UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ―JÚLIO DE MESQUITA FILHO‖ INSTITUTO DE ARTES — CAMPUS SÃO PAULO CAROLINE GUMERCINDO BRANDÃO INTELIGÊNCIA EMOCIONAL, NARRATIVA E EDUCAÇÃO: perspectivas autobiográficas de uma professora-estudante em música sobre a importância de um olhar à individuação no processo de ensino-aprendizagem São Paulo 2022 CAROLINE GUMERCINDO BRANDÃO INTELIGÊNCIA EMOCIONAL, NARRATIVA E EDUCAÇÃO: perspectivas autobiográficas de uma professora-estudante em música sobre a importância de um olhar à individuação no processo de ensino-aprendizagem São Paulo 2022 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Licenciatura em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Música. Orientadora: Prof.ª Dr. ª Rita Luciana Berti Bredariolli CAROLINE GUMERCINDO BRANDÃO INTELIGÊNCIA EMOCIONAL, NARRATIVA E EDUCAÇÃO: perspectivas autobiográficas de uma professora-estudante em música sobre a importância de um olhar à individuação no processo de ensino-aprendizagem Trabalho de Conclusão de Curso aprovado em: 21/12/2022 Banca Examinadora _______________________________________ Prof.ª Dr. ª Rita Luciana Berti Bredariolli Instituto de Artes – UNESP Orientadora ________________________________________________ Prof. Me. Levi Fernando Lopes Vieira Pinto Dourando no Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes – UNESP Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Licenciatura em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Música. Dedico este trabalho aos meus pais, à minha família e aos meus antepassados. Em gratidão ao meu presente e ao meu passado, dedico este trabalho também ao meu futuro. AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais, Francisco de Assis Brandão e Iolanda Gumercindo Brandão, assim como a toda minha família pelo amor e suporte constantes. Agradeço aos meus amigos, colegas de estudo, e amores, pelo carinho, por toda ajuda, e pelo compartilhar da jornada. Agradeço aos meus professores e orientadores por toda dedicação, compreensão e trabalho — em especial ao professor coordenador, Prof. Dr. Wladimir Farto Contesini de Mattos, que me permitiu à realização deste trabalho em consequência de sua resposta afirmativa ao meu processo de dilação de prazo na graduação, assim como à minha professora tutora, Prof.ª Dr. ª Rita Luciana Berti Bredariolli, que se disponibilizou não só a me acompanhar durante esse processo de conclusão de curso, como também a me orientar na feitura e encaminhamento deste trabalho; e também ao Prof. Me. Levi Fernando Lopes Vieira Pinto, pelo assentimento em participar da banca deste trabalho de maneira tão carinhosa. Agradeço aos meus alunos, chefes e colegas de profissão pela confiança; e a todos que de alguma forma me auxiliaram e me auxiliam neste trajeto de autoconhecimento e conhecimento do mundo. Agradeço a todas as instituições de ensino, ajuda e trabalho pelas quais passei até aqui — em especial ao Instituto de Artes da Unesp, à Unesp, e seus funcionários (com agradecimento extra à Clarissa Garcia Eleutério que me auxiliou no processo de compreensão para correção das normas técnicas do presente trabalho, assim como Elena Rodrigues de Oliveira que me acompanhou em praticamente todos os processos burocráticos deste último ano de graduação, incluindo os referentes à regularização deste documento); também agradeço grandemente à Associação Ong Ponte de Apoio à criança, adolescente e família pelos anos de acolhimento e suporte em meu trabalho como oficineira e professora de canto e musicalização, anos que foram extremamente importantes pra mim a nível profissional e pessoal, sendo assim, essenciais também para a feitura deste trabalho. Agradeço aos meus antepassados que abriram o caminho necessário para que hoje eu pudesse estar me formando; e a tudo o que eu fui e tudo o que sou — a criança que sonhou, a adolescente que teve coragem, a jovem adulta que persistiu e persiste. Agradeço também profundamente à Música, pela permissão e generosidade; e enormemente à Grande Fonte que me guiou e que segue guiando meus passos. Trato esse TCC como um ponto de partida. Simultaneamente um fim e um começo. Parte de um rito de passagem. RESUMO Este Trabalho de Conclusão de Curso tem como objetivo investigar a importância de um olhar sobre o conceito junguiano de individuação como sendo uma ampliação ao conceito de inteligência emocional, assim como sua a importância no processo de ensino-aprendizagem. Com base em um método de pesquisa autobiográfica, a autora busca responder à pergunta motriz, ―O que faz com que, em termos de inteligência emocional, se estabeleça um ambiente de ensino-aprendizagem emocionalmente benéfico e enriquecedor?‖, e toma como alicerce de suas reflexões conceitos da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, assim como de outras linhas de pensamento correlatas. Palavras-chave: Psicologia Analítica. Educação. Individuação. Inteligência Emocional. Narrativa. Método autobiográfico. ABSTRACT This Final Paper aims to investigate the importance of a look at the Jungian concept of individuality as an extension of the concept of emotional intelligence, as well as its importance in the teaching-learning process. Based on an autobiographical research method, the author seeks to answer the driving question, ―What makes, in terms of emotional intelligence, to establish an emotionally beneficial and enriching teaching-learning environment?‖, and takes as a foundation of his thoughts concepts of Analytical Psychology of Carl Gustav Jung, as well as other related lines of thought. Keywords: Analytical Psychology. Education. Individuation. Emotional intelligence. Narrative. Autobiographical method. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO: A IMPORTÂNCIA DOS RASTROS ......................................................... 9 1.1. O caminho da pesquisa (de "(Des) engajamento e (In) felicidade na Academia de Artes" à "Inteligência Emocional, Narrativa e Educação ") ......................................... 10 2 FUNDAMENTAÇÃO DA METODOLOGIA EM PESQUISA AUTOBIOGRÁFICA ...... 14 2.1 Do conceito de inteligência emocional ao conceito de individuação ............................. 17 3 POR QUE JUNG AO ESTUDAR SOBRE INTELIGÊNCIA EMOCIONAL E EDUCAÇÃO? ..................................................................................................................... 20 3.1 Sobre arquétipos e educação — o arquétipo do mestre - aprendiz ................................ 25 3.2 Individuação e a função da escola .................................................................................. 31 3.2.1 Educação como situação (arque)típica ..................................................................... 34 3.3 A importância das relações ............................................................................................. 39 3.3.1 Sobre a função sentimento e a importância do campo relacional ............................ 42 3.3.2 Sobre a importância da educação pelo exemplo ...................................................... 45 3.3.3 Sobre educação, autorrealização e vulnerabilidade.................................................. 47 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 51 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 53 9 1 INTRODUÇÃO: A IMPORTÂNCIA DOS RASTROS Minha ideia era fazer um diário de bordo. Minha pesquisa seria feita aos poucos e eu desfrutaria do processo. Como uma tecelã eu costuraria as palavras em um movimento contínuo e crescente até que minhas mãos tomassem para si o ritmo das agulhas. Eu sabia que seria desafiador, mas confesso que foi bem mais. Logo no início desse processo minha orientadora sugeriu que a metodologia escolhida para a realização de meu trabalho fosse a pesquisa autobiográfica e, pra mim essa foi uma das mais excelentes ideias. Eu achava que não teria pudores para escrever; no entanto descobri que tenho. Era simples, eu só teria que colocar no papel o que eu vivia, sentia e pensava (esse seria ao mesmo tempo um método e um exercício de formação), mas o receio de passar da conta e colocar sobre as páginas palavras que ainda precisam de tempo e maturação interna, receio de me expor demais ou de menos, receio de não conseguir finalizar a costura, de deixar pontas soltas, começaram a me fazer adiar cada vez mais a escrita deste trabalho. Era isso — o problema das pontas soltas, daquelas coisas que ficam pelo caminho meio sem resolução, sem arremate, e que agora surgia pra mim como o último dos desafios da graduação (ela em si uma de minhas grandes costuras). E foi assim, fiz do processo deste TCC um ligar de pontos, um desatar de nós e um fazer de laços; mas antes de mais nada, tive que assumir para mim mesma que ele seria em si somente uma parte do trabalho e não o trabalho por completo; na tentativa e na sede de compreender uma série de coisas precisei entender que algumas pontas ficariam mesmo soltas até que talvez lá na frente eu consiga arrematá-las, assim como que novas tramas surgiriam para que eu pudesse pontear novos desenhos. Eu precisaria ter coragem de olhar para mim durante o processo e enfrentar algumas perguntas que me fariam sangrar um pouco por dentro (ou correr o risco de acidentalmente espetar a ponta de um dos dedos na roca e dormir para quase todo sempre). 10 1.1. O caminho da pesquisa (de "(Des) engajamento e (In) felicidade na Academia de Artes" à "Inteligência Emocional, Narrativa e Educação ") As primeiras reflexões para este trabalho começaram em 2019 como um projeto para a disciplina de ―Educação Musical: temáticas emergentes e projetos pedagógicos‖ do Instituto de Artes. A tarefa era elaborar uma proposta de projeto educacional para um contexto específico, um projeto que pudesse ser aplicado na prática e que oferecesse possibilidades de desenvolvimento de um grupo, turma, ou lugar. Demorei a definir um tema, mas motivada por questões pessoais pensei em tentar fazer algo sobre um problema que eu observava há certo tempo; e em minha primeira proposta de trabalho escrevi assim: Como estudante do curso de Licenciatura em Música de uma das melhores universidades do país, segundo ranking universitário internacional 1 , me pergunto porque vejo tantos rostos tristes em sala de aula e reclamações sobre os cursos e a vida durante as conversas de intervalo. Estaríamos vivendo uma era em que a tristeza é considerada normal ou apenas nos acostumamos com o desconforto porque tudo parece um tanto sem sentido e demasiadamente grande para ser modificado? O presente trabalho é simplesmente uma proposta; talvez ambiciosa, mas não menos relevante por isso. Como aluna recém ―trancada‖ e recém-reinserida no contexto acadêmico, não escondo que a principal motivação de meu interesse temático se dá a partir de minha trajetória pessoal; porém, não se atém exclusivamente à ela. Durante meu percurso como estudante e como pessoa, vi em meus colegas de estudo e de profissão o mesmo dilema: ―Porque estou tão desengajado e infeliz na Universidade?‖. Sendo estudante de música e estando em contato direto com pessoas dessa área, restringirei o escopo do presente trabalho, ao menos nesse primeiro momento, a esses estudantes especificamente; embora saiba que esse não é um questionamento exclusivo dos universitários do meio musical. Meu objetivo principal com esse trabalho é propor uma pesquisa sobre os motivos que levam à infelicidade e desengajamento do estudante universitário de música no ambiente acadêmico e, com isso vislumbrar a possibilidade de novas formas de estar na academia de artes. (Trabalho não publicado) 2 1 COMISSÃO DE RANKINGS DA UNESP. Ranking aponta Unesp como 11ª melhor da América Latina. Levantamento realizado por consultoria britânica contemplou 428 universidades da região. Disponível em: https://www2.unesp.br/portal#!/noticia/36980/ranking-aponta-unesp-como-11-melhor-da-america-latina. Acessado em 03 de dezembro de 2022 (em referência ao link do ano de meu questionamento:2019) 2 Desengajamento e o ensino de música na Universidade Pública: um estudo sobre (des)motivação e (in)felicidade na academia de artes, de autoria de Caroline Gumercindo Brandão. Projeto de Finalização da https://www2.unesp.br/portal#!/noticia/36980/ranking-aponta-unesp-como-11-melhor-da-america-latina 11 Meu questionamento começou assim e tinha como proposta a construção de um grupo de pesquisa em que estudássemos as possíveis causas desse efeito tão visível. Como hipóteses eu levantava algumas frentes de perguntas disparadoras sobre as quais poderíamos talvez nos debruçar: a) a questão da responsabilidade individual do estudante: Quais são os aspectos que fazem alguém se desmotivar frente ao estudo e a profissão? (Questões comportamentais e psicológicas); b) a questão do ambiente acadêmico: Como a estrutura acadêmica (currículos, burocracias, perspectivas coletivas, e histórico da instituição) influencia no desempenho dos estudantes e professores?; c) a situação dos professores: Como estão os professores neste sistema? Também desengajados? Se sim, são eles amparados de alguma forma nesse sentido? Como se dá a relação professor-aluno?; d) a questão social e política: Sendo a UNESP uma instituição pública, como aspectos externos influenciam na qualidade de ensino e aprendizagem? E como acontece o processo contrário?; e) a questão de mercado: A universidade pública deve exercer um impacto no mercado? O mercado de trabalho influencia na valorização do estudo acadêmico? A relação graduação-estágio e trabalho influencia no desengajamento dos estudantes? Como apresentado, comecei esse estudo tendo em vista o coletivo e buscando oferecer para ele uma ou algumas possíveis soluções. Eu estava olhando para um problema real e queria combate-lo, mas temia no fundo ser essa uma arrogância de minha parte, talvez até mesmo um jeito de justificar meus tropeços durante minha passagem pela graduação. Era um desafio e uma intenção extremamente válidos, mas eu estaria verdadeiramente pronta para realizar essa empreitada? O objetivo era descobrir isso durante o caminho, mas então veio a pandemia do Covid 19. disciplina de Educação Musical: temáticas emergentes e projetos pedagógicos, ministrada pela professora Margarete Arroyo. 2019. 12 Eu que a essa altura já começava a ter a ideia de transformar esse projeto em um trabalho de iniciação científica, tendo em vista a forma como foi bem recepcionado pelos professores e colegas aos quais o apresentei, naquele momento me vi tragada pelo medo e confusão que assolaram o globo por completo e, quando me dei conta, o ano já havia passado como um raio, ainda que lento (até hoje estou assimilando essa noção de tempo pandêmico e pós- pandêmico). Passada assim a oportunidade de realizar uma iniciação científica com o tema, tendo em vista inclusive que os resultados da minha pesquisa objetiva com os estudantes seriam profundamente incompatíveis à situação ―comum‖ (não pandêmica) da universidade, e que buscar metrificar qualquer índice com base naquela realidade pandêmica completamente atípica poderia apontar um panorama bastante distorcido do que é a experiência e a vivência de uma educação presencial (considerando que naquele momento esta se faria como uma lembrança ou uma projeção), decidi que esse seria então o objeto de estudo para o meu TCC e que em 2021 eu trabalharia sobre o assunto de uma outra maneira. A ideia de formar os grupos de estudo já havia sido descartada para o momento, mas eu sabia que a temática ainda seria desafiadora tendo em vista a amplitude do escopo. Para realizar então tal empreitada iniciei um curso em extensão universitária chamado ―O que é felicidade? – Psicologia Positiva, Ciência do Bem-estar e Autorrealização‖, pela PUCRS online e a partir dele comecei a estudar um bom tanto sobre Psicologia Positiva, e posteriormente sobre Teoria U. Estudar sobre esses temas foi um respiro, sobretudo tendo em vista que eu passava por um ano difícil e bastante incerto emocionalmente, mas questões acadêmicas me obrigaram a precisar pedir dilação de prazo na graduação e consequentemente, o trancamento do TCC para aquele ano. Confesso que hoje entendo que foi a melhor coisa; eu estava estudando, mas ainda não tinha chegado na resposta que me preencheria como sinto que estou chegando agora, porque no fundo, por mais que eu estivesse empenhada em fazer algo que fosse útil para a comunidade a qual eu pertencia, eu ainda estava tentando resolver um problema de fora sem resolver um punhado de questões por dentro. Justificar ou explicar quaisquer problemáticas da Universidade me colocavam num lugar grande demais e o que eu compreendi foi que antes de explicar o ―desengajamento e infelicidade na academia de artes‖ eu teria que encarar os meus desengajamentos e as minhas infelicidades tanto dentro como fora da graduação. 13 Foi aí que surgiu a ideia de mudar o escopo desse trabalho, ainda colocando luz sobre a importância do bem-estar dentro dos ambientes educativos e tendo nisso minha premissa de pesquisa, mas agora aprofundando sobre o conceito de inteligência emocional e utilizando como caminho de investigação, para além das fundamentações teóricas sobre o assunto, a observação da minha inteligência emocional enquanto pessoa, professora e aluna — porque era isso o que eu mais queria oferecer, mas era também isso o que eu mais precisava naquele momento. Em suma, o que eu fiz foi modificar minha pergunta motriz; de ―Como e porque se dá o processo de desengajamento e infelicidade no estudante de música da Universidade Pública?‖ para ―O que faz com que, em termos de inteligência emocional, se estabeleça um ambiente de ensino-aprendizagem emocionalmente benéfico e enriquecedor?‖. Porque se houveram momentos em que eu me senti muito triste e desmotivada em minha graduação, existiram também inúmeros outros que me fizeram extremamente feliz e engajada — o que haveria então de central aqui que eu precisaria conseguir enxergar? 14 2 FUNDAMENTAÇÃO DA METODOLOGIA EM PESQUISA AUTOBIOGRÁFICA Para realização deste trabalho, junto à minha orientadora optei por um método autobiográfico em que narrativas pessoais são utilizadas como recurso em um processo de auto formação docente — e a isso cabe uma observação. Em 2019, quando o questionamento inicial a este tema surgiu em mim eu já dava aulas, mas me via muito mais como estudante universitária, e era sobretudo para esse universo que eu queria olhar. Hoje, no entanto, alguns anos depois, me vejo ocupando de forma mais efetiva do que antes o lugar de educadora e com isso, expando as facetas de minha pesquisa de um modo que agora se faz importante olhar não só para a estudante que eu fui, sou e serei sempre, mas também e talvez agora principalmente, para a profissional que eu já sou e virei a ser; ou seja, hoje sinto a necessidade de olhar para dentro e também para fora da universidade, pelo prisma da educanda, mas já também pelo prisma da educadora — daí o rito de passagem. Um rito que dá medo, sobretudo pela força destas palavras: professora, educadora. ―Quem sou eu para ensinar ou educar alguém?‖ — lembro que foi esse o meu primeiro pensamento quando entrei pela primeira vez em uma sala para dar oficinas/aulas; não era um pensamento de falsa modéstia, era um pensamento de profundo temor, um pensamento que hoje eu sei que não se deu e se dá só em mim, mas que talvez se faça presente (ainda que em proporções diferentes) em todos aqueles que ingressam nessa profissão. E quem forma o formador? [...] o formador forma-se a si próprio, através de uma reflexão sobre seus percursos pessoais e profissionais (auto-formação); o formador forma-se na relação com os outros, numa aprendizagem conjunta que faz apelo à consciência, aos sentimentos e às emoções (hetero-formação); o formador forma-se através das coisas (dos saberes, das técnicas, das culturas, das artes, das tecnologias) e de sua compreensão crítica (eco-formação). (JOSSO, Marie, 2004, p.16) [...] A aprendizagem experiencial proposta pela abordagem biográfica do processo de formação, implica diretamente o envolvimento do aprendente em três dimensões existenciais: a sua consciência de ser psicossomático ou homo economicus 3 , a sua 3 Homo economicus: ―o nome dado a um conceito teórico segundo o qual os homens são completamente racionais e sempre tomam decisões financeiras com base na razão. Nessa teoria, o indivíduo busca atingir metas específicas com foco no seu bem-estar, ao menor custo possível‖. (SELL, Jurandir. Homo economicus. 15 consciência de homo faber 4 e a sua consciência de homo sapiens 5 . (JOSSO, Marie, 2004, p.40) [...] [Sendo assim] A qualidade essencial de um sujeito em formação está, então, na sua capacidade de integrar todas as dimensões do seu ser: o conhecimento dos seus atributos de ser psicossomático e de saber-fazer consigo mesmo; o conhecimento das suas competências instrumentais e relacionais e de saber-fazer com elas; o conhecimento das suas competências de compreensão, de explicação e do saber- pensar. O tema da busca da identidade, que perpassa as narrativas de formação, leva- nos a pensar que um dos desafios da formação é pôr em prática a criatividade em todas essas dimensões ao longo de um processo de individuação. (JOSSO, Marie, 2004, p.46). Começo por esse trecho do livro ―Experiências de Vida e Formação‖ de Marie Chrtistine Josso (2002) não só porque ele foi a base de referência para meu entendimento do que seria essa metodologia autobiográfica, mas também porque ele apresenta a importância de meu questionamento inicial. O que faz com que eu me sinta verdadeiramente apta a essa tarefa de estar diante de outras pessoas (muitas vezes pessoas em seus anos iniciais de vida) e me sinta confiante o suficiente para auxiliá-las de alguma forma em seu processo de aprendizagem e desenvolvimento? O quanto eu mesma já me sinto desenvolvida para tanto? E o quanto eu preciso me sentir assim para realizar essa tarefa? Ainda sobre o trecho de Josso, um questão importantíssima para este trabalho ali é levantada — a individuação, sobre a qual escreverei mais a frente. In Waren Magazine. Homo economicus: a origem, o significado e o que está por trás do conceito. Publicado em 31 de agosto de 2021 .Atualizado em 17 de outubro de 2022. Disponível em: https://warren.com.br/magazine/homo- economicus/#:~:text=Homo%20economicus%20%C3%A9%20o%20nome,estar%2C%20ao%20menor%20cus to%20poss%C3%ADvel. Acesso em: 15 de nov. de 2022). 4 Homo faber: ―O homem artífice. Locução empregada por Henri Bergson para designar o homem primitivo ante a necessidade de forjar ele próprio os utensílios indispensáveis à manutenção da vida.‖ (BERGSON, Henri. Homo faber. In: Dicionário de Latim Online: significados de palavras e expressões em latim. Disponível em https://www.dicionariodelatim.com.br/homo-faber/, ano X. Acesso em: 15 de nov. 2022). 5 Homo sapiens: ―Espécie de hominídeo, da família dos primatas, da qual fazem parte o homem moderno e seus ancestrais; homo rationalis. Designação da raça humana, da humanidade, da pessoa dotada de inteligência: homo sapiens é espécie humana da qual pertencemos.‖ (HOMO SAPIENS. In: Dicio, Dicionário Online de Português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/homo-sapiens/, ano X. Acesso em 15 de nov. de 2022). https://warren.com.br/magazine/homo-economicus/#:~:text=Homo%20economicus%20%C3%A9%20o%20nome,estar%2C%20ao%20menor%20custo%20poss%C3%ADvel https://warren.com.br/magazine/homo-economicus/#:~:text=Homo%20economicus%20%C3%A9%20o%20nome,estar%2C%20ao%20menor%20custo%20poss%C3%ADvel https://warren.com.br/magazine/homo-economicus/#:~:text=Homo%20economicus%20%C3%A9%20o%20nome,estar%2C%20ao%20menor%20custo%20poss%C3%ADvel https://www.dicionariodelatim.com.br/homo-faber/ 16 Por ora, gostaria de enfatizar outra questão importante: apesar de ter como base uma fundamentação metodológica específica, não sei exatamente como se darão os relatos biográficos presentes neste trabalho, se serão poucos ou muitos, se escreverei sobre minha infância, adolescência ou sobre minhas experiências mais recentes, já que durante essa feitura conto com mais outra sugestão dada por minha orientadora e sobre a qual pude compreender teoricamente só depois no transcorrer das pesquisas até aqui. Utilizo durante a escrita deste trabalho uma função da consciência bastante conhecida, mas por muitas vezes ignorada, a intuição 6 , e com ela estou descobrindo quais caminhos trilhar. Não sei exatamente como se dará este percurso, mas espero poder transmitir o que for essencial e oportuno para este momento — espero verdadeiramente que esse compartilhar nos faça bem e seja proveitoso. 6 ―Intuição é a função psicológica que se ocupa de transmitir percepções por meio do inconsciente... Na intuição, qualquer conteúdo nos é transmitido como um todo coeso, sem que sejamos capazes de dizer ou averiguar de imediato, como teria chegado a formar-se. A intuição é uma espécie de adaptação instintiva de qualquer conteúdo... À semelhança da percepção, seus conteúdos possuem o caráter do que está dado, em contraste ao caráter do que é ‗derivado‘ ou do que é ‗gerado‘, próprio dos conteúdos do sentir e do pensar‖ (JUNG, 1981b, p.529, apud SAIANI, 2000, p.40). SAIANI, Claudio. Jung, uma análise da relação professor/aluno. São Paulo: Escrituras, 2000. 17 2.1 Do conceito de inteligência emocional ao conceito de individuação Como escrevi acima, minha escolha em trabalhar este tema em inteligência emocional surge como uma necessidade pessoal. Em meu senso de urgência, confesso que muito antes de me preocupar em colocar estas palavras no papel, me preocupei em colocar em prática o que fui aprendendo durante o processo. Entendi que mudanças nesse nível às vezes podem ser bastante silenciosas e também que são aprendizados de longo prazo com alguns efeitos rápidos e outros menos instantâneos. Descobri muitas ferramentas, tomei conhecimento de alguns autores, pesquisas e teorias importantes da área durante esse trajeto e, com isso, em relação à estruturação de meu trabalho escrito, tive a vantagem de ver se abrir diante de mim um mapa enorme de possibilidades, ao mesmo tempo em que se fez presente também o desafio de definir quais caminhos tomar por esse mesmo mapa. Começo então apresentando a definição original deste conceito-chave para o presente trabalho. Segundo Daniel Goleman em seu livro ―Inteligência emocional — A teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente‖ (1995), o modelo de inteligência emocional foi proposto pela primeira vez por Peter Salovey e John D. Mayer, em ―Emotional Intelligence‖, Imagination, Cognition, and Personality (1990): [Os psicólogos Peter Salovey e John D. Mayer] adotaram uma visão mais ampla de inteligência, tentando reinventá-la em termos do que é necessário para viver bem a vida. E essa linha de investigação retorna ao reconhecimento de como, exatamente, é crucial a inteligência ―pessoal‖ ou emocional. Salovey, com seu colega John Mayer, propôs uma definição elaborada de inteligência emocional, expandindo essas aptidões em cinco domínios principais: 1. Conhecer as próprias emoções. Autoconsciência — reconhecer um sentimento quando ele ocorre — é a pedra de toque da inteligência emocional [...] 2. Lidar com emoções. Lidar com os sentimentos para que sejam apropriados é uma aptidão que se desenvolve na autoconsciência [...] 3. Motivar-se. Pôr as emoções a serviço de uma meta é essencial para centrar a atenção, para a automotivação e o controle, e para a criatividade. O autocontrole emocional — saber adiar a satisfação e conter a impulsividade — está por trás de qualquer tipo de realização. E a capacidade de entrar em estado de ―fluxo‖ possibilita excepcionais desempenhos. [...] 4. Reconhecer emoções nos outros. A empatia, outra capacidade que se desenvolve na autoconsciência emocional, é a ―aptidão pessoal‖ fundamental. [...] 5. Lidar com relacionamentos. A arte de se relacionar é, em grande parte, a aptidão de lidar com as emoções dos outros. (GOLEMAN, 2011, p. 73). 18 Em seu livro, Goleman argumenta também sobre as pesquisas de outro autor, Howard Gardner, psicólogo cognitivo e educacional criador do conceito de inteligências múltiplas (1983) em que defende a ideia de que possuímos, enquanto humanos, diferentes tipos de inteligência, entre elas as inteligências intrapessoal e interpessoal que, posteriormente seriam consideradas partes essenciais para um bom desenvolvimento da então chamada inteligência emocional: O pensamento de Gardner sobre a multiplicidade da inteligência continua a evoluir. Cerca de dez anos após ter publicado sua teoria pela primeira vez, ele fez o seguinte sumário das inteligências inter e intrapessoal: ‗Inteligência interpessoal é a capacidade de compreender outras pessoas: o que as motiva, como trabalham, como trabalhar cooperativamente com elas. As pessoas que trabalham em vendas, políticos, professores, clínicos e líderes religiosos bem-sucedidos provavelmente são todos indivíduos com alto grau de inteligência interpessoal. A inteligência intrapessoal (...) é uma aptidão correlata, voltada para dentro. É uma capacidade de formar um modelo preciso, verídico, de si mesmo e poder usá-lo para agir eficazmente na vida‘.[...] Em outra versão, Gardner observou que o âmago da inteligência interpessoal inclui ‗a capacidade de discernir e responder adequadamente ao humor, temperamento, motivação e desejo de outras pessoas‘. Na inteligência intrapessoal, chave do autoconhecimento, ele incluiu o ‗contato com nossos próprios sentimentos e a capacidade de discriminá-los e usá-los para orientar o comportamento‘ (GARDNER, 1989, p.X. apud GOLEMAN, 2011, p. 69) Tendo como base tais conceitos e a forma como se relacionam, fui em busca também de outros trabalhos que pudessem responder mais especificamente à minha pergunta motriz. Cheguei então a duas linhas de pensamento e pesquisa que senti serem aquelas que me aproximariam mais da resposta à minha pergunta inicial: a primeira delas, a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, e a segunda, a Teoria Polivagal de Stephen Porges. Tendo como ponto de partida o livro O abuso de poder na psicoterapia e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério de Adolf Guggenbuhl-Craig pude ter acesso ao conceito do arquétipo mestre-aprendiz sobre o qual me debruçarei mais adiante, e que me levou ao conhecimento de outra obra bastante importante para a realização deste trabalho: Jung e a Educação: uma análise da relação professor/aluno de Claúdio Saiani, que serviu de base para muitos dos conceitos levantados aqui, aos quais relacionei minhas experiências pessoais assim como também outras linhas de estudo e autores que se fizeram importantes nessa trajetória. Sobre a Teoria Polivagal meu encontro se deu de outra forma: no início de 2022 participei de um workshop presencial de renegociação de trauma e vínculo e, durante aquele final de semana dentre muitas colocações e exercícios realmente mobilizadores, ouvi pela primeira 19 vez, por parte do orientador, uma frase que me mexeu por dentro e que, mais tarde retornou para mim como uma possibilidade de pesquisa para este trabalho: ―Não existe aprendizagem sem segurança‖ (informação verbal) 7 – uma frase que me acompanha e que clareou para mim muito do que eu procurava (agora sim em termos acadêmicos, para além de minhas questões exclusivamente pessoais). Embora estejam estruturadas como abordagens completamente diferentes, pude perceber em ambas (na Psicologia Analítica e na Teoria Polivagal) as respostas para o que eu procurava (muitos momentos de ―ahá‖, choros, e pausas para respirar um pouco); no entanto, devido à extensão deste trabalho atual e o tempo que tenho para realiza-lo, precisei assumir para mim mesma que eu não conseguiria me aprofundar em ambas as teorias a tempo de correlacioná- las agora da forma como elas exigem e merecem. Por esse motivo, optei por seguir uma linha de pensamento com base no conceito junguiano de individuação (em amplitude ao conceito de inteligência emocional) que no momento se faz como fascinante para mim e que se dará como fio condutor desta jornada. Espero num momento futuro poder ter a permissão de me aprofundar ainda mais nestes temas que têm me intrigado e encantado tanto, inclusive tendo a oportunidade de conectar todas as teorias possíveis, mas por ora, para além de qualquer fome de aprendizado, um pouquinho de pés no chão me fará bem. 7 Informação fornecida pelo professor e teólogo, pós-graduado em Saúde Integrativa pelo Hospital Albert Einstein e pós-graduando em Neurociências pela USP, Luís Henrique de Oliveira, em referência ao trabalho de Stephen W. Porges, psicólogo e neurocientista americano, professor de psiquiatria na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill e autor da Teoria Polivagal; durante o curso Eu Sou Real – Restaurando a confiança na Vida, em São Paulo, em 29 de Janeiro de 2022. 20 3 POR QUE JUNG AO ESTUDAR SOBRE INTELIGÊNCIA EMOCIONAL E EDUCAÇÃO? Segundo Saiani em seu livro ―Jung e a Educação – uma análise da relação professor-aluno‖ (2000), [...] diante do professor, por maior poder que ele detenha, está um ser humano que não deixa a dimensão inconsciente de seu ser na porta da sala de aula, estando, portanto, sujeito a reações inesperadas e fora de controle consciente [...] Mais do que isso, aquilo que falamos e fazemos como professores pode provocar situações nas quais reações advindas do inconsciente podem aflorar sem que o professor ou aluno tenham qualquer controle sobre elas, como pode atestar qualquer um que já tenha presenciado (quando não, sofrido) o medo/pânico que algumas pessoas manifestam em relação à Matemática [ou à Música]. Assim, uma primeira asserção que poderia definir o espírito do presente trabalho é: o que há de mais fundamental para um aprendizado bem-sucedido é a relação — essa sim de responsabilidade sua — que o professor estabelece com o aluno, a criação de uma tão inefável quanto imprescindível atmosfera. (SAIANI, 2000, p .3). Quando estudamos sobre emoções e colocamos a frente dela a palavra ―inteligência‖, por um momento podemos imaginar que se trata especificamente de racionalizar o que sente e com isso, alcançar um equilíbrio emocional e psíquico do qual se tem pleno controle; mas tentar compreender ―Inteligência emocional‖ numa perspectiva tão cartesiana pode nos levar a atribuir as qualidades daquilo que geralmente consideramos ser inteligência — a inteligência lógica/racional — para o âmbito das emoções, o que por um lado é relevante, mas por outro pode resultar bastante equivocado. Escolhi esse trecho de Saiani por que logo de início ele nos lembra de uma parte nossa que se faz essencial nesse processo de autoconhecimento e então desenvolvimento do que seria uma verdadeira inteligência emocional — considerar a existência do inconsciente, não só pessoal como coletivo, é talvez pré-requisito para um bom desenvolvimento nesse aspecto, tendo em vista que ser inteligente é também considerar aquilo que foge à própria inteligência, ou seja, considerar aquilo que se ignora. Nesse sentido retomo um conceito importante sobre qual escrevi que comentaria mais a frente: a individuação. Segundo Carl Gustav Jung, médico psiquiatra fundador da Psicologia Analítica, 21 ‗Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por ‗individualidade‘ entendemos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornarmos o nosso próprio self 8 . Podemos, pois traduzir ‗individuação‘ como ‗tornar-se si mesmo‘ ou o ‗realizar-se do si mesmo‘ (JUNG, 1978, p.163 apud SAIANI, 2000, p 74). Quando tive contato com este termo, individuação pela primeira vez não me lembro exatamente, mas muito provavelmente foi ao ler um dos livros que se tornaram um de meus preferidos na vida: ―Mulheres que correm com os lobos‖, de Clarissa Pinkola Estés (2014). Em algumas vezes, quando estava muito triste ou confusa, ao invés de descer na estação que me levaria para a faculdade, descia em uma das estações de um de meus lugares favoritos em São Paulo: a Avenida Paulista. Sempre me fez bem sentar nas escadarias da Gazeta e ver as pessoas passarem, ou passar algumas horas na Livraria Cultura do Conjunto Nacional — o ir e vir das pessoas e a sensação de estar num centro cosmopolita me faziam sentir mais viva, uma mistura de estar profundamente comigo, mas ao mesmo tempo inserida no mundo. Em um desses dias foi que encontrei o tão famoso ―Mulheres que correm com os lobos‖ por acaso (ou sincronicidade 9 ). Me lembro de ler as primeiras páginas, não conseguir parar, e me sentar no carpete da livraria para continuar extasiada a leitura: [...] cheguei à conclusão de que ocorre no processo de individuação de praticamente todo mundo pelo menos um caso de roubo significativo. Algumas pessoas o caracterizam como o roubo da sua ‗grande oportunidade‘ na vida. Os apaixonados o definem como o roubo da alma, uma apropriação do espírito da pessoa, um enfraquecimento do sentido de identidade. Outros descrevem o fato como uma 8 Aqui self se refere a um conceito junguiano bastante abrangente, mas que podemos entender como a nossa totalidade, aquilo que somos integralmente: ‗Self não é somente o centro, mas também a circunferência total que abarca tanto o consciente quanto o inconsciente; é o centro dessa totalidade, assim como o ego é o centro da consciência‖ (SHARP, 1993, p. 142, apud SAIANI, 2000, p.72). Observações sobre o ego: ―Suponhamos que alguém me peça para resumir minha vida. Lembro-me de meu nome, de alguns acontecimentos marcantes, de algumas pessoas, algumas alegrias, algumas tristezas. São fatos e lembranças que posso associar à minha história pessoal. No entanto, se não houvesse em mim uma espécie de centro organizador, capaz de conferir a esse amontoado de fatos uma certa coesão e impressão de continuidade e identidade pessoal, eu não poderia associá-los à minha biografia. Tal centro é por Jung denominado ego.‖ (SAIANI, 2000, p.30). 9 Sincronicidade: ―Falamos então em um evento sincronístico quando ‗um símbolo constelado no universo psíquico, por exemplo, uma imagem de sonho, uma visão no estado de vigília, uma ideia espontânea ou uma fantasia nascida do inconsciente, coincide, de uma forma maravilhosa, inexplicável, de uma forma racional e casual, com um acontecimento de mesmo significado no mundo exterior‖ (VON FRANZ, 1983, p 30 apud SAIANI, 2000, p. 86) 22 distração, uma ruptura, uma interferência ou uma interrupção de algo que lhes era vital: sua arte, seu amor, seu sonho, sua esperança, sua crença na bondade, seu desenvolvimento, sua honra, seus esforços [...] Quando somos jovens e a vida da nossa alma entra em colisão com os desejos e exigências da cultura e do mundo, nós realmente nos sentimos perdidas, longe de casa. No entanto, na idade adulta, continuamos a nos empurrar cada vez mais para longe de casa, em consequência das nossas próprias opções sobre quem, o quê, onde e por quanto tempo. Se nunca nos ensinaram a voltar ao lar profundo da nossa infância, nós repetimos ad infinitum o modelo de ‗ser roubada e vaguear perdida por aí‘. Entretanto, mesmo que nossas próprias escolhas infelizes nos tenham desviado do curso — para muito longe do que precisamos — não vamos perder a fé, porque no interior da alma está o dispositivo de orientação de retorno. Todas nós podemos encontrar nosso caminho de volta. (ESTÉS, 2014, p.300 e 308). Faço esse relato ao escrever sobre individuação porque penso serem momentos assim os que nos mobilizam para isso que Jung chamou do processo de individuar-se — momentos em que você segue por um caminho que te leva a algo que te desperta, te engaja, e então te transforma de alguma maneira. Individuar-se seria, nesse sentido, seguir esse instinto único em si que sabe o que te fará brilhar por dentro, ao mesmo tempo em que é também conhecer e, dentro do possível, abraçar a própria sombra 10 . Lembro de sentir esse brilho interno quando, enquanto criança e adolescente, eu ouvia uma música nova no rádio e saía correndo para buscar um jeito de gravá-la e pesquisar depois, lembro da mesma sensação quando eu escrevi uma música pela primeira vez na casa de uma amiga e descobrirmos que, assim como os meninos, nós também podíamos compor ao violão; lembro da primeira vez que ouvi minha voz gravada ressoando nos alto-falantes do carro de minha mãe depois de gravarmos ―Demais‖, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, para que eu participasse de um festival e do quanto me senti orgulhosa de mim mesma naquela hora; lembro de quando, ainda no curso de Licenciatura em Educomunicação na USP, ao participar do encerramento da Jornada das Licenciaturas de 2012, precisei sair escondida depois da apresentação do coral porque me senti triste demais por não fazer parte dos que estavam no palco, e então passar o restante do semestre sentada no banco mais próximo ao prédio de música da ECA — Escola de Comunicação e Artes — para ouvir o que vazava das aulas e 10 Sombra: ―A chamada sombra se compõe de três estruturas psicológicas distintas intimamente inter- relacionadas. A primeira é a sombra pessoal. Até certo ponto, esta equivale ao conceito freudiano de inconsciente. Ela envolve imagens, fantasias, impulsos e experiências que por razões pessoais tiveram de ser reprimidos no decorrer da história do indivíduo. [...] A sombra pessoal está intimamente ligada à chamada sombra coletiva. No interior de cada coletividade, a sombra coletiva é a mesma. Ou seja, em cada indivíduo ela contém tudo o que não é aceitável em seu meio cultural. [... A chamada sombra arquetípica se liga a esses dois tipos de sombras e lhes fornece energia, apesar de ser algo completamente distinto‖ (CRAIG, 2004, p.103 e 104) 23 ensaios pelas janelas, até decidir no começo do ano seguinte que eu trancaria minha atual graduação para entrar em um novo curso, desta vez de música. Lembro da animação que eu senti ao conseguir frequentar o cursinho do Da Capo 11 e depois da alegria e entusiasmo em participar da minha primeira Semana dos Bixos do Instituto de Artes da UNESP, agora sim como estudante de Licenciatura em Música — como estava feliz! Era como se eu tivesse encontrado meu lugar: já durante o primeiro ano reconheci alguns amigos de cursos anteriores de teatro, conservatórios, e até artistas que eu só ficava admirando pelo Youtube; conheci pessoas incríveis e estava agora mais perto daquele universo que antes parecia tão distante. Para mim era a realização de um sonho, naquele momento eu estava mais perto de ser mais eu mesma. Essa sensação se estendeu por um bom tempo durante o percurso da graduação até que comecei a sentir que as aulas não faziam sentido para mim, que eu não conseguia e nem conseguiria entender — nem o que era dito, nem porquê era dito. Me sentia profundamente bem com a minha turma e com as amizades recém estabelecidas (e confesso que eram essas relações o que mais me motivava a me manter presente), mas sentia em relação ao ambiente geral das aulas, sobretudo quando unidas a outros cursos mais específicos, uma atmosfera desconfortável em que, talvez mais do que aprender algo era importante que se mostrasse que já se sabia. O problema é que eu não sabia, e então comecei a me sentir inferior. Comecei a ter pressa e a acreditar que não seria possível compreender nada daquilo nunca. Nessa guerra fria de egos o meu estava ficando ferido e a sensação de pertencimento em relação à academia começou a se desfazer, como se eu não tivesse autorização ou inteligência para verdadeiramente fazer parte daquele contexto. ―Percebi que você está com bastante dificuldade. Sugiro que não faça a prova final e refaça a matéria no ano que vem.‖ — ouvi essa frase de uma de minhas professoras logo no final do primeiro ano letivo e lembro de me sentir profundamente triste e ao mesmo tempo vista, um misto entre me sentir de certa forma cuidada e ao mesmo tempo desmerecida. Chorei bastante no banheiro e voltei para a sala, contei a uma amiga o que tinha acontecido e ela me retrucou indignada que não somente eu tinha recebido esse retorno, mas também ela e mais uma outra 11 Da capo: Cursinho pré-vestibular de música do Instituto de Artes da UNESP. 24 amiga entre nós. ―Talvez ela esteja certa, mas ela não pode nos dizer isso, ela não pode afirmar que nós não vamos conseguir passar‖. Minha amiga tinha razão, com o apoio de mais alguns amigos estudamos as três juntas para a tão temida prova e passamos, de raspão, mas passamos. Ficamos contentes, comemoramos, mas em mim permanecia uma sensação de desconforto interno; eu não mudaria a estrutura daquele contexto e já não me sentia mais brilhando por dentro como antes, não sentia que eu podia vivenciar ali a minha potência — tiradas às vezes em que ensaiava, cantava e me reunia com os amigos nas salas de ensaio, cantina, gramado e corredores, eu já não sentia motivação para me dedicar ao conteúdo das aulas em si, tendo em vista que tudo aquilo se apresentava para mim como um conhecimento inatingível e, em minha interpretação da época, muitas vezes inaplicável — aos poucos, minha vontade de permanecer na graduação foi diminuindo. A verdade é que eu estava ressentida: se a ―universidade‖ não acreditava em mim, eu também não acreditaria mais nela — decidi então trancar a graduação. Lembro do quanto chorei depois de assinar os papeis (e se eu soubesse ler esse choro como leio hoje, talvez eu teria ficado), mas naquele momento eu precisava correr o risco de ir atrás do que eu achava que fazia sentido para mim e então, mesmo me sentindo bastante triste e confusa, eu decidi ir embora. 25 3.1 Sobre arquétipos e educação — o arquétipo do mestre - aprendiz Nas palavras de Adolf Guggenbuhl-Craig, médico e analista junguiano radicado em Zurique em seu livro O abuso de poder na psicoterapia e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério, de 2004, O arquétipo pode ser definido como uma potencialidade inata de comportamento. O ser humano reage arquetipicamente a alguém ou a algo quando se defronta com uma situação típica recorrente. A mãe e o pai reagem arquetipicamente ao filho ou filha, o homem reage arquetipicamente à mulher etc. Nesse sentido, certos arquétipos têm dois polos, por assim dizer. Sua situação básica contém uma polaridade [...] Nascemos todos com ambos os polos dentro de nós. Se um polo se constela no mundo exterior, o outro, oposto e interior também se constela [...] Levando adiante essa linha de raciocínio, eu sugeriria que não há um arquétipo especial de terapeuta ou paciente. Ambos são aspectos da mesma coisa. Quando uma pessoa fica doente, o arquétipo de terapeuta-paciente se constela. O enfermo procura um terapeuta exterior, mas ao mesmo tempo se constela 12 o terapeuta intrapsíquico [...] isso significa que não só o paciente tem um médico dentro de si, mas também que há um paciente no médico. (CRAIG, Adolf Guggenbuhl, 2004, p.84-85) Ainda segundo Craig (2004), Vejamos se o conceito de cisão do arquétipo pode esclarecer melhor essa questão. Não é fácil, para a psique humana, suportar a tensão das polaridades. O ego ama a clareza e tenta sempre erradicar a ambivalência interior. Essa necessidade de situações inequívocas pode acarretar uma cisão dos polos arquetípicos. Um polo poderá ser reprimido e continuar operando no inconsciente, possivelmente causando distúrbios psíquicos. A parte reprimida do arquétipo poderá ser projetada sobre o mundo exterior [...] O problema da cisão do arquétipo aparece igualmente em outro campo de atividade que também se inclui entre as profissões relacionadas ao desenvolvimento humano. Refiro-me aqui ao magistério [...] Um bom professor deve, por assim dizer, estimular o adulto instruído na criança, assim como deve o médico ativar o princípio interior de cura do paciente. Mas isso só pode ocorrer se o professor não perder contato com sua própria infantilidade. Em termos práticos, isso significa, por exemplo, que, ao ensinar, ele não deve perder a espontaneidade, devendo deixar-se conduzir por seus próprios interesses. Seu trabalho consiste não apenas em transmitir conhecimento, mas também em despertar a vontade de aprender nas crianças – o que só será possível se a criança espontânea e ávida de conhecimento estiver dentro dele [...] [Se] a infantilidade do professor é reprimida e então projetada no aluno, quando isso ocorre, o processo de aprendizagem é bloqueado. As crianças continuam sendo crianças e nelas já não mais se constela o adulto instruído. O professor fica cada vez mais sabido e os alunos cada vez mais ignorantes. (CRAIG, Adolf Guggenbuhl, 2004, p.86, 96-97). 12 ―Este termo exprime o fato de que a situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos‖ (JUNG, 1984, p.97 apud SAIANI, Claudio, 2000, p.108). 26 Craig apresenta nesse trecho a relação mestre e aprendiz tendo em vista a relação professor- aluno, sobretudo no que diz respeito ao trabalho com crianças, no entanto, podemos estender esse conceito ao trabalho com adolescentes, jovens e adultos. Numa polaridade da constelação do arquétipo temos o mestre, aquele que sabe, e na outra, o aprendiz, o que não sabe ainda. Para que se dê o aprendizado, Craig sugere que ambos os agentes dessa relação (professor e aluno) sejam permitidos de constelar em si as duas polaridades. Isso significa que enquanto professores, existe em nós uma responsabilidade de nos relacionarmos com o estudante de forma que, ao mesmo tempo em que nos coloquemos como mestres e sabedores de algo, nos coloquemos também como aquele que não sabe — em nosso espaço de não saber poderá então se constelar o mestre interior do estudante. Nesse sentido, impossível não recordar de outro autor importante, Jacques Rancière, apresentado a mim durante os primeiros anos da graduação e só retomado por mim agora: O mestre sempre guarda na manga um saber, isto é, uma ignorância do aluno. Entendi isso, diz o aluno, satisfeito. — Isso é o que pensa, corrige o mestre. Na verdade, há uma dificuldade de que, até aqui, eu o poupei. Ela será explicada quando chegarmos à lição correspondente. — O que quer dizer isso? Pergunta o aluno, curioso. — Eu poderia lhe explicar, responde o mestre, mas seria prematuro: você não entenderia. Isso lhe será explicado no ano que vem. (RANCIÈRE, 1987, p.41) Em seu livro, ―O mestre ignorante‖, Rancière enfatiza a importância de um Ensino Universal que ele define como sendo a capacidade de conscientizar a todos de que se pode ensinar o que se ignora, desde que se assuma que não existe superioridade e inferioridade entre as diversas inteligências humanas, e se relacione o conhecimento de alguma coisa a todas as outras no processo de aprendizagem — O ―ignorante‖ sempre sabe de algo a partir do qual poderá aprender tudo por meio de correlações. Nesse contexto cabe ao mestre, também ignorante, contribuir com o processo de emancipação do estudante, conferindo apenas se este dedica-se a tarefa de pesquisar e correlacionar continuamente, dessa forma impulsionando o aluno a usar sua própria inteligência. 27 Vejo no método exposto por Rancière um respiro, uma abertura essencial no processo de ensino-aprendizagem, mas agrego a ele uma questão elementar e constituinte de nossa jornada psíquica que talvez não possa e nem deva ser ignorada — o arquétipo do Velho Sábio e a importância dos mentores no caminho. Ainda que mestre e aprendiz existam em ambos os agentes dessa relação tão estimada (professor e estudante), acredito que não é possível redimir o professor da responsabilidade que carrega como aquele que, em posição de antecessor, supostamente conheceu os próprios caminhos e exatamente por isso será capaz de conduzir o estudante em seu próprio. É quase inevitável que, de alguma forma, na figura daquele que se apresenta como um educador, professor ou guia, constele-se a figura do Velho Sábio, do essencial mentor, sobretudo quando o estudante se apresenta em momentos de importante transição como a saída da infância para a adolescência e da adolescência para a vida adulta, ou mesmo em momentos específicos como processos de conclusão e início de ciclos. Segundo Saiani (2000) em referência ao ensaio de Jung ―A fenomenologia do espírito nos contos de fada‖ (1990): [...] é aqui que comparece a figura do velho sábio, ‗simbolizando o fator espiritual‘ [ibidem, p215]. Ele aparece não só em sonhos, mas também na imaginação ativa. Nesses casos, toma a forma de um ‗mágico, médico, sacerdote, professor, avô ou qualquer outra pessoa possuindo autoridade [ibidem, p216]. Ele é uma das formas em que o arquétipo do espírito aparece, em ―situações nas quais o ‗insight‘, a compreensão, o bom conselho, a determinação, o planejamento, etc. são necessários, mas não podem ser conjurados com os recursos do próprio sujeito‖ [...] ‗ o velho sempre aparece quando o herói se encontra em situação desesperadora, da qual somente uma profunda reflexão ou ideia feliz [...] pode livrá-lo. Mas, uma vez que, por razões internas ou externas, o herói não pode consegui-las por si próprio, o conhecimento necessário para compensar essa deficiência surge na forma de pensamento personificado, isto é, na forma desse sagaz e prestimoso ancião... O velho conhece os caminhos que levam ao objetivo e os aponta ao herói. Avisa dos perigos que virão e proporciona os meios para enfrenta-los de modo efetivo. [Ibidem: 217, apud, SAIANI, Claudio, 2000, p.144-145). Ainda segundo Saiani em seu livro ―Jung e Educação – uma análise da relação professor- aluno‖ (2000), É importante que o professor se ache possuidor de um certo conhecimento. Caso contrário, aos seus olhos e aos dos alunos, ele pouco se distinguiria desses últimos. Por outro lado, os alunos, principalmente na fase da adolescência, vivem o mito do herói, conforme demonstra Stevens [1993]. E, [...] o velho sábio faz parte desse mito. É comum alunos procurarem professores em busca de orientações, conselhos, vivências que pouco têm a ver com o conteúdo de uma particular disciplina. O jovem procura encontrar seu próprio caminho, mirando-se no exemplo de alguém 28 que, supostamente, o encontrou (aqui nos lembramos de educação pelo exemplo, tão valorizada por Jung) (SAIANI, Claudio, 2000, p.147-148). Sobre essa questão, gostaria de apontar algumas experiências pessoais. Minha principal formação prática inicial se deu em uma ONG em São Caetano do Sul, chamada Ponte (abro aqui inclusive um espaço extra em agradecimento a essa instituição e profissionais que me receberam sem qualquer experiência, e me ofereceram, para além de espaço e abertura para trabalhar, amizades envoltas em muito carinho); lá crianças e adolescentes passam os sábados tendo aulas-oficinas de canto, violão, teatro, percussão e dança. Atuo como professora de canto e musicalização com eles e, especialmente neste ano, me vi de repente, em alguns momentos vivenciando na prática o que Saini expõe acima. Em minhas aulas, sobretudo depois das pesquisas que realizei para este trabalho, entendi o quanto é importante estabelecer um relacionamento de segurança e abertura em todo e qualquer espaço em que o aprendizado for a premissa; sendo assim, no início de minhas aulas sempre separo um tempo para conversar um pouco. Meu objetivo com isso é não só conhecer melhor meus alunos, mas permitir que eles me conheçam também. Neste ano aconteceu uma coisa interessante: mais adolescentes optaram por participar de minha oficina e, para além das crianças, começaram a compartilhar suas histórias e dilemas comigo — justo eu que morria de medo de orientar quem quer que fosse, sobretudo a nível pessoal, me vi convocada a essa tarefa. De coisas mais leves, a outras mais preocupantes, iam compartilhando aquilo que sentiam ser importante, e com isso, eu via crescer entre nós uma confiança e um respeito cada vez mais genuínos. Às vezes, eu não sabia o que dizer, e compartilhava simplesmente o que sentia, às vezes dizia algo e depois algum deles vinha me dizer — ―aquele conselho seu foi ótimo, me ajudou muito‖, e o mais interessante é que às vezes eu não lembrava o que eu tinha dito, e não porque eu não me importava, mas porque inicialmente eu não conseguia me ver em uma posição de aconselhamento, então simplesmente dizia o que no momento achava que era essencial. De repente, eu entendi que a minha fala poderia ter uma relevância a nível pessoal para eles que eu não conseguiria mensurar e que, curiosamente, enquanto professora, de alguma forma, 29 a minha palavra ganhava uma outra amplitude, um outro peso e, sobre isso, gostaria de relatar duas vivências. A primeira diz respeito a uma vez em que estávamos no portão da ONG nos despedindo das crianças e adolescentes no final do expediente até que ouvi uma das adolescentes conversando com uma das outras professoras da instituição: — ―Às vezes quando vou fazer alguma coisa e fico em dúvida, penso no que você me diria‖, ao que a professora respondeu: — ―Se isso por ora te ajuda, tudo bem‖. No momento em que ouvi esse breve diálogo, lembrei do Velho Sábio imediatamente, lá estava ele constelado: uma referência, alguém que estava sendo internalizado para apontar os caminhos até que a estudante se sentisse confiante o suficiente para fazer isso por si. A segunda vivência diz respeito a quase um reflexo de uma situação pessoal que relatei anteriormente. Em um dos sábados, uma de minhas alunas chegou atrasada e parecia bastante triste. Perguntei a ela o que tinha acontecido, ao que ela me respondeu que estava muito desanimada porque tinha uma prova para realizar na semana seguinte, que tinha se atrasado porque estava tentando estudar, mas que desistiu porque sua professora tinha lhe dito que ela iria reprovar, que não iria passar. Logicamente me vi espelhada naquela história e pensei em duas coisas: a primeira sobre o quanto as palavras de figuras de autoridade podem realmente nos tocar, independentemente da idade, sobretudo se não tivermos consciência disso; e a segunda sobre como eu poderia, naquele contexto, colaborar para de alguma forma, amenizar aquele sentimento de impotência que aquela aluna estava sentindo. Lembrei da minha professora, lembrei do meu sentimento de tristeza e desânimo e disse a ela (com base em muitas das coisas que tinha estudado até então também) que às vezes os adultos tentam ajudar de um jeito meio desajeitado e que por vezes eles podem se enganar muito, atrapalhando quando querem ajudar. Dias depois ela me contou que passou na prova e que estava tudo certo; mas meses mais tarde, perto do fim do ano, no dia de uma das apresentações finais, e um pouco antes de entrarmos no palco, me abraçou chorando muito. Perguntei o que estava acontecendo e ela me respondeu que estava com medo de estragar tudo, de não conseguir. 30 Fiquei surpresa porque não imaginava que esse tipo de insegurança ainda estava ali; fiquei surpresa e brava — ―Parou com isso. Se você não fosse capaz eu não teria te colocado para abrir vozes comigo. Eu confio em você, confie em você também.‖ Eu estava falando para ela, e falando para mim. Ela parou de chorar. Nós subimos no palco. 31 3.2 Individuação e a função da escola Segundo Jung (1986), [...] a escola desempenha papel muito importante por ser o primeiro ambiente que a criança encontra fora da família. Os companheiros substituem 13 os irmãos, o professor o pai, e a professora a mãe. É muito importante que o professor esteja consciente desse seu papel. Sua tarefa não consiste apenas em meter na cabeça das crianças certa quantidade de ensinamentos, mas também em influir sobre as crianças, em favor de sua personalidade total [...] A finalidade dessa educação é conduzir a criança para o mundo mais amplo e dessa forma completar a educação dada pelos pais. A educação por parte dos pais, por mais cuidadosa que seja, não deixará de ser um tanto parcial, pois o meio ambiente continua sempre o mesmo. A escola, porém, é a primeira parte do grande mundo real; ela procura ir ao encontro da criança para ajudá-la a desprender-se, até certo ponto, do ambiente da casa paterna. [...] De acordo com a verdadeira finalidade da escola, o mais importante não é abarrotar de conhecimentos a cabeça das crianças, mas sim contribuir para que elas possam tornar-se adultos de verdade. O que importa não é o grau de saber com que a criança termina a escola, mas se a escola conseguiu ou não libertar o jovem ser humano de sua identidade com a família e torná-lo consciente de si próprio. (JUNG, 1986, p.53 e 54) No trecho acima citado Jung fala do que ele considera ser a função da escola e, sobretudo refere-se às crianças e sobre a forma como este novo ambiente (diferente do ambiente parental) propicia a elas a possibilidade de expandir seu conhecimento sobre si através do conhecimento sobre o mundo. Jung refere-se exclusivamente às crianças e a escola nesse trecho, mas tomo a liberdade de ampliar esse conceito para todo e qualquer tipo de processo educativo (seja ele formal ou não, seja ele referente ao estudante como criança, jovem ou adulto). Aprender é sempre um ato de crescimento e, nesse sentido, nos permite ir um pouco mais longe e, ir um pouco mais longe implica aqui um sentido objetivo, mas também simbólico. 13 Sobre o termo ―substituição‖ acima citado, gostaria de fazer uma consideração. O objetivo dessa perspectiva não é, em absoluto, considerar o professor ou a escola como substitutos da família no que diz respeito a uma exclusão do ambiente original — o lar e família, seja ela de que ordem for — ou mesmo atribuir à escola ou ao professor uma posição de superioridade em relação à educação parental. O objetivo dessa perspectiva aqui é justamente, compreender e respeitar a profunda vinculação existente entre cada indivíduo e sua família e exatamente por isso (considerando essa precedência e força de vinculação), oferecer-lhe novos modelos que, para além dos já conhecidos, lhe possibilitarão descobrir outras formas de ser e estar no mundo ao se deparar com um novo meio social; favorecendo assim um processo de expansão e desenvolvimento da própria individualidade, sendo este um dos primeiros movimentos em direção ao que mais futuramente na vida, poderá vir a se encaminhar para o chamado processo de individuação. ―[...] a escola deve, e ao mesmo tempo não deve, substituir a família — objetivo ambivalente, mas não impossível. Deve em suma, servir de transição entre o meio familiar relativamente protegido, [...] e o meio social.‖ (WEILLER, 1988, p.82 apud SAIANI, 2000, p.171 e 172) 32 Ir um pouco mais longe é descobrir o que você não sabia e descobrir que você ainda não sabe, é reconhecer alguns limites que antes não enxergava e por vezes, ultrapassá-los; consiste, em última instância em trilhar um caminho único, pessoal, ainda que se esteja por vezes, acompanhado. Aprender, nesse sentido, é ir conhecendo o mundo (dos livros, da escola, do trabalho, dos amores, das experiências) e ir se conhecendo no caminho, caminhando pra si 14 , e nesse sentido indo em direção a um crescimento frente às demandas da sociedade, mas também a um crescimento que, em última instância, se constitui no sentido de individuar-se cada vez mais; tornar-se um indivíduo 15 , autônomo, potente, único, integrado. Aprender e crescer, se tornar adulto nesse sentido é ir se desprendendo dentro do possível do fenômeno conceituado por Lucien Lévy-Bruhl, e enfatizado por Jung: a participation mystique, primeiro vivido em relação à família e depois em relação ao próprio grupo social (do qual a escola e os professores também fazem parte): [A participation mystique] Trata-se de um estado de indiferenciação, na qual não se distinguem sujeito e objeto [...] ‗nada mais é do que uma relíquia de não- diferenciação original entre sujeito e objeto e, portanto, do estado inconsciente primordial. É, também, uma característica do estado mental da primeira infância e, finalmente, do inconsciente do adulto civilizado‘. [JUNG, 1981, p.58, apud Sharp, 1993, p.117, apud SAIANI, 2000, p.19) Ir além dessa participation mystique, seria, portanto um aspecto essencial no processo de individuação durante a vida. Processo que segundo Jung começa mais efetivamente na segunda metade da vida, mas que ouso dizer que já pode ter suas sementes, na infância, adolescência e juventude. Processo do qual a escola, e todo o ambiente educativo faz parte, a princípio em um movimento de auxílio nessa separação em relação à ―participação mística‖ 14 Referência ao título do livro ―Caminhar para si‖ (1991) de Marie- Christine Josso, também consultado para a realização deste trabalho em relação, sobretudo, à parte de fundamentação metodológica. 15 ―No processo de individuação, o ego e o Self interagem. O ego vai alargando os seus limites, conquistando novos territórios, mas o Self vai lhe apresentando novos desafios. Tais desafios aparecem como sonhos, sintomas ou mesmo acontecimentos. São eles que apontam para o ego em que sentido o indivíduo é único. Tal unicidade, contudo, não deve afastá-lo de seus semelhantes. Individuação não significa individualismo: ‗Individualismo significa acentuar e dar ênfase deliberada a supostas peculiaridades, em oposição a considerações coletivas. A individuação, no entanto, significa precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor rendimento social... A individuação, portanto, só pode significar um processo de desenvolvimento psicológico que faculte as realizações das qualidades individuais dadas; em outras palavras, é um processo mediante o qual um homem se torna o ser único que de fato é. Com isso não se torna ‗egoísta‘ no sentido usual da palavra, mas procura realizar a peculiaridade do seu ser, e isso, como dissemos, é totalmente diferente do egoísmo e do individualismo‖ (JUNG, 1978, p. 163, apud SAIANI, 2000, p. 75). https://pt.wikipedia.org/wiki/Lucien_L%C3%A9vy-Bruhl 33 em relação à família de origem e então, num posterior auxílio em uma segunda separação: agora do estudante em relação à própria escola, ou ao próprio mestre. Nesse sentido, individuar-se assemelhasse muito ao que o mitólogo e escritor, Joseph John Campbell chamou de ―A Jornada do Herói‖, sobre a qual inclusive já tomamos nota rapidamente em uma das citações acima. É um ciclo, uma ida e volta, é isso o que o ciclo do herói representa. Também se pode ver isso num simples ritual de iniciação quando a criança tem de abandonar sua infância e tornar-se adulta. É como se ela tivesse que morrer, deixar morrer sua personalidade infantil e voltar como um adulto responsável. É uma experiência fundamental pela qual todos temos que passar. (BILL, 2018, 06:22 – 06:49) [...] precisamos sair dessa postura de dependência psicológica para assumir uma atitude de responsabilidade e autonomia. Isso requer uma morte e uma ressurreição, e é esse o tema básico da jornada do herói — abandonar uma condição, encontrar a fonte da vida e chegar a uma condição diferente, mais rica ou mais madura. (BILL, 2018, 06:59 – 07:27) [...] e os mitos tratam disso, da transformação da consciência: até hoje você pensava assim, mas agora vai ter de pensar de outra forma. (BILL, 2018, 16:10 – 16:21) 34 3.2.1 Educação como situação (arque)típica A formatura do Ensino Médio, que venho presenciando ano após ano, é um movimento marcante na vida dos estudantes, pois é a primeira vez em que se vêm soltos no mundo [os estudantes], sem as certezas propiciadas pela rotina escolar (Sísifo!). É verdadeiramente um rito de passagem, no qual o professor-paraninfo desempenha o papel de psicopompo, isto é, condutor de almas. 16 (SAIANI, 2000, p.148) No início deste trabalho escrevi que consideraria este TCC como parte de um rito de passagem; e escrevi isso porque, depois do que pude aprender com esse projeto, entendi o que simbolicamente esse processo significa. Não é a toa que demorei tanto para concluir este trabalho, e não menos sem significado a minha demora em concluir esta graduação — finalizar esse ciclo é morrer um pouco e avançar para mais longe, avançar num descolamento de algumas ―participações místicas‖ (o que pra mim, assim como para todos nós, se constitui como um grande desafio em menor ou maior grau) já que é também, em última análise, uma separação, ou algumas separações. Em certo sentido, faz-se necessário nesse movimento não só se permitir usufruir da maior liberdade que isso implicará, mas também encarar a sensação de uma certa solidão que, de alguma forma, essa liberdade também implica. Confesso que cruzar essa linha de chegada, por mais que possa parecer simples e que talvez seja a coisa que eu mais tenho desejado nos últimos tempos, é também uma das coisas que mais ativa minhas maiores resistências. Hoje pela manhã li o texto que você postou aqui no Facebook e fiquei com vontade de te escrever. Nós não nos conhecemos direito, eu sei, mas tenho uma afinidade por você desde o dia daquela assembleia de estudantes do meu primeiro ano na UNESP, em 2014. Achei interessante o modo como você tentava olhar os dois lados e o modo como futuramente levantou na sala os questionamentos sobre não- violência e boa comunicação. Mas não estou te enviando essa mensagem pra fazer elogios, mesmo. Escrevo porque eu preciso de um conselho; quero te fazer uma 16 ―Psicopompo é uma palavra de origem grega, que surge da junção de psyché (alma) e pompós (guia), indicando alguém ou algo que possui a função de guiar. Na mitologia grega, conforme Houaiss e Villar (2009, p. 1572), esta missão literalmente seria a de ‗conduzir a alma dos mortos.‘ Em o Dicionário Junguiano (2002), Pieri descreve este termo como um guia na pesquisa psicológica, como uma figura que acompanha a alma nos processos de transição‖ (BALIEIRO, Cristina; KÜNSCH, Dimas A.; MENEZES, José E. de O.; LOBATO, Marcelo; MARTINEZ, Monica, em A imagem arquetípica do psicopompo nas representações de Exu, Ganesha, Hermes e Toth, 2015, p. 296). 35 pergunta. Eu tenho 23 anos, professora, e ano passado foi, oficialmente, meu segundo ano fora da UNESP. Saí porque achei que fora eu poderia ir atrás do que realmente era importante pra mim, achei que eu ficaria livre e que iniciaria a construção de uma carreira a partir de meus próprios padrões. Deu tudo errado. As coisas importantes se fizeram sim, presentes, como sempre se fazem, mas essas não eram lá as importâncias que eu queria, não eram exatamente produtivas. Descobri que eram outras as coisas que me prendiam – algumas emoções me encarceravam e então, lá fui eu atrás de todos esses livros de autoajuda e cursos de meditação, que pelo que eu percebo, provavelmente você também já foi atrás um dia. Eu escrevo professora, pra te perguntar: se você fosse eu, você voltaria? Durante a faculdade desenvolvi um certo tipo de ojeriza a tudo o que é teórico e técnico, sobretudo no campo artístico que pra mim equivale ao campo da alma. Ojeriza que só percebi de fato há pouco tempo – fui empurrando com a barriga e protelando até realmente olhar o que me incomodava. Cada regra colocada sobre a pauta me expunha a um abismo de dificuldades técnicas existentes em mim. A faculdade foi cruel e maravilhosa ao expor meus limites, mas meu orgulho não permitiria que eu fracassasse, era preciso desistir. E por mais que eu não concorde com todos os métodos acadêmicos, embora eu enxergue as falhas da instituição, eu sei que a educação, assim como qualquer outra coisa na vida se dá por uma via de mão dupla e por isso mesmo tenho me perguntado continuamente: qual é o meu papel no meio disso tudo? Desde a época do vestibular eu tenho percebido a tragédia do nosso sistema educacional e realmente me preocupo com os rumos que a educação brasileira tem tomado, sobretudo no que diz respeito à educação artística e musical, à cultura; mas continuar na universidade faria de mim alguém mais habilitado a mudar isso de alguma forma, ou eu só estaria perpetuando algo que já não faz mais sentido? Assim que eu entrei na faculdade tive vergonha de pedir ajuda; eu já deveria ser uma profissional e, no entanto, continuo agora, quatro anos depois, não sendo. Carregando a mesma incapacidade e muitas das mesmas dúvidas. Demérito meu. Mas a questão maior professora, é que eu sei que esse não é um problema exclusivamente pessoal. Muitos dos meus colegas também querem sair, ou já saíram da universidade de música (não só da UNESP, mas de outras regiões do país também). No entanto, eu estando fora pude perceber o quão forte e importante é existência de uma grande instituição – e eu disse um pouco isso, de forma diferente, um pouco sem saber, naquele dia na assembleia. Enquanto nós estávamos internamente discutindo sobre questões burocráticas, o mundo lá fora continuava girando e as pessoas continuavam sem entender o porquê nós estávamos lá dentro. Hoje eu entendo que estar lá dentro possibilita que, por convergência, nós estejamos mais fortes, ainda que isso também abra possibilidades inumeráveis de enfraquecimento quando não ficam claras as reais intenções e expectativas de ambos os lados. Eu confesso que meu coração tem vontade de voltar, ainda que sinta angústia, mas minha cabeça questiona se é isso uma teimosia, um apego ao que não pude concluir com satisfação – assim como os amores mal vividos que parecem ficar sempre ali como algo a se resolver. E assim como em relação aos amores, é igualmente difícil saber se estou pronta, se aquela relação realmente vale a pena; se vale o esforço. Preciso que você me responda com toda a sinceridade do mundo, professora: se você fosse eu, você voltaria? De que vale, afinal, a universidade de música pra um aspirante à artista/ possível educadora, pra alguém que ainda sonha (talvez às vezes demais)? Não sei se vou seguir seu conselho e sei que estou te pedindo algo complicado, mas sua disciplina foi uma das que meu deu mais medo, uma das que me fizeram me sentir mais impotente e, por tanto, consequentemente eu te enxerguei forte. Eu não pedi ajuda sincera naquela época, mas peço agora. Eu preciso tomar uma decisão grande, e preciso fazer isso integralmente. Eu saí da UNESP com a mente e de maneira prática, mas de alguma forma ainda fiquei aí dentro e não consegui caminhar ou retroceder. Preciso decidir agora, se esse tempo de trancamento foi um tempo de ―adeus‖ ou de ―até logo‖. Espero que você compreenda a importância dessa mensagem aleatória; é que seu texto realmente me sensibilizou. Eu também preciso encontrar o que me 36 fascina e o que eu verdadeiramente posso fascinar. Obrigada desde já pela atenção, professora. Grande abraço! (informação pessoal) 17 Eu não perguntei aos meus pais, aos meus amigos próximos, nem mesmo àquela altura confiei exclusivamente em minha intuição. O que me fez enviar aquela mensagem e me abrir a uma professora? Era evidente, eu procurava pelo Velho Sábio, procurava por La que sabe 18 , procurava por um mentor, especialmente uma mentora — alguém que já tinha trilhado aquele caminho, alguém que pudesse me dar a resposta que eu sozinha não poderia me dar naquele momento, mas que era a resposta que eu mais precisava: Oi, Carol. Eu quero te responder com cuidado, então até o fim do dia te escrevo melhor, ok? Tenho minhas posições tanto pessoais como políticas com relação à universidade, então gostaria de dividir com você para dizer o que e como escolhi permanecer nela. Para você ter uma ideia, quando fiz a graduação, não passava nem perto da minha cabeça de seguir carreira acadêmica. Eu era uma prática. [...] Espero que não fique muito longo: olha, algumas considerações sobre o que você me escreveu. Com relação à universidade, eu entendo sua decepção, embora ainda acredite que mesmo assim, ainda seja o lugar onde podemos encontrar mais espírito crítico do que fora dela, com poucas exceções. Na minha própria experiência, e minha graduação foi bem decepcionante, pude aprender muito com colegas e um ou outro professor, mas também aprendi com outras atividades e com um repertório, fosse ele de música mesmo ou de textos, ao qual não teria tido acesso se não tivesse começado por lá. E muita coisa acabei lendo só depois de ter terminado até mesmo o doutorado. Eu acredito que mesmo aos trancos e barrancos, acabamos conseguindo lidar e filtrar o que interessa, mesmo que isso não aconteça imediatamente, ou não dê para perceber. Carol, você tem uma linda voz e sensibilidade, o que é fundamental, mas todo artista precisa também de rigor. Isso porque nosso lado criativo, o lado direito do cérebro, precisa do esquerdo, mais careta e linear, para guardar informações na memória, que serão utilizadas pelo direito para serem recombinadas de maneira criativa. Mas não é possível alimentar essa criatividade sem rigor. O equilíbrio dessas duas coisas não é fácil de encontrar, especialmente se você não tem bons professores, mas com o tempo, apesar deles, achamos nossos caminhos próprios. Um detalhe que acho importante mencionar: mulheres tendem a desistir (por questões culturais) mais rápida e frequentemente diante de adversidades. Homens são educados a aguentarem trancos e humilhações, e tendem a persistir mais. A universidade também me proporcionou autonomia, que é o que acho que foi a questão mais fundamental e, em longo prazo, acabou por me proporcionar certa liberdade de pensar e agir, ainda que em meio a um turbilhão de coisas chatas. Um diploma pode ajudar, e muito, a proporcionar essa autonomia. O diploma, especialmente vindo de uma universidade pública, nos dá legitimidade na sociedade, por incrível que isso possa parecer, e isso é fundamental na conquista da independência. Cito aqui um texto bem antigo, um livro dos anos 80, que se chama Complexo de Cinderela, de uma jornalista chamada Colette Dowling: ―A mulher que se libertou tem mobilidade 17 Mensagem enviada à uma de minhas professoras do Instituto de Artes, em rede social, em 23/Janeiro/2018. 18 ―O símbolo da Velha é uma das personificações arquetípicas mais disseminadas no mundo. [...] No sudoeste dos Estados Unidos, ela é também conhecida como La que Sabé, Aquela que Sabe.‖ (ESTÉS, 2014, p.42-43). 37 emocional. Ela é capaz de mover-se em direção das coisas que lhe são gratificantes, e distanciar-se das que não o são‖. Então, acho que você deve escolher pensando no que pode te proporcionar, ainda que só mais adiante, essa independência. Espero que te ajude. Se mais adiante quiser conversar, me avise. Só não me disponho imediatamente porque estou em meio a umas complicações familiares, mas sinta-se à vontade de me avisar. Bj. (informação pessoal) 19 Ler essas mensagens de novo foi um bálsamo, algo que eu precisava rever e que por isso tomo a liberdade de trazer de volta à tona neste trabalho. Eu tive sorte. Minha intuição me levou à pessoa certa, que me respondeu com carinho e abertura. Quantos de nós também precisam disso? Sobre os conselhos de minha professora, fui sorvendo-os então aos poucos e confesso que alguns deles ainda não consegui colocar inteiramente em prática — sobretudo a realização de um desenvolvimento em rigor que confesso ser um grande desafio pra mim; mas hoje, para além da grande alegria que senti ao ler a resposta de minha professora àquela época, do quanto me senti acolhida, pude compreender também a profundidade simbólica do que estava contido ali. [...] Uma das questões mais cruciais e de maior potencial destrutivo enfrentadas pelas mulheres consiste no fato de elas começarem vários processos de iniciação 20 psicológica sem iniciadores que tenham eles próprios completado o processo. Elas não conhecem pessoas maduras que saibam como prosseguir. Quando os próprios iniciadores são pessoas cuja iniciação está incompleta, eles omitem aspectos importantes do processo sem perceber, e às vezes causam grandes males ao iniciando por trabalharem com uma ideia fragmentada da iniciação, uma ideia que frequentemente está contaminada de uma forma ou de outra [...] Em iniciações malfeitas, às vezes a iniciadora procura apenas os pontos fracos da inicianda e ignora os outros 70% da iniciação, ou se esquece deles: o fortalecimento do talento e dons da mulher. Com frequência, a iniciadora cria dificuldades sem fornecer apoio, inventa perigos e depois descansa. Essa é uma transferência de estilo fragmentado de iniciação masculina; um estilo que acredita que a vergonha e a humilhação fortaleçam a pessoa. Ela apresenta a dificuldade, mas não o apoio. Ou dá grande atenção a questões de procedimento, mas as necessidades críticas da vida dos sentimentos e da alma são tratadas num plano secundário. Dos pontos de vista da alma e do espírito, uma iniciação cruel ou desumana jamais reforça a fraternidade ou o sentido de vínculo. Isso foge à compreensão. Na falta de iniciadoras competentes, ou com iniciadoras que sugerem e apoiam procedimentos abusivos, a mulher procura a auto-iniciação. Trata-se de uma iniciativa admirável e uma realização deslumbrante se ela chegar a atingir três quartos do proposto. É extremamente elogiável já que ela deve prestar grande atenção à psique selvagem para saber o que vem em seguida, e depois, e depois, e acompanha-la sem a certeza advinda de saber 19 Mensagem de resposta de minha professora, em rede social, recebida em 23/01/2018. 20 ―O processo iniciático — a palavra iniciação provém do latim initiare, que significa começar, apresentar, instituir. Uma inicianda é aquela que está começando um novo caminho, que se dispôs a ser apresentada e instruída. Uma iniciadora é aquela que se dedica ao profundo trabalho de transmitir o que se sabe acerca do caminho, que mostra o modo de agir e orienta a inicianda para que ela supere os desafios e com isso aumente seu poder‖ (ESTÉS, 2014, p. 543). 38 que foi assim que se fez, tendo produzido o efeito desejado milhares de vezes antes. (ESTÉS, 2014, p.301 e 543). Não por coincidência em sua orientação, minha professora citou um livro que eu tinha encontrado há alguns meses entre as coisas antigas que ficavam guardadas na edícula da casa de minha avó materna, um livro com dedicatória na folha de rosto: de meu pai para minha mãe à época em que começaram a namorar — não pude ignorar um acaso tão especial: em 2018 eu estava de volta à Universidade. 39 3.3 A importância das relações Durante minha vida tive a sorte de ser rodeada de mulheres: mãe e tias, avó, vizinhas e madrasta, muitas amigas, irmãs, colegas de trabalho, chefes, e professoras. Com cada uma delas pude ser iniciada em algum aspecto, de alguma forma, mas no campo da música, depois dos períodos iniciais de contato com ela na infância, dentro da graduação (e fora dela) busquei naturalmente por mulheres guias. Talvez por isso tenha me doído tanto quando aquela minha primeira professora me disse que eu não conseguiria; talvez por isso eu tenha me ressentido tanto e sentido tanta raiva — fui entender isso anos depois. Em 2018 cursei normalmente a graduação, e junto à esta iniciei outra, agora técnica (eu estava com fome de conhecimento e informação). Na Unesp, junto a turma de bixos do teatro comecei uma disciplina optativa que me permitiu estar em contato frequente com um mesmo grupo de pessoas e com elas viver a experiência da universidade (ainda que mais especificamente ao redor dos períodos da disciplina) e, embora não fosse aquela a minha turma original, estar com eles me fez muito bem. Durante esse período de volta na universidade pude ser acolhida por uma série de turmas de cursos e anos diferentes (incluindo inclusive a turma de minha graduação técnica que me oferecia um suporte noturno importantíssimo e se constituía como minha turma oficial na outra instituição), o que me fez ter uma noção mais ampla da universidade; no entanto a sensação de ser uma loba solitária no Instituo de Artes pulando de alcateia em alcateia sem pertencer a nenhuma de fato (para fazer referência aqui ao livro que eu tanto gosto) começou a me corroer por dentro e, de repente aquilo que antes mais me ajudava a sustentar as dificuldades em relação à rotina e ao conteúdo da graduação — a força da ―minha turma‖ — já não estava mais lá. Lembro de, no fim de um dos dias de aula, já no início de 2019, sentir uma profunda solidão. Antes de ir para casa, bastante triste, fiz uma coisa que nunca tinha feito antes, mas que naquele momento me pareceu ser o mais certo: conversei com a instituição, com a Unesp, com o Instituto de Artes. Disse à ela o que eu estava sentindo, que tinha sido incrível chegar até ali, que eu me sentia muito grata, mas que sozinha era pesado demais e, pela segunda vez, decidi deixar a graduação — dessa vez sem qualquer documentação ou assinatura. 40 Durante o período de meu curso, ainda que tenha construído vínculos de muito carinho em relação aos meus professores, não consegui estabelecer com eles uma relação de proximidade. Pude perceber isso com maior clareza durante a escrita deste trabalho, o que me deixou bastante triste de certa forma, mas não menos grata. Em relação a eles guardei um amor e uma admiração à distância, às vezes mútua, mas que não se estendia a uma abertura pessoal mais ampla. Não sei exatamente a que essa distância se deveu, provavelmente à alguma projeção 21 pessoal e, quanto isso, cabe a mim observá-la e recuá-la 22 , mas a verdade é que pude perceber esse amor de maneira muito clara, mesmo em relação aos professores com os quais não julgava ter um bom relacionamento, sobretudo em dois momentos. O primeiro se deu quando eu estava na biblioteca da minha segunda faculdade, buscando livros para a realização de um trabalho, já depois de minha segunda saída da Unesp, quando vi em uma das lombadas de um dos livros o nome de minha professora, àquela com quem tive o contratempo que relatei aqui. Não pude entender minha emoção: ao ver o livro e ler o nome dela senti um carinho enorme, abri um sorriso e senti que era hora de voltar (eu havia me planejado para assinar os papeis anteriormente, mas não consegui ir até o instituto; sem as documentações assinadas e ainda a tempo de cursar boa parte do ano letivo eu poderia dar prosseguimento a minha graduação). No segundo semestre de 2019 estava eu então novamente de volta à Unesp e, logo na primeira semana reconheceria em uma das aulas um rapaz, também estudante do Instituto de Artes, 21 Ao que entendi, projeção tem o mesmo significado que transferência para Jung, diferenciando-se desta última por não se ater exclusivamente ao contexto de relacionamento psicoterapêutico. Segundo Craig, ―Na transferência, vê-se em outra pessoa algo que não existe, ou talvez só exista de forma latente ou nascente. Como se sabe, o paciente pode ver no analista um pai, um irmão, um amante, um filho ou filha e assim por diante quer dizer, ele pode transferir para o analista traços pertencentes aos personagens que tiveram um papel importante em sua vida. Pode-se também transferir para outrem a própria estrutura psíquica, vendo no outro aspectos que na verdade são problemáticos em nós‖ (CRAIG, Adolf, 2004, p.46). 22 Sobre o processo de recuo de projeção: ―[...] num relacionamento ou num encontro genuíno o outro é visto como é. Ele é sentido, amado ou odiado pelo o que é; o encontro é com outra pessoa real. Como é natural, a transferência e o relacionamento costumam ocorrer simultaneamente, não podendo ser estritamente diferenciados num caso específico [...] Como já indiquei, relacionamento significa ver o outro como é, ou pelo menos em parte re-conhecê-lo como a pessoa que é. Além disso, significa ter prazer ou desprazer com essa pessoa real, sentindo-se bem em estar com ela ou fazer algo com ela, procura-la com interesse, trocar emoções, sentimentos e pensamentos. Em outras palavras, num relacionamento o parceiro é violado o menos possível por projeções ou pela transferência [...] Quem é o outro, o parceiro? Ele não é jamais algo estático; é vida, desenvolvimento, passado, presente e futuro. [...] O relacionamento envolve sempre algo criativo. Ao empregar a palavra ‗criativo‘, quero dizer o seguinte: a psique humana está sempre cheia de novas possibilidades.‖ (CRAIG, 2004, p.46 e 47). 41 com quem já havia trocado algumas palavras antes, mas com quem naquele dia pela primeira vez tomei um café e conversei mais profundamente. Meses depois o rapaz se tornou meu primeiro namorado e assim me acompanhou por dois anos na graduação — com ele achei inclusive que cruzaria de mãos dadas a linha de chegada da formatura, mas parece que para realização dessa tarefa eu também precisaria me desprender de outra participation mystique: dessa vez a que, de minha parte, criei em relação a ele. . O segundo momento se deu durante a pandemia do covid 19, com o falecimento de um dos professores mais presentes em minha graduação. Eu achava que ele não ia muito com a minha cara, e por isso também achava que eu não ia muito com a dele, mas me vi chorando como se estivesse perdendo um parente próximo quando ele foi embora; foi um dos sentimentos mais profundos de tristeza e gratidão que eu já senti por alguém que não sabia que amava tanto. . Pude nesses momentos compreender com mais inteireza a importância daquilo que irrevogavelmente antecede e sustenta todo e qualquer tipo de processo de aprendizagem e crescimento: a força dos afetos, e a possibilidade de estabelecer relações. 42 3.3.1 Sobre a função sentimento e a importância do campo relacional Segundo Jung, existem certos esquemas de orientação da consciência que ele pôde compreender e aos quais chamou de funções da consciência, são elas: Percepção (Sensação), Intuição, Pensamento e Sentimento: Percepção ou sensação. Função psicológica que transmite um estímulo físico percebido. [...] é algo simplesmente dado, não submetido às leis da razão. [...] Intuição. É a função psicológica que se ocupa de transmitir percepções por meio do inconsciente... Na intuição, qualquer conteúdo nos é transmitido como um todo coeso, sem que sejamos capazes de averiguar, de imediato, como teria chegado a formar-se [...] Pensamento. É o conteúdo ou material da função de pensar... O pensar é aquela função psicológica que, em conformidade com suas próprias leis, estabelece uma conexão (conceptual) nos conteúdos de representação dados. Sentimento. [...] O sentimento é, em primeiro lugar, um processo que se verifica entre o Eu e um dado conteúdo, processo este que concede ao conteúdo um valor determinado, no sentido de aceitação ou recusa [subjetiva]. (JUNG, 1981, p. 534, 529 e 533, apud SAIANI, 2000, p.39 e 40). Ainda segundo o autor, todos nós possuímos as quatro funções da consciência, porém algumas se desenvolvem mais e outras menos em nós no decorrer de nossas vidas, caracterizando assim algumas delas como mais presentes em nosso nível consciente individual (por isso chamadas de ―superiores‖´/ acima) e outras mais próximas de nossa camada mais inconsciente (por isso chamadas de ―inferiores‖ / abaixo). Quanto à mente inconsciente ser ―superior‖ ou ―inferior‖ à consciente, eu negaria qualquer significado a tal questão e consideraria que nenhuma questão de ―superioridade‖ ou ―inferioridade‖ é científica. Quando você está cavalgando, é superior ou inferior ao cavalo? Ele é mais forte e pode correr mais rapidamente que você; contudo, você faz com que ele faça aquilo que você quer. Não sei o que poderia significar dizer que o oxigênio é superior ou inferior ao hidrogênio; tampouco é a perna direita superior à esquerda: elas cooperam para caminhar. O mesmo fazem consciente e inconsciente, uma cooperação. (HADAMARD, 1954, p.42 apud SAIANI, 2000, p.184). Ainda que todas as funções tenham igual importância, sabemos que, no contexto atual de nossos métodos educativos escolares em geral, temos a tendência de valorizar mais, ou por vezes apenas, o que estaria mais próximo de ser atribuída a função pensamento — uma consciência mais lógica e linear. Para além de defender aqui neste trabalho não só uma abertura educacional de valorização das diversas inteligências que se fazem possíveis na 43 complexidade humana, como já apontava Gardner, defendo aqui também a importância da valorização das diversas funções da consciência, assim como também das tendências psicológicas de introversão e extroversão 23 , também definidas por Jung. Apontamento colocado, adentro a argumentação de Saiani sobre a importância da função sentimento em sala de aula como sendo um continente psíquico essencial por onde se fará possível o processo de ensino-aprendizagem. Segundo o autor, é muito importante que se estabeleça uma ―atmosfera psíquica propícia à aprendizagem, uma situação capaz de propiciar a constelação do arquétipo do professor/aluno‖ (2000, p.170) — e nesse sentido o autor argumenta: [...] assim como faz parte da formação do professor o conhecimento técnico de sua particular disciplina, ele também deve ocupar-se de criar meios para propiciar um clima favorável para que ocorra uma ‗atmosfera positiva‘, o que inclui, certamente, alguma habilidade interpessoal e, como veremos, a interferência da função sentimento‖ (SAIANI, 2000, p.170) [...] ―A função sentimento desenvolvida é a razão do coração, que a razão da mente não compreende muito bem [...] Na condição de processo em andamento que dá ou recebe cargas de sentimento — mesmo uma carga de indiferença —, essa função vincula tanto o sujeito ao objeto (ao atribuir valor) como o objeto ao sujeito (ao receber o objeto no sistema de valores). Funciona, pois, como uma relação, sendo muitas vezes chamada de ‗função de relacionamento‘ [...] A criação de uma atmosfera também é pertinente ao nosso assunto. A função sentimento atribui valor a uma situação. Ela avalia, julga e reconhece os valores inerentes à situação, podendo levar-nos, desse modo, a funcionar de acordo com esses valores. (VON FRANZ e HILLMANN, 1999, p.110 ,131 e 199, apud SAIANI, 2000, p.175 e 178). Ainda segundo o autor, agora em referência ao educador Nilton José Machado, autor de ―Matemática e realidade‖ (1995): [...] a complexidade da tarefa do professor ao avaliar envolve o reconhecimento e a semeadura de valores fundamentais que, às vezes, aparentemente, se entrechocam, 23 ―Entendo por introversão o trânsito da libido [lembremos que libido é o nome que Jung dá à energia psíquica, conferindo-lhe, ao contrário de Freud, um cunho não exclusivamente sexual] de fora para dentro... Os indivíduos de uma disposição introvertida pensam, sentem e agem de um modo que deixa claramente transparecer o fato de a motivação partir do sujeito, ao passo que ao objeto é atribuído valor secundário [...] [A extroversão] significa o fluir da libido de dentro para fora. Designo com esse conceito a relação evidente do sujeito com o objeto, com a significação de um movimento positivo do interesse subjetivo no sentido do objeto. Quem se encontra em estado de extroversão pensa, sente e atua em relação com o objeto, em uma forma exterior clara e perceptível, de maneira