Bárbara Tavares dos Santos POÉTICAS DA ENCENAÇÃO: tessituras de experiências cênicas em abordagem feminina sobre a docência da encenação no ensino superior São Paulo 2019 Bárbara Tavares dos Santos POÉTICAS DA ENCENAÇÃO: tessituras de experiências cênicas em abordagem feminina sobre a docência da encenação no ensino superior Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Artes, junto ao Programa de Pós- Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus São Paulo. Área de concentração: Artes Cênicas Orientador: Prof. Dr. Alexandre Luiz Mate São Paulo Instituto de Artes da UNESP 2019 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp S237p Santos, Bárbara Tavares dos, 1974- Poéticas da encenação : tessituras de experiências cênicas em abordagem feminina sobre a docência da encenação no ensino superior / Bárbara Tavares dos Santos. - São Paulo, 2019. 302 f. : il. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Luiz Mate Tese (Doutorado Dinter em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes e Universidade Federal do Tocantins 1. Representação teatral - Estudo e ensino. 2. Professores de representação teatral. 3. Artes cênicas. 4. Criação (Literária, artística, etc.). I. Mate, Alexandre Luiz. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Universidade Federal do Tocantins. IV. Título. CDD 792.028 (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) Bárbara Tavares dos Santos. Poéticas da encenação: tessituras de experiências cênicas em abordagem feminina sobre docência da encenação no ensino superior Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Artes, junto ao Programa de Pós- Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus São Paulo. Área de concentração: Artes Cênicas Orientador: Prof. Dr. Alexandre Luiz Mate Aprovada pela banca examinadora constituída pelos professores: __________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Luiz Mate Instituto de Artes/UNESP – Orientador __________________________________________________ Profª. Drª. Carminda Mendes André Instituto de Artes/UNESP – Examinadora ___________________________________________________ Profª. Drª. Rita de Cássia de Almeida Castro Universidade de Brasília/UNB – Examinadora ___________________________________________________ Profª. Drª. Meran Muniz da Costa Vargens Universidade Federal da Bahia/UFBA – Examinadora ___________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Carvalho Figueiredo Escola de Belas Artes/UFMG - Examinador Prof. Dr. Agnaldo Valente Gemano Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNESP São Paulo, 16 de setembro de 2019. Instituto de Artes - Câmpus de São Paulo Rua Dr. Bento Teobaldo Ferraz, 271 - Barra Funda - São Paulo/SP Telefone: 11 3393-8530 - Pabx: 11 3393-8530 Para todas as mulheres, mães, artistas e professoras. AGRADECIMENTOS À Vitória, minha borboletinha guerreira e linda por ensinar a mamãe a percorrer o caminho da larva à crisálida, por me acompanhar nessa jornada da escrita e por ser tão presente, mesmo diante de toda a minha ausência. À minha mãe, Sheila, à minha irmã, Janaina, e ao meu irmão, Leonardo, por vocês me incentivarem a ir cada vez mais longe e a descobrir o que há de melhor em mim. Ao professor Alexandre Mate, meu orientador, que acreditou nesta pesquisa e me estendeu a mão, sem me conhecer e que, com a sua sabedoria, generosidade e doçura, me provocou e me apoiou em todos os momentos, instigando a produção de uma reflexão autônoma. Viva, mestre, o seu amor-provocador pelo teatro! Ao Francis Wilker, meu amigo e parceiro de profissão, pelo afeto, pelas incansáveis conversas e trocas, por me receber na sua casa em Fortaleza, durante a pesquisa de campo, e por todas as críticas e melhorias sugeridas ao trabalho. Obrigada mais uma vez pela sua incondicional habilidade de parteiro e pela sua arte de se doar. À Renata Patrícia, minha amiga e companheira de doutorado, por trilharmos juntas essa aventura de estudos, nos apoiando mutuamente nos momentos de êxtase e nos momentos de abismos. Às companheiras de doutorado, Marinalva Barros (Nossa Rainha do Rosário!), Liliane Scarpin, Silvia Costa, Rose Birck, por compartilharem boas energias neste nosso rito de passagem. Em especial às queridas Adriana Martins e Raquel Castilho, por cuidarem com tanto carinho da minha filha para que eu pudesse estudar e escrever. Às amigas Luciana Oliveira e Daniela Rosante, por hospedar a mim e a minha filha, Vitória, durante as idas a São Paulo e a Florianópolis. À Renata Ferreira, pela amizade e pelos aprendizados colhidos com o projeto Duas professoras, uma atriz, uma encenadora e um solo. Ao Ricardo Malveira pelo seu carinho, pela suas palavras de força e de incentivo, pelo trabalho realizado na coordenação do Curso de Teatro da UFT durante o nosso afastamento, e pelo empréstimo da filmadora que possibilitou a realização das entrevistas. Ao Marcial Asevedo, parceiro de PIBID, por me fazer rir de mim mesma, pela sua alegria de viver e pelos quatro anos teatrando juntos. Ao Alan C. Valente, pela leitura e revisão deste trabalho, pela sua leveza e poesia, pela sua música e pelo sopro de vida na reta final. À Carminda André e à Karylleila Andrade, pela primorosa coordenação e gestão do Dinter. Às atrizes e aos atores, professoras e professores de teatro que atuaram nos espetáculos exibidos no vídeo documentário, que possibilitaram apreender um pouco mais sobre a arte da encenação. "O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento xxx". Por fim, agradeço a tudo e a todos o que me trouxeram até aqui. Sigo em frente, buscando as palavras, os gestos, os olhares, os palcos... que a vida é uma fortuna de risos e lágrimas, de bravos, palmas e olés! Donde no puedas amar no te demores. (Frida Kahlo) RESUMO Esta pesquisa trata de uma investigação sobre o campo da docência da encenação no ensino superior exercida por mulheres, tomando como referência fundante a experiência pessoal, permanentemente vivida de modo social e coletivo. Os objetivos do estudo foram os de(re)experienciar e discutir, de modo crítico, práticas cênico-pedagógicas da pesquisadora, mapear princípios, metodologias, expedientes de criação, cotejar e defender a noção de poética da encenação, bem como estabelecer diálogos temporais com quatro outras docentes de teatro e com estudantes egressos da Licenciatura em Teatro da UFT. Nesse sentido, este estudo, reflete e problematiza o papel de professores(as)-encenadores(as) na contemporaneidade e o ensino e a aprendizagem da encenação. Para tanto, a pesquisa tomou como referência interlocutores do Teatro, da Filosofia, da História e da Educação, principalmente Constantin Stanislavski, Vsevolod Meyerhold, Bertolt Brecht, Ariane Mnouchkine, Ingrid Dormien Koudela, Walter Benjamin, Henri Bergson, John Dewey, António Nóvoa entre outros. O dados analisados foram coletados a partir de diários de bordo da pesquisadora, matérias de jornais, relatos de experiências cênicas, avaliações de aulas e entrevistas semiestruturadas. Assim, à guisa de poéticas da encenação – constituídas coletivamente por meio da artesania, da experiência, dos entrecruzamentos e das deambulações – vislumbram-se caminhos para as criações cênicas e para a reflexão de aspectos metodológicos e epistêmicos do processo de ensino e aprendizagem da encenação na educação superior de teatro. Palavras-chave: teatro; poéticas da encenação; professoras-encenadoras; docência da encenação no ensino superior; processos de criação cênico-pedagógicos. ABSTRACT This research investigates the field of staging teaching in higher education performed by women, taking as basic reference the personal experience, permanently lived in a social and collective way. The objectives of the study aimed at critically re-experience and discuss the researcher's scenic-pedagogical practices, map principles, methodologies, creation expedients, collate and defend the notion of poeticsof staging, as well as to establish dialogues with four other dramateachers and students from the Theater/Drama undergraduate program at theUniversidade Federal do Tocantins, in Brazil.Thus, this study reflects and problematizes the role of drama staging teachers in contemporary times and the teaching and learning processes. To this end, this research took as reference interlocutors of drama, Philosophy, History and Education, especially Constantin Stanislavski, Vsevolod Meyerhold, Bertolt Brecht, Ariane Mnouchkine, Ingrid Dormien Koudela, Walter Benjamin, Henri Bergson, and John Dewey. The data analyzed were collected from the researcher's logbooks, newspaper articles, experience reports, class evaluations and semi-structured interviews with fellow drama teachers. The results shows the poetics of staging –collectively constituted through craftsmanship, within the experience of multidisciplinary intersections – are envisioned for scenic and staging creations and for the reflection on methodological and epistemic aspects of the process of teaching and learning of staging in higher education of theater. Keywords: theater; poetics of staging; women staging teachers; teaching of Staging in higher education; scenic pedagogical creation processes. LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Interpretação 3 e A criação de um papel, de Stanislavski .................................................96 Quadro 2 - Quadro comparativo entre os métodos Teatro-Triângulo e Teatro-Linha-Reta ............... 117 ../../../../../../Formatações/Bárbara/Tese_Bárbara%20Tavares%20dos%20Santos.docx#_Toc16070078 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Localização das cidades de Brasília e de Palmas................................................................19 ../../../../../../Formatações/Bárbara/Tese_Bárbara%20Tavares%20dos%20Santos.docx#_Toc16068662 SUMÁRIO MEMORIAL DE FORMAÇÃO ................................................................................. 14 APRESENTAÇÃO ..................................................................................................... 21 1 ANTECEDENTES E MATRIZES OPERACIONAIS DA PESQUISA: AUTOBIOGRAFIA, MEMÓRIA E EXPERIÊNCIA .........................................................26 2 QUESTÃO [IN]SOLÚVEL QUANTO ÀS DIFICULDADES NA PASSAGEM DO SABERES ADQUIRIDOS OU UM MÉTODO SÓ NÃO CABE: ELXS LÁ = NÓS AQUI ...............................................................................................................................................52 2.1 Stanislavski, Meyerhold e Brecht .........................................................................................55 2.2 O experimentar-se atriz ........................................................................................................61 2.3 Um dia de Festa: a experiência de atuação e encenação em uma proposição de Teatro Épico .................................................................................................................................... 100 2.4 O experimentar-se encenadora: Presépio de Hilaridades Humanas uma criação cênica colaborativa ......................................................................................................................... 113 3 DEAMBULAÇÕES OU PROCESSOS DE EXPERIÊNCIAS CÊNICO-PEDAGÓGICAS (DES)CONVERGENTES: NÓS AQUI (PALMAS) = NÓS LÁ (BRASÍLIA) .................. 133 3.1 Alguns apontamentos sobre a arte da encenação ............................................................... 133 3.2 O ofício de encenador(a), do encenador(a)-pedagogo(a) e as diferentes acepções e processos ao longo da história ............................................................................................. 134 3.3 Docência da encenação, especificidades da função de professor(a) encenador(a) no ensino superior ............................................................................................................................... 140 3.4 A pedagogia da encenação de Ariane Mnouchkine: erguendo um monumento ao efêmero......................................................................................................................................145 3.4.1 Das aproximações do Théâtro du Soleil com as obras de Brecht, Meyerhold e Stanislavski................................................................................................................................151 3.5 Memórias de experiências cênico-pedagógicas (des)convergentes: nós aqui (Palmas), nós lá (Brasília) .............................................................................................................................. 159 3.5.1 Brasília – 2005 a 2007 .......................................................................................................... 160 3.5.2 Palmas – 2013 a 2017 ........................................................................................................... 183 3.6 Manifesto – O embrião na vida psíquica do adulto: uma metáfora para a docência da encenação na contemporaneidade ...................................................................................... 218 4 REVISITAÇÃO DE SI EM SITUAÇÃO DE ALTERIDADE: UM CORO DE CINCO PROFESSORAS DE TEATRO CONVERSAM SOBRE POÉTICAS DA ENCENAÇÃO ............................................................................................................................................. 223 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 255 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 261 APÊNDICE .............................................................................................................. 266 ANEXOS .................................................................................................................. 281 14 MEMORIAL DE FORMAÇÃO A vida de uma pessoa não éo que lhe acontece, mas aquilo que recorda e a maneira como o recorda. Gabriel Garcia Márquez Meu nome é Bárbara Tavares dos Santos, mulher, carioca de ancestralidade negra e lusitana, professora, atriz, encenadora e mãe. Nasci no Rio de Janeiro, em 1974, durante uma tempestade torrencial que alagou toda a cidade. E, segundo conta minha mãe, a escolha do meu nome ocorreu em função de uma promessa feita, simultaneamente, à Iansã e à Santa Bárbara,1 no momento exato em que minha mãe entrou em trabalho de parto, quando a bolsa d’água estourou. Esse sincretismo, isto é, essa síntese de elementos díspares originários de diferentes visões de mundo e/ou teorias filosóficas, que permeou desde o meu nascimento à escolha do meu nome, está muito presente em minha subjetividade e, por conseguinte, em minha trajetória de formação. Assim, muito embora eu seja natural do Rio de Janeiro e nutra um grande afeto pela cidade e pelos aprendizados adquiridos durante o mestrado realizado em terra carioca, minha história de vida e profissional na chamada Cidade Maravilhosa é de passagem. Isso porque eu cresci em Brasília, a cidade da profecia de Dom Bosco, dos sonhos de Juscelino Kubitschek, dos desenhos e maquetes de Oscar Niemeyer e de Lúcio Costa. Na minha ótica de menina ingênua, Brasília é uma pérola do cerrado, esculpida à mão pelos artistas operários da construção civil – candangos de todas as partes do país, que juntos fizeram emergir do suor, do sangue, das lágrimas, do cimento e dos tijolos a cidade de mármore e luzes, de retas e de planos, de árvores e flores exuberantes. Uma cidade de cores, sabores e etnias tão vastos quanto vasto é o Brasil. Na minha ótica de mulher madura, Brasília é uma cidade moderna forjada à força política e marcada pela corrupção que corre nos três poderes públicos, por desigualdades sociais e por intervenções de diversos grupos de poder econômico que arbitrariamente tentam determinar o que deve ou não ser configurado como identidade brasiliense. 1 Iansá ou Oyá é um Orixá feminino do Candomblé, que se caracteriza em religião animista, originária da África na região da Nigéria e Benin, que foi trazida para o Brasil por povos africanos escravizados. A Orixá rege os ventos, os raios e as tempestades é sincretizada com a imagem de Santa Bárbara, santa da igreja católica, virgem e mártir do século 3, que foi degolada por questionar o paganismo e por profetizar a nova fé cristã. 15 Fui educada e trilhei os primeiros passos formativos em meio a esse clima de cidade moderna, planejada sem esquinas e que já nasceu suntuosa com a intenção de representar a racionalidade, a democracia, a nação, a aspiração de igualdade, mas que é também marcada pelos mitos de alienação, autoritarismo, misticismo, encastelamento, entre outros. Vivi uma infância tranquila e abastada junto aos meus pais, uma irmã e um irmão. Nessa fase da vida me lembro que gostava muito de cantar e dançar. Creio que isso em grande parte advenha do fato de eu ouvir e assistir, com frequência, na casa de minha família a muitos e diferentes ensaios musicais. Isso porque a minha avó materna é acordeonista e coralista, minha mãe é cantora profissional e o meu pai, muito embora fosse advogado e funcionário público, tinha por hobby tocar violão. Lembro-me também que, na infância, eu gostava muitíssimo de brincar de ser outra pessoa e de conversar com personagens invisíveis. O meu universo infantil, como o da maior parte das crianças, era deveras povoado por seres inventados, lendas e alegorias. Minha mãe conta que eu me fantasiava frequentemente e que, por vezes, ela chegava quase a acreditar que havia ao meu lado algumas personagens heroicas e/ ou folclóricas, por conta da minha capacidade de imaginar, interagir e de acreditar naquilo que não se vê. Minha educação infantil se deu em Brasília, no colégio particular de freiras Coração de Jesus – Corjésus (1979 a 1980). Desse período escolar, recordo-me pouco, mas, entre as reminiscências, que de tempos em tempos vem à tona, está o dia da primeira festa junina. Lembro-me, principalmente, de percorrer os jogos de pescaria, de ganhar prendas, de comer canjicão e de dançar quadrilha com vestido de chitão estampado, chapéu de palha e trança. Do primeiro seguimento do ensino fundamental (que compreende da primeira à quarta série), tenho muitas lembranças. Mudanças, transferência inesperada de trabalho do meu pai e, consequentemente, a transferência de residência de toda a família, marcaram minha entrada na alfabetização. Por isso, acabei realizando o ensino fundamental, em São Paulo, no colégio particular Cristo Rei (1981), localizado no bairro de Vila Mariana. Desse colégio,trago a imagem vivida de um espetáculo apresentado no Auditório do Cristo Rei por estudantes da oitava série do ensino fundamental, no final do ano letivo, que tinha com tema a ecologia. Rememorando as imagens do espetáculo, com os olhos de hoje, tenho a impressão de que, talvez, o texto da peça tenha se inspirado no romance Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll. Fiquei muito entusiasmada com o palco iluminado com cores quentes, com o universo cênico do realismo fantástico, repleto de personagens muito 16 bem caracterizados de animais da floresta, bruxas, fadas, árvores e flores. Ainda, hoje, lembro-me da euforia com a aparição das duas bruxas, uma muito alta (provavelmente sobre uma perna-de-pau) que cuidava de todos os seres do planeta e estava vestida de branco; e a outra bem pequena que destruía tudo por onde passava, vestia-se de vermelho e roxo. Também guardo desse período a lembrança de ter feito com a minha turma escolar um passeio pela cidade de São Paulo, onde visitamos o Monumento do Ipiranga, dedicado à Independência do Brasil, impressionou-me, na época, as dimensões e o realismo das esculturas, assim como a beleza dos jardins que circundam o complexo monumental. Por fim, lembro de, aos finais de semana, brincar de pique-esconde com meus irmãos e amigos no parque público urbano do Ibirapuera. A estada da minha família na cidade de São Paulo durou apenas um ano. Em 1982, retornamos à cidade dos candangos onde eu cursei e conclui todo o primeiro segmento do ensino fundamental na Escola Normal de Brasília. Desse tempo, tenho lembranças saudosas de professores, de colegas de classe, do cheiro da merenda escolar e, em especial, das aulas de teatro, de música e de dança, realizadas uma vez por semana na Escola Parque2 da Quadra 308 Sul. A Escola Parque era um verdadeiro paraíso, para nós crianças. Além do parquinho de areia e das frondosas árvores que circundavam o edifício escolar, durante um dia inteiro tínhamos apenas aulas de Artes e de Educação Física. Aprendíamos a nadar, a tocar flauta e percussão, a cantar, dançar e representar, a desenhar, pintar e esculpir. Os saraus e as apresentações abertas à comunidade escolar eram os momentos realmente esperados por todas as crianças. Isso se dava no final dos bimestres, durante a mostra dos trabalhos desenvolvidos em sala de aula. Eu gostava de participar das apresentações de todas as linguagens artísticas, em especial, das apresentações de teatro e de dança. Isso porque, além de serem realizadas em um 2 Projeto idealizado e implantando em Salvador (BA), por Anísio Teixeira, quando ocupava a Secretaria de Educação do Estado (1947-1951), no Governo de Otávio Mangabeira. A Escola Parque fazia parte de um projeto de reformulação do ensino brasileiro, que tinha por objetivo fornecer à criança educação integral. Sob a influência das ideias pragmatistas de John Dewey, a proposta era destinada ao nível primário, e os centros educacionais eram compostos de quatro escolas classes e uma escola parque, que tinha como proposta alternar atividades intelectuais com atividades práticas como artes aplicadas, industriais e plásticas, além de jogos, recreação, ginástica, teatro, música e dança distribuídas ao longo de todo o dia. Em Brasília, o projeto da Escola Parque, ainda sob a responsabilidade de Anísio Teixeira, foi elaborado sob o título “Plano de Construções Escolares de Brasília” (1961, p. 195-198), e foi submetido ao Ministro da Educação e Cultura, Clóvis Salgado, que o aprovou e o encaminhou à Comissão Urbanizadora da Nova Capital (NOVACAP) para execução. O projeto do plano educacional estabelecido para Brasília previa a construção de 28 escolas e estabelecia que os alunos frequentassem diariamente a “escola-parque” e a “escola-classe”, em turnos diferentes, passando quatro horas nas classes de educação intelectual e outras quatro em atividades lúdicas, esportivas e artísticas. Contudo, em função da descontinuidade de modelos de políticas públicas de ensino no país, aliado ao imprevisto aumento da população de Brasília, o que acabou criando uma demanda escolar muito acima do esperado na época da criação das Escolas Parques, o projeto, que já sofreu enumeras mudanças de gestão educacional desde a década de 60, conta, hoje, com somente 7 escolas que atendem apenas a 5% dos estudantes do primeiro segmento do Ensino Fundamental do Distrito Federal (PEREIRA; ROCHA, 2018). 17 palco italiano, com uma iluminação sempre poética, dispúnhamos de um acervo de figurinos, fantasias e maquiagens. Esse foi um tempo deveras produtivo e prazeroso de contato com as artes na escola. Refazendo, hoje, o meu percurso formativo, repleto de alegrias, e pelo fato de minha mãe ser artista, e de eu ter escutado, ao longo da vida, ela dizer que sobreviver da arte não era algo fácil, principalmente no Brasil, acabei me distanciando do fazer artístico e encobrindo a lembrança prazerosa do tempo da Escola Parque. Provavelmente devido a isso, no segundo segmento do ensino fundamental, e no ensino médio, muito embora em ambas as escolas eu tivesse aulas de Artes Visuais e participasse dos festivais escolares de cultura e música, meus interesses de estudo nesses períodos não estavam mais focados nas artes, mas nas ciências. Por isso, a minha história profissional não começa em Artes, mas em Química. Antes de me tornar atriz e professora, cursei mais da metade do curso de Química na Universidade de Brasília (1993-1996). Lembro com entusiasmo das aulas de Analítica, em que ficávamos nos laboratórios centrifugando e analisando substâncias em tubos de ensaio, e das aulas de Química Orgânica e Bioquímica, em que estudávamos a estrutura molecular de hidrocarbonetos, álcoois, lipídios, ácidos nucléicos, entre outras substâncias. Apesar de paradoxal, foi ainda no Curso de Química que (re)descobri o teatro. Como era pré-requisito no currículo conhecer outros cursos, comecei despretensiosamente a fazer algumas matérias de Módulo Livre, no Departamento de Teatro do Instituto de Artes da Universidade de Brasília, depois, já não tão por acaso, passei a integrar como atriz o grupo de teatro da escola pública, Setor Oeste 912/913 Sul, onde trabalhava também como professora temporária de Química. Por fim, acabei trocando os laboratórios científicos pela subjetividade e criação dos laboratórios cênicos. Dessa passagem do curso de Química ao curso de Teatro, o que mantive comigo foi o gosto pelo ofício de ser professora, e o apreço pelos laboratórios e experimentos da criação. Conclusão dessa história, graduei-me em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília em 2003 e depois me tornei mestra em Artes Cênicas, pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro em 2010, e, doutorei-me pelo Programa de Pós-graduação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho em 2019. Oficialmente, considero que iniciei minha carreira no campo da Arte em 1998, trabalhando como auxiliar da gerência de Artes Cênicas da Secretaria de Estado de Cultura do Distrito Federal. Durante esse período de trabalho, aprendi sobre processos e pareceres na área das artes cênicas, sobre a elaboração, publicação e seleção de editais de incentivo à arte e à cultura, assim como sobre a concessão de pautas para espetáculos e/ou eventos artísticos em 18 teatros públicos da cidade. Tive também a oportunidade de trabalhar por três anos nos bastidores da produção do Festival de Cinema de Brasília. Posteriormente, após ter concluído a graduação, sai da Secretaria de Cultura e passei a lecionar Teatro para a Educação Básica em escolas públicas e privadas da cidade; e a lecionar na Fundação Brasileira de Teatro, mantenedora da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes. Dirigi espetáculos tanto em âmbito acadêmico formativo como profissional. Como atriz, fui integrante do grupo de artistas negros Cabeça Feita (2000-2004). Como encenadora, participei da Mostra Fringe do Festival Internacional de Teatro de Curitiba (2003), do Projeto SESC – Palco Giratório (2004) e do projeto de re-inauguração (Pós-Guerra Civil) do Cine-Teatro Nacional da Associação Chá de Caxinde, em Luanda, Angola (2004). Ainda no percurso relacionado à prática docente, fui diretora artística de quatro Edições do Festival de Teatro na Escola (2005-2008), projeto da Fundação Athos Bulcão e do Centro Cultural do Banco do Brasil, voltado para a formação de público, educação estética e aperfeiçoamento técnico artístico de professores de Artes das escolas públicas de Brasília. Percebo, mais ainda agora enquanto escrevo, que todas essas experiências são importantes em minha formação como professora, atriz e encenadora, pois elas me possibilitaram conhecer e aprender diferentes modus operandi de gestão e de atuação profissional na área cultural pública e privada, assim como os diferentes processos e práticas de criação e produção artística no campo das artes cênicas e do cinema. Nesse sentido, não hesitei em olhar no doutorado para o percurso de formação artística e de prática docente trilhados em Brasília. Da mesma forma que, não pude nem poderia deixar de considerar as experiências docentes trilhadas, mais recentemente, na cidade de Palmas, TO. Palmas, assim como Brasília é uma cidade forjada à força política e à custa do suor de muitos trabalhadores e, da mesma forma que a capital do Brasil, a capital do estado do Tocantins também carrega em sua formação a pluralidade humana e uma série de mitos fundadores e de tradições inventadas que imputam sentidos à cidade. 19 Resido em Palmas desde 2013; tornei-me professora assistente do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Tocantins (UFT), ministro principalmente as matérias de Direção Teatral e História Mundial do Teatro. De 2013 a dezembro de 2017, realizei, em Palmas, dois projetos de extensão e participei de dois outros. Entre os projetos realizados estão: “Teatrar”, curso livre de iniciação a linguagem, aberto a estudantes de graduação, professores do ensino básico, participantes de movimentos sociais e demais interessados da comunidade em geral (2014); projeto “Roda Que Roda PIBID nas Escolas”, que é uma mostra teatral de cunho artístico pedagógico com o intuito de promover a circulação e a exibição na comunidade escolar (estadual e municipal) da cidade de Palmas dos trabalhos cênicos que estão sendo desenvolvidos pelo Programa Institucional de Iniciação a Docência em Teatro (PIBID) (2016- 2017). Como colaboradora direta atuei no projeto: “Revisitando a praça” exibição pública gratuita de vídeos de espetáculos contemporâneos de teatro e dança nas praças da cidade de Palmas (2013); projeto “Ô de Casa!”, intercâmbio de saberes, culturas populares, memória e histórias de vida dos estudantes dos campi da UFT, que abrigam os cursos de Educação do Campo e Licenciatura em Teatro da UFT (2014). Orientando Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) e viajando pelo interior do Tocantins, conheci um pouco do patrimônio imaterial do Estado, por meio das festas populares da Caçada da Rainha, do município de Monte do Carmo, e da festa do Divino Espírito Santo e da Padroeira Santa Ana, do município de Chapada da Natividade3 Passado esses seis anos de convivências tocantinenses, percebi o quanto a jovem cidade Palmas, com os seus 29 anos, ainda não contempla a vasta cultura do Tocantins. 3 Para mais informações sobre trabalhos de conclusão de curso (TCC) orientandos, consultar as publicações: “A teatralidade no festejo popular do Divino Espírito do Santo da Chapada da Natividade, no Estado do Tocantins", (Anais II Congressos Internacionais de Educação do Campo da UFT edição 2018. Disponíveis em: . Acesso em: 04/07/2019. Figura 1 - Localização das cidades de Brasília e de Palmas Fonte: < https://store.mapsofindia.com/digital- maps/portuguese/brazil-map-1-2> https://store.mapsofindia.com/digital-maps/portuguese/brazil-map-1-2 https://store.mapsofindia.com/digital-maps/portuguese/brazil-map-1-2 20 Assim, foi trabalhando em Palmas como docente na UFT, que me reconheci em uma realidade universitária muito peculiar. Primeiro, por ser um curso unificado do Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais–Reuni4, – de Teatro-Filosofia, o que por si só, torna-o diferente dos cursos de formação em Teatro atualmente vigentes no país. Depois, pela comunidade acadêmica ser permeada por discentes, docentes e técnicos administrativos, oriundos de comunidades indígenas e/ou quilombolas, entre outras comunidades da região Norte, desconhecidas por mim, e que compõem as plurais etnias e culturas que movem as tradições artístico culturais que resistem, no Tocantins. Olhando, então, para minha trajetória profissional, percebi que essas realidades geográficas, sociais e étnico-culturais tocantinenses e, mais especificamente, a realidade vivenciada no Curso de Teatro da UFT, na cidade de Palmas, proporcionaram, ao longo desses seis anos de trabalho, experiência docente muito singular e bastante diferenciada de tudo o que havia feito na docência em Brasília. Apesar de jamais ter me desocupado da potência política da da arte, consigo distinguir dois momentos específicos em minha trajetória profissional. O primeiro marcadamente pela juventude quando a professora-encenadora5 de Brasília buscava delinear o seu espaço de ação e de atuação no teatro e estava mais preocupada com os aspectos estéticos da encenação e do trabalho da encenadora. O segundo, em que a professora-encenadora de hoje no Tocantins, em razão da experiência profissional e de sua consciência da função pública que exercesse apesar de reconhecer que estamos a todo tempo a desenvolver novas estéticas e a buscar outros espaços de ação na arte, no teatro e na vida, – está mais ocupada com os aspectos pedagógicos da arte da encenação e do trabalho de mulheres docentes de teatro na educação superior. Isto posto, sobretudo com relação às considerações finais, no próximo capítulo, e, evidentemente, de modos diferenciados, busco imbricar as duas profissionais, cidadãs, mulher artista e professora que têm habitado em mim. 4 Programa do Governo Federal instituído pelo decreto Presidencial Nº 6.096, de 24 de abril de 2007, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na Gestão do Ministro da Educação: Fernando Haddad, do Secretário Executivo do MEC: José Henrique Paim Fernandes, do Secretário de Educação Superior: Ronaldo Mota e da Diretora do Departamento de Desenvolvimento da Educação Superior: Maria Ieda da Costa Diniz. O objetivo do programa foi o de reunir cursos de graduação e dotar as universidades federais das condições necessárias para a ampliação do acesso e permanência na educação superior. 5 Professora-encenadora, ou coordenadora de processos de encenação é a docente, pequisadora e encenadora que trabalha em âmbito educativo articulando as dimensões artísticas e pedagógicas. 21 APRESENTAÇÃO Caro(a) leitor(a), seja bem-vindo(a) às páginas que compõem está pesquisa. O estudo em questão foi nomeado de Poéticas na encenação: tessituras de experiências cênicas em abordagem feminina sobre a docência da encenação no ensino superior. Este texto é, portanto, uma investigação sobre o campo da docência da encenação, com base em uma abordagem feminina, tomando como referência a experiência pessoal de um ser social: atento e vivo, que foi se transformando e se revisitando ao longo do tempo. Assim, além das experiências formativas e docentes da pesquisadora, são cotejados um pequeno conjunto de diálogos temporais travados com estudantes egressos do curos de Teatro da UFT e com quatro outras professoras de teatro que atuam (ou já atuaram) na educação superior, nas cidades de: Brasília (professora Me. Adriana Ferreira Coelho Lodi, da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes – FADM); Florianópolis (professora Dra. Maria Brígida de Miranda, da Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc); Fortaleza (professora Dra. Francimara Nogueira Teixeira, do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE); e São Paulo (professora Dra. Lúcia Regina Vieira Romano da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp). Portanto, entre um conjunto diverso de intuitos, mas que se complementam, o objetivo deste estudo é (re)experienciar e entrecruzar de modo crítico trajetórias cênico- pedagógicas pessoais (sempre compreendidas e atravessadas histórica e coletivamente), buscando discutir e mapear princípios, expedientes e procedimentos de encenação, cotejar diferentes poéticas relativas à certas linhas da pedagogia da encenação e apresentar expedientes de criação em âmbito da formação em teatro. Mesmo tendo a consciência de que não se trata de criar uma proposição epistêmico-metodológica pessoal, a reflexão intentada visa, por meio de poéticas da encenação analisadas, descortinar e apresentar táticas e estratagemas estéticos fundamentais à criação cênica coletiva, desenvolvida tanto no âmbito da formação de docentes de teatro (licenciatura) como naquele concernente à formação do artista cênico (bacharelado). Trata-se de um exercício de reflexão pessoal, mas que espera expandir as fronteiras da auto análise e contribuir para o ensino e aprendizagem da encenação contemporânea. Nesse sentindo, pretendo demonstrar que a prática da encenação no campo da docência – em perspectiva progressista e libertária – não se sustenta reproduzindo, métodos e/ou modelos pré-estabelecidos, mas por meio de poéticas cênico-pedagógicas construídas 22 coletivamente, que configuram-se como arcabouços práticos mais abrangentes, sintonizados à realidade histórico-estético-social do contexto em que se opera, portanto mais permeáveis e flexíveis. Sendo assim, defendo a tese de que a poética da encenação se configura como uma pedagogia coletiva mutatis mutandis, que pressupõe, no processo da criação, a ‘artesania’, pluralidade metodológica, experiências passadas e novas, os entrecruzamentos e as deambulações que proporcionam a troca de saberes coletivos. Portanto, e à luz do até aqui exposto, a epistemologia adotada na pesquisa é práxica, realizada por meio de relato e análise de experiências cênico-pedagógicas com processo de cotejamento documental visual (fotos, vídeos), matérias de jornais, observações e análises de aulas e entrevistas semiestruturadas especialmente desenvolvidas tendo em vista o escopo da pesquisa. A teoria, que transpassa o estudo é convocada, portanto, para pensar um arcabouço, uma história relacional de vida fundamentada numa experiência pessoal (vivida e partilhada socialmente), nesse caso, para ajudar a própria dialética da experiência. Na pesquisa, à luz das obras de pensadores da Educação e da Filosofia como Antônio Nóvoa, Elizeu Clementino de Sousa, Marie-Christine Josso,Walter Benjamin, Henri Bergson e John Dewey trago os conceitos autobiografia, memória e experiência como arcabouços metodológicos para reflexão e análise da formação e da prática docente. Isso porque, conforme pontua Antônio Nóvoa e Mathias Finger, na obra O método (auto)biográfico e a formação, as fontes (auto)biográficas, constituídas por relatos de experiências, fotos, diários, matérias de jornais, memórias, entrevistas e registros videográficos, configuram-se como objeto de investigação transversal à pesquisa, na medida em que: “[...] em Educação, a pesquisa (auto)biográfica amplia e produz conhecimentos sobre a pessoa em formação, as suas relações com territórios e tempos de aprendizagem e seus modos de ser, de fazer e de biografar resistências e pertencimentos” (FINGER; NÓVOA, 2010, s/p). Nesse sentido, ressalto que os referidos arcabouços conceituais, pela própria materialidade da pesquisa, são transversais ao discurso. Então, nesse quesito, o que, fundamentalmente, se investiga e se coloca em discussão na pesquisa é o trabalho de professoras-encenadoras, assim como o aparecimento e as contribuições da figura do(a) encenador(a)-pedagogo(a)6 no contexto histórico teatral recortado e decorrente do lócus deste projeto e reflexão. Por isso, no primeiro momento do estudo, a partir da análise das experiências formativas enfatizo as obras e os legados de 6 Artista criador e pesquisador autônomo que trabalha no teatro junto a um coletivo de artistas cênicos profissionais e que assume a função pedagógica de treinar as atrizes e os atores para criações específicas e para o desenvolvimento de poéticas cênicas que visem atender aos fins estéticos específicos daquele(a) determinado encenador(a) e de seu respectivo coletivo teatral. 23 Constantin Stanislavski, Vsevolod Meyerhold e Bertolt Brecht. No segundo momento, analiso as experiências docentes e apresento o trabalho da pedagoga encenadora Ariane Mnouchkine, discutindo as contribuições de suas práticas cênicas para o teatro contemporâneo, articulado às problemáticas quanto “ao papel” e à importância das mulheres encenadoras e professoras encenadoras no contexto histórico teatral da atualidade. Ressalto que a escolha pelos três referidos pedagogos encenadores e da pedagoga encenadora francesa como referências de estudo ocorreu, primeiro, por afinidade ética, estética, política e pedagógica, e pelo fato de Stanislavski, Meyerhold, Brecht e Mnouchkine serem criadores teatrais cujas proposições cênicas se tornaram paradigmas fundamentais para o teatro da contemporaneidade. Com relação específica a Ariane Mnouchkine, a escolha por dialogar com o pensamento da artista ocorre em razão de ela afirmar que os processos de criação (embasados na pluralidade de procedimento, percursos, técnicas e metodologias cênicas), realizados com o grupo Théâtredu Soleil– o qual a encenadora fundou e dirige desde 1964 – são entendidos e trabalhados, prioritariamente, como eventos singulares e efêmeros que vão se constituindo no próprio processo da criação. Quando apresento uma proposta de espetáculo em reunião com atores e técnicos do Théâtre du Soleil, não tenho a menor ideia do que será. Tenho um coração que pulsa, um desconforto, uma espécie de amor pela obra ou pelo conjunto das obras ou temas sobre os quais falo ao atores. Algumas vezes, no caso das peças que foram escritas por Hélène Cixous, nem sequer as havia lido. Quando as propus aos atores, tinha apenas o tema. Existe, então, uma espécie de amor à primeira vista. É como um continente a ser descoberto. Há pessoas que se lançaram ao mar dizendo que iam descobrir um continente e depois, em vez de encontrarem a Índia, descobriram a América. Tenho a impressão de que, quando partimos para uma obra, partimos conjuntamente para uma aventura. Mas o continente que acreditamos descobrir não é aquele aonde chegaremos. (MNOUCHKINE apud FÉRAL, 2010, p.88) Sobre a efemeridade e a volatilidade das leis do teatro no plano do jogo e dos improvisos de criação, Ariane ainda acrescenta: “[...] eu as descubro uma noite e depois, de manhã, preciso procurá-las de novo, pois elas desaparecem” (MNOUCHKINE apud FÉRAL, 2010, p.19). Desse modo, considerando as práticas cênicas da encenadora francesa e a tese defendida por Alexandre Mate – proposições com as quais corroboro –,entendo que o trabalho criativo do sujeito histórico ‘teatro de grupo’ é sempre o fruto da artesania e da experienciação coletiva, que, por suas singularidades, podem se constituir – se o interesse se encaminhar nessa direção e propósito, e a cada processo, em diferentes poéticas da encenação. 24 No sentido de evitar ruídos conceituais, entende-se aqui que o conceito de poética, desde a Antiguidade clássica grega – poêin –, concerne a artesania e arcabouço técnico. Este texto, assim, divide-se em quatro capítulos, além do memorial formativo, um capítulo metodológico e Apresentação nesta seção introdutória. No segundo capítulo, analiso cinco experiências cênicas formativas, realizadas na Universidade de Brasília (UnB), no período de 1998 a 2003, entrecruzadas aos estudos teatrais dos pedagogos encenadores Constantin Stanislávski, Vsévolod Meyerhold e Bertolt Brecht. No processo analítico, busco contrapor, a partir do século 20, por ângulos semelhantes e relativamente antagônicos, as visões das referências que fundamentam esta reflexão quanto aos campos da interpretação e da encenação. Nessa análise, procuro, com as práxis dos três artistas em epígrafe, enfatizar a consciência quanto à importância que as questões pedagógicas passam a representar no processo de criação e composição em teatro. Ainda neste capítulo, abordo as experiências cênico-pedagógicas formativas ora descrevendo, ora analisando, para verificar como ocorreram. Ou seja, que artistas, obras, metodologias e docentes de teatro influenciaram esta pesquisadora nos pensamentos relacionados à encenação, interpretação e ao ensino do teatro. E de que modo e porque a atriz vai se tornando encenadora e, posteriormente, professora encenadora. No terceiro capítulo, com base, principalmente, nas obras de Jean-Jacques Roubine, Patrice Pavis, Walter Lima Torres, Ingrid Dormien Koudela e Ariane Mnouchkine contextualizo os conceitos de encenação, encenador(a), encenador(a) pedagogo(a) e professor(a) encenador(a), bem como discuto e problematizo, em linhas mais gerais, a função desses profissionais nas práticas cênicas contemporâneas, bem como apontando a punjnça das mulheres encenadoras. Em seguida, analiso os trabalhos docentes realizados no ensino superior. Assim, primeiro retomo três encenações coletivas, decorrentes das experiências de criação partilhadas em Brasília, na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, no período de 2005 a 2007. Depois, analiso três experiências cênicas docentes, vivenciadas em Palmas, na Universidade Federal do Tocantins, no período de 2013 a 2017. O intuito do capítulo é o de investigar quais as bases conceituais e pedagógicas de teatro, decorrentes da formação acadêmica que, de modos diferentes, permaneceram nas práticas docentes da pesquisadora quais vestígios, procedimentos, valores éticos, estéticos e pedagógicos ficaram da formação acadêmica na prática docente; o que foi redimensionado, o que foi criado de estratégia e tática para ensinar a arte da encenação, ao mesmo tempo em que se encena coletivamente uma obra teatral. Portanto, olho para o passado com vistas a pensar o presente e articular o futuro. 25 No quarto capítulo, tomo como material de análise documental as observações de aulas e as entrevistas desenvolvidas com as docentes que colaboraram com esta pesquisa, durante deambulações pelas cidades de Brasília, Florianópolis, Fortaleza e São Paulo. Por meio de narrativas efabulatório-dialógicas, busco estabelecer um entrecruzamento de poéticas defendo a pluralidade metodológica na docência da encenação, o empoderamento das mulheres encenadoras e professoras-encenadoras, bem como apresento diferentes artesanias, procedimentos, expedientes e modos de encenar e ensinar a encenação. Então, assumo neste texto, além das análises, em diferentes aspectos, o papel de uma rapsoda7 que narra experiências cênico-pedagógicas de interpretação e encenação, que desfia e tece memórias, que percorre cartografias estéticas, corporais, espaciais e temporais, tanto pessoais, quanto dos estudantes egressos do curso de Teatro da UFT e das quatro docentes de teatro que colaboraram com a pesquisa. Por fim, destaco que as entrevistas realizadas foram editadas em um vídeo documentário que está em mídia (memory stick), e que consta no texto da tese como material documental para apreciação e consulta. O material videográfico divide-se em três partes: 1) Apresentação; 2) Entrevistas; 3) Trabalhos cênico-pedagógicos da pesquisadora. 7 De acordo com Bechara (2009), rapsodo(a) do grego (rhapsôidós) concebido, fundamentalmente, como escritor(a) lírico, poeta/poetisa. Ou ainda, nome dado a um(a) artista popular ou cantor(a) que, na Antiguidade clássica grega, deambulava de cidade em cidade recitando poemas (principalmente epopeias). http://pt.wikipedia.org/wiki/Gr%C3%A9cia_Antiga http://pt.wikipedia.org/wiki/Poesia_%C3%A9pica 26 1 ANTECEDENTES E MATRIZES OPERACIONAIS DA PESQUISA: AUTOBIOGRAFIA, MEMÓRIA E EXPERIÊNCIA Apresentada a estrutura do texto, parto para uma segunda etapa de dissertação em que discorro sobre antecedentes, motivações, hipóteses, pressupostos conceituais e metodológicos que nortearam o estudo. Começo salientando que, apesar da abordagem feminina adotada na pesquisa, não me abstive de estudar e de analisar as contribuições desenvolvidas, no campo da encenação, por encenadores homens, em especial, por Constantin Stanislavski, Vsevolod Meyerhold Bertolt Brecht. Isso porque, no século 20, esses três encenadores caracterizaram-se em marcos estéticos e políticos e referências fundamentais quando se pensa em pedagogias da encenação e, do mesmo modo, no que concerne à noção de encenador(a) pedagogo(a). Além disso, pesa também outro fator, o de que a pesquisadora e provavelmente a maior parte dos artistas cênicos e professores de teatro do Brasil (e quiçá do mundo, referindo-me aos processos (im)postos por instituições de formação tanto em cursos técnicos como universitários) foram formados a partir de ideias e preceitos teórico-teatrais desenvolvidos e divulgados, em uma escala muito maior, por encenadores8 Ou seja, as mulheres, historicamente, no âmbito do teatro erudito, tiveram um espaço mais tolhido de atuação. Segundo Mate: De volta ao foco que aqui interessa, homens e mulheres, no teatro erudito, e até determinado momento histórico, foram concebidos de modos diferentes, legitimando, também nesse universo, as tantas distinções assemelhadas àquelas da vida social. Homens sempre puderam quase tudo no concernente ao tratamento social, e mulheres sempre foram refreadas em muitos de seus desejos. Por exemplo, mulheres, até determinado momento histórico, e como já apresentado, não podiam ser atrizes; eram obrigadas a assistir tragédias, mas impedidas de assistir às comédias (durante a Antiguidade clássica grega). (MATE, 2015, p.19) Entretanto, apesar da constatação de que trata Alexandre Mate, formei-me em um departamento de teatro no qual predominava um número maior de professoras, que atuavam tanto no campo da interpretação quanto no da encenação. Todavia , talvez, em decorrência do espaço de atuação dado aos professores encenadores ser maior, as vozes masculinas detêm a hegemonia. Assim, com o intuito de problematizar essa realidade histórica, o estudo assumiu 8 Ressalta-se que a palavra diretor, prioritariamente, e, de forma bem menos frequente que a palavra encenador, aparece no gênero masculino em quase todas as obras teatrais consultadas. Assim, será mantida na íntegra a grafia no masculino, conforme os textos de referência. Contudo, no que concerne à voz da pesquisadora, será sempre empregada a flexão da palavra também no gênero feminino quando for o caso, em função da posição político-discursiva afirmativa sobre a importância da presença das mulheres no campo da encenação. 27 também uma abordagem feminina. Portanto, advém dessa constatação histórica da maior invisibilidade do trabalho da mulher no campo da encenação a intencionalidade em conferir voz a um coro de mulheres docentes de teatro. Nesse sentido, é importante mencionar no contexto europeu, para além da obra de Ariane Mnouchkine, a precursora russa Maria Knebel, que deixou contribuições singulares no campo da encenação, e, principalmente no campo da pedagogia da atuação, cujos detalhes podem ser conferidos nos livros Análise-ação: práticas das ideias teatrais de Stanislavski organizado por Anatoli Vassáliev e no livro Maria Knebel: uma vida para o teatro no tempo de Stanislavski e Stálin de Gerard Abensour. No âmbito do teatro brasileiro, da mesma forma, é importante ressaltar as trajetórias artísticas e contribuições de algumas mulheres pioneiras, como Dulcina de Moraes e Bibi Ferreira que além de atrizes, aturam também no campo da encenação, mas que não foram tão reconhecidas como encenadoras. Nesse sentido, o artigo (In)visibildiades e empoderamento das encenadoras no teatro brasileiro de Letícia Mendes de Oliveira e o livro organizado pelas pesquisadoras Ana Lúcia Vieira de Andrade e Ana Maria de B. Carvalho, intitulado A mulher e o teatro brasileiro do século XX, apresenta um quadro minucioso de atrizes, dramaturgas, diretoras e agitadoras culturais, que contribuíram para a afirmação da cena brasileira moderna e contemporânea. Então, nessa perspectiva de valorização do trabalho das mulheres no campo da encenação, a pesquisa contou com a colaboração de quatro docentes. A escolha de observar o trabalho delas ocorreu, em grande parte, por elos afetivos, estético-pedagógicos e por admiração profissional, sobretudo entre caminhares e descaminhares que circundam o próprio percurso de pesquisa. O meu primeiro intuito foi o de descentralizar o olhar sobre a região Sudeste do país, local em que há um número maior de encenadoras e professoras-encenadoras já reconhecidas e consagradas em âmbito nacional, por exemplo, os reconhecidos trabalhos das professoras-encenadoras de São Paulo, Cibele Forjaz e Maria Thaís, ambas da Universidade de São Paulo (USP), e os de Verônica Fabrini, da Universidade de Campinas (Unicamp), bem como os das professoras que atuam no Rio de Janeiro, Adriana Schnider e Alessandra Vannuci, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e as professoras Cida Falabela e Ana Carneiro, que atuam em Minas Gerais, na (UFMG). A pesquisa emergiu, portanto, dessa proposição de buscar e de priorizar o diálogo com professoras de teatro que atuam em outras regiões do país. 28 No caso específico das professoras Maria Brígida de Miranda e Adriana Lodi, ressalto que ambas formaram-se na Universidade de Brasília (UNB), e, por isso, fizeram também parte da minha trajetória formativa. Considero que as práticas cênicas e poéticas de encenação desenvolvidas e fomentadas por essas professoras são referências femininas importantes em meu trabalho. Meu primeiro encontro com professora Brígida ocorreu em uma matéria no início da graduação na UnB, em 1998. Foi um encontro muito breve de apenas dois meses, pois ela exonerou-se do cargo de docente para buscar o doutoramento fora do país. Embora breve, nosso encontro profissional deixou rastros significativos e um profundo desejo de conhecer melhor as práticas cênico-pedagógicas por ela desenvolvidas. Além disso, Brígida é professora-encenadora e trabalha atualmente na região Sul do país, onde eu também mantinha interesse de pesquisa. Somou-se a isso o fato de, nos últimos quinze anos, ela ter se dedicado à pesquisa de certos aspectos do teatro feminista. O encontro com a professora Adriana Lodi ocorreu quando eu ainda era estudante na graduação, e ela atriz formada. Trabalhamos juntas no Espaço Cultural Renato Russo 508 Sul, em Brasília, de 1998 a 2000. Eu exercia uma função técnico-administrativa na área de gestão em Artes Cênicas, e ela trabalhava no Espaço como professora-encenadora voluntária, ministrando um curso de iniciação à linguagem teatral. Apesar das diferenças de função que exercíamos, pude acompanhar de perto o trabalho de Adriana e percebo, hoje, como as poéticas de encenação e as proposições pedagógicas praticadas por ela, junto aos coletivos que participavam das oficinas teatrais gratuitas, influenciaram as minhas práticas docentes. Posteriormente, tivemos um segundo encontro de trabalho na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, entre 2005 e 2006. Naquele momento, eu já estava formada e, dessa vez, dividimos a sala das professoras. Trocamos ideias sobre o teatro, encenação e o trabalho de atuação. Foi um período em que debatemos e pensamos com outros docentes sobre procedimentos, técnicas e recursos de criação cênica, bem como um novo currículo para formação de atores e de professores de teatro da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes. Considero que esse foi um momento de aprendizado muito fecundo trilhado junto a outros profissionais de teatro que socializavam com os mais jovens sua experiência na área do ensino do teatro. Esclareço, todavia, que a professora Adriana Lodi é funcionária pública efetiva e, atualmente, trabalha na área de gestão de Projetos Educacionais em Artes para a Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Portanto, ela não está mais lecionando no ensino superior e, em função disso apenas uma entrevista filmada foi realizada 29 com ela. No que concerne à análise da práticas cênicas docentes de Adriana, no ensino superior, reportei-me ao período em que ela lecionou na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, entre 2003 e 2006. A aproximação e o diálogo com a professora Francimara Teixeira ocorreu em virtude do evento: I Seminário Artes da Cena: Criação, Pesquisa e Ensino da Universidade Federal do Ceará (UFC), no espaço Cultural Porto Iracema das Artes, em 2017, no qual participei da mesa de debate intitulada: O Ensino da Direção Teatral nas Licenciaturas. Durante o evento, em diálogo com alguns professores de teatro, pude conhecer o trabalho da professora Francimara, suas práticas e pesquisas cênicas que se estruturavam no modelo do Teatro Épico de Bertolt Brecht. Assim, como eu já nutria substancial interesse de pesquisa pelo tema, decidi dialogar com uma docente que atuasse, no campo da encenação, na região Nordeste do país, considerando também o fato de a professora ser estudiosa e especialista no Teatro Épico. Em razão disso, fiz o convite para contar com a colaboração dela em minha pesquisa. O encontro com a professora Lúcia Romano ocorreu pelos caminhos e descaminhos da pesquisa. Inicialmente, na primeira proposição da tese, pretendia dialogar com três mulheres professoras de teatro que atuassem no campo da pedagogia da encenação e/ou pedagogia da atuação teatral que mantivessem, em suas trajetórias profissionais, práticas cênicas e estudos mais ligados às obras de Stanislavski, Meyerhold e Brecht. Daí ter cogitado os nomes das professoras Cibele Forjaz, Maria Thais e Lúcia Romano. Contudo, conforme já apontado, posteriormente reavaliei a importância de descentralizar a pesquisa. Mas mantive o diálogo com a professora Lúcia Romano, pois além de ela atuar na região Sudeste do país e, principalmente, de manifestar-se com disponibilidade para colaborar com a pesquisa de campo no período em que eu podia realizá-la, entre as professoras elencadas, é a única que trabalhava especificamente no campo da pedagogia da atuação teatral. Confesso que, no momento dessa decisão, não me dei conta da reflexão que ora trago. Todavia, hoje, vejo o quanto o fato de Lúcia trabalhar no campo da atuação contribuiu com o debate. Primeiro, porque, historicamente, ao longo do século 20, todas as teorias da encenação estão profundamente atreladas às práticas e pedagogias da atuação. Ou seja, não há como tratar de encenação sem fazê-lo também com relação à atuação. Além disso, a interpretação teatral caracteriza-se em minha habilitação formativa. Parafraseando a atriz e encenadora Thiche Viana (2015): “[...] sou uma professora-encenadora que tem formação de atriz, mas, que escolheu, ainda no início da formação acadêmica, ser encenadora. Isso significa que não 30 decidi me tornar encenadora enquanto aprendia a atuar, ao contrário, continuei estudar atuação para aprender a encenar”. Meu corpo apreendeu o que é – e como é – ser atriz, como ocorre esse jogo de narrar histórias, desenhar, esculpir no espaço ações, palavras, sons, imagens e sensações. No entanto, esse jogo só é possível de ocorrer com o público, com esse “outro” que nos olha, e que, em seu olhar, manifesta o que vê e o que não vê em cena. Sinto que o meu anseio por compreender a arte da encenação emergiu daí, desse envolvimento da atriz que se coloca na condição de público. Isto é, no lugar daqueles que olham o palco e que buscam nele respostas para a vida. O lugar de quem se posiciona fora, de quem observa, estimula e provoca a criação da cena. Enfim, o lugar do encenador(a) e do professor(a)-encenador(a). Então, posso afirmar que o eu atriz, ao longo de sua trajetória formativa, foi se tornando e se forjando uma encenadora e, posteriormente, professora-encenadora. Nesse processo metamórfico essencial, tive de compatibilizar tanto as relações entre atuação e encenação quanto com as relações de poder estabelecidas entre todos os artistas cênicos, em ato/atuação. Em função disso, hoje, percebo que as observações das aulas da professora Lúcia Romano, bem como a entrevista realizada com ela, provocaram, por assim dizer, curtos- circuitos de pensamentos, de análises e de reflexões profundamente inquietantes e produtivas acerca da relação entre as pedagogias da encenação e da atuação e as relações de subordinação e poder entre atores/atrizes e encenadores(as). Fechando a apresentação das colaboradoras da pesquisa, esclareço também que, muito embora eu não tenha incluído no texto de forma sistematizada o estudo do trabalho das mulheres docentes de teatro da UnB que fizeram parte da minha trajetória formativa, guardo com muito carinho as experiências e aprendizados trilhados junto das professoras Rita Castro, Bido Galvão, Márcia Duarte, Simone Reis, Felícia Johanson, Marcela Holanda, Sônia Paiva e Silvia Davini. Cada uma dessas mulheres deixou rastros de suas práticas e poéticas cênicas em meu corpo e e em minha mente. São legados preciosos, principalmente relacionados ao campo da interpretação/atuação, treinamento de atores / atrizes, trabalho de corpo e voz, teoria teatral, cenografia e indumentária e sobre a potência transformadora da arte cênica em nossas vidas. Percebo, hoje, que o meu trabalho docente carrega, na sua ancestralidade, muito da poética de cada uma dessas mulheres, que, de diferentes modos, contribuíram com a minha formação. São marcas e vestígios que estão registrados nos conteúdos dos chamados “diários de bordo” e fotos de ensaio rememorados do período da graduação, que, recorrentemente, são retomados e (re)atualizados em minhas atuais práticas cênicas. 31 Contudo, apesar da ênfase dada às vozes femininas do teatro, conforme já apontado, a motivação primeira para a realização desta pesquisa não parte inicialmente do debate em torno do gênero, mas, sim, do interesse pelas questões relativas à encenação contemporânea, em especial àquelas relacionadas com processos de criação realizados em ambientes formativos da educação superior de teatro. No concernente à palavra-conceito, de acordo com ROUBINE (1998) e TORRES (2009). Metteur enscène, director, regisseur, director de escena, encenador, embora sejam escritas de formas diferentes e possam ser utilizadas em contextos distintos, no Brasil, as palavras diretor/encenador aparecem com frequência empregadas como sinônimos quase sempre procurando abarcar o mesmo uso pragmático e espectro de função. Todavia, optei por priorizar neste texto o uso dos termos encenador / encenação, que datam do final do século 19 (ROUBINE, 1998). Explicito que entendo por encenador(a) o(a) artista criador(a) cênico que trabalha no teatro em parceria com os demais criadores(as) da cena, que assume perante um coletivo a função artística de (co)criar e de (co)organizar o processo de composição, apresentação e pós-produção da obra de arte cênica. Destaco que as inquietações e questões que ora trago ao debate foram sendo forjadas durante as práticas docentes experienciadas desde 2013 no Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Tocantins (UFT), principalmente com as matérias de Direção e Montagem Teatral. O Curso de Licenciatura em Teatro da UFT, iniciado em 2009, realiza-se durante todo o primeiro ciclo acadêmico em uma associação com o Curso de Licenciatura em Filosofia, o que corresponde aos três primeiros semestres letivos. Em função dessa associação entre os dois cursos, os conteúdos técnicos ligados às práticas cênicas iniciam-se apenas no quarto semestre, o que acarreta no processo de formação acadêmica, uma carga menor de conteúdos curriculares relacionados com as linguagens teatrais9. No caso da matéria intitulada de Direção Teatral, no currículo ainda vigente até 2019, além de optativa, ela se desenvolvia de forma muito condensada, pois continha uma carga de 32 horas, que equivale a oito encontros. Em virtude do curto tempo da matéria, a experiência relativa à prática da encenação acaba sendo menos verticalizada. 9 O texto da reforma do atual Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de Licenciatura em Teatro da UFT foi concluído em abril de 2018 e já foi aprovado nas instâncias competentes da UFT e do Ministéiro da Educação, e passará a vigorar a partir de 2020. O texto altera o atual currículo, ampliando as cargas de práticas cênicas para 780 horas e as práticas pedagógicas para 400 horas. Ressalte-se que, no novo currículo, a matéria de Direção passa a ser nomeada por Encenação. 32 A matéria Montagem Teatral, por sua vez, no currículo vigente até 2018, não existia formalmente.Tratava-se de um arranjo feito pela junção de quatro matérias10 que constavam no currículo vigente, e que, por meio de um acordo feito pelo conjunto de docentes do Colegiado de Teatro, essas passaram a ser ofertadas conjuntamente por um único docente, com o intuito de conferir oportunidade, na diplomação discente, de participação e vivência de pelo menos um processo de encenação teatral coletiva. Nesse contexto específico de prática docente, passei a questionar se de fato as experiências dos conteúdos curriculares das matérias de Direção e Montagem Teatral, realizadas no Curso, possibilitavam à estudantada a compreensão quanto à encenação em suas diferentes possibilidades e modus operandi. Isso porque percebo durante as matérias, tanto em Montagem Teatral, na qual minha função corresponde à de professora-encenadora, como em Direção Teatral, na qual a estudantada se coloca na função encenadores(as), o desejo de se apropriarem de uma espécie de método que possa funcionar quase como uma “receita”, que garanta resultado cênico poético e produtivo em quaisquer práticas de encenação. Percebo também que uma parte significativa desses estudantes demonstra, durante as aulas teóricas, dificuldade em compreender o teatro como um campo de estudo e criação que pode ser amplo, que, em maior ou menor grau, pode integrar outras linguagens afins, produzindo teatralidades situadas em territórios híbridos/miscigenados. Da mesma forma, percebo que esses estudantes manifestam, durante o processo de criação cênica, uma dificuldade em compreender que a encenação, na contemporaneidade, vem cada vez mais requerendo dos diferentes criadores, maior maleabilidade e permeabilidade para lidar com percursos diversificados e procedimentos criativos, sobretudo no que diz respeito aos processos de horizontalidade e de “negociação” na criação. Penso que isso deva ocorrer, principalmente, em função do tempo reduzido das duas matérias mencionadas. Soma-se a isso o fato de a cidade de Palmas ser jovem e ainda não ter tradição de teatro local consolidada que possa contribuir de forma mais efetiva, tanto por meio da recepção de espetáculos como por meio de projetos teatrais educativos, com a formação cênica dos estudantes da Educação Básica, e até mesmo do público de forma ampla11. No que concerne aos estudantes indígenas, que são uma presença recorrente na UFT, há ainda outra questão. Tais estudantes têm seus próprios modus operandi em relação à 10 Título das matérias conforme consta no PPC-UFT, em vigor de 2009 a 2018: Seminário Interdisciplinar VI, Teatro de Rua e Carnavalização, Poéticas Teatrais, Identidade e Narrativa Oral. 11 Ressalta-se que a cidade de Palmas conta com duas sedes do Serviço Social do Comércio (SESC) que recebem anualmente diversas atividades artísticas e educativas teatrais, advindas dos projetos Palco Giratório e Amazônia das Artes. Contudo, essas ofertas ainda não atingiram o quantitativo de estudantes da Educação Básica, nem o grande público da cidade, que ainda é mais adepto das mídias televisiva e/ou do cinema comercial. 33 arte e de manifestar suas culturas. Então, para além das práticas cênicas do teatro ocidental oferecidas no curso, penso que nós professores(as) de teatro podemos considerar e agregar ao processo de criação cênico-coletivo, talvez de uma forma mais significativa, traços das matrizes culturais de cada grupo étnico ao qual pertence o estudante. Assim como, podemos considerar o tempo de diálogo e de tradução12 bilaterial de conceitos teatrais e de formas de se fazer arte, mais especificamente, o teatro. Tais percepções trouxeram à tona algumas questões como: encenação, de fato, se ensina? E os métodos de que dispomos e utilizamos para ensinar encenação, será que não têm sido generalistas demais? Será que os métodos de que dispomos não estão funcionando mais como “grifes” de determinados encenadores(as), por meio da criação da aura de suas obras, e que acabam por encastelar a estudantada em determinados métodos, em vez de criar oportunidades para uma real autonomia no fazer da encenação? Como lidar de uma forma mais produtiva, na prática e no ensino da encenação, com os ditos métodos que são mais reconhecidos e consagrados, tendo em vista que os contextos de criação educativos em grupo são demasiadamente singulares? Por fim, questiono se devemos chamar os procedimentos e expedientes de criação cênica que são usuais na formação em teatro de métodos de encenação? Tais perguntas constantemente ricocheteiam em mim, em razão de estar permanentemente a repensar minha trajetória de dezesseis anos como professora encenadora. Assim, sem considerar apenas minha experiência pessoal, não consigo e muito provavelmente não queira perceber/trabalhar com “um” método/modelo específico de encenação. Ao contrário, o que vivo/experiencio em minha prática docente são multiplicidades de apontamentos, procedimentos e caminhos para criações coletivas, muito mais do que propriamente um método específico de encenação. Contudo, mesmo problematizando a noção de método, eu continuava percebendo que a estudantada espera obter de nós docentes de teatro uma espécie de compêndio de técnicas de encenação. Então, após algum tempo maturando tais questões, levantei duas hipóteses de pesquisa que mantêm relações entre si, que talvez possam contribuir com a área da docência da encenação na educação superior de Teatro. A primeira hipótese é a de que a produção ou mesmo o fenômeno teatral, em suas articulações e complexidades estéticas, históricas e políticas, talvez seja compreendido em maior profundidade quando se exercita a prática da encenação colocando-se na função do 12 Trata-se da comunicação entre línguas e culturas de matrizes distintas e, como consequência desse fato, tem-se tanto por parte de estudantes quanto de docentes entendimentos diferentes sobre uma mesma matéria teatral. 34 encenador(a). Isso porque, apesar de tal função já ter sofrido, ao longo da história do teatro, uma série de mudanças, pode-se afirmar que o encenador(a) configura-se como um(a) profissional que, em tese, dispõe de uma visão integradora do fenômeno teatral. Muito embora, no campo do ensino da encenação, o papel do professor(a) encenador(a) apresente, na prática, peculiaridades que o difere do trabalho com atores e atrizes profissionais; para um entendimento do que se propõe discutir, tive de debruçar-me sobre o conceito de encenação e sobre o papel histórico do sujeito encenador(a). Patrice Pavis observa que o encenador, de acordo com a concepção hegemônica, é chamado na Inglaterra de director, na França, metteur en scène, na Alemanha, Ressisseur e, na Espanha, director de escenaele. O autor afirma que essa figura é “[...] a pessoa encarregada de montar uma peça, assumindo a responsabilidade estética e organizacional do espetáculo, escolhendo os atores, interpretando o texto, utilizando os recursos cênicos à sua disposição” (1999, p. 128). Contudo, com as novas teatralidades e dos modus operandi de produção do teatro contemporâneo, o papel e/ou a função da encenação vem sofrendo modificações em relação à definição mais em voga e afeita à concepção hegemônica. É preciso destacar que há processos de encenação que abdicam da presença do(a) encenador(a) para sua efetiva conclusão; nesses casos, o resultado da obra cênica é fruto da criação coletiva, realizada de forma pontual por atores e atrizes. Considerando as diversas posições, será feita ao longo do texto a atualização do conceito de encenação. Sendo assim, recorri a tal definição porque ela reguarda o sentido organizacional da criação, produção e apresentação do evento cênico, que de um certo modo, permeia a prática da encenação e o ofício daqueles(as) que se colocam na função de enceador(a). Nesse sentido, percebeo que a prática da encenação possibilita àqueles(as) que a exercem o entendimento mais amplo do teatro, pois requer desse(a) profissional um projeto de trabalho e um ponto de vista estético, ético, político muito preciso, e, sobretudo também, maleável, durante o processo de condução de uma obra de arte coletiva. Além de requerer também outras habilidades de liderança, organização, diálogo e articulação de grupo, o que, por sua vez, possibilita o desenvolvimento e a aquisição de “competências” relacionadas à capacidade de mediar conflitos e processos de criação, e de ter um olhar mais amplo e integrador sobre as individualidades, sobre o fenômeno teatral e sobre a encenação como um todo. A segunda hipótese é a de que não existe um método específico para encenar e, consequentemente, para ensinar encenação, pois isso se caracteriza em uma prática que se efetiva e que se concretiza pela troca de experiências em contextos muito específicos de 35 criação e trabalho coletivo. Portanto, em tese, os métodos de encenação (de cada processo cênico, incluindo aí os processos formativos) são fenômenos estéticos singulares, por isso, não podem ser absolutamente reproduzidos e recolocados em contextos distintos, na base de paradigma a ser copiado. Caso isso ocorra, e já se sabe, pode-se resvalar e consagrar comportamentos próximos às paródias de encenações já existentes, bastante contrários a processos de criação autônomos e singulares. Por outro lado, e conforme afirmado, na encenação, como em outros campos de conhecimentos e de saberes humanos, criamos e desenvolvemos o que quer que seja por meio de arcabouços técnicos significativos. Antônio da Cunha afirma que o conceito de técno/técnica/tecnologia mantém estreita relação com a noção de habilidade, ofício e profissão: Técno do gr. techno, de téchê ‘arte, habilidade, que se documenta em alguns compostos formados do próprio grego (como tecnologia), e em outros introduzidos partir do séc. XIX, na linguagem erudita como atecnia XX; técnica sf. ‘conjunto de processos de uma arte, ‘maneira ou habilidade especial de executar ou fazer algo’ (1890), Fem. Substantivado de técnico, quer dizer ‘peculiar a uma determinada arte, ofício, profissão ou ciência’. (CUNHA, 2010, p.626) Se considerarmos, então, a noção de técnico/técnica como sendo algo peculiar a uma determinada arte e ofício de trabalho, compreendemos o porquê de apoderar-se do já feito; ou seja, apoderar-se dos procedimentos e técnicas testadas e experimentadas é importante, mas deve ser contextualizado às diversas realidades e reinventado com base nas necessidades locais, estéticas e sociais dos sujeitos em processo de criação. Em função disso, proponho olhar para o conjunto de práticas que podem compor o processo da encenação, para além de algo que seja pronto, fixo e passível de ser reproduzindo ipsis litteris. Isto é, olharmos procedimentos e percursos da arte da encenação e, como consequência, olhar para o que usualmente se costuma tratar por método como algo que seja movente plural, mutante e que seja fruto de formação específica e das experiências singulares partilhadas com coletivos na função de encenadores(as) e de professores(as) encenadores(as). Nesse sentido, não se trata aqui de um interesse na noção de um método propriamente dito, mas, em outra, muito mais plural, flexível e permeável às trocas coletivas que aqui me apoio e que nomeio de poética; nesse caso, trata-se da poética da encenação. Isto é, poética (do grego poiétiké, “arte poética”) entendida e concebida ativamente. A poiésis na condição de uma práxis concreta de composição. Poiésis, portanto, precisa ser entendida e empreendida na condição de poiétiké. As palavras poiétiké e poiésis concernem à ação em percurso de materialidade. De outro modo, desde os gregos da Antiguidade clássica, na área 36 teatral, o conceito de poiêin, na condição de arcabouço técnico, ligado à artesania, aparece sempre articulado a logeion (que concerne à razão) e à fantasia, que concerne ao preenchimento inventado daquilo que não se encontra posto pela história. A phantasia é característica ao ofício do sujeito que tece/costura ações ligadas, grandemente, ao sensível. Portanto, o trabalho com a costura fantasiosa (capacidade de inventividade sensível, articulando o objetivo e o subjetivo) coligidos caracteriza-se no caminho/percurso da criação, seja na criação do texto, das propostas de encenação, seja na interpretação. Dessa forma, pontuo que a encenação demanda essa capacidade e potência de tecitura para a criação de fábulas, histórias, narrativas, dramaturgias teatrais. De outro lado, com base em um determinado ponto de vista, a criação de modos mais e menos explicitados, ao evocar histórias, precisa estetizar os acontecimentos tanto repetindo determinados expedientes como reinventá-los, por meio da conjugação de novas combinações e invencionices da linguagem teatral. Nesse particular, e defendido por Alexandre Mate (em inúmeros de seus textos e falas), mas não de modo exclusivo, o sujeito histórico denominado teatro de grupo, em inúmeros territórios espalhados pelo Brasil, tem reinstaurado, ressignificado, reinventado as composições criativas em teatro para recontar histórias colocadas à margem nas inúmeras nervuras do real. Portanto, ao concordar com Mate, reitero que a adoção de uma proposição metodológica, hoje, tendo em vista o dinamismo da práxis, torna-se impossível. Mesmo já tendo feito algumas ressalvas, em Palmas, cidade nova e com relativa tradição cultural, outros contextos, necessidades e questões étnicas precisam ser consideradas e serem levadas para a cena. Desse modo, Stanislavski, Brecht, Meyerhold, Mnochkine, entre outras(os) artistas, têm sido lidos, pesquisados e ‘antropofagizados’. Assim, ao tratar da práxis pressuposta pelas poéticas da encenação, é preciso referir-se à polissemia implicada pelo ficcional, com base em escrupuloso trabalho artesanal. É preciso ter algumas informações sobre os caminhos e procedimentos na criação; e é fundamental ter critérios e objetivos para operacionalizar as linguagens quanto à criação de formas estéticas. Para finalizar, a artesania é entendida como o caminho entre a ideia e a fantasia, nutrida pela experiência individual e coletiva. Por isso, estou convencida de que, quando a estudantada solicita fórmulas prontas, não está de todo equivocada. No processo, é preciso socializar e repassar experiências sedimentadas e estimular, sobretudo, pelo arcabouço estético-histórico, a investigação nem tanto de novas formas mas da readequação àquilo constituído. É importante frisar novamente que a mim me interessa olhar e refletir sobre aos procedimentos concernentes à artesania da encenação. Portanto, estou considerando a 37 encenação como o processo precípuo da criação cênica de ensino do teatro. Por isso, além de apontar expedientes, procedimentos, percursos e estilos de encenação, interessa-me compreender essa relação de mediação e de “poder” que se instala nos processos de criação cênico coletivos (em nível de formação teatral superior) em que há uma coordenação entre os papéis de professora e de encenadora. Creio que tal proposição dialoga com os apontamentos apresentados por Ingrid Koudela e José Simões Júnior, na obra Léxico de pedagogia do Teatro, quando os autores defendem que: Do ponto de vista da pedagogia do teatro, refletir sobre o conceito de encenação inclui tanto a perspectiva de pensar o processo de mediação que se dá por meio da função do encenador – e aqui se focalizar as relações de poder que se estabelece no bojo de um processo de criação cênica – quanto à busca de esclarecer como a concretude do fato teatral, no “aqui e agora” constitutivo de cada representação, se liga ao projeto de sentido que lhe define os traços principais e faz funcionarem atores, texto dramático (quando há um), cenário, figurinos, iluminação etc.; uns em relação aos outros. Essa reflexão pode se ligar, portanto, num primeiro momento, ao questionamento de quem conduz o processo de criação cênica, seja ele realizado com crianças, adolescentes, adultos, idosos, comunidades, grupos de atores, professores, jovens infratores e pessoas com necessidades especiais ou transtorno mental, entre outros públicos possíveis. Se a noção de encenação traz para o teatro a ideia de uma visão global que organiza os elementos da cena em função de um projeto de sentido, e de um encenador, quando se pensa em processos de ensino/aprendizagem teatral, em processos formativos ligados a essa arte, seja da Educação Básica, seja no Ensino Técnico Superior, abrangendo a educação formal e a ação cultural, há que se colocar em pauta as relações de poder que se instalam quando se delineia uma função centralizadora das decisões estéticas e políticas que devem ser mediadas para que se obtenha um produto cênico. Como não há um único caminho a seguir mas processos diferenciados, influenciados por diversos fatores, no âmbito dos quais cada caso exige um (re)posicionamento do sujeito, ou sujeitos, na coordenação do processo criativo, a questão que se coloca é justamente como conjugar a necessidade de um olhar que dê conta do conjunto de indivíduos, e, ao mesmo tempo favoreça a emergência das singularidades criativas em jogo no percurso criativo da cena teatral. (KOUDELA; SIMÕES JÚNIOR, 2015, p. 63-64. Grifo nosso.) Em concordância ao apresentado por Koudela e Simões, penso que, na prática docente da encenação, faz-se necessário o olhar para as escolhas estéticas, mas, principalmente, o olhar para relações de poder que se instalam com base na figura que se coloca no processo da coordenação da encenação. Isso, principalmente, porque creio que não há um único caminho criativo a seguir. Assim, interessa justamente investigar e compreender o limiar de como conjugar, por parte de professore(as)-encenadore(as), um olhar que abarque o conjunto estético-coletivo da obra e, ao mesmo tempo, favoreça a emergência quanto às singularidades e pluralidades de visões acerca de algo que é, fundamentalmente, coletivo. Em decorrência disso, na análise das diferentes poéticas apresentadas, propus coligir os procedimentos concernentes à práxis pessoal (e acúmulos de experiências), revisitadas e reinstituídas na prática docente e, do mesmo modo, os arcabouços de que se 38 lançam mão para atingir os resultados cênicos vislumbrados em cada contexto de criação. Sobretudo com relação ao teatro da contemporaneidade, que se liga ao sujeito histórico teatro de grupo de forma a transformar a experiência estudantil em uma prática democrática, coletiva e permanentemente atenta às (re)experimentações – ou mais propriamente de acordo com Viola Spolin, em Improvisação para o teatro (2010), em experienciações individuais e coletivas. Para tanto, a pesquisa apoiou-se nos instrumentais metodológicos do tripé autobiografia, memória e experiência. Julguei pertinente discutira importância da autobiografia e da memória na formação de professores e no processo histórico social e coletivo, porque a memória, os diários de bordo do período de formação acadêmica e das práticas docentes de encenação da pesquisadora foram objeto de análise dos percursos e das experiências cênico-pedagógicas realizadas. Assim, o estudo analisou tais materiais mnêmicos, tomando o pressuposto segundo o qual nós até podemos nos lembrar sozinhos do que quer que seja, mas tudo o que se lembra (o lembrado) é sempre, rigorosamente, histórico- social. Por fim, de forma mais verticalizada, trouxe ao debate o despertar de novos sentidos pela ênfase dada à experiência como caminho de conhecimento e aperfeiçoamento profissional. Sendo assim, a apropriação do método biográfico no percurso da pesquisa se deu por dois ângulos. No que concerne às experiências formativas e docentes da pesquisadora, trata-se de narrativas (auto)biográficas. Nesse caso, a análise da própria práxis da pesquisadora torna-se simultaneamente sujeito-objeto de pesquisa. Quanto à análise das experiências das quatro docentes que integram a pesquisa, há outro nível de relação com o método, quer seja: de contraposição, justaposição ou sobreposição. De fato, no papel de entrevistadora e observadora das práticas docentes das colaboradoras, também estou implicada no campo do meu objeto. Ou seja, há uma imbricação recíproca entre observador e observado. Até porque “[...] o entrevistador nunca está ausente, mesmo o que se finja ausente” (FERRAROTI, 2010, p. 47). Trata-se de um olhar de fora do processo, mas que, ainda assim, busca se colocar durante a observação como sujeito da pesquisa e procura restituir “[...] a narrativa biográfica à plenitude de sua natureza relacional e de sua intencionalidade comunicativa” (FERRAROTI, 2010, p. 47). Ressalto a autonomia epistêmica do método biográfico no campo das Ciências Humanas e na Arte, principalmente, nas pesquisas relacionadas à formação de professores, o que é o caso deste estudo. Isso porque, coloco-me na pesquisa como professora-encenadora com o pressuposto de que nós nos formamos (de diferentes modos) no exercício da prática 39 docente, na mesma medida em que formamos outros(as). Renata Ferreira pontua de forma poética e contundente essa questão: Como trabalho, Bildung é formação prática, formação de si pela formação das coisas, ou seja, prática. Como viagem o conceito remete a processo, não um processo qualquer, mas um processo de alteridade na qual com o outro experimentamos o que não somos para tornarmos o que somos, nesse processo deveras espiralar nos formamos/educamos com um romance. Como tradução Bildung é, o movimento de ir além de si mesmo, alterar formas modular-se, imaginar e imaginar-se. O conceito cameleão já me faz pensar diferente a formação. Sempre olhei para esta ideia como fadada a uma moralidade. Eu estou me tornando mais afirmativa. É que sempre há outra forma e mais outra para formação. E talvez, ensinar algo passe por ensinarmos a nós mesmas este processo que possa ser apenas ativado no outro, pelos encontros. (FERREIRA; SANTOS, 2016, p. 2)13 Em sintonia com o apresentado por Ferreira, creio que, ao tratar de formação, seja produtivo reportar-me à (auto)biografia e, por conseguinte, às memórias e experiências de encenação. Embora ainda rechaçado em muitos dos espaços acadêmicos, o debate em torno da utilização do instrumental biográfico no domínio das ciências da educação e das ciências sociais tem se mostrado uma alternativa às práticas de pesquisas nomeadas positivistas. Trata- se, portanto, de um método autônomo que se revela não apenas como um instrumento de investigação, mas também e, sobretudo, como um instrumento de formação. Sobre essa questão, Franco Ferrarotti argumenta que: “ [...] se nós somos, se todo o indivíduo é a reapropriação singular do universal, social e histórico que o rodeia, podemos conhecer o social a partir da especificidade irredutível de uma práxis individual” (FERRAROTI; NÓVOA; FINGER (Org.), 2010, p. 45). Abordar a autobiografia, a experiência, a práxis individual é transitar por entre os escaninhos da memória e de sua recuperação, em direção à coisa pública. Trata-se, pois, da memória, essa entidade e/ou faculdade com a qual nos deparamos a todo tempo, de modo intermitente mesmo. Nos lembramos de escovar os dentes, de pentear os cabelos, do primeiro beijo, do abraço da avó, do amor perdido, do perfume da rosa, da cólica intestinal e do tempo da infância. Enfim, a lembrança nos mantém vivos. Por outro lado, também esquecemos. Esquecemos de ir ao banco, do aniversário da amiga querida e, com Alzheimer,14 esquecemo-nos de quem somos e – sem conseguir ponderar, se bom ou não – , às vezes até esquecemos de certas dores, certas cicatrizes e de todas as violências que não necessariamente mereceriam ser esquecidas. Então, sobre a memória, bem sabemos que não há precisão, linearidade ou continuidade das quais possamos 13 FERREIRA, Renata; SANTOS, Bárbara. Ensinar a cena é possível, 2016, (no prelo). 14 O Alzheimer é uma doença neuro-degenerativa que provoca o declínio das funções cognitivas, reduzindo as capacidades de trabalho e de relação social dos indivíduos, interferindo no comportamento e na personalidade. O indivíduo acometido pela doença inicialmente perde a memória mais recente. Pode até lembrar com precisão de acontecimentos de anos atrás, mas esquece que acabou de realizar uma refeição. 40 nos servir para representar o vivido. Isso seria impossível, ter uma memória plena, absoluta e que conservasse todos os detalhes. De fato, temos um limite sempre do que fica da memória e daquilo que permanece como experiência. Muitas coisas importantes são perdidas. Por exemplo, se assistimos a um filme de 50 minutos e sentimos um grande prazer durante 40 minutos, mas, se, nos 10 minutos finais, temos um enjoo um mal estar muito grande, provavelmente tenderemos, em boa parte dos casos, a ficar com a experiência negativa do filme. Contudo, realmente tivemos uma experiência de 40 minutos prazerosa da projeção. Portanto, o esquecimento é um estado natural da vida, a memória é o lugar de resistência, de certo modo, um território de poder. A memória, assim como as linguagens artísticas, é palimpsesta por excelência, entremeada de camadas e zonas de objetividade e subjetividade: ela é seletiva e funciona como um motor que (re)reinventa e (re)encena a própria vida. A memória aparece em primeiro plano na narrativa biográfica porque ela é a guia- chave da escrita, uma vez que os achados e sentidos estão sendo elaborados após os estudos das experiências pessoais formativas e docentes, e após as experiências de observações de aulas e de entrevistas realizadas com as docentes que colaboraram com a pesquisa. Por isso, neste estudo mnêmico, senti também a necessidade de debruçar-me sobre a importância da memória na formação de professores. Marie-Christine Josso argumenta a favor das narrativas de histórias de vida centradas na formação ao longo da carreira docente, como forma de revelar “[...] sentidos múltiplos de existencialidade singular- plural, criativa e inventiva do pensar, do agir e do viver em coletivo” (2007, p. 413). Elizeu Clementino de Souza também afirma que a escolha da memória como fonte de conhecimento crível e como potencialidade formativa se deve ao fato de que “[...] a memória, seja a memória institucional ou a do sujeito, faz emergir a necessidade de se construir um olhar retrospectivo e prospectivo no tempo e sobre o tempo reconstruído como possibilidade de investigação e de formação de professores” (2007, p. 63-64). A memória é, portanto, um arcabouço fecundo de investigação para pensarmos a história da educação e a formação humana como um todo. Assim, ao narrar as histórias formativas e as práticas docentes eu (re)estruturo a experiência em um processo que envolve algum tipo de tradução para compreender e para recriar aquilo que foi vivido. Isso é possível porque, “[...] a memória é a mais épica de todas as faculdades” (BENJAMIN, 1994, p. 210). Ela é o fragmento do tudo o que nos permite apropriarmos do curso das coisas vividas, por um lado, e resignarmos com seus respectivos esquecimentos. Para Benjamim, a memória fundamenta-se no compartilhamento 41 intersubjetivo de experiências. “O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida na corrente vital do seu passado, resumida na reminiscência” (BENJAMIM, 1994, p. 212). Enfim, a memória “[...] tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si” (Idem, p. 211). Maurice Halbwachs, outro estudioso da memória, pontua que a lembrança necessita de afetos comuns, construídos em função do convívio social com outras pessoas: Mas, então, a parte do social ou, se quisermos, do histórico em nossa memória de nosso próprio passado, é muito maior do que pensávamos. Porque temos, desde a infância em contato com os adultos, adquirido muitos meios de encontrar e precisar muitas lembranças, que, sem estes, as teríamos em sua totalidade ou em parte, esquecido rapidamente. (HALBWACHS, 1990. p. 72) Pela afirmação de Halbwachs, percebemos o porquê de a memória não estar isolada e fechada na individualidade, pois, ao evocar seu próprio passado, a pessoa recorre, ao mesmo tempo, a um conjunto de lembranças de outros(as) do mesmo grupo social ao qual está inserida, e se reporta às referências (as mais diversas) que existem fora de si, que foram forjadas pela sociedade. Assim, na tomada de consciência das coisas, ou mesmo para corroborar, amortecer ou completar fatos, ideias, acontecimentos e experiências, nos baseamos nas lembranças coletivas: Mas, nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e que só nós vimos, É porque, em realidade nunca estamos sós [...] A primeira vez que fui a Londres, diante de Saint-Paul ou Mansion-House, sobre Strand, nos arredores dos Court'sof Law, muitas impressões lembravam-me os romances de Dickens lidos em minha infância: eu passeava, então, com Dickens. Em todos esses momentos, em todas essas circunstâncias, não posso dizer que estava só, e que refletia sozinho, já que, em pensamento, eu me deslocava de um tal grupo para outro, aquele que eu compunha com esse arquiteto, além deste, com aqueles, dos quais ele era o interprete junto a mim, ou aquele pintor (e seu grupo), com geômetra que havia desenhado esse plano, ou com um romancista. (HALBWACHS, 1990, p.26-27) Em síntese, não estamos sozinhos diante de nossas memórias. Mantemos constantemente relações com outros tantos grupos e, em função desses contatos e entrecruzamentos, podem resultar muitos e novos acontecimentos. Por isso nossas biografias nos são tão caras e tão importantes na tomada de consciência de fatos, experiências profissionais e pessoais. É também por isso que seja possível extrair da memória tanto a análise de uma história individual quanto a análise da história coletiva. Nesse sentindo, entendo que, ao recuperar, por meio da memória, a minha formação acadêmica, assim como a formação acadêmica de quatro outras docentes que 42 colaboram coma pesquisa – e um incontável número de sujeitos com os quais me relacionei nos processos, como estudante e como docente – , estou indiretamente também trazendo à tona e discutindo a história de um coletivo infinitamente mais amplo. Coletivo esse, formado por docentes, discentes artistas do teatro que fizeram parte de minhas histórias formativas e profissionais. Eu e as quatro docentes entrevistadas somos de gerações temporais que atravessam o período formativo em teatro durante as décadas de1980, 1990 e 2000, e, ainda que (três de nós) tenhamos sido formadas na mesma instituição de ensino superior, cursamos a graduação em períodos temporais históricos distintos, concluímos habilitações de trabalho diferentes no do campo do teatro: bacharelado em Interpretação Teatral, licenciatura em Educação Artística, licenciatura em Artes Cênicas, bacharelado em Teoria Teatral e bacharelado em Psicologia. Da mesma forma, também fomos conduzidas em nossas formações cênicas por mestres(as) do teatro que adotaram diversificadas referências pedagógicas e técnico-teatrais, conforme o momento histórico e tendências de cada época. Por fim, vivemos, hoje, cada uma de nós em diferentes regiões geográficas do país. Em função disso, dialogamos com públicos de estudantes acadêmicos e/ou coletivos teatrais que, embora estejam todos em meio a processos de criações formativos teatrais, são contextos diferentes uns dos outros. Desse modo, por meio das biografias e das memórias das experiências cênico- pedagógicas elencadas na pesquisa, ainda que reflita um pequeno universo que contempla a práxis pessoal de cinco artistas e professoras de teatro (incluindo a pesquisadora), foi possível esboçar e apontar alguns aspectos histórico-estético-pedagógicos relevantes da formação superior em teatro nas últimas três décadas no Brasil. Ressalto que, na proposição metodológica assumida na pesquisa, experiência e memória estão colocadas em paralelo. Tal como nas obras de Walter Benjamin (1992 a 1940), a memória ampara a experiência. Ou seja, a experiência evoca e “escrutina” a memória, e esta, descortinadamente, traz à tona as experiências vividas. Portanto, existe um “eu” (sujeito) da experiência presente e um “eu” (sujeito) da lembrança. O eu da lembrança é um(a) contador(a) de histórias. Por isso nossa memória nos conta histórias; e é isso o que guardamos de nossas experiências, as histórias rememoradas. Nessa proposição, a experiência tem um caráter pessoal e é regida por processos orgânicos muito singulares e contínuos passíveis de serem reproduzidos pela perspectiva do compartilhamento e da memória. Todavia, ainda não explicitei exatamente o que estou delimitando por experiência. Nesse contexto, John Dewey (1859 a 1952) afirma que a experiência nasce dos processos de interação do organismo com o meio ambiente. No pensamento pragmatista do 43 filósofo esta