O SUJEITO INTERPRETADOR DA REALIDADE: UMA L E I T U R A DE LA CLAIRVOYANCE (AUTOPORTRAIT), DE RENÉ MAGRITTE Simone Zied PINHEIRO' • RESUMO: Partindo do conceito de surrealismo e das particularidades de Magritte, chega-se à La clairvoyance, quadro em que esse pintor mostra como a realidade é interpretada pelo sujeito, o qual acaba por transformá-la. • PALAVRAS-CHAVE: Sujeito; surrealismo; filosofia aristotélica; semiótica peirceana; cultura; arte. Introdução Fim do século X X . Limiar de um novo século! Século que exala o aroma tecnológico, que nos remete a um futuro mais distante do que realmente parece ser. O ser humano, no decorrer das décadas e dos séculos, sempre buscou algo que exprimisse o seu futuro. A fabricação de técnicas e tecnologias sempre foi vista como avanços que levariam a humanidade a um progresso sem limites. Quando pensamos no futuro, a imagem gerada é de robôs, máquinas, computadores multimídia avançados e tudo aquilo que possa trazer à mente a sensação de uma era altamente tecnológica, clean, na qual palavras como deletar e formatar encontram seu império. Observando os avanços científicos e tecnológicos, poder-se-ia pressupor que, com o novo século, um novo sujeito surgiria: um sujeito distante de si mesmo e de suas produções artísticas, filosóficas e religiosas, mas profundamente voltado para as suas produções tecnológicas. Entretanto, em vez disso, parece que o final do século X X e o início do X X I trazem uma harmonia entre as formas de interpretar a realidade: o sujeito e suas produções estão cada vez mais próximos um do outro. Diferentemente do que era proposto pela Ciência Moderna que imperou desde o século X V I até este século, o sujeito percebeu a necessidade de se voltar para a totalidade do seu ser e de sua produção. Em meio a tantas inovações, há também mudanças em relação ao sujeito, sua conceituação e sua atuação na realidade. E é preciso esclarecer que por realidade está se entendendo tudo aquilo que existe. Para tratar da interpretação da realidade pelo sujeito, propõe-se uma leitura da obra surrealista La Clairvoyance (autoportait), de René Magritte (1898-1967).0 pintor surrealista, perspicazmente, revela a arte não apenas como interpretadora da realidade, mas como aquela que ao interpretá-la acaba por produzir uma interferência, acaba por transformá-la! Para tanto, procedeu-se a uma breve introdução em que se expõe como Magritte e sua obra se posicionam no movimento surrealista e a uma 1 Doutoranda em Estudos Literários - Faculdade de Ciências e Letras - UNESP/Araraquara. Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 53 Simone Zied Pinheiro análise de La clairvoyance baseada no modelo peirceano e na filosofia aristotélica para perceber o sujeito como interpretador da realidade. Magritte e sua obra surrealista Há várias maneiras de se lidar com os textos verbais e não verbais.2 É possível lê- los de modo consensual e repetir aquilo que a maioria das pessoas opina sobre os textos; pode-se lidar com eles de maneira superficial a ponto de não se perceber a essência dos textos. Segundo Permeia Canizal (1986, p.53), o surrealismo é um movimento que traz uma nova proposta de como lidar com os textos verbais e não verbais. Ele apresenta a tarefa do surrealismo como aquela que pretende superar a aparência dos textos verbais e não-verbais com o intuito de ver o que se passa nas profundezas do inconsciente. Ou seja, o surrealismo é um movimento que se propõe a ver a realidade do interior do sujeito: a realidade produzida pelo desejo. A realidade produzida pelo "sujeito irracional", que não está obrigatoriamente enclausurada pela racionalidade. André Breton (1896-1966) define o surrealismo como automatismo puramente psíquico através do qual nos propomos expressar, por meio de palavras, escrita ou qualquer outra atividade, o funcionamento real do pensamento, pensamentos formulados sem qualquer controle da razão ou de considerações estéticas ou morais. O surrealismo baseia-se na crença da realidade superior das formas específicas de associação antes negligenciadas, na onipotência dos sonhos e no jogo desinteressado do pensamento (apud Chilvers, 1996, p.513 a - grifo nosso). Isto é, para Breton, a arte surrealista deveria ser guiada apenas pelo inconsciente, sem a interferência da razão, considerada por ele como prejudicial ao processo de criação surrealista, porque funcionaria como uma espécie de censor, o que impediria o artista de criar sua obra por meio de contato direto com o seu desejo, com o seu inconsciente e com os seus sonhos. Sonhos, desejos, inconsciente! Essas seriam as principais fontes para a composição da arte surrealista. Mas eis que surge um Magritte com sua própria maneira de compreender o surrealismo. O que é perfeitamente parte da essência surrealista, já que a proposta principal parece ser a liberdade de lidar com um objeto sem que haja uma fórmula racional, estética e/ ou moral para tanto; sem que haja uma censura, o que não permitiria a imersão nas profundezas do inconsciente, do desejo e dos sonhos. Assim, Magritte se mantém fielmente, de certo modo, dentro e fora da doutrina surrealista. Porque, se por um lado, ele se distancia de Breton e deixa a razão ter livre acesso à sua obra, por outro lado, ao não se tomar dogmático diante da estética surrealista, acaba por se libertar de possíveis amarras que obviamente seriam contrárias às propostas do próprio movimento. Com isso se pretende afirmar que Magritte não ficou encerrado nas propostas doutrinárias do surrealismo e, justamente por se comportar assim, teve liberdade para criar sua arte. 2 Está se incluindo aqui os signos visuais como textos não verbais. 54 Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 O sujeito interpretador da realidade Magritte era basicamente um pintor de idéias, um pintor de pensamentos visíveis, mais do que de assuntos. ... A verdade é que não podemos dizer, com qualquer clareza, que Magritte gostava mesmo de pintar. Gostava claramente de pensar em quadros ... (Paquet, 1995, p. 19) Nesse sentido, observa-se que a razão tem um papel tão fundamental na obra magritteana quanto o inconsciente, o desejo e os sonhos: o artista buscava em sua arte um modo de expressar seus pensamentos, conscientes e inconscientes. O sujeito interpretador da Realidade La clairvoyance (1936) é uma obra de René Magritte bastante interessante. Trata-se de um quadro relativamente simples: sobre um pano de fundo acinzentado, um pintor, sentado em uma cadeira, olha um ovo - que está posto sobre uma mesa forrada com uma toalha - e ao olhá-lo pinta, em uma tela posta sobre um cavalete, um pássaro de asas abertas. O pintor tem em sua mão esquerda uma paleta com algumas cores de tinta e com a mão direita executa pinceladas em uma das asas do pássaro que pinta. O quadro é pintado a óleo sobre uma tela de 54,5 x 65,5 cm. Figura 1. La clairvoyance (autoportrait), 1936. Óleo sobre tela, 54,5 x 65,5. Bruxelas, Courtesy Galerie Isy Brachot. Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 55 Simone Zied Pinheiro A o mesmo tempo que La clairvoyance parece uma composição simples, o próprio título do quadro leva o leitor a uma percepção contrária: o título promove uma leitura mais atenciosa do quadro e desvenda a sua profundidade! Entretanto, Magritte j á havia prevenido seus leitores que a relação estabelecida por ele entre as pinturas e seus respectivos títulos era poética e não explicativa: Os títulos dos quadros não constituem explicações; nem os quadros ilustram os títulos. A relação entre quadro e título é poética: esta relação serve apenas para registrar certas características dos objetos tal como são habitualmente ignoradas pela nossa consciência , mas das quais temos às vezes um pressentimento quando confrontados com acontecimentos extraordinários sobre os quais a nossa razão não conseguiu ainda lançar luz. (apud Paquet, 1995, p.23) Assim, com o título, Magritte esclarece e sublinha pontos da sua pintura que talvez passassem despercebidos pela "nossa razão". A relação poética entre quadro e título convida o leitor a observar aspectos e - por que não - mensagens que diante de um olhar superficial e consensual não poderiam ser desvelados. Percebe-se, então, três sujeitos perspicazes em La clairvoyance. Sodré, sociólogo da informática e da comunicação, afirma que sujeito é aquele que se relaciona com o objeto e o faz subjetivamente. "Pensar é voltar, por via do transcendental, ao que possibilita todo saber e toda ação do homem, isto é, à subjetividade" (Sodré, 1998, p.41). Sujeito é, então, aquele que possui qualidades e/ou exerce ações e isso tem implicações profundas na maneira como o sujeito se relaciona com o objeto. O primeiro sujeito de La clairvoyance é o próprio autor que compõe essa obra. Obviamente, para relacionar poeticamente o título dessa obra com a sua pintura, Magritte precisou ser sagaz. A relação entre sujeito (pintor) e objeto (quadro) é subjetiva, ou seja, esta relação é condicionada pelo modo como o próprio Magritte se aproxima de seu objeto: o pintor pensa um quadro, confecciona uma pintura e a relaciona poeticamente com seu título. Outros pintores poderiam compor um outro tipo de relação com seus quadros. A pe r sp icác ia do segundo sujeito - o auto-retrato de Magri t te expressado na pintura - se encontra na ação desempenhada pelo mesmo: o sujeito é aquele que vê a realidade e a interpreta, e ao in terpre tá- la , acaba por t ransformá- la . "O homem é aí, antes de tudo, uma subjetividade capaz de atribuir sentido ao mundo , t r ans fo rmando os dados da rea l idade s e n s í v e l em obje to do conhecimento, g raças aos recursos da racionalidade" (Sodré , 1998, p.41). O sujeito no interior do quadro é sagaz porque ao transformar a realidade produz cultura. A sua subjetividade atribui um novo sentido à realidade: se ele vê um ovo; ao interpretar esse ovo o sujeito o transforma em figura de pássaro e em arte. Ele transforma a natureza "ovo" em arte (cultura) "pássaro"! 56 Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 O sujeito interpretador da realidade E, por f im, a terceira d imensão da perspicácia, oriunda dessa relação poética entre quadro e título, é um convite ao terceiro sujeito, ao leitor/espectador. Trata-se de um convite ao leitor para observar essa pintura e lê-la de modo a superar o consensual e o superficial. Na busca de uma leitura desse tipo, pode-se aproximar uma produção artística, La clairvoyance, a uma produção filosófica (a de Aristóteles): ambas fruto do trabalho humano. Sujeitos que podem se encontrar distanciados no espaço-tempo e que, se revistos e recombinados, podem estar muito próximos um do outro, j á que é o contexto que possibilita ou não o contato entre os diferentes sujeitos (Latour, 1994). Aí se produz a interdisciplinaridade (cf. Bochniak, 1998) que permite ver a filosofia aristotélica em um quadro de Magritte. Aparentemente, a filosofia aristotélica e a arte surrealista de Magritte se encontram distanciadas no espaço-tempo; no entanto, a interpretação que aqui se faz as aproximam. Não importa se Magritte teve ou não a intenção de narrar um tópico da filosofia aristotélica; o que importa é a possibilidade de leitura que La clairvoyance propicia. Até porque para que se faça uma leitura desse quadro é preciso mais do que um narrador- pintor; é necessário também a percepção de um leitor- espectador. Ou seja, não basta que Magritte tenha dominado um conhecimento da filosofia aristotélica, é preciso que o leitor de sua obra também domine os códigos e os signos dessa filosofia para que perceba no quadro em questão a filosofia do estagirita. La clairvoyance narra um tópico importante da filosofia aristotélica: a relação potência/ato. Aristóteles trata dessa relação ligando-a primeiramente ao movimento, para a partir da í estendê-la aos outros casos. A relação potência/ato na filosofia aristotélica é o que gera as possibilidades e as concretudes das coisas: é por meio dessa relação que se define o princípio de mudança! Pode-se perceber que a figura do ovo e a do pássaro possuem uma relação direta em La clairvoyance: um é signo do outro. Uma análise, por meio do modelo peirceano, possibilita uma visão da filosofia aristotélica de potência/ato na relação entre essas duas figuras. Aristóteles e Peirce na obra de Magritte Peirce (1839-1914) construiu um conceito de signo triádico valendo-se dos estudos realizados anteriormente, desde os filósofos da Antigüidade até os estudiosos do signo próximos ao seu espaço-tempo. Para ele, um signo é composto de três elementos: o representamen, o objeto e o interpretante: o representamen é aquele que está no lugar do objeto para o representar; o objeto é a coisa representada; e o interpretante é aquele que serve como mediador entre o representamen e o objeto, pois é o que "cria na mente . . . [da] pessoa um signo equivalente ou talvez um signo melhor desenvolvido" (Peirce, 1975, p.94). Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 57 Simone Zied Pinheiro O processo de percepção no qual os signos remetem - não apenas aos objetos que representam - principalmente às concepções que se desenvolvem a partir deles foi denominado por Peirce de semiose ilimitada: Qualquer coisa que leva algo diverso (seu interprétante) a referir-se a um objeto a que ele próprio se refere (seu objeto) de maneira idêntica, transformando-se o interprétante, por sua vez, em signo e assim por diante, ad infinitum. (Peirce, 1975, p.130) Em La clairvoyance, pode-se ver dois conjuntos sígnicos. São esses dois conjuntos sígnicos que orientam e estruturam o quadro. De um lado, há um só signo que é partilhado em três elementos principais: a pintura do pássaro é o representamen da figura do ovo, a figura do ovo é o objeto representado e a figura do pintor é o interprétante 3 . Assim, todo o quadro seria um só signo que teria sua divisão triádica valendo-se dos três principais signos internos. O pássaro é pintado no quadro pelo artista com o intuito de representar o objeto que se encontra sob a mesa, logo o pássaro se apresenta como o representamen desse objeto. O ovo é justamente o objeto que o pintor observa, criando a partir dele um outro signo para representá-lo. E o pintor é o interprétante porque é ele quem cria e promove o signo pássaro equivalente ao signo ovo. Todo o quadro é um só signo no sentido de que a pintura apenas pode possibilitar determinadas interpretações pela combinação dos signos que interiormente ela possui. Os signos internos formam um conjunto e passam a ter sentidos específicos nesse quadro como conjunto, por isso se transformam em um único signo. Por outro lado, tanto o pássaro é um signo para representar o ovo, como vice- versa. O olhar do pintor voltado para o ovo não deixa dúvidas de que o pássaro pintado na tela é a tradução do que o sujeito vê na realidade. O ovo tem seu significado definido por expressar a potência que há no seu interior. Aristóteles, no Livro IX, da Metafísica, afirma o seguinte: Puissant ne s'entend pas seulement de ce qui a la propriété naturelle de mouvoir une autre chose, ou d'être mû par une autre chose, soit mouvement proprement dit, soit mouvement de telle sorte, mais qu'il présente encore un autre sens, sens qui est l'objet véritable de la recherche au cours de laquelle nous avons discuté aussi ces précédentes significations. (1953, p. 499) A potência indica a possibilidade, a capacidade de algo transformar-se em outra coisa; aponta a transição de um estado embrião ou ainda "não-florescido" para um estado de consumação, de perfeição, que é o ato. Para Aristóteles, o ato é a perfeição 3 Todo o quadro é composto por figuras icônicas que representam os objetos ovo, pássaro, pintor etc. Para não se tornar repetitivo, passa-se a tratar as figuras de tais objetos simplesmente pela designação ovo, pássaro etc. 58 Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 O sujeito interpretador da realidade porque concretiza a potencialidade da coisa. "L'acte, donc, est le fait pour une chose d'exister en réalité et non de la façon dont nous disons qu 'elle existe en puissance... " (Aristóteles, 1953, p.499). O pássaro concretiza a possibilidade do ovo, por isso pode ser entendido como o ato. Potência e ato pressupõem períodos intermediários, períodos necessários para que a potência se transforme em ato. A isso Aristóteles chama de movimento. O movimento é uma mudança de lugar; espécie de ato, mas sem o ser realmente porque lhe falta a enteléquia (cf. Aristóteles, 1953, p.492-3). Enteléquia é um termo criado por Aristóteles para designar "o ato concluído em oposição ao ato que está se realizando, e [para designar] a perfeição que resulta dessa completude" (Lalande, 1993, p.305b). No quadro em questão, a relação entre a potência e o ato é expressada pela relação entre o ovo e o pássaro. E esse movimento da potência (ovo) para o ato (pássaro) é mediado e realizado pelo sujeito que pinta. Assim, o pássaro representa o ato no sentido de enteléquia, pois é a realização concreta do ovo, cujas possibilidades e impossibilidades fazem parte da sua potência. O ovo (potência) não é a perfeição porque contém em si mesmo dois elementos: ele é simultaneamente a possibilidade do pássaro e a impossibilidade do mesmo (cf. Aristóteles, 1953, p.485). Porque o ovo pode ser a potência de um embrião de pássaro, mas também pode ser a potência de uma outra espécie qualquer de animal ovíparo. Nesse sentido, a potência - o ovo - narra a possibilidade do ato - o pássaro - , podendo ser denominada, para usar uma terminologia genettiana, como uma analepse (Genette,1995, p.38-65). Ou seja, o ovo narra o passado do pássaro; sendo assim, narra um recuo no quadro que o pintor confecciona. Entretanto, há t ambém uma possível leitura inversa, na qual o ato - o pássaro - narra o futuro da potência - o ovo. Nesse caso, mantendo a mesma terminologia, trata-se de uma prolepse do ovo (Genette, 1995, p.65-76). Isto é, a figura pintada do pássaro projeta a possibilidade do ovo. As transformações do representamen Quando os signos são transformados, percebe-se que o representamen passa a ser um quali-signo, um sin-signo e/ou um legi-signo. No caso do quadro em questão, tanto o pássaro é um representamen do ovo, se o leitor pensar em uma prolepse, como vice-versa, se ele pensar em uma analepse. Porque em uma analepse faz-se um recuo do pássaro ao ovo, assim o signo ovo é usado para expressar o signo pássaro em seu estado passado. Nesse sentido, o ovo passa a ser o representamen e o pássaro, o objeto significado. Entretanto, em uma prolepse faz-se justamente o movimento oposto: efetua-se um avanço da potência ao Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 59 Simone Zied Pinheiro ato: do ovo ao pássaro. Assim, o pássaro é o representamen do ovo por expressar e representar o seu estado futuro. A partir daí, pode-se perceber que há dois tipos de transformações sígnicas em La clairvoyance: uma natural e outra não usual. A transformação quali-sígnica ocorre quando um representamen possui "uma qualidade do signo" (Peirce, 1975, p. 100) e muda essa qualidade para outra que pode ser natural ou não a ele. Há nesse quadro uma transformação natural de um ovo em pássaro e essa transformação é qualitativa. Segundo Aristóteles, a qualidade de uma coisa explica como ela se encontra. Aristóteles diz que há várias maneiras de se entender a qualidade de alguma coisa, pois essa categoria possui várias acepções. A acepção que interessa aqui é a qualidade denominada disposição. "As disposições . . . são assim denominadas porque podem ser mudadas e rapidamente alteradas, como o calor e o frio, a doença e a saúde e assim sucessivamente" (Aristóteles, 1985, p.79). A transformação natural do representamen é qualitativa porque a disposição do ovo - ser embrião - é rapidamente transformada em disposição de pássaro - ser animal j á formado. Essa é uma transformação natural: os embriões de pássaros são dispostos em ovos e o pássaro é um animal ovíparo em estado adulto. Por outro lado, há uma transformação não usual: a mudança da qualidade de embrião em qualidade de animal j á formado não se dá naturalmente. Não há o processo de crescimento natural que um embrião sofre até se tornar animal em fase adulta: é pela fabricação do pintor, é pela interpretação artística do pintor, é por uma manifestação cultural que ocorre essa transformação qualitativa do ovo em pássaro. O ovo só se transforma rapidamente em pássa ro , em La clairvoyance, por in t e rméd io da interpretação, feita pelo pintor, da realidade ovo. E, ao ocorrer essa transformação qualitativa, passa a ocorrer uma importante associação entre o ovo e o pássaro. Mas eis que esses quali-signos apresentam algo mais do que apenas qualidade: por meio de suas qualidades específicas, ovo e pássaro se apresentam como signos concretos: Um Sin-signo ... é uma coisa existente ou acontecimento real, que é um signo. Só pode sê-lo através de suas qualidades; de sorte que envolve um quali-signo ou, antes, vários quali-signos. Contudo, esses quali-signos são de tipo especial e só constituem um signo quando efetivamente corporificados. (Peirce, 1975, p.lOO) Ovo e pássaro são signos concretos, pois possuem uma corporificação e uma singularidade: o signo ovo é concretamente um signo cognitivo do ser humano por sua substância física e estrutural. Assim também ocorre com o ovo e o pássaro, signos concretos e singulares por suas substâncias físicas e estruturais. Para exemplificar, não se confunde pássaro com galinha apesar de ambos serem aves, pois a estrutura e o aspecto físico do pássaro e da galinha são diferentes: cada um desses animais tem 60 Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 O sujeito interpretador da realidade as suas particularidades e especificidades. Portanto, os signos ovo e pássaro são sin- signos. Mas esses sin-signos não são apenas signos concretos. Corn a relação associativa entre o ovo e o pássaro, eles passam a ter um sentido de lei, de signos arbitrários e convencionais: em La clairvoyance, esse ovo só poderá ser um embrião de um pássaro. Essa é uma associação arbitrária feita pelo pintor. Há, portanto, uma dupla prolepse na relação associativa entre o ovo e o pássaro feita pelo pintor, porque essa relação narra duas antecipações. A primeira, pelo pássaro se contrapor ao ovo: esse é apenas um embrião enquanto aquele é um animal j á completo. E a segunda prolepse ocorre porque cognitivamente o signo pássaro expõe que tipo de animal sairá desse ovo - ave e não réptil; pássaro e não galinha; uma espécie determinada de pássaro e não outras. Essa é uma transformação não usual porque a escolha do animal desenvolvido a partir do ovo foi uma escolha do pintor: ele vê o ovo e arbitrariamente decide que animal em estado embrionário está no seu interior. Essa relação entre ovo e pássaro traz uma dimensão de lei ao signo pássaro: ele é obrigatoriamente a tradução e a evolução do signo ovo em La clairvoyance, por isso os signos ovo e pássaro podem ser entendidos como legi-signos. Trata-se de legi- signos porque eles ganha[m] significado por meio de um caso da sua aplicação ... Dessa forma, todo Legi-signo requer Sin-signos. Todavia, estes não são Sin-signos ordinários, uma vez que são ocorrências peculiares, encaradas como revestidas de significação. (Peirce, 1975, p.101) Se na natureza há possibilidades de um determinado ovo ser o embrião de um outro animal, em La clairvoyance não há essa mesma possibilidade: o ovo será sempre embrião do pássaro pintado pelo artista! E isso porque há, de modo deliberado, uma significação oriunda da relação ovo/pássaro. Significação que será tratada junto ao interpretante. Em La clairvoyance, a dupla prolepse ocorre unicamente porque na mente do pintor j á foram estabelecidas as imagens e os conceitos necessários para que o ovo seja traduzido e antecipado pelo pássaro e vice-versa. Na natureza, a potência ovo se atualiza em ato pássaro - ou em qualquer outro ato animal - sem auxílios externos; entretanto, na pintura de Magritte, para que haja a significação que o autor pretendia com o seu quadro, a potência ovo é atualizada pela mediação de um sujeito, o pintor. A arbitrariedade associativa entre o objeto e o representamen O objeto é algo no qual o signo "pressupõe uma familiaridade com. . . [ele] de sorte a veicular alguma informação adicional concernente a esse algo" (Peirce, 1975, p.96). Em La clairvoyance, do ponto de vista de uma camada mais superficial, as figuras de ovo, pássaro, pintor (auto-retrato), mesa, toalha, cavalete, paleta, cadeira, roupa etc. representam os objetos Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 61 Simone Zied Pinheiro reais e dinâmicos que recebem esses mesmos nomes. E, do ponto de vista de uma camada mais profunda, esses signos representam muito mais do que esses objetos. O objeto imediato é, então, a cognição produzida na mente do intérprete como representação dos objetos pássaro de asas abertas e ovo. Esses objetos imediatos indicam uma relação entre liberdade/prisão e por isso ultrapassam a representação primeira dos objetos reais e dinâmicos. Essa associação entre o objeto e o representamen é arbitrária. A iconicidade apresentada entre imagens produzidas por Magritte e os objetos reais faz com que o leitor complete o que está ausente na pintura La clairvoyance. Assim, não foi preciso que Magritte pintasse a parte inferior da cadeira, da mesa e do cavalete e o pintor da cintura para baixo para que o leitor soubesse que eles estão lá. O leitor sabe que o pintor confecciona seu quadro sentado, mas não há essa pintura explícita no quadro La clairvoyance. A continuação da mesa, da cadeira, do cavalete e do pintor é fictícia, está ausente do quadro; entretanto é produzida na mente do leitor porque não se concebe mesa, cadeira, cavalete e pintor pela metade: imagina-se o restante do quadro! Segundo Peirce (apud Nõth, 1995, p. 112), esse tipo de semiose não é uma anomalia em si mesma, mas algo previsível já que se pode ter um objeto real e dinâmico ausente e mesmo assim se produzir um signo valendo-se desse objeto ausente. E exatamente esse o caso das partes que não aparecem no quadro, mas que são completadas pelo leitor. Até mesmo, por exemplo, o antebraço esquerdo e o braço direito do pintor - que não aparecem no quadro devido ao ângulo em que se encontram - são vistos mentalmente pelo leitor: ele sabe que eles estão lá apesar de ausentes, pois não se concebe mãos pintando ou segurando uma paleta sem que haja braços para sustentá-las. Nesse quadro, há também índices que auxiliam o leitor a fazer uma leitura não consensual dele mesmo. O fato de o ovo ser substituído pelo pássaro, ou seja, de um signo ser substituído por outro na interpretação do pintor - narrador da transformação - é um índice em La clairvoyance. E esses índices têm duas referências: uma exofórica e outra endofórica. Segundo Nõth (1995, p. 105), a referência sígnica é exofórica quando reflete estruturas cognitivas que se relacionam com o exterior; e ela é uma referência endofórica "quando a estrutura paradigmática se refere a todas as outras formas da mesma língua que pertencem ao mesmo paradigma" (Nõth, 1995, p. 105). Pode-se relacionar o ovo e o pássaro com vários s ímbolos porque há essa possibilidade de observar esses signos sob o seu aspecto relacional com outros signos que se encontram no exterior do quadro e t ambém no seu interior. Por isso, de um ponto de vista exofórico, pode-se comparar o ovo e o pássaro com a filosofia aristotélica da potência e do ato; pode-se relacionar essa criação artística de Magritte com as criações surrealistas; pode-se submeter La clairvoyance ao método peirceano de análise. E, do ponto de vista endofórico, a relação ovo/pássaro pode ser interpretada como a relação prisão/liberdade; a interferência do pintor pode ser entendida como a produção de cultura que afeta e transforma a realidade etc. 62 Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 O sujeito interpretador da realidade Em La clairvoyance, há também ausências sígnicas no que concerne ao aspecto indiciai e simbólico de um signo. E essas ausências também podem ser exofóricas e endofóricas: há substituições dos signos ausentes por outros signos. Caso se compare esse quadro com outros quadros de Magritte, é possível perceber uma ausência exofórica ao se comparar Les affinités electives, de 1933, com La clairvoyance, de 1936. No primeiro quadro, Magritte representa um ovo enorme no interior de uma gaiola. E enquanto o signo ovo permanece, apesar de diminuir de tamanho, o signo gaiola é um elemento totalmente ausente no segundo quadro. Entretanto, o sentido de prisão permanece. Figura 2. Les affinités electives, 1993. Óleo sobre tela, 41 x 33 cm. Paris, Coleção Etienne Périer. Se no quadro de 1933 a gaiola é uma prisão para o ovo que se encontra no seu interior, no de 1936, a gaiola é substituída pela relação ovo/pássaro: enquanto a gaiola tem o sentido de uma prisão para reprimir e/ou proteger do exterior, o ovo torna-se uma prisão para a repressão e/ou a proteção interna, que é salientada pela oposição ao pássaro de asas abertas, signo de liberdade. E interessante observar que a substituição do signo ovo/prisão pelo pássaro/ liberdade é feita pelo sujeito. Segundo Sodré, o sujeito é aquele que Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 63 Simone Zied Pinheiro caminha do sensível para o racional com um impulso de autodeterminação, entendida como conquista do que lhe é próprio: autonomia, liberdade. Libertar- se é autodeterminar-se através da pura posse da razão por si mesma (1998, p.41); ou seja, a liberdade que é própria do sujeito que se autodetermina é estendida à realidade que está a sua volta. Essa liberdade não é apenas potencial mas concreta, j á que há atualização por intermédio do sujeito que mediatiza a transformação do ovo em pássaro. Do ponto de vista teórico, a razão humana, longe de ser apropriada para aprisionar, é elemento fundamentalmente libertador para o próprio sujeito e para a realidade que o circunda. Há ainda ausências sígnicas endofóricas, isto é, há ausências sígnicas no interior do próprio quadro La clairvoyance que são substituídas pelo leitor. Portanto, seguindo a mesma linha de raciocínio que foi usada para completar as partes ausentes dos objetos, não é preciso que haja a figura da mesa para que se saiba que ela está lá sustentando a toalha e o ovo; basta que se olhe os contornos produzidos e moldados na toalha que a reveste. Isto é, o signo toalha substitui endoforicamente o signo mesa. Há ainda um outro exemplo de ausência endofórica nesse quadro: o método para se explicar o crescimento do signo ovo é a representação icônica do pássaro, ou seja, se produz um ícone do signo icônico anterior. Assim, mediado pela figura do pintor, o signo icônico ovo deixa de ser o ícone ovo para se transformar em outro ícone, o pássaro. O interpretante significando sem limites Os signos ovo, pássaro e pintor, se vistos isoladamente, significam sem que haja um julgamento que diga se eles são verdadeiros ou falsos, porque para que haja esse tipo de julgamento é preciso que eles se relacionem entre si ou com outros signos. A esse tipo de interpretante, que não é nem verdadeiro nem falso, Peirce denominou rema: Um Rema é um signo que, para seu Interpretante, é um Signo de Possibilidade qualitativa, ou seja, entendido como representando tal e tal espécie de Objeto possível. Todo Rema fornecerá, talvez, alguma informação; mas não é interpretado como destinado a fazê-lo. (Peirce, 1975, p. 102) O ovo e o pássaro só passam a ter uma conotação de um dicente - ou seja, de um signo que veicula informação - a partir do momento no qual eles se relacionam entre si. Nesse caso o signo ovo é informante de sua capacidade de se tornar pássaro; e o pássaro informa a possibilidade de transformação do ovo. No entanto, se só se observa a relação ovo/pássaro, as informações não fornecem as razões pelas quais o ovo e o pássaro estão combinados. Essa relação só é explicada com a figura do pintor. Com o pintor, o interpretante passa a ser argumentativo: o fato dos signos ovo e pássaro serem mediados por um sujeito é algo orientador em La clairvoyance. E o pintor que atualiza a potência tornando-a ato; é ele quem proporciona liberdade ao objeto que vê aprisionado, conferindo-lhe um corpo adulto e com asas 64 Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 O sujeito interpretador da realidade abertas! Mas, para que o pintor seja orientador dessa relação entre os signos, é necessário que ele conheça o código, estabelecido pela natureza, de que um ovo é o embrião de um animal ovíparo; e, mais ainda, o pintor deve dominar o código de que a ave é uma espécie de animal ovíparo! Ou seja, existe na mente do pintor a noção de crescimento de uma ave; de que ela parte de um embrião ovíparo com destino à maturidade até vir a falecer se não houver alguma fatalidade nesse curso natural. Assim, o signo ovo orienta o pintor até a confecção de um signo mais desenvolvido, o pássaro. Para que haja esse tipo de orientação e significação é necessário, ainda, que autor e leitor também dominem os códigos estabelecidos tanto na arte, na ciência e na filosofia quanto nos significados simbólicos do ovo, do pássaro, do pintor e demais signos do quadro. Há nitidamente em La clairvoyance uma arbitrariedade4 no uso desses códigos. E essa arbitrariedade é ora gerada pelo autor, Magritte , ora gerada pelo próprio leitor - o que ele está apto a perceber nos e dos códigos expostos e produzidos no quadro. É essa mesma arbitrariedade que possibilita ao pintor atribuir uma evolução etária ao pássaro - antes ovo/embrião. E essa arbitrariedade que fornece aos signos pássaro e ovo seu caráter simbólico. Enquanto o pintor (auto-retrato de Magritte) domina os códigos da natureza e também da pintura clássica, pois ele confecciona a pintura de um pássaro bastante verossímil, o próprio Magritte apresenta códigos que não apenas ele domina como, também, convida o leitor a dominar. Em La clairvoyance pode-se combinar três diferentes códigos: artístico, filosófico e científico. A arte é retratada de maneira muito instigante em La clairvoyance: essa forma de interpretar a realidade ganha, no quadro, uma dimensão transformadora daquilo que existe; a arte é o código de que o sujeito se utiliza para ler a realidade e alcançar a possibilidade de mudança. Essa é uma interpretação possível porque La clairvoyance é uma pintura que, em meio a outras coisas, representa o ato de pintar. Esse é o principal signo orientador do quadro: não a relação ovo/pássaro mas, antes, o próprio papel da arte. La clairvoyance é uma pintura que em meio a outras coisas representa o ato de pintar. Isto é, o signo orientador principal é a capacidade de um sujeito, o pintor, interpretar artisticamente a realidade ovo e, ao interpretá-la, transformá-la em pássaro. Magritte percebe a arte como aquilo que pode interferir na realidade e não apenas interpretá-la. Ou melhor, que o próprio ato de interpretação da realidade é em si mesmo interferência e tradução da realidade. Assim, a arte traz a possibilidade de transformação da realidade. A escolha de Magritte de se auto-representar na figura do pintor é outro dado significativo. Ele aponta para duas interpretações artísticas da realidade: (a) o próprio Magritte pinta um quadro (b) cuja cena é de um pintor que interpreta artisticamente a 4 Sobre a arbitrariedade de se conferir um significado diferente daquele que um objeto possui no consen­ so, ver Winfried Nòth, Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce, 1995, p.114. Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 65 Simone Zied Pinheiro realidade. Há umainter-relação entre sujeito ficcional e sujeito real. O sujeito ficcional de La clairvoyance remete diretamente ao sujeito real, criando uma similitude entre as qualidades artísticas, de gênero humano e de estilo pessoal; assim como há uma referência similar entre a ação do sujeito ficcional e a do sujeito real. Se, ao pintar, "Magritte vira subversivamente do avesso a percepção" (Paquet, 1995, p.23), apesar de o fazer por meio de uma técnica artística clássica e rigorosa, também o sujeito ficcional de La clairvoyance assim o faz: sua técnica é rigorosa e apesar disso subverte, do ponto de vista do conteúdo, a percepção consensual da realidade; se Magritte na época da confecção desse quadro era um ser humano do sexo masculino com os seus trinta e oito anos de idade assim também se parece o sujeito do quadro; se, do ponto de vista de sua aparência, Magritte foi um europeu característico (belga) da década de 30 e, portanto, tem um corte de cabelo e vestimentas típicas, exatamente assim será representado o sujeito de La clairvoyance. Dessa maneira, os sujeitos ficcional e real, interpretadores da Realidade produzida ficcional ou realisticamente, parecem possuir uma forte inter-relação. Não se quer dizer com isso que a representação de Magritte se confunde com o sujeito Magritte, mas que em termos simbólicos ambos representam a mesma coisa (Foucault, 1988): a intervenção humana na realidade, conferindo a essa últ ima diferentes interpretações e transformações, isto é, o sujeito que produz cultura. No l iv ro de Paquet (1995, p.25) sobre Magri t te há uma foto do pintor surrealista trabalhando no quadro La clairvoyance j á praticamente acabado. Essa fotografia deixa expl íc i ta a tautologia do seu quadro. No fundo, há apenas um sujeito que medeia a realidade, interpretando-a artisticamente e conferindo-lhe mudanças e t ransformações criativas: Magritte apenas retrata o seu papel de artista surrealista! Figura 3. Foto de Magritte ao trabalhar no seu quadro La clairvoyance, de 1936. Auto-retrato duplo. 66 Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 O sujeito interpretador da realidade Conclusão Ao retratar esse papel, Magritte pôde trazer à luz o parentesco que há entre as diversas formas de interpretar a Realidade. Porque o sujeito é o criador das formas de se relacionar com a realidade: é por meio da arte, da filosofia, da religião, da ciência e do senso comum que o sujeito entra em contato com a realidade, interpretando-a, promovendo-a e transformando-a; é valendo-se das formas de interpretar a realidade que o sujeito produz cultura. No limiar do século X X I , destaca-se a necessidade de o sujeito: a) perceber a importância de uma visão interdisciplinar da realidade, que lhe permita relacionar as suas formas de interpretação, sem que haja necessariamente uma relação de dependência entre elas; b) chegar a conclusão de que uma forma de interpretar a realidade não exclui, diminui ou anula as outras. Ao contrário, elas podem conviver harmoniosamente. A arte de Magritte, a filosofia de Aristóteles e o modelo científico peirceano para análise de textos se encontraram aqui com a preocupação de que não houvesse prejuízo ou desvalorização de nenhuma das formas mencionadas de interpretar a realidade. Houve uma aproximação da ciência, da arte e da filosofia numa tentativa de investigar o papel do sujeito enquanto interpretador da Realidade. No entanto, as aproximações e as interpretações de La clairvoyance não se limitam àquelas realizadas aqui, porque a obra sempre continuará aberta a interpretações imprevistas. É o interpretante significando indefinidamente e produzindo, assim, a sempre ilimitada semiose! PINHEIRO, S. Z. The subject who interprets reality: a reading of La clairvoyance (autoportrait), by René Magritte's. Itinerários, Araraquara, n.15/16, p. 53-68, 2000. • ABSTRACT: Taking both the concept of Surrealism and René Magritte' peculiarities as a starting point, we get at La clairvoyance, a painting in which this painter shows how reality is interpreted by the subject who, by doing it, ends up changing the reality he sees. • KEYWORDS: Subject; surrealism; Aristotelic philosophy; Peirce's semiotics; culture; art. Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. La Méthaphysique. Trad. J. Tricot. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1953, t. I I (Livre IX). . Categorias. Trad. Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães, 1985 (Filosofia & Ensaios). Itinerários, Araraquara, 15/16:53-68,2000 67 Simone Zied Pinheiro BOCHNIAK, R. Questionar o conhecimento: a interdisciplinaridade na escola ... e fora dela. 2.ed., São Paulo: Loyola, 1998. CHILVERS, I . Dicionário Oxford de arte. Trad. Marcelo Brandão Copola. São Paulo: Martins Fontes, 1996. FOUCAULT, M . Isto não é um cachimbo. Trad. 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