultivo da mente humana, é certo que a “[...] mente humana é modificada, no desenvolvimento social” (WILLIAMS, p. 15). João Antônio chamou para si a responsabilidade de trazer à tona temas não tão comuns de serem lidos, para a época brasileira, mas que aos poucos se infiltraram no processo de (re)conhecimento da identidade coletiva nacional. Vistos em sua primeira obra, esses dois paratextos – dedicatória impressa e crítica de orelha – são apresentados como modos de inter-relação entre intelectuais e, consequentemente, atuaram como passaporte para firmarem o escritor no cânone literário. MPB constituiu-se como obra desbravadora e veio para legitimar o processo criativo do escritor. Por meio das características apontadas em sua obra, como demonstrou Mário da Silva Brito, houve o empenho do autor na divulgação de seu nome, na percepção de seu espaço e no envolvimento com os demais intelectuais de sua época. O sistema literário, discutido por Antonio Candido, alicerçou-se pelas inúmeras manifestações literárias produzidas em determinado país e, por isso, pode fundamentar caminhos os quais se vinculam ao trânsito da carreira de um escritor. Salienta o crítico literário: A consciência de grupo por parte dos intelectuais, o reconhecimento que passou a existir de um passado literário local, a maior receptividade por parte de público, embora débeis e pouco numerosos, começam a definir uma articulação entre fatos literários. (CANDIDO, 2007, p. 33). João Antônio legitimou sua trajetória a partir do trabalho coeso e profícuo atrelado ao seu trânsito no mercado editorial e soube construir boa movimentação no meio editorial, consolidando caminhos rumo aos seus objetivos profissionais: divulgar sua obra, literatura, pensamentos. Diante do trabalho da crítica e do processo editorial realizado em torno do lançamento do primeiro livro, ampliaram-se possibilidades de discussões sinalizadas por seu trabalho artístico. Além do valor estético de MPB, em consequência, arrolaram- se comentários e apontamentos críticos, e, enquanto sujeito-receptor dos significativos 41 comentários, o escritor e jornalista destacou-se pela atitude compromissada ao utilizar a palavra, expor ideias e pontos de vista sobre sua realidade. Para figurar entre nomes consagrados, o autor também se uniu a outros intelectuais, possibilitando-lhe o acesso a diversas discussões, o que lhe permitiu o encontro com a identidade coletiva de sua comunidade. Em se tratando de Brasil, as atividades intelectuais de João Antônio consolidaram-se como legado para seu país, atuando, portanto, como cidadão do mundo. Seu maior propósito de trabalho foi: “[...] escrever é um ato de coragem e humildade” (ANTÔNIO apud SILVA, 1975). Atingindo o patamar de um dos escritores mais lidos dos anos de 1970, mostrou que o ato de pensar com seriedade estimulou-o a discutir sobre a gênese e construção do coletivo, quando o compromisso intelectivo não se dissociou do enfrentamento com o real. Segundo as ideias de Eduardo Gianetti, a permanência de um pensamento converge para a originalidade ou à autonomia do ato de reflexão. E isso, de acordo com Gianetti, não se basta como mera repetição do passado, ao recorrer aos clássicos, aos já consagrados nomes do pensamento universal. Essa permanência se apresenta quando há o compromisso com a ação, com a mudança ou com a realização mais prática das ideias. Os atributos citados pelo estudioso realizaram-se em João Antônio, pois pesquisas, leituras, interpretações e análises sobre o ato de pensar pressupõem a construção de um pensamento sério, lógico, coerente e desafiador. O contista teve a possibilidade de transitar entre os terrenos da filosofia, da literatura, das ciências humanas e sociais, quando deu espaço às personagens tidas como marginalizadas. O que prevaleceu foi a formação de um pensamento sério, porque é notório que o autor se comprometeu com a melhora do contexto social do qual fez parte. Diante de sugestões críticas que também praticou, compreendem-se as instâncias socioculturais que lhe permitiram entrar para a historiografia literária brasileira. A legitimação de sua entrada no cânone firmou-se em função de quatro pontos fundamentais. O primeiro foi a publicação da obra MPB, esta na renomada editora Civilização Brasileira; o segundo foi a divulgação de dois paratextos – dedicatória e crítica de orelha; o terceiro aspecto deu-se pela projeção que a obra teve diante da crítica realizada, e, por fim, os prêmios literários que o contista recebeu após o lançamento de MPB26. 26 Sua consagração firmou-se ainda mais por meio dos prêmios literários: Prêmio Fábio Prado para contos (1962); Prêmio Prefeitura Municipal de São Paulo (1965); Prêmio Jabuti de revelação de autor, da 42 Dessa forma, o marketing editorial utilizado pelo autor de MPB obteve bons resultados, que o ajudaram a se firmar entre escritores e intelectuais brasileiros. Além disso, a editora Civilização Brasileira desempenhou papel fundamental e de vanguarda com o profissionalismo e instrumental acadêmico de Ênio Silveira27, o que certamente auxiliou o escritor a despontar nesse cenário. Por meio do posicionamento político que se afinou aos preceitos de esquerda, Ênio Silveira tentou separar seus objetivos partidários do trabalho editorial na Civilização Brasileira. Por isso, não só pelo distanciamento político, mas também pela atitude de vanguarda, renovou o cenário intelectual fluminense e brasileiro e, na década de 1960, a editora “[...] se tornaria o canal mais importante da nossa moderna ficção” (PAIXÃO, 1996, p. 125) como também afirmou o pesquisador Lawrence Hallewell, em seu O livro no Brasil (2005). Enquanto diretor editorial, Ênio Silveira optou por publicar obras estrangeiras, como Ulysses, de James Joyce, cuja tradução foi feita por Antônio Houaiss. O editor também evidenciou tendências literárias para o público brasileiro, inovando seu catálogo de lançamentos ao publicar Lolita e obras de Bertolt Brecht28. Mesmo assim, não se desvencilhou dos projetos editoriais que, desde o início construiu, na extinta Companhia Editora Nacional. Seu plano de trabalho, enquanto diretor editorial da Civilização Brasileira, resumiu-se, para ele, como uma tarefa social: a de divulgar cultura. Em concomitância, o uso e a recorrência aos paratextos demonstraram a estratégia mercadológica do contista, e eles serviram ainda como mecanismos de inter- relações com os envolvidos no sistema literário, aproximando autor e obra. Para o contista era fundamental que se promovesse autor e obra, pois teriam a oportunidade de disputarem espaço com outros autores reconhecidos. Os livros dedicados mostram que se pode mapear a trajetória editorial, profissional e pessoal do escritor, visto que, com as homenagens recebidas em forma de dedicatória, o autor-dedicatário informou ao seu leitor sobre quem esteve ao seu lado, tanto pessoal quanto profissionalmente. No caso da crítica de orelha, realizada em MPB, Câmara Brasileira do Livro (1963); Prêmio Jabuti de melhor livro de contos, da Câmara Brasileira do Livro (1963). (ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 1982.) 27 A editora Civilização Brasileira foi instalada no Rio de Janeiro como fruto da ramificação da Companhia Editora Nacional. Esta, dirigida por Monteiro Lobato e Octalles Marcondes, atuantes em São Paulo, nos anos de 1930, veio para ampliar o mercado livreiro. 28 Esse tipo de atitude o levou sete vezes à prisão, tendo em vista que o momento social do país anunciava atos repressivos. E, em se tratando de seu posicionamento político, publicar esses textos com temáticas provocativas não era visto com bons olhos. 43 configurou-se como passaporte para a inserção de João Antônio no meio intelectual, abarcando, posteriormente, seu envolvimento com o espaço acadêmico e midiático. A constituição desse projeto foi fruto da luta e insistência do escritor, com vários trabalhos realizados quando o assunto era divulgar sua obra. Essa composição é o resultado de seu projeto literário que, aliado ao trabalho de se autopromover, reafirmou- o e legitimou-o como um dos principais nomes da literatura contemporânea. Além disso, a autopromoção que fez em torno de seu nome permitiu-lhe transitar entre a comunidade de escritores-leitores e ter consequente reconhecimento. 1.2 Vivência familiar e a relação com as dedicatórias impressas 1.2.1 “À muito feminina nossa madrinha Nair Cardoso Gomes – avó -” A partir dos estudos feitos sobre o conjunto da obra de João Antônio, percebe-se o quanto a história de composição de suas dedicatórias impressas abrangeu momentos pessoais, de sua formação e, posteriormente, intelectuais. Ao reverenciar a matriarca da família Ferreira, a comunidade de escritores e os leitores passam a conhecer sua avó materna, Dona Nair Cardoso de Sá Gomes. Segundo pesquisa de iniciação científica feita por Pedro Mendes da Silva, em 2005, “[...] a dedicatória que abre o livro traz por sua vez, pela primeira vez em suas dedicatórias, a figura feminina de alguém bastante próximo de sua história de vida, uma avó” (SILVA, 2005) O texto impresso dedicado mostra: “À / muito feminina / nossa madrinha / NAIR CARDOSO GOMES / - avó – / heroína do Morro da Geada, / firme / na bonita idade de 85 anos, / dedico / com humildade / o narrado29” 29 ANTÔNIO, João. Abraçado ao meu rancor: contos. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. 44 A dedicatória oferecida à avó figurou na obra Abraçado ao meu rancor, publicada em 1986, pela editora Guanabara, do Rio de Janeiro, uma das casas editoriais pelas quais passou o autor. Com ilustrações do artista Rubem Grilo30, a obra recebeu o prefácio de Alfredo Bosi, com o título de “Um boêmio entre duas cidades”. O texto dedicado31 está nas páginas iniciais, abrindo a leitura para o conto “Guardador”. Nesta homenagem carinhosa direcionada à avó, quatro observações referentes a ela são mostradas ao leitor. Primeiramente, quando João Antônio registrou algumas das características da avó, tais como “feminina” e “heroína”, apresentou ao seu leitor a sua formação e constituição literária e pessoal, que se configurou por meio de sua família, principal incentivadora e motivadora e que é importante para se compreender sua trajetória. Sua segunda significação surge ao ver-se um nome de sua família em uma obra literária que possibilitou à dedicatária o privilégio de participar, junto com o autor, de um momento significativo para sua carreira. O terceiro elemento a ser observado vem com o termo “firme”, pois, quando da publicação do livro, a avó estava viva, portanto, ainda que com idade avançada, viu a homenagem feita pelo neto. Ao citar o Morro da Geada, um dos locais em que viveu em sua infância, o autor demonstrou seu percurso inicial, apresentando não só seu trabalho literário, como assim se referiu, como também a simplicidade de se declarar habitante daquele lugar. Esta quarta referência descreveu aquele local que estava à margem da sociedade, pois, tido como um morro, uma espécie de roça, já que naquela ambiência se cultivavam hábitos típicos de um meio rural e, por isso, simboliza a sua história da infância. Na obra Zicartola – e que tudo mais vá para o inferno (1991), João Antônio escreveu uma crônica intitulada “No Morro da Geada” e, mais uma vez, menciona avó Nair e a bisavó Júlia, carinhosamente chamada de Lula, outra figura familiar que esteve bem marcada na memória do escritor: 30 Rubem Grilo é mineiro, de Pouso Alegre, nascido em 1946 e até hoje em atividade, atuando como colaborador da coluna Ilustrada, da Folha de S. Paulo. Recebeu inúmeros prêmios, ao longo de sua carreira, como o Golfinho de Ouro, do Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, em 2002; 2º Prêmio da Xylon Internacional, Suíça, em 1990; Prêmio de viagem ao exterior- 1984, no Salão Nacional de Artes Plásticas; 1ª Bienal Internacional Del Grabado, Montevidéu, Uruguai – 1983. Em 2011, foi contemplado com o Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça, com o projeto intitulado Rubem Grilo, a Trajetória do Artista – Aquisição de 500 Obras. Fonte: http://www2.cultura.gov.br/site/2013/03/22/rubem-grilo-a-trajetoria-do-artista/ 31 Junto com essa dedicatória dirigida à avó, no livro Abraçado ao meu rancor, há outra a Lima Barreto, umas das filiações mais importantes para a formação do escritor J