unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP ELAINE CUNHA DE OLIVEIRA ALVES DIÁLOGOS POÉTICOS DE UM LEGIONÁRIO: intertextualidade nas canções de Renato Russo ARARAQUARA – S.P. 2012 ELAINE CUNHA DE OLIVEIRA ALVES DIÁLOGOS POÉTICOS DE UM LEGIONÁRIO: intertextualidade nas canções de Renato Russo Trabalho de Dissertação de Mestrado, apresentado ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, UNESP/ FCLAR, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan. ARARAQUARA – S.P. 2012 Alves, Elaine Cunha de Oliveira Diálogos poéticos de um legionário: intertextualidade nas canções de Renato Russo / Elaine Cunha de Oliveira Alves. – 2012 126 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara – Orientador: Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan l. Intertextualidade. 2. Música brasileira. 3. Russo, Renato, 1960-1996. I. Título ELAINE CUNHA DE OLIVEIRA ALVES DIÁLOGOS POÉTICOS DE UM LEGIONÁRIO: intertextualidade nas canções de Renato Russo Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários . Data da defesa: 20 de agosto de 2012 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan. FCL-Unesp/ Araraquara-SP Membro Titular: Profª. Drª. Maria Lúcia Outeiro Fernandes FCL-Unesp/ Araraquara-SP Membro Titular: Profª. Drª. Sheila Pelegri de Sá UNICEP/ São Carlos-SP Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara A Nadia, Livia e Rubia. Aos que amam a Legião Urbana. AGRADECIMENTOS A Deus, pela fé, força, determinação, saúde e superação. Às minhas filhas: Nadia, Livia e Rubia, que estiveram sempre presentes, mesmo na minha ausência. Ao meu marido pela força e pela paciência. À minha mãe que me ensinou a gostar de poesia. Ao meu pai (in memorian), grande incentivador. Aos professores das disciplinas cursadas na pós pelo acolhimento, pelo carinho, por compartilharem conosco o conhecimento, ampliando, assim, novas possibilidades para nossas pesquisas. Aos funcionários da FCLAr, principalmente à Milena da biblioteca e à Rita pela atenção e disponibilidade. A todos que de alguma maneira contribuíram para a realização deste trabalho. Ao poeta, Renato Russo, pela trilha sonora desta pesquisa. E, especialmente, à minha orientadora Prof.ª Dr.ª Ude Baldan, cujos ensinamentos enriqueceram minha formação acadêmica e humana, pela oportunidade, confiança e acolhimento. . “E quem sabe um dia eu escrevo uma canção pra você” Renato Russo (1996) RESUMO Este trabalho é o resultado do estudo das manifestações poéticas e intertextuais nas letras de canções de Renato Russo. Este autor, leitor declarado dos clássicos, propagou a poesia por meio do rock, fenômeno artístico de massa, compartilhando suas leituras através de suas composições. A intertextualidade se destaca como procedimento de criação em sua obra, repleta de referências explícitas e implícitas. Seguindo orientações de Bakhtin, Kristeva, Perrone-Moisés e Genette procuramos analisar de que maneira a literatura repercutiu na obra de Renato Russo, apontando e discutindo como ele usa a literatura em suas composições e que efeitos de sentido ela provoca em suas letras. O processo dialógico dos textos envolve buscas e retomadas de outros textos, o que nos fez buscar vestígios, indícios, pistas, que permitissem revelar a voz do outro. No entanto, o processo dialógico dos textos nos mostrou que cada novo texto não é mero re-conhecimento dos anteriores, mas ato diferenciado de elocução cuja forma, estrutura ou aparência se mostra modificada em relação à dos textos anteriores, dos quais se arrancam novas variações. Palavras-chave: Renato Russo. Intertextualidade. Efeito de sentido. ABSTRACT The aim of this paper is the result of poetic and intertextual manifestations’ study in the lyrics of Renato Russo’s songs. This author, declared classics’ reader, spread poetry through the rock, mass artistic phenomenon, sharing his readings through his compositions. Intertextuality is notable as creation process in his work, full of explicit and implicit references. Following Bakhtin, Kristeva, Perrone-Moisés and Genette's guidelines, we aim to analyze how literature reflected in Renato Russo’s work, pointing and arguing how does he use literature in his compositions and which meaning effects it brings to his lyrics. The dialogical process involves searches and revisits of other texts, which made us look for traces, indications, clues, that would allow revealing the voice of the other. However, the dialogic process of the texts showed us that each new text is not merely a re-cognition of the previous, but different speech act whose form, structure or appearance shown modified relative to previous texts, of which it takes off new variations . Keywords: Renato Russo. Intertextuality. Meaning effects. SUMÁRIO 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 9 2 HÁ TEMPOS 21 2.1 Renato Russo: um pouco de história 21 2.2 Discografia: mais do mesmo 24 2.3 A pré-história de Renato Russo 31 2.3.1 O movimento punk 31 2.3.2 Aborto Elétrico 36 3 A MÚSICA DA POESIA E A POESIA DA MÚSICA 43 4 PROCEDIMENTOS POÉTICOS NAS LETRAS DAS CANÇÕES 52 5 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ESTUDOS INTERTEXTUAIS 79 5.1 O papel do leitor no processo intertextual 90 6 DIÁLOGOS 93 6.1 Análise de “Pais e filhos” 93 6.2 Análise de “Perfeição” 100 6.3 Análise de “A montanha mágica” 107 6.4 Análise de “Daniel na cova dos leões” 115 CONSIDERAÇÕES FINAIS 120 REFERÊNCIAS 123 9 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Em Literatura para quê?, tradução da conferência inaugural dos cursos da nova cátedra de literatura do Collège de France realizada por Antoine Compagnon em 2006, o autor e célebre professor pontua que mais importante do que a tradicional pergunta, teórica ou histórica, sobre o que é a literatura é a questão crítica e política: “O que a literatura pode fazer?” Em outras palavras, para que serve a literatura? Numa época em que a literatura está sendo destruída pelos textos didáticos na escola, enfrentando crises com o enfraquecimento das páginas literárias na mídia, enfrentando com significativa desvantagem a era da aceleração digital e da fragmentação do tempo disponível para leitura; numa época em que a literatura tem sido muito abalada pelos discursos das ciências exatas e sociais, e pelo audiovisual e o digital questiona-se: Qual é a relevância da literatura para a vida? Qual é a sua força, não somente de prazer, mas também de conhecimento? Sua força de prazer, advinda de seus valores estéticos, está associada a sua capacidade de provocar o deleite, ativar o divertimento e despertar o entusiasmo à medida que instiga nossa imaginação; sua força de conhecimento reside também no fato de que nos oferece um meio de se preservar e transmitir a experiência dos outros. Por meio dela podemos ter contato com aqueles que estão distantes de nós no tempo e no espaço, aqueles cujos valores se diferenciam dos nossos, e, por isso mesmo, nos tornam mais sensíveis, incitando nossa reflexão. Sua força de conhecimento reside, portanto, no fato de nos oferecer algo que sirva de base para avaliação e reflexão, justamente por nos oferecer algo cuja natureza é semelhante à nossa, e, por isso, algo que de alguma maneira nos diz respeito, como bem aponta Harold Bloom em Como e por que ler. Por isso, deduzimos que a literatura tem o poder de incitar o pensamento para um jogo de buscas e de revelações que nos conduz à alteridade. A força do conhecimento proporcionada pela literatura não se baseia na informação, visto que essa não é jamais a intenção do artista que quer antes de tudo divertir, estimular, provocar por meio de efeitos estéticos a serem apreendidos pelo outro. Por isso podemos afirmar que a literatura é conhecimento heurístico, diferenciando-se do conhecimento algorítmico, posto que a literatura nunca para de procurar, jamais conclui; seus sentidos não têm limites. 10 Jogo que diverte e aguça, que provoca e revela, a literatura funciona como exercício de reflexão. A literatura relaciona-se à qualidade e não à quantidade. Ela ensina coisas insubstituíveis como a maneira de ver o próximo e a si mesmo, atribuir valores às coisas pequenas ou grandes, pensar sobre a vida, sobre o amor e sobre a morte. Portanto, a literatura, entendida como ficção (mimese, representação, imitação), tem o poder de instruir porque provoca satisfação, prazer, encantamento, bem como horror, incômodo, indignação. Cada fato narrado traz uma iluminação, uma instrução; cada aventura serve de modelo para a nossa formação desde que assentado às circunstâncias em que nos encontramos. Além disso, como ressalta Compagnon, a literatura é remédio que liberta o indivíduo das autoridades (ajuda-o a escapar das forças de alienação e de opressão) e o cura do obscurantismo religioso. A literatura, instrumento de justiça e de tolerância, aliada à leitura, experiência de autonomia, contribui para a liberdade e responsabilidade do indivíduo. E, principalmente, a literatura remunera os defeitos da linguagem. Os artistas, “antena da raça”, segundo a expressão de Ezra Pound, fazem-nos ver o que não vemos naturalmente. É a arte que nos mostra dentro ou fora de nós, na natureza ou no espírito, coisas que não impressionaram nossos sentidos e nossa consciência. Os poetas e os romancistas dizem o que gostaríamos de dizer e não sabíamos como, porque nos faltam as palavras. “Brincando com a língua, a poesia ultrapassa suas submissões, visita suas margens, atualiza suas nuanças e enriquece-a violentando-a” (COMPAGNON, 2009, p.38). Portanto, é na palavra e pela palavra que reside a força majestosa da literatura. Dessa forma, fica claro que a literatura está relacionada ao prazer e ao conhecimento. No entanto, Antoine Compagnon nos provoca a pensar: além da força de evasão, qual o grande poder de ação da literatura? Ao final de sua histórica aula, o professor afirma que “A literatura é um exercício de pensamento; a leitura, uma experimentação dos possíveis” (COMPAGNON, 2009, p.52). A literatura é um exercício de pensamento porque seu instrumento penetrante é a língua; e é esse instrumento que dá liberdade total para a imaginação e para a deliberação moral do leitor. A leitura é uma experimentação dos possíveis porque seu tempo é o tempo do leitor, é ele quem determina o ritmo da leitura e das aprovações e condenações que esta lhe provoca. Dessa forma, o exercício aberto da leitura promove o aprendizado de si e do outro, revelando que não há uma identidade 11 estável, mas sempre passível de tornar-se, de vir a ser. É nesse ponto que reside a grande força de ação da literatura. Em “O direito à literatura”, Antonio Candido (2004, p.176) chama a atenção para o papel da literatura na formação do homem, ressaltando seus aspectos paradoxais, posto que os efeitos dos textos literários são, ao mesmo tempo, apregoados e temidos pelos educadores. De fato, há conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais) e sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver. A literatura tem, portanto, papel formador da personalidade, porém, não conforme as convenções, mas de acordo com a força indiscriminada e poderosa da própria realidade posto que tanto os valores que a sociedade recomenda quanto os que ela rejeita fazem parte das diversas manifestações literárias. Dessa forma, a literatura aceita e recusa, propõe e denuncia, sustenta e contesta e, com isso, possibilita-nos vivermos os problemas dialeticamente. Renato Russo (1960-1996), renomado artista do cenário musical brasileiro e leitor declarado dos clássicos, viu no rock, fenômeno artístico de massa, a possibilidade de compartilhar suas reflexões, encontros e desencontros consigo e com o outro. Partindo da hipótese de que a literatura influenciou esse artista, deixando rastros em sua obra e de que a leitura intensa ajudou-o a desenvolver o eu autônomo de que fala H. Bloom (2001, p.188), interessa-nos, nesta dissertação, investigar de que maneira a literatura repercutiu na obra desse compositor. Assim, pretendemos, por meio de análises, apontar e discutir como Renato Russo usa a literatura em suas composições e que efeitos de sentido ela provoca em suas letras. O objeto de estudo sobre o qual recai nosso olhar é a poética de Renato Russo. Partindo do pressuposto de que o mundo da leitura nos conduz à leitura do mundo, nosso trabalho pretende desautomatizar o olhar que, em geral, recai sobre letras de canção da música brasileira, com o fim de revelar uma poética essencialmente verbal na obra de Renato Russo. 12 Ao delimitar o corpus da pesquisa, intrigaram-me, especialmente, as letras de canção que traziam referências literárias, pois este é um tema pouco explorado pela fortuna crítica de Renato Russo. Em relação aos trabalhos textuais referentes à Legião Urbana e ao seu líder, encontramos vários artigos de jornais e de revistas; capítulos de livros; livros inteiros e dissertações de mestrado e teses de doutorado. Esses trabalhos variam bastante. Muitos acompanham os lançamentos de cada disco e de cada trabalho lançado em relação à banda; alguns discutem questões temáticas abordadas em suas canções tais como ética, política, relações amorosas, etc. (MAIA, 2000); outros trazem aspectos autobiográficos (DAPIEVE, 2006; MARCELO, 2009) ou abordam a recepção da obra por um público singular (DEMARCHI, 2006). Alguns trabalhos estão direcionados à questão da linguagem e do projeto de criação das letras (CASTILHO; SCHLUDE, 2002; SILVEIRA, 2008; GOMES, 2008; SIQUEIRA JÚNIOR, 1995). Castilho e Schlude (2002, p.25) fazem uma abordagem de todas as letras dos álbuns da Legião Urbana. Apesar de parecer uma proposta pretensiosa, o projeto das autoras pauta-se na constatação de um diálogo entre as letras da banda que criam e mantém uma coerência interna. Para as pesquisadoras, há, em toda a obra, a existência de temas preciosos ao Romantismo e afirmam a descoberta de que “o discurso apresentado nas letras mostrava um encadeamento, uma espécie de projeto poético, desembocando no típico beco sem saída romântico e passando por diversas fases coerentes com a sensibilidade romântica”. A leitura da obra de Russo, sob o olhar de Castilho e Schlude, apresenta, portanto, caráter romântico no sentido literário do termo e está relacionada, sobretudo, à chamada segunda geração, denominada como “mal-do-século”. A produção literária de Renato Russo está baseada no mergulho do sujeito em si mesmo e explora temas como devaneio, melancolia, depressão, erotismo, tédio, ironia, idealização da morte. Silveira faz um estudo da obra de Renato Russo rastreando a escrita do “animal autobiográfico”. Esse estudioso entende que a obra de Russo – bem como a de Cazuza – revela um registro autobiográfico pressuposto pelo caráter de encenação e representação do vivido. Ao formular o conceito “a poética da travessia”, busca revelar a forma cultural e crítica que esses poetas exibem dentro das grandes crises vividas pela chamada “geração perdida”: o retorno à democracia, o desenvolvimento da indústria de entretenimento, o uso das drogas, a Aids. Como a própria titulação do conceito operacional proposto por Silveira (2008, p.14) sugere, “a poética da travessia” aborda a 13 obra dos poetas citados, considerando a época de transição política pela qual passava o Brasil. Assim, conforme pontua Suely de Fonseca Quintana no prefácio do livro, Russo é “aquele que se escreve e escreve seu mundo, durante o fazer de sua obra e, ao mesmo tempo, fazendo a crítica desse tempo presente.” Conforme a mesma pesquisadora, Russo é um dos poucos que consegue “entregar-se e integrar-se como sujeito e objeto de sua escrita. Escrita de transição, escrita de revelação crítica, sem ser panfletária como a dos anos de ditadura”. Gomes (2008, p.11 e p.15), em sua tese de doutorado, discute o tema das representações do amor destacando as homoeróticas nos contos de Caio Fernando Abreu e nas letras de Renato Russo. Para a estudiosa, interessa investigar em que nível ou plano estético-cultural as imagens propostas por esses autores poderiam “rasurar o modelo de amor romântico construído pelo discurso ocidental”. Segundo a pesquisadora, é possível deparar-se com conflitos de inclusões e intervenções geracionais nas letras de Renato Russo que ela reconhece como textos singulares por conta “de seus jogos poéticos e discursivos, cujo pano de fundo, não raro, é a paisagem amorosa”. Para a autora, Renato Russo destaca-se no cenário artístico nacional “como uma paisagem particular, ou como um universo singular”, graças à sua maneira de lidar com as palavras, de se expor como artista, de interpretar e de se comportar no palco, maneiras essas completamente distintas dos demais artistas de sua geração. O processo de criação de todo bom artista é sempre assunto de interesse de estudiosos. Assim, Leoni, compositor, músico e cantor, desenvolveu um projeto que deu origem ao livro Letra, música e outras conversas, no qual constam oito entrevistas com grandes nomes da música brasileira da década de 1980. O autor afirma que esse livro é “um bate-papo entre compositores sobre esse ofício nem sempre bem compreendido pelo público. Existe muito mais de suor, perseverança, disciplina e dor do que nossas aparências joviais e despreocupadas fazem supor”. Ao comentar a falta de intimidade da língua portuguesa com o rock, estilo musical naturalmente compatível à língua inglesa, porque esta tem palavras menores, muitas monossilábicas, complementa: “Na prática, nós tivemos que inventar uma nova linguagem, um novo código de comunicação”(SIQUEIRA JR, 1995, p.14-15). Para Leoni, o rock da década de 1980 “foi um movimento de um vigor e de uma fertilidade impressionantes, que teve o poder de sacudir a então acomodada MPB, na época infestada de diluidores de Chico e Caetano, e de desalojar os artistas populares de seus feudos” (SIQUEIRA JR, 1995, p.16). 14 Um dos entrevistados é Renato Russo sobre quem o autor comenta: Outra coisa interessante são as interpretações que ele dá para as letras e para os títulos das canções. São tantas as possibilidades de interpretação, tantos temas tratados em poucas frases, tantas referências implícitas, mas não diretamente apontadas que fica claro como uma obra deixa de pertencer ao compositor no momento em que cai no mundo. [...] O melhor de tudo é encontrar uma pessoa do bem, preocupada com valores morais e éticos, que não se rendeu ao cinismo. Um profundo conhecedor de música, literatura e cinema, com muito para dizer e que diz. E como! E quanto! Rendeu uma ótima entrevista (SIQUEIRA JR, 1995, p.63). O livro é, portanto, rico em informações sobre o processo de criação de Renato Russo, pois traz o ponto de vista do próprio autor sobre sua obra. No que tange à questão da intertextualidade, o trabalho mais específico que localizamos é uma dissertação de mestrado (FERNANDES JÚNIOR, 2002) na qual o estudioso demonstra que as palavras, ao percorrerem trajetos migratórios, passando por diferentes tempos, espaços e sujeitos, também sofrem migração de sentidos e, assim, ao ocuparem novos contextos são re-significadas. Fernandes observa que em algumas letras de Renato Russo coexistem questões sagradas e profanas convivendo lado a lado nos textos, o que o leva a conduzir sua pesquisa sob esse recorte. Além disso, o autor dessa pesquisa aproxima também, intertextualmente, as letras de Russo às tendências da poesia Romântica. Assim, procurando, pesquisando, lendo e relendo a fortuna crítica de Renato Russo, observamos que sua obra instiga diversas abordagens. Observamos, também, que há pelo menos dois pontos comuns entre os autores desses trabalhos que consideraremos igualmente de suma importância: 1º) É pelo apuro da palavra que Renato Russo destacou-se no cenário musical, compondo letras com recursos poéticos; 2º) Apesar de sua obra refletir dados biográficos, seus textos trabalham com o ficcional. A partir do exame minucioso do “modo de dizer” do compositor, pretendemos nos enveredar por um percurso investigativo que abarque a presença de procedimentos poéticos recorrentes nas letras de canção de Renato Russo. Posteriormente, investigaremos que efeitos de sentido a presença de referências literárias provoca em 15 suas letras, pois constatamos que essas referências são constantemente citadas e apontadas, faltando, porém, um estudo específico sobre o assunto. É comum que se fale da obra de Renato Russo como uma obra de relações intertextuais das mais diversas. No entanto, se como aponta Perrone-Moisés (1993), o diálogo entre os textos literários não é prática recente entre os escritores, interessa-nos investigar de que modo Renato Russo recorre aos textos alheios em seu processo de criação e quais são os sentidos surtidos desse procedimento. O nosso estudo busca a relação intelectual entre a obra de Renato Russo e a literatura que se revela como uma via de mão dupla: da mesma maneira que a literatura influenciou o procedimento de composição do autor, suas letras de música influenciam a literatura num envolvente diálogo. Isso pode ser constatado no livro Como se não houvesse amanhã, lançado pela editora Record em 2010, que reúne 20 contos inspirados em músicas da Legião Urbana. A obra traz textos de autores de diferentes lugares do Brasil como Tatiana Salem Levy, Carlos Henrique Schroeder, João Anzanello Carrascoza, Ana Elisa Ribeiro entre outros numa organização de Henrique Rodrigues. Na apresentação do livro, Rodrigues (2010, p.7) fala do caráter universal e atemporal da obra da Legião Urbana bem como da forma estritamente poética como os temas foram trabalhados nas letras das canções. E afirma que o caráter de novidade, espanto e transcendência em relação à vida impresso pela obra permite nos redescobrirmos. As canções da Legião fizeram parte da vida do escritor e, mesmo com o passar dos anos, ele afirma: “Agora, homem feito, vejo que essas músicas ainda causam a mesma sensação: dizem algo intimamente, além de despertarem um tipo de certeza de que também preciso dizer algo. No meu caso, com a literatura.” Além da literatura, as letras de Renato Russo abrem o diálogo para outras artes, como o cinema. A canção “Faroeste Caboclo”, um épico de 159 versos com duração de 9 minutos (que narra a saga de João de Santo Cristo, nordestino que chega a Brasília em busca de uma nova vida, envolve-se com o mundo do crime e é morto por um traficante rival), ganhou roteiro de Marcos Bernstein e Victor Atherino e direção de René Sampaio para a realização do filme com título homônimo em 2011 cujo lançamento está previsto para outubro de 2012. Assim, uma das canções de maior sucesso da Legião Urbana, tantas vezes processada no imaginário dos ouvintes, é recriada para as telas do cinema, configurando Faroeste caboclo: o filme como um novo texto. Não se trata de 16 fazer uma espécie de clipe da música como os próprios produtores asseguram1. Justamente por se inserir em um campo de produção cultural distinto da canção, o filme contará, por exemplo, com a criação de novos personagens e novas cenas que, sob o ponto de vista de seus produtores, multiplicarão os tantos sentidos já recriados pelos seus ouvintes desde sua criação. Não há, portanto, a preocupação com a fidelidade ao texto de Renato Russo, mas a consideração de um diálogo com o intertexto que arranque novas entonações a partir da reelaboração da forma e do sentido do texto alheio. Nosso objetivo, portanto, é verificar o diálogo entre as letras de Renato Russo e as obras literárias que elas retomam, o que justifica nossa seleção de textos, a saber: ‘Pais e filhos’, ‘Perfeição’, ‘A montanha mágica’ e ‘Daniel na cova dos leões’. A escolha, a princípio, deve-se à homonímia dos títulos das canções com títulos de obras literárias e, por extensão, pela não existência de estudos referentes às três primeiras no que tange à questão da intertextualidade. Entendemos que a leitura dialógica de um texto viabiliza outras perspectivas de leitura além de resgatar textos de autores de diferentes épocas. Nesse sentido, acreditamos que nossa pesquisa poderá ser útil para verificar o papel que a literatura desempenhou na obra de Renato Russo. Mais do que reconhecer os vestígios textualizados de referências literárias, nosso objetivo, ao utilizar os termos ‘intertextualidade’ e ‘interdiscursividade’, é observar e analisar como determinadas obras literárias aparecem na obra de Russo, considerando novos sujeitos, tempo e espaço. Para entender o papel da intertextualidade nas letras de Renato Russo, partimos da questão: para que ele usa a intertextualidade? Para a qual levantamos algumas hipóteses que procuraremos verificar ao longo de nosso trabalho: para reforçar a crítica à sociedade burguesa e capitalista? Para dar universalidade às mensagens? Para rejeitar a cultura literária, subvertendo-a? Para dessacralizar as mensagens dos textos literários? Para subverter os valores implícitos nos textos com os quais dialoga? Para se apossar de procedimentos de construção de textos poéticos? Para sustentar procedimentos de composição? Nesta dissertação de mestrado, nossa proposta será estudar apenas as letras das canções, portanto, a melodia não será considerada neste momento. Assim, pretendemos 1 http://www1.folha.uol.com.br/folhateen/928494-folhateen-antecipa-cenas-e-personagens-de-faroeste- caboclo.shtml. Acesso em: 17 jun. 2012 17 observar e analisar como se desenvolve o estilo de Renato Russo em seu trabalho apurado com a palavra, lapidada de modo a alcançar efeitos poéticos, pois, como atesta Antonio Candido (2004, p.178), o conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere. O caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma, se torna ordem; por isso, o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode atuar. Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido. Assim, o que causa impacto, o que impressiona em uma produção literária é o entrelaçamento da mensagem com sua organização. No entanto, é a forma que, como os tijolos de uma construção, ordena nossa mente, nossos sentimentos e nossa visão de mundo. O embasamento teórico para a realização de nosso estudo sobre o diálogo entre as letras de canções de Renato Russo e obras literárias estará fundamentado nas orientações de Bakhtin, Kristeva, Genette, Fiorin e também nas reflexões de Schneider e Leila Perrone-Moisés. No primeiro capítulo, realizamos uma rápida biografia de Renato Russo. Nosso objetivo foi destacar os elementos culturais que exerceriam influência em sua obra, especialmente o contato com a literatura, cujo diálogo será retomado em tópicos seguintes. Na sequência, fizemos um levantamento da discografia do artista; entendemos que este é o momento adequado para se ter uma visão global de sua obra que abarca procedimentos intertextuais, dialogando com outros textos por meio de citações, epígrafes, canções. Efetuamos, ainda, uma breve abordagem do movimento punk para recuperar o caminho artístico percorrido por Renato Russo. No segundo capítulo, consideramos importante tecermos algumas ponderações entre letra de música e poesia, menos com o intuito de justificar nossa escolha do que inserir o gênero como especificidade de texto na contemporaneidade. Para tanto, traçamos um estudo histórico sobre a canção e as relações entre poesia e música com destaque para a cultura portuguesa e brasileira. Nosso objetivo é mostrar que Renato Russo faz parte de um grupo seleto de letristas e de cantadores contemporâneos cujo trabalho proporcionou ampla musicalização da poesia. 18 Como o próprio título sugere, no capítulo III, nosso intuito é demonstrar a presença de procedimentos poéticos a partir da análise de algumas letras de canção. Observamos que no processo de criação, Renato Russo explora, entre outros procedimentos, o uso da função poética da linguagem ao realizar um processo de seleção e arranjo vocabular que conduz à multissignificação de seus textos. A análise da primeira canção escolhida, “Será”, baseia-se em colagens de análises de outros estudiosos e do próprio poeta. Nossa intenção ao adotarmos esse recurso foi, ao registrarmos diferentes leituras de um mesmo texto, demonstrar que as letras de Renato Russo se abrem continuamente a novos sentidos como matéria inacabada e, portanto, configuram-se como poesia, como confirmaremos também na análise das outras letras selecionadas. O quarto capítulo destina-se às reflexões e discussões acerca dos estudos intertextuais, embasamento teórico sob o qual se fundamenta nossa pesquisa. É com base nesses conceitos e autores que desenvolveremos as leituras analíticas das letras das canções selecionadas, evidenciando o diálogo intertextual e interdiscursivo estabelecido na obra de Renato Russo. O capítulo V destina-se às leituras das letras selecionadas. Nosso procedimento de análise baseou-se em dois movimentos de leitura: primeiramente realizamos uma leitura com base na autonomia do próprio texto, para em seguida buscarmos novas possibilidades de leitura com base nas referências intertextuais. Conforme aponta Sartre em O que é literatura “a operação de escrever implica a de ler como seu correlativo dialético e estes dois atos conexos necessitam de dois agentes distintos” (SARTRE apud COMPAGNON, 2010, p.143). Logo, todo autor é sempre um leitor que se apodera de textos para compor um novo texto formado por interrupções e desvios, derivado de movimentos de leitura, interpretação, e, portanto, fragmentação e deslocamento. Esperamos, por isso, que nossa pesquisa e nosso trabalho de interpretação deixem transparecer que a experiência da leitura na obra de Renato Russo é inevitavelmente uma experiência dialógica, ambígua, divergente entre a liberdade e a imposição, o outro e o eu, a realidade e a ficção, o direito e o avesso; que permitiu que sua obra revelasse as leituras que fez dos clássicos: os poemas que escreveu são os livros que leu. 19 20 http://www.letrasecia.com.br/blog/blog/2011/10/11/os-livros-recomendados-por-renato-russo/ Acesso em: 25 mar. 2012. 21 2. HÁ TEMPOS 2.1 Renato Russo: um pouco de história Renato Manfredini Junior nasceu em 27 de março de 1960 na cidade do Rio de Janeiro. Aos sete anos mudou-se com a família para a cidade de Nova Iorque, permanecendo nos Estados Unidos por dois anos, período que será de grande importância para sua vida e sua obra. O contato com a nova língua e sua facilidade com o idioma levou Renato ao domínio do inglês e também facilitou bastante sua paixão pelo rock, que começou com os Beatles, logo se estendendo a Elvis Presley e Bob Dylan. Além dos clássicos do rock, Renato ouviu muito rock progressivo e punk, fundamental para o surgimento da Legião Urbana. Porém, segundo o jornalista Dapieve (2006), Renato gostava também de música clássica, influência que recebera do pai. A paixão pela música clássica no futuro seria registrada pela aquisição de CDs de Schubert e Rachmaninoff e de videolasers com óperas de Wagner, seu favorito, que encheria seu apartamento. Seu Manfredini estimularia no filho também o amor ao cinema e aos livros. Havia à disposição na casa, muitos livros em português e em inglês. Conforme afirma Arthur Dapieve (2006, p.27), Renato lia muito e muito rápido. Apreciava muito poesia – os sonetos de Shakespeare, P. B. Shelley, W. H. Auden, o beat americano Allen Ginsberg, Jean-Arthur Rimbaud, Fernando Pessoa e todos os seus heterônimos, Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado – e filosofia – a coleção Os Pensadores, da editora Abril Cultural, súmula das reflexões de gente como Blaise Pascal, Friedrich Niestzsche e Bertrand Russel, deu-lhe muito o que pensar e reprocessar. A família retorna ao Brasil em 1969, indo morar no Rio de Janeiro até o ano de 1973, quando se muda para Brasília. Na capital, Renato enfrenta situações marcantes, típicas da nova capital brasileira como o tédio e falta de opções de lazer. Em 1975, Renato Manfredini Júnior enfrenta sérios problemas de saúde: epifisiólise. A doença, de caráter virótico, leva o garoto a uma cirurgia. Vítima de erro médico, Renato é condenado a grande sofrimento com dores pungentes, o que o leva a nova cirurgia e a um ano e meio de limitações físicas até conseguir superar o problema. Porém, Renato não deixou de estudar nesse período. Com o apoio de amigos e grande confiança depositada pelo colégio em que estudava (ele fazia as provas em casa), 22 não perdeu nenhum ano de estudo. No entanto, se esse foi tempo de extremo sofrimento, não deixou de ter um lado produtivo. Renato leu como um louco. Talvez para encontrar algum prazer, pois como afirma Harold Bloom “Ler é um dos grandes prazeres da solidão. [...] Ler nos conduz à alteridade, seja à nossa própria ou à de nossos amigos, presentes ou futuros. Literatura de ficção é alteridade e, portanto, alivia a solidão” (BLOOM, 2001, p.15). O período de introspecção, mergulhado na dor, na solidão e na leitura marcaria profundamente sua obra que estava por vir. Nessa fase, decidiu interessar-se ainda mais seriamente por música. Chegou a criar uma banda fictícia para se distrair no seu quarto de paredes cobertas de fotos, a 42nd Street Band, na qual o cantor/alter ego se chamava Eric Russell. [...] Para a 42nd Street Band de Eric Russell, Renato Manfredini Jr. escreveu a biografia, pensou na obra, bolou capas para os discos. Parecia uma banda de verdade (DAPIEVE, 2006, p.31). Nesse sentido, poderíamos dizer que Eric Russell é um heterônimo de Renato. Vale lembrar versos de Fernando Pessoa, um dos escritores preferidos de Renato Russo, “A experiência directa é o subterfúgio, ou o esconderijo, daqueles que são desprovidos de imaginação [...]. imaginar é tudo, desde que não tenda para agir. Tudo quanto não é a minha alma é para mim, por mais que eu queira que o não seja, não mais que cenário e decoração”1. Dapieve documenta em seu livro um trecho escrito na ocasião (do qual reproduzimos apenas um parágrafo) que ilustra a pura imaginação de Renato the Eric Russell interview: first draft. Why did you decide doing a solo album? Actually it wasn’t really a solo album. It was something like a break from what the band was doing. You see, at that time I felt very uptight, like, I felt that the guys wouldn’t like my songs, they sort of ran away from what the band was doing, all those blues and stuff. I had all these songs under my pillow you know, the country-folk things, long ballads with long lyrics. Not very commercial (DAPIEVE, 2006, p.30). Interessante pensar que anos mais tarde, já à frente da Legião Urbana, Renato Russo gravará dois discos solos como trabalhos alternativos, um em inglês e outro em italiano. No entanto, as canções longas com letras extensas estarão presentes no repertório da Legião em comum acordo com os outros integrantes. Eric Russell, como 1 http://arquivopessoa.net/textos/2025. Acesso em: 16 jan. 2012. 23 podemos observar no texto transcrito, não estava preocupado com criações de apelo comercial. Essa seria também a marca da Legião Urbana. Além dos manuscritos, a existência de Russel ficou registrada também na ocasião da morte de Sid Vicious, integrante do Sex Pistols; Renato enviou uma carta de Eric Russell para o Melody Maker, jornal especializado inglês, que foi publicada em 31 de março de 1979. O cinema tornou-se outra grande paixão para Renato, quase tão grande quanto o rock’n’roll. Era tão voraz como espectador quanto como leitor. Capaz de assistir a quatro fitas de vídeo por dia tinha predileção pelos diretores Ingmar Bergman, sueco, e François Truffaut e Jean-Luc Godard, franceses. A paixão pelo cinema levaria o artista a compor canções cujos títulos nos remetem a obras da sétima arte em um possível diálogo textual como, por exemplo, Teorema, filme da década de 60 do diretor italiano Pier Paolo Pasolini; L'Avventura, nome de um filme de 1960 feito pelo cineasta italiano Michelangelo Antonioni; L'âge d'or, filme francês de 1930, dirigido por Luis Buñuel. Influenciado pelo movimento punk inglês, Renato, ao lado de André Pretorius e Felipe Lemos, forma em 1978 sua primeira banda de rock: o Aborto Elétrico. “Para Renato, a atitude do-it-yourself tinha tudo a ver com um país que começava a explorar a abertura política do general Ernesto Geisel” (DAPIEVE, 2000, p.130). O Aborto Elétrico fez poucos shows e nenhuma gravação, mas parte de seu repertório ficou registrado nos discos de duas bandas dele nascidas: Legião Urbana e Capital Inicial. O Aborto Elétrico desmembrou-se na virada de 1981 para 1982. Neste ano, Renato faz apresentações solo, cantando ao violão, abrindo shows de outras bandas sob a alcunha de ‘o trovador solitário’ que remete ao ‘caminhante solitário’ Jean Jacques Rousseau, filósofo do século XVIII que, ao lado do também filósofo Bertrand Russel e do pintor Henri Rousseau são referências para a criação do nome artístico de Renato Russo. (CONVERSAÇÕES, 1996) Em 1983, Renato junta-se a Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos para formar a consagrada Legião Urbana. Em 1984, Renato Rocha entra para o grupo, onde permanece até 1988. Depois disso, a banda volta a ser formada pelo trio original, que permanece unido até o ano de 1996, quando Renato Russo morre em decorrência de problemas causados pela AIDS. É anunciado, então, o fim de uma das maiores bandas de rock do Brasil. 24 “Com a morte de Renato Russo, o BRock perde não apenas sua mais potente voz, mas também o seu mais potente cérebro” (DAPIEVE, 2000, p.211). 2.2. Discografia: mais do mesmo Eu me preocupo em fazer um texto que daqui a duzentos anos, se a pessoa pegar, não vai precisar de nota de rodapé. O que implica que ‘Há tempos’, por exemplo, ‘Disseste que se tua voz tivesse força igual/ À imensa dor que sentes/ Teu grito acordaria/ Não só a tua casa/ Mas a vizinhança inteira’ pode ser numa vizinhança hi-tech em Nagóia, Osaka, ou pode ser Vila Rica. Isso foi uma coisa com que sempre me preocupei, uma coisa que aprendi com Drummond e Pessoa, não querendo me comparar, é claro. (Renato Russo apud DAPIEVE, 2006, p.127) As canções executadas pela Legião Urbana foram compostas pelos integrantes da banda, Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato Russo. Dessas canções, Renato Russo é autor ou co-autor de todas as letras. Ao realizar uma pesquisa sobre a discografia de Renato Russo algumas questões nos chamaram a atenção: as letras, as referências registradas nos encartes, as imagens, o cuidado com a reprodução das letras, cuidados esses que revelam além de um projeto poético musical, um projeto gráfico e um engajamento com questões sociais. Assim, os encartes, com suas capas e contracapas, imagens e citações, também carregam mensagens que podem ser decodificadas ou, pelo menos, questionadas. (PRADO, 2011) Nos primeiros quatro discos da Legião Urbana, percebe-se claramente uma alternância em relação à linha temática e melódica de cada trabalho. Para Dapieve (2006, p.125), eles “obedeciam a um ciclo, sístoles e diástoles, altos e baixos, de certa forma associados ao estado de espírito de Renato”. As letras das canções desses discos eram carregadas da energia punk em sua aparente simplicidade. O primeiro disco Legião Urbana engloba um aspecto mais político e contestador, aproximando-se dos ideais punks. Lançado em janeiro de 1985, às vésperas do Rock in Rio, teve seu marketing prejudicado e, por conta disso, demorou cerca de seis meses para ‘engrenar’ junto ao público. No entanto, o projeto ‘ambicioso’ de Renato Russo começava a ganhar espaço nos bastidores da música. Era comum que novas bandas de rock primeiramente gravassem compactos que as inserissem no mercado musical. Uma vez caídas no gosto popular lançavam seus 25 LPs. No entanto, Renato Russo exigiu da EMI a gravação de um álbum e não de um compacto. Sua intenção não era estourar um hit, mas revelar um estilo por meio de canções cujas letras mostrassem uma visão crítica de sua geração. Isso só seria possível com várias canções abordando temáticas diversas sobre política, trabalho, religião, amor, sexo e revolução. Com essa atitude, Renato Russo demonstra que já tinha em mente o desejo de construção de uma carreira sólida e de um trabalho sério. Seu estilo e visão crítica marcaram presença e foram reconhecidos ao longo da produção de cada álbum. A unidade de cada disco tornou-se um aspecto importante para se entender a totalidade da obra como um projeto poético-musical. É na escrita, nas letras das canções que a Legião Urbana chama a atenção do público e da crítica. Para Nelson Motta, o disco foi bem recebido e Russo aparecia como o grande letrista do Rock Brasil. “Renato era a novidade, um grande talento poético” (MOTTA, 2000, p.395). Arthur Dapieve (2006, p.76) registrou a avaliação do próprio Renato Russo sobre o primeiro trabalho da banda: “Aquele disco dava um panorama de tudo o que estava acontecendo com o jovem daquela época e, por tabelinha, com o jovem de hoje em dia – avaliaria Renato. É um clássico, um livro completo.” Ao falar do disco, vemos que Russo refere-se a ele usando o substantivo livro. Se pensarmos em livro como obra de cunho literário e/ou artístico, como publicação de valor documentário, a afirmação de Russo é coerente. As letras do primeiro disco da Legião Urbana abordam questões históricas, sociais e culturais, além de versarem sobre sentimentos, encadeadas em um projeto poético que norteará toda a obra do compositor. Há no encarte deste primeiro álbum vários elementos que reforçam a ideia de origem. O próprio título do disco, homônimo ao da banda, no sentido de apresentá-la e ao mesmo tempo fixá-lo; a foto dos integrantes do grupo ocupando o centro da capa; elementos culturais relacionados à cidade de origem da banda – sobre a foto há o símbolo da Explanada dos Ministérios, em Brasília, e logo abaixo da foto há uma imagem de um índio segurando um arco e flecha, “simbolizando a luta por valores tradicionais que davam o tom da organização social, em especial, ao coletivismo” conforme aponta Prado (2011). Além disso, predomina no encarte a cor branca, cor da origem ao significar ora a ausência, ora a soma das cores. (CHEVALIER; GHEERBEANT, 1997) 26 Dois, lançado em 1986, era um disco mais ambicioso no qual a banda apresentava maior domínio de estúdio. Era também um disco de canções mais interiorizadas, sem deixar, no entanto, questões sociais e políticas de lado especialmente em ‘Metrópole’, ‘Fábrica’ e “Índios”. Uma colagem sonora onde se escuta, em meio a outros ruídos e outras músicas, o seguinte trecho de ‘Será’: ‘Brigar pra quê / Se é sem querer’ interliga o trabalho anterior a este, marcando o início do disco. A capa do encarte do disco Dois é bem simples; nela consta apenas o nome da banda entre duas retas paralelas e o título, indicando que é o segundo trabalho de uma série do grupo. No entanto, dois é também um número par e, portanto, indica conjunto de duas pessoas ligadas por algo em comum; conjunto formado por macho e fêmea ou por marido e mulher; casal; cada um dos cônjuges ou parceiros2. Embora haja músicas de questões políticas, a maior parte das faixas, remete à relação do eu com o próximo, sendo o relacionamento entre duas pessoas o eixo temático principal. Ao final da ficha técnica surge em caixa alta a frase “URBANA LEGIO OMNIA VINCIT”, que se tornaria lema da banda: “Legião Urbana a tudo vence” ou “Força sempre”. Que país é este 1978/1987, terceiro disco da banda, é uma espécie de antologia com músicas do tempo do Aborto Elétrico e do Trovador Solitário. Retoma, portanto, a linha política e punk do primeiro disco com canções que já eram bastante conhecidas do público porque eram cantadas nos shows ao vivo. ‘Angra dos Reis’ e ‘Mais do mesmo’ eram as únicas realmente inéditas. Sobre o disco, Renato diz: “São coisas de que queríamos falar: Constituição, cocaína, solidão. Mas são letras antigas, adolescentes”. O disco teve grande aceitação pelo público e “No começo de março, ‘Que país é este’ chegou ao topo da parada de LPs mais vendidos, com 240 mil cópias” (DAPIEVE, 2006, p.100 e p.103). Lançado em 1989, As quatro estações é um disco que desfaz a estrutura do trabalho anterior, trazendo referências religiosas e literárias, linguagem rebuscada, uma letra completa em inglês; um disco sereno com temas mais espirituais e menos materiais: Buda, Tao-te-King, Jesus, Camões. É neste disco que aparece a citação mais famosa da banda: o poema de Camões e a carta de São Paulo aos Coríntios, reestruturados na letra de “Monte Castelo” e outras como o segundo verso de “Há tempos”. Nas letras elas não aparecem entre aspas, contudo os créditos são devidamente atribuídos na quarta capa do encarte num texto do 2 Conforme Dicionário eletrônico Houaiss 27 próprio Renato no qual ele atesta sua capacidade de diálogo com outras obras como parte inerente de seu processo criativo: “Não vá pensar que fizemos tudo isso sem ajuda”. Outra citação marcante aparece na letra de “Se fiquei esperando meu amor passar” na qual o autor traz, agora entre aspas, um trecho extraído do Evangelho de São João (I, 29). O álbum V (1991) inaugura os lançamentos da banda da década de 1990. Na obra da Legião é o disco favorito de Renato Russo, no qual se encontram as melhores letras, segundo o próprio vocalista. É um disco lento, com canções longas: ‘Metal contra as nuvens’ (com 11 minutos), ‘A montanha mágica’ (uma média de 7 minutos), ‘Vento no litoral’ (em torno de 6). Em V o diálogo ultrapassa o universo das letras, permitindo uma interação entre o rock e outros estilos musicais. A última faixa é ‘Come share my life’, tradicional folclore americano. Na introdução de ‘Teatro dos vampiros’ ecos da obra instrumental barroca Canon do alemão Johann Pachelbel, do século XVII. A instrumental ‘A ordem dos templários’ inclui ‘Douce Dame Jolie’, do francês Guillaume de Machaut, do século XIV. E ‘Love song’, Cantiga de Amor do século XIII, de Nuno Fernandes Torneol3, é a 1ª faixa do CD. Logo em seguida, inicia-se ‘Metal contra as nuvens’ uma canção de 11 minutos, repleta de elementos medievais (castelo, espada, princesa, dragão, metal, ouro, brasão, tesouro), que, segundo Gomes (2008, p.203), “narra uma jornada mística, na qual fé, desejo e verdade estão relativizados pela inconstância do percurso e posicionamento do herói”. Além dessa canção, a atmosfera medievalista é suscitada por um conceito estético que se cristaliza em faixas como a instrumental ‘A ordem dos templários’, ou pelos símbolos dispostos na capa e no encarte, onde predominam as cores branca e dourada, ou ainda pela escolha da fonte para impressão das letras. No CD V aparece uma espécie de epígrafe às avessas, pois as duas frases que funcionam também como recorte para a leitura do CD, aparecem na 3ª capa após a impressão de todas as letras e da ficha técnica. A primeira, dita pelo stone Brian Jones em 1967, “Such psychic weaklings has Western civilization made of so many of us”, explicava a desolação que perpassava o disco; a outra, dita pelo próprio grupo: “Bem- 3 Essas informações constam no próprio encarte do CD antes da ficha técnica. 28 vindo aos anos 70!” fazia referência aos principais elos sonoros do disco (rock progressivo, hard rock). O álbum duplo: Música para acampamentos (Gravações ao vivo e especiais para rádio e televisão 1985 – 1992), lançado em 1992, é uma coletânea de canções da banda. Ao observarmos os títulos das faixas que compõem este álbum duplo, veremos que a maior parte deles faz parte de outros discos lançados pela banda. Música para acampamentos não estava previsto em contrato, mas tornou-se um trabalho interessante: “Para a banda, o álbum foi uma maneira de recuperar o alto investimento financeiro feito na série de shows interrompida em Natal” (DAPIEVE, 2006, p.136); para os fãs, um presente. O disco registra gravações ao vivo em palcos diferentes “com um caráter antológico e desigual”. Assim, grandes sucessos da banda estão misturados a covers ou citações. O disco inclui também ‘A canção do senhor da guerra’, tocada somente por Renato Russo nos estúdios da EMI- Odeon. Como as gravações são ao vivo, é possível observar a interessante performance de Renato Russo ao promover diálogos entre as canções da Legião e clássicos da música mundial. Na versão de ‘A montanha mágica’, por exemplo, Renato inicia cantando um trecho de ‘You’ve lost that lovin’feeling’ (de Barry Mann, Cynthia Weil, Phil Spector). Ininterruptamente, entra na letra de ‘A montanha mágica’ propriamente dita e ao final emenda ‘Jealous Guy’ (de John Lennon) para finalizar com ‘Ticket to ride’ (de Lennon e McCartney). As referências que Renato traz ao cantar ‘A montanha mágica’ ao vivo nem de longe são aleatórias ou apenas apresentam uma linha melódica de fácil engate. Apresentam um suporte temático que tornam o cruzamento de vozes de diferentes artistas totalmente coerente e enriquecedor. Na versão de ‘Soldados’, cantada no show realizado no Parque Antártica, São Paulo, em agosto de 1990, o início se dá com um trecho de ‘Blues da piedade’ (de Frejat e Cazuza) e de ‘Faz parte do meu show (de Renato Ladeira e Cazuza) para depois entrar em ‘Soldados’ e no final desembocar em ‘Nascente 9’ (de Flávio Venturini e Murilo Antunes). Com isso, Renato Russo não apenas presta sua homenagem ao amigo e poeta do rock, pela morte recente, como também resgata discursos relacionados à imagem de Cazuza como a homossexualidade, a Aids, a arte. Dessa forma, Russo cria novos textos com o resgate de outras vozes, propondo ao público referências que associadas levam a novas reflexões. 29 O encarte deste álbum não traz as letras das canções, apenas as referências às versões apresentadas. Além das frases, Urbana Legio Omnia Vincit, logo no alto da primeira página, e “Ouça no volume máximo”, no final da terceira capa, o encarte traz também uma dedicatória a “Giuliano, Thayssa, Nicolau, Miranda, João Pedro, Thiago, Gabriel e todas as crianças” além de ilustrações de Marcelo Bonfá na capa e na quarta capa. O descobrimento do Brasil (1993) trazia como sempre a eterna dialética entre o público e o privado na obra de Renato Russo. Na capa e na quarta capa do encarte, fotos do trio legionário em meio a muitas flores. As letras estão transcritas em folhas com desenhos e fotos de flores, mesclando cores fortes como vermelho, amarelo, azul e verde. Sobre este disco, Silveira (2008, p.131-132) aponta para a necessidade de renascimento que se protagoniza. A canção homônima não faz nenhuma alusão direta à nação, mas “ressalta, na serenidade e simplicidade da letra, a vontade de descobrimento de um novo eu, que agora se estende metonimicamente para a necessidade de descoberta de um novo Brasil”. Para Vianna (1995), este álbum é um mergulho na história da própria banda. O autor acredita que a serenidade deste trabalho “faz as pazes” com o desequilíbrio punk do Aborto Elétrico e justifica: Perfeição, primeira música de trabalho desse disco, prova que tal pacificação é possível. A indignação e a auto-ironia punk da primeira parte dessa canção termina com hino de confiança no futuro: "Venha, que o que vem é perfeição". A última palavra de O descobrimento do Brasil é YEAH, gritado, virtuosamente punk. A tempestade é o título do último disco da Legião Urbana lançado ainda com Renato Russo vivo. O lançamento se deu em setembro de 1996 e as gravações foram realizadas com o vocalista bem debilitado por conta da Aids. O título do disco vem acompanhado de um subtítulo: ou O livro dos dias que aparece em destaque na contracapa. A primeira página é toda preenchida pela ilustração de um vitral do século XIII da Catedral de Chartres cujo desenho ilustra uma mulher, à esquerda, um rei ao centro, e um cavaleiro à direita, todos montados em um cavalo.4 No verso, ou, na 4 Conforme Prado (2011), são o símbolo da proteção à vida, do conhecimento integral e da luta contra as forças do mal. Aliado à simbologia dos vitrais, o pesquisador acredita que isso seria a representação dos integrantes da banda que se encontrariam protegidos ou em busca de proteção. 30 segunda página, há uma epígrafe do livro Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade: “O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus” que já prenuncia o tom de despedida que permeará o disco. As letras são transcritas e ao final do ‘libreto’5, após a ficha técnica, segue uma lista com nomes de “Entidades consideradas de referência na defesa dos direitos de crianças, jovens e mulheres”. Há, então, um desenho de Marcelo Bonfá no qual vemos a imagem aparente da mulher, do rei e do cavaleiro partindo sem destino na linha do horizonte6; em seguida uma abertura na qual se encaixa o CD e na última página juntamente com a terceira capa, uma foto dos três integrantes da banda. Entendemos que todo o projeto gráfico no qual se inclui a cor azul, as imagens, a lista de entidades, associado à epígrafe e ao próprio título (que nos remete ao título da última obra de Shakespeare) acentuam a cena na qual Renato Russo estava inserido e prenunciam a perda, a partida, a morte. Uma outra estação foi lançado em 1997, quase um ano após a morte de Renato Russo. A maioria das canções são ‘sobras’ das gravações de A tempestade, mas traz, também, uma ‘Riding song’ que inclui a apresentação de todos os membros da banda, registrada para uma fita cassete promocional do álbum Dois; três músicas compostas no tempo do Trovador Solitário; duas vinhetas conduzidas por Trilha; um alegre cover para uma música da trupe setentista brasiliense Liga Tripa. Essa variedade ressalta o caráter antológico do disco, destacado por Marcelo e Dado numa frase da primeira folha do encarte: “Ouça este disco da primeira à última faixa. Esta é a história de nossas vidas.” “Uma outra estação era uma espécie de disco-testamento da Legião, não importava que outros pudessem vir depois” (DAPIEVE, 2006, p.161). Além desse, após a morte do líder da banda, outros álbuns foram lançados: O último solo (1997), reunindo sobras de interpretações dos trabalhos em inglês e italiano, com faixa multimídia interativa: videoclipe de ‘Strani amore’ e entrevista; Mais do mesmo (março de 1998) reunindo sucessos da banda; Acústico MTV (outubro de 1999); Renato Russo – série Bis (junho de 2000); Como é que se diz eu te amo, lançado em duas versões, uma dupla, outra com dois discos separados (março de 2000); Presente 5 Diferentemente das caixinhas plásticas tradicionais, a ‘embalagem’ deste CD é toda feita de papel, assemelhando-se a um pequeno livro. 6 Para Prado (2011), a proteção advinda dos símbolos interpretados nos vitrais se fora. A cor azul intensifica a imagem da tempestade que realça a situação da banda naquele determinado momento da carreira que se sentia à deriva no tempo, sem acreditar ou possuir nenhum tipo de proteção. Sensível reflexo de um final melancólico, que inevitavelmente ocorreu. 31 (março de 2003), uma compilação de duetos, gravações caseiras e trechos de entrevistas; As quatro estações ao vivo, gravado no Palestra Itália, estádio do Palmeiras, em São Paulo, nos dias 10 e 11 de agosto de 1990 – exceto uma faixa, gravada no Mineirinho em Belo Horizonte no mesmo mês – e lançado em duas versões, uma simples e outra dupla (março de 2004). Aparentemente, uma tentativa desmedida de preencher o vazio dos fãs causado pela morte do ídolo. Como intérprete, Renato Russo lançou dois álbuns, um em inglês — Stonewall in Concert (1994) — e outro em italiano — Equilíbrio distante (1995). Stonewall se propôs a marcar o 25º aniversário do levante gay contra a polícia no bar do mesmo nome, em Nova York. O disco traz 21 canções em língua inglesa e entre os compositores selecionados por Renato Russo estão Bob Dylan, Nick Drake e Stephen Sondheim. Parte dos lucros desse trabalho era doada, por Renato e pela EMI-Odeon, para a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, organizada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, irmão do cartunista Henfil, ambos hemofílicos soropositivos. Obra engajada, o álbum traz em seu encarte uma lista com nome, endereço e telefone de entidades de apoio a crianças e adolescentes de rua, mulheres e homossexuais, e do grupo ecológico Greenpeace. Para a gravação de Equilíbrio distante, que durou nove meses em estúdio, Renato Russo iniciou por uma viagem de oito dias à Itália, acompanhado da assessora de imprensa Gilda Mattoso para colher material para o repertório. Após ouvir mais de duas mil faixas de mais de duzentos CDs, foram selecionadas músicas com autorias variadas que vão de Leonard Cohen a Laura Pausini. (DAPIEVE, 2006, p.155) 2.3. A pré-história de Renato Russo 2.3.1 O movimento punk Punk é uma palavra de origem inglesa que em tempos remotos referia-se a “prostituta”; por extensão, geralmente evoca criaturas marginalizadas (drogados, travestis, suicidas, prostitutos, malditos, adolescentes vagabundos). A palavra está registrada em uma fala na peça “Medida por medida”, de Shakespeare, que já evocava a palavra no seu sentido ‘podre’: “Casar com um punk, meu senhor é apressar a morte” (BIVAR, 2001, p.38). 32 Atualmente, punk remete ao movimento de jovens que contestam a ordem social vigente, por meio da exibição de vários signos exteriores insultuosos e zombadores, como cortes de cabelos e roupas; ou àqueles que carregam traços desse movimento. O movimento punk tem suas origens na Inglaterra, em meados de 1970. Com a queda do movimento hippie, que exigia nas ruas ‘Paz e Amor’, os punks surgiam gritando o caos da realidade pobre de jovens desempregados e sem futuro. Criticavam o governo, a educação, os políticos, os impostos, a pobreza, o desemprego, a falta de perspectiva e outros problemas. O estilo visual dos punks é marcado pela cor preta das roupas e pela maquilagem carregada dos olhos; as roupas preferidas são aquelas compradas de segunda-mão e tratadas com um toque pessoal – rasgadas, manchadas, usadas de maneira inusitada; acessórios como correntes, buttons ou alfinetes também são muito apreciados por esses jovens que dão ao cabelo uma atenção especial: às vezes raspados, outras vezes descoloridos ou coloridos com cores berrantes. A ideia é criar um visual rude, de mal gosto e chocante; rebelar-se contra a harmonia e o bom gosto. Nesse sentido, o punk revela-se mais como uma revolução de estilo. No entanto, essa suposta revolução de estilo é parte da revolta de adolescentes com idade em torno de 18 anos que, insatisfeitos com o mundo em que vivem, invocam o espírito de mudança; é, pois, “também uma crítica e um ataque frontal a uma sociedade exploradora, estagnada e estagnante nos seus próprios vícios” (BIVAR, 2001, p.49); uma maneira de demonstrarem a sensação de que tudo pode acabar amanhã, de que o futuro não é mais como era antigamente. No cenário musical, os punks passam a valorizar as letras em detrimento das músicas, tanto que as letras punks são mais intelectualizadas e tocadas em apenas três acordes. Assim, levando a ferro e fogo sua filosofia de serem contra a cultura, os punks batem de frente contra as pomposas composições e apresentações do rock progressivo e do heavy metal que compunham o cenário musical da época. Se na década de 1960, quando surgiram os Beatles e os Stones, a classe operária na Inglaterra estava em ascensão, quando surgiram os punks, uma década depois, o país estava vivendo uma recessão. Por isso, essa ala do rock ecoou a raiva e frustração de uma juventude sem perspectivas, cuja aparência, desligada da estética do belo, levou muita gente a associá-los à violência. No entanto, a violência já se encontrava no contexto da época. Em oposição à década de 1960, marcada por uma guerra de ideias, a de 1970 foi marcada por uma onda 33 terrorista sem precedentes: Setembro Negro, Baader-Meinhof, Brigadas Vermelhas e atentados do IRA contra a Inglaterra. (MUGGIATI, 1985, p.72) Os punks, por sua postura agressiva no visual, nas letras das canções, na relação com os fãs no palco, no próprio corpo e na sociedade, foram também rotulados de “novos bárbaros” da música pop. Não se voltaram apenas contra o Establisment, mas contra o próprio rock, ao acusar os rockeiros de se venderem ao sistema, de enriquecerem graças ao próprio sistema contra o qual lutaram um dia, de esquecerem suas origens, de se calarem e consequentemente de não liderarem mais nada. Os punks incomodavam porque diante do novo quadro da juventude, os rockeiros contestadores da década de 1960 haviam se tornado irrelevantes, conforme afirmou Johnny Rotten (MUGGIATI, 1985, p.75). Como a destruição sempre foi uma parte vital do discurso punk, o movimento serviu também para sacudir o espaço do rock que já estava precisando de renovação, pois havia se entregado à acomodação e ao jogo da indústria fonográfica. Entretanto, o punk é um movimento contraditório conforme pontua Essinger (1999, p.20), posto que surgiu para desaparecer e ressurgir quando e onde menos se espera. Isso porque quando se firma como fenômeno de massa, já não é mais punk. Esta parece ser a sina do punk, desde que foi codificada para se tornar a maior e mais genuína expressão das inquietações jovens de todos os tempos. Viva rápido, morra cedo, deixe um belo cadáver. Uma idéia que começou a se formar no século passado com o poeta francês Arthur Rimbaud e chegou ao cinema nos anos 50 personificada por Marlon Brando (em O selvagem) e por James Dean (que repetiu na vida real o roteiro do seu filme mais clássico, Juventude transviada). A definição de Essinger para o movimento punk cria uma imagem que associa os poetas românticos do século XIX aos intensos e ruidosos sons das guitarras elétricas do século XX, que deram início a uma revolução sonora e comportamental do rock n’roll em meados dos anos 50 nos Estados Unidos por meio de artistas como Elvis Presley, Little Richard, Jerry Lee Lewis e Chuck Berry. Porém, como justifica Muggiati (1985, p.76), o punk permanecerá durante o tempo em que as sociedades industriais modernas continuarem causando tédio e frustração. Uma das grandes contribuições dos punks foi sem dúvida o lema do-it-yourself, faça você mesmo, que traduz o espírito empreendedor desses jovens. A ideia era a de não esperar por ninguém e fazer o trabalho pelas próprias mãos (o que incluía compor, 34 tocar, organizar shows, produzir e gravar discos, quebrando os padrões que obedeciam modelos pré-estabelecidos e cultuando a originalidade). Isso inspirou jovens de todas as partes do mundo a começarem a montar suas bandas tão logo aprendessem a tocar pelo menos três acordes. Os Sex Pistols7 foram responsáveis pela lição radical do faça-você-mesmo, mostraram que o escândalo é uma das formas mais eficazes de autopromoção e provaram que qualquer um pode obter sucesso em relação ao pop, ou seja, os artistas não precisariam mais se adaptar desesperadamente às engrenagens da indústria. Assim, foram importantes no cenário musical mundial para o surgimento de novas bandas. No Brasil, às margens do desenvolvimento mundial, a aproximação com o movimento punk aconteceu de forma gradativa. É dos Estados Unidos, no período pós 2ª guerra mundial, que vêm as primeiras influências para um país sempre vítima da importação acelerada de valores culturais. O produto subversivo e indesejado da época, o rock da geração perdida e os filmes por ela inspirados, chegou ao país e logo começou a contaminar os jovens brasileiros, especialmente os de classe média alta. Foi Cely Campello quem inaugurou e estourou o rock no Brasil com a canção ‘Estúpido cupido’. Porém, a primeira revolução pop brasileira legítima aconteceu com a Jovem Guarda, programa de TV liderado por Roberto Carlos e que foi ao ar pela primeira vez em setembro de 1965 e terminou no ano de 1969. “A inspiração para o batismo (pelo publicitário Carlito Maia) veio de Lênin: ‘O futuro pertence à Jovem Guarda, porque a velha está ultrapassada’” (ESSINGER, 1999, p.84). Artistas como Erasmo Carlos, Wanderléia, Eduardo Araújo, Renato e seus Blue Caps, Bobby de Carlos e Sérgio Reis se popularizaram no país com o uso das guitarras elétricas e o rock cantado em português (versões de canções americanas, inglesas e italianas). Entretanto, é no Tropicalismo, movimento liderado por Caetano e Gilberto Gil, que está a base da revolução na música brasileira já que o movimento serviu como exemplo libertário. A grande ação punk do Tropicalismo se deu em 1968, quando Caetano Veloso foi vaiado ao cantar junto com Os Mutantes a música ‘É proibido proibir’. Caetano parou de cantar e fez um revoltado discurso contra a plateia a quem acusou de alienada e de não entender nada. Além de Caetano, Sérgio Ricardo já havia 77 Grupo inglês, que colocou o movimento punk no centro dos meios de comunicação de massa. 35 tomado outra atitude punk no Festival de 1967 ao quebrar o violão diante dos que o vaiavam ao cantar ‘Beto bom de bola’. (ESSINGER, 1999) Os Mutantes também realizaram façanhas punks quando, por exemplo, avacalharam a poesia da letra de ‘Chão de estrelas’ com recursos musicais e sonoplásticos. “O embrião do punk brasileiro podia ser percebido no trabalho de outros artistas daquela primeira metade dos anos 70 – em especial aqueles que acabaram recebendo o equivocado rótulo de malditos” (ESSINGER, 1999, p.89). Entre eles: Jards Macalé e Walter Franco. A partir de 1977, a imprensa começou a divulgar o punk no Brasil por meio de artigos escritos por Ezequiel Neves, Paulo Coelho e pela revista IstoÉ que em novembro do mesmo ano comentou algumas adesões da classe artística brasileira à onda inglesa, entre elas a dos paulistanos Joelho de Porco. Era uma questão de tempo (e de falta de paciência) até que, contra todos os teóricos de plantão, o rock e a filosofia punk fossem frutificar entre um bando de adolescentes da periferia de São Paulo. E que a história do rock brasileiro começasse a ser escrita de baixo para cima, com letras rudes, acordes imperfeitos e palavras rabiscadas no calor do momento (ESSINGER, 1999, p.95). Em São Paulo e Rio de Janeiro, o movimento punk começou a se instalar nos bairros afastados do centro. Em São Paulo, as novidades musicais chegavam às rádios paulistanas especialmente pelo programa da Rádio Excelsior apresentado por Kid Vinil. Surgia o punk na vida dos garotos da periferia de São Paulo por meio de canções simples e diretas, tocado com fúria e imprecisão. Daí surgiram importantes bandas paulistanas como Inocentes, Ratos de Porão, Cólera, Olho Seco, Lixo Mania. Em São Paulo, demograficamente uma das capitais punks do planeta, quando surgiram os primeiros discos, independentes (sempre independentes), o punk se impôs como porta-voz da rebeldia nas classes menos privilegiadas: o punk era pobre. Mas sua estética era a única genuinamente pós-moderna numa época em que todo o resto era passadista. Na postura punk havia vida, voz, força, paixão, rancor, verdade. E muita contradição também – o punk é controverso. Sua sinceridade bem articulada atraiu os meios de comunicação (que divulgou o movimento, geralmente deturpando-o), influenciou outros movimentos que foram surgindo, ora como ramificações ora como reação. A estética e a performance punks firmaram sua marca, seu logotipo inclusive na história de São Paulo (e do Brasil), como o Anarquismo o fizera em 1917 ( BIVAR, 2001, p.127-128). 36 2.3.2 Aborto Elétrico Em Brasília, a revolução punk entrou inicialmente por meio de um grupo seleto de jovens de classe média, ao contrário do que acontecera em São Paulo e Rio de Janeiro. Talvez isso se deva a singularidades da cidade como, por exemplo, sua geografia. Inaugurada em 1960, Brasília foi construída com a única finalidade de se tornar a capital político-administrativa do país. Totalmente planejada, Brasília foi construída com quadras e superquadras, separadas por longos trechos de cerrado; cada bloco delas era destinado a um grupo específico: escolas, comércio, funcionários do Banco do Brasil etc. No campus da UnB (Universidade de Brasília) foram criados quatro blocos de prédios residenciais para os professores morarem. Essa área ficava razoavelmente isolada do resto da cidade e ficou conhecida como Colina. Felipe Lemos, filho de professores, e depois baterista do Capital Inicial, cresceu no ambiente democrático da Colina e aos 15 anos foi com a família para a Inglaterra, de onde pôde acompanhar de perto a revolução punk. Em 1978, quando voltou à Brasília, trouxe da Europa a novidade materializada em discos, revistas e acessórios, mas não encontrou ninguém de imediato na Colina que dividisse com entusiasmo a descoberta. Porém, isso logo aconteceria quando, ainda naquele ano, conhecesse alguém que também gostasse de Sex Pistols e Ramones: Renato Manfredini Junior. Ao final de 1978, a Colina se tornaria o ponto de reunião dos poucos fãs de punk rock da cidade que trocavam entre si informações e os lançamentos fonográficos que conseguiam. Essa turma começava também a usar toda uma parafernália do tipo alfinetes de segurança espetados nas bochechas, buttons, casacos do exército, pulseiras cheias de tachinhas, coleiras e roupas rasgadas. Segundo Fê Lemos, gostavam de andar em turmas, sair à noite bebendo e fumando e de tocar violão em volta de uma fogueira. Também costumavam roubar o carro dos pais, invadir uma festinha e pôr uma fita com som punk rock. Logo aconteceu o que tinha que acontecer: inspirados pelo do-it- yourself, aqueles punks candangos iriam começar a montar suas bandas. Algo que muito agradava a Renato Manfredini Junior, um formador de turmas por natureza, que fazia e desfazia grupos imaginários nas tardes solitárias em seu quarto. Segundo a revista Bizz: Renato era um aglutinador. “Puro magnetismo: Renato Russo juntava a sua ‘tchurma’ para fazer festas, ouvir discos de punk e conversar, quando ele começava a falar, as pessoas simplesmente paravam e ouviam” (HALFOUN, 1977, p.2). 37 Influenciado pelo movimento punk inglês, Renato, ao lado de André Pretorius e Felipe Lemos, forma em 1978, sua primeira banda de rock: o Aborto Elétrico. “Para Renato, a atitude do-it-yourself tinha tudo a ver com um país que começava a explorar a abertura política do general Ernesto Geisel” (DAPIEVE, 2000, p.130). No ano de 1979 os rapazes ensaiavam ao mesmo tempo em que aprendiam a tocar os instrumentos. “O primeiro show do Aborto Elétrico aconteceu em 1980, num bar chamado Só Cana, no centro comercial Gilberto Salomão” (ESSINGER, 1999, p.141). Os punks em Brasília eram todos filhos de professores, de bancários e de profissionais liberais. Pertenciam à classe média alta e eram todos bem versados em inglês, além de bastante cultos. Não é de se estranhar que o Aborto tenha se formado sob o signo da sofisticação. Renato era uma enciclopédia musical ambulante e alguém bastante singular para se contentar com o tatibitate pop da época. ‘Enquanto a juventude se perdia na mesmice da discothèque, nós nos propúnhamos a trabalhar com ideias. Sim, porque os punks lidam com ideias’, dizia ele em 1983 (ESSINGER, 1999, p.143). Renato já compunha e algumas das canções do Aborto Elétrico, compostas por ele, seriam gravadas mais tarde pela Legião Urbana e pelo Capital Inicial. Além de lidar com as ideias, atitude punk, conforme afirma o próprio Renato, suas letras configuram um trabalho estético com as palavras. “O Aborto inaugurou o texto politizado-poético. Foi a primeira vez que os jovens de classe média falaram de suas vidas” analisa Fê (ESSINGER, 1999, p.144). ‘Geração Coca-Cola’ fazia parte desse repertório. Ali, Renato fez o raio-X daqueles adolescentes que cresceram sob a ditadura e buscavam mudanças. Numa linguagem simples e direta, cujo eu lírico se apresenta como nós, a ideia central da letra faz referência à importação da cultura norte-americana no Brasil. A “geração Coca-Cola” refere-se à juventude nascida e crescida no período da ditadura no Brasil e que começava a emergir dos destroços da repressão. Geração Coca-Cola Quando nascemos fomos programados A receber o que vocês nos empurraram Como os enlatados dos USA, de 9 às 6. Desde pequenos nós comemos lixo Comercial e industrial Mas agora chegou nossa vez – Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês. 38 Somos os filhos da revolução Somos burgueses sem religião Nós somos o futuro da nação Geração Coca-Cola. Depois de vinte anos na escola Não é difícil aprender Todas as manhas do seu jogo sujo Não é assim que tem que ser? Vamos fazer nosso dever de casa E aí então, vocês vão ver Suas crianças derrubando reis Fazer comédia no cinema com as suas leis (RUSSO, 1985) Desde os primeiros versos o poeta vocifera a falta de possibilidades e de perspectivas a que sua geração foi submetida. O passado, que na letra se contrapõe ao presente, representa o período de dominação ao qual a ‘geração coca cola’ fora subjugada e é representado semanticamente pelas expressões ‘programados’, ‘receber’ e ‘empurraram’. O verbo ‘programados’ nos sugere a imagem de indivíduos que agem como autômatos, seguindo um comportamento regido, imposto. Nesse sentido, esses mesmos indivíduos são obrigados a aceitar o produto americano representado semanticamente por “enlatados dos USA”. A palavra ‘enlatados’ assume duplo sentido; ao ser associada ao horário de “9 às 6”, faz nítida referência à programação televisiva importada dos EUA8. Uma programação matinal e vespertina, que o eu lírico classifica como ‘lixo comercial’, era despejada nas casas brasileiras, visando atingir especialmente o público infantil e jovem. Além disso, “enlatados” também se refere a uma nova maneira de se consumir alimentação industrializada, fácil de se adquirir em fast foods do tipo McDonald, por exemplo, e que o eu lírico classifica como ‘lixo industrial’. Com a expansão do imperialismo norte-americano não resta outra opção para esses jovens que não a submissão a essa cultura e assim, o consumo dos enlatados passa a sufocar tudo o que é original e genuíno. O refrão reforça a ideia de um ambiente pós-utópico, no qual as grandes ideologias e os sonhos revolucionários da geração anterior estão desabonados. Se esse foi o ambiente herdado pela geração do poeta, que destino estaria reservado a ela? Por isso o verso ‘Somos o futuro da nação’ cria um efeito ambíguo e irônico, pois causa 8 De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss: filme produzido em escala industrial, de conteúdo facilmente assimilável pelo grande público e pronto para veiculação, ger. fornecido aos lotes e a baixo custo esp. para emissoras de televisão. 39 uma expectativa em torno da juventude e das mudanças que ela possa gerar, ao mesmo tempo em que carrega uma descrença visionária do poeta que não vê perspectivas. Diante disso, poderíamos concluir que a geração do poeta, historicamente taxada de ‘geração perdida’, faz jus ao título. No entanto, o jovem retratado na canção, contrariamente à imagem que a sociedade faz dele, possui uma visão crítica, pois é capaz de entender os instrumentos usados pelo sistema para construir uma sociedade passiva e alienada. E é com esses mesmos instrumentos que a juventude pretende subverter a ordem. Apesar de submetido a um sistema de ensino parco, porque reprimia o desenvolvimento do pensamento e consequentemente da ação, o eu lírico reconhece que o longo período exposto ao método “vinte anos” era tempo suficiente para observar o sistema “todas as manhas do seu jogo sujo” e, inevitavelmente, aprender com ele “não é assim que tem que ser?” A pergunta esconde uma afirmação que se constrói a partir de uma negação, revelando uma postura ativa em oposição à passividade sugerida nos primeiros versos. Dessa maneira, o poeta parece devolver a pergunta para nós mesmos. Sobre isso, MOTTA (2000, p.380) tece o seguinte comentário Muita gente imaginava que a nova geração musical, do Ultraje a Rigor e dos Titãs, de Lobão e da Legião, por ter vivido praticamente a vida inteira numa ditadura fechada para o mundo, sem acesso à cultura internacional e à História brasileira, sofrendo lavagem cerebral dos militares, seria desinformada e individualista, tão ignorante e alienada quanto a autocrítica furiosa de Renato em ‘Geração Coca-Cola’. Ao contrário [...] mostravam visão crítica, informação, independência e vontade de mudança. Dessa maneira, entendemos que mais do que uma crítica ao sistema, cuja autoridade se pauta em modelos norte-americanos, ‘Geração Coca Cola’ é um hino à geração do poeta. A força da letra reside na ironia do poeta porque revela uma postura contrária à que a sociedade vigente fazia daquela geração. Revela uma postura contestadora e crítica contra uma sociedade estagnada e estagnante nos seus próprios vícios. Para aqueles que pensavam que aquela geração não sabia se expressar, nem pensar, Renato Russo verbalizou seu protesto, criando uma metáfora para sua geração que carrega no nome as marcas da submissão a que foi submetida e nos versos o desprezo pelo sistema. 40 Além dessa, “Que país é este” que evoca o título de um livro de Millôr Fernandes, continua atual, mesmo passadas mais de três décadas de sua composição. A letra fala da realidade do país, revelando um projeto artístico em sintonia com os fatos sociais. Composta em 1978, só foi gravada no terceiro LP da banda Legião Urbana Que país é este 1978/1987 em 1987, “servindo para driblar a pressão da gravadora (que queria um novo disco a cada ano) e, após um tempo de crédito à redemocratização do país, criticar a mesmice que a Nova República representava para a sociedade brasileira” (SANTA FÉ, 2001, p.166). Com os novos tempos sugeridos pela redemocratização do país, esperava-se um encaminhamento satisfatório para os velhos problemas sociais. No entanto, o que se percebeu foi que nada disso mudou e questões relacionadas à desigualdade social, à corrupção no governo e ao não cumprimento à Constituição permaneciam em tempos que deveriam refletir mudanças nessas áreas. A letra expõe o político e o social: Que país é este Nas favelas, no Senado Sujeira pra todo lado Ninguém respeita a Constituição Mas todos acreditam no futuro da nação Que país é este? No Amazonas, no Araguaia, na Baixada Fluminense Mato grosso, nas Geraes e no Nordeste tudo em paz Na morte eu descanso, mas o sangue anda solto Manchando os papéis, documentos fiéis Ao descanso do patrão Que país é este? Terceiro mundo se for Piada no exterior Mas o Brasil vai ficar rico Vamos faturar um milhão Quando vendermos todas as almas Dos nossos índios em um leilão Que país é este? (RUSSO, 1987) Nos primeiros versos, o jogo com as palavras já denuncia a crítica voraz do eu lírico ao país. “Favelas” e “Senado” são referências a lugares bastante distintos entre si. As favelas remetem a um amontoado ou um conjunto de habitações populares que utilizam materiais improvisados em sua construção tosca, e onde residem pessoas de 41 baixa renda9. Geralmente são lugares desprovidos de infraestrutura, como saneamento básico, esgoto e coleta de lixo e, por isso mesmo, associados à sujeira. O Senado, pelo contrário, localizado no Palácio Nacional do Congresso em Brasília, é dotado de toda infraestrutura e conforto, conta com equipes de limpeza e é frequentado por pessoas de alto poder político e econômico, o que lhes dá prestígio e status. Na letra da canção, quando colocadas lado a lado são reduzidas a um mesmo plano realçado pelo verso seguinte “sujeira pra todo lado”. Nesse verso, o vocábulo ‘sujeira’ adquire dupla conotação: associado a ‘favelas’ refere-se ao lixo e associado ao ‘Senado’ refere-se à corrupção. A seguir, os vocábulos ‘ninguém’ e ‘todos’ dançam na construção de sentidos. ‘Ninguém’, como pessoa de pouca ou de nenhuma importância ou influência, pode facilmente relacionar-se aos moradores marginalizados da favela; mas ‘ninguém’, no sentido de nenhuma pessoa, pode tranquilamente associar-se aos senadores acusados de não respeitarem a Constituição. Da mesma maneira, ‘todos’ refere-se ao conjunto de políticos do Senado e por extensão a todos os cidadãos do país, uma vez que estes são representados por aqueles pelo voto. A escolha dos pronomes indefinidos ‘ninguém’ e ‘todos’, por não especificarem os sujeitos, ampliam o sentido do enunciado, permitindo, inclusive que o próprio ouvinte se identifique na canção. Além disso, brinca com o pensamento tradicional do brasileiro: ninguém quer assumir suas responsabilidades, seu compromisso com a nação, mas todos se iludem com a possibilidade de um futuro promissor. Nesse sentido, o eu lírico é bastante irônico e pergunta em seguida: “Que país é este” onde não há compromisso do cidadão comum nem dos políticos? Que futuro se pode esperar? Percebe-se também uma crítica ao rótulo dado ao Brasil, país historicamente jovem, de ‘país do futuro’, o que de alguma forma teria gerado conformismo e acomodação por parte dos cidadãos e do governo ao longo de nossa história. A segunda estrofe cita, ironicamente, regiões brasileiras como localidades pacíficas; no entanto, essa paz é aparente, pois essas regiões continuam sendo afetadas pela violência e/ou exploração, figurativizadas semanticamente no verso “mas o sangue anda solto”. Na terceira estrofe fica clara a ganância dos políticos e seu desprezo pelo que é nacional. Vale qualquer coisa para se faturar dinheiro, até mesmo vender as almas dos 9 Conforme dicionário eletrônico Houaiss. 42 índios num leilão, metáfora de nossa essência, nossa origem; dessa maneira, os governantes podem vender com tranquilidade a Amazônia, os rios e até mesmo nossa dignidade a quem oferecer um preço melhor. No entanto, a ação de vender, posta em primeira pessoa do plural, “é para lembrar que todos temos nossa parcela de culpa pelo caos, visto que todos contribuem através do voto para que pessoas corruptas governem o país” (CASTILHO; SCHLUDE, 2002, p.65). A ironia punk da letra denuncia a corrupção na política brasileira sem, no entanto, empurrar a culpa apenas aos governantes. O eu lírico, ao se incluir no caos que descreve, nos convida a refletirmos sobre nossa parcela de culpa. O papel conscientizador realizado pelo punk, ou por quem se influencia nele, é ressaltado por Bivar quando diz: “Esses garotos sabem que o futuro não é nada promissor, tanto para eles como para seus semelhantes, tão pobres e oprimidos quanto eles. Então, unidos na força da adolescência, resolveram botar a boca no trombone, exigindo justiça para todos” (BIVAR apud SANTA FÉ, 2001, p.169). Ao ser perguntado se já havia conseguido entender que país é o Brasil, Renato Russo responde: “Aquela pergunta não é uma pergunta, é uma exclamação. Porque quem me diz que país é este são as pessoas que vivem aqui” (CONVERSAÇÕES, 1996, p.75). De fato, ao repetir o refrão nos shows ao vivo, o público esbravejava: “É o Brasil!”. 43 3 A MÚSICA DA POESIA E A POESIA DA MÚSICA A leitura da letra de uma canção pode provocar impressões diferentes das que provoca sua audição, mas tal leitura é válida se claramente definida como uma leitura (PERRONE, 1988, p.14). Realizar um estudo sobre canções da MPB dentro dos estudos literários não é tarefa fácil. Se nos propomos a estudar a melodia, isso pertence à teoria da música e como realizar difícil tarefa se nos dedicamos à ciência da linguagem? Se estudamos as palavras e com elas julgamos ter uma certa intimidade, não temos o direito de separar uma letra de sua melodia, pois o texto não deveria ser assim mutilado. Uma canção é o casamento entre letra e música. Logo, o que o(s) artista(s) uniu(ram) o analista não deve separar? Sobre o termo canção, Siqueira Jr. (1995, p.17) o conceitua no prefácio técnico: Canção é uma música cantada (não instrumental), onde a letra e a melodia são o mais importante. Uma boa canção se presta a ser tocada com pouco ou nenhum acompanhamento, o arranjo original é só uma moldura e a canção se sustenta sem ele; continua fazendo sentido. A melodia da canção é o que se canta, é o que pode ser cantarolado ou assoviado. A harmonia são os acordes que emolduram ou sustentam a melodia. Entendemos, portanto, que uma canção é composta de letra e música, que a palavra se apoia na melodia e vice-versa. Para se efetuar um estudo completo que considere a totalidade da canção, outros fatores devem ser considerados pela sua significação. Segundo Perrone (1988), toda canção é interpretada por um cantador, que carrega em sua voz, timbre e tonalidade, associados aos arranjos escolhidos, qualidades e emoções peculiares. Uma mesma canção, quando interpretada por diferentes cantadores pode revelar diferentes impressões e leituras, dependendo das flexões vocais, rima forçada de voz, pronúncia, pausa, onomatopeias, etc. Além disso, outros aspectos relacionados à performance, como gestos, expressão facial, interação com o público e reação deste são interessantes e podem se mostrar úteis ao se fazer uma análise de canção. Logo, a apreciação e o estudo integral da canção devem ser realizados, considerando- se a inter-relação dos signos verbais e acústicos e sua condição de objeto de fenômeno sociocultural e artístico. Na impossibilidade momentânea de realizar um trabalho que abarque também a melodia, nossa pesquisa recai somente ao que tange à parcela verbal. Com isso, infelizmente, não conseguiremos revelar o sentido integral da canção, mas somente de parte 44 que a compõe. Contudo, entendemos que tal postura é válida, uma vez que se faz claramente definida no início deste trabalho. Nós, brasileiros, temos grandes compositores, criativos e originais e uma tradição de ótimos letristas. As letras, aliás, tem muita importância e tradição no Brasil. Basta ouvirmos canções de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, para citarmos apenas alguns de nossos grandes compositores, já reconhecidos por vários críticos como poetas da música brasileira. Ao falarmos no roqueiro Renato Russo, a primeira referência que vem à nossa mente é a linguagem. Certa vez, o próprio Renato falou: “Sou roqueiro, um letrista, mas alguns dizem que sou poeta” (CASTILHO; SCHLUDE, 2002, p.11). O compositor valeu-se de procedimentos poéticos ao escrever suas letras (como demonstraremos nas análises feitas ao longo deste trabalho), o que dá a elas uma independência em relação a seu suporte melódico, tornando plenamente justificado o seu estudo no campo da Literatura. Muitas canções da Legião Urbana tornaram-se trilha sonora na vida de pessoas e estão incorporadas ao inconsciente coletivo; tornaram-se hits, transformaram-se em clássicos do rock nacional, dotadas de uma constante atualidade que não cessa de estimular o imaginário de quem as ouve, o que nos remete à definição de Ezra Pound (1970, p.21-22) ao afirmar que Um clássico é um clássico não porque esteja conforme a certas regras estruturais ou se ajuste a certas definições (das quais o autor clássico provavelmente jamais teve conhecimento). Ele é um clássico devido a uma certa juventude eterna e irreprimível. No entanto, para Vargas (1999, p.181), as canções da Legião Urbana não devem ser vistas como mera trilha sonora de uma geração em busca de identidade e de modos de expressão renovados. Graças à particular capacidade agregadora da música, “O imaginário cristalizado nas canções do grupo teve também um caráter produtivo e projetivo inegável, gerando estratégias de sobrevivência e práticas existenciais”. Esse imaginário moldou atitudes, lançou modas, embalou protestos, canalizou sentimentos de indignação e angústia. No entanto, não devemos nos esquecer de que o texto literário obedece a um protocolo específico que representa o objeto de estudo específico dos Estudos Literários, seja qual for o suporte da obra (livro, revista, CD, internet). São as técnicas da linguagem utilizadas pelo artista que oferecem a condição para a construção do texto literário como o contraste, a polaridade, a diferença, o paralelismo, a gradação, a intertextualidade. Em nossa pesquisa, é esta última que mais nos interessa, pois, ao verificarmos que se apresenta como procedimento 45 constitutivo da obra de Renato Russo, pretendemos entender o papel da intertextualidade nas letras do autor, buscando o efeito de sentido que o procedimento provoca no sentido do texto. A poesia e a música mantém entre si uma relação de parentesco, pois sempre estiveram muito próximas. A poesia nasceu da música e guarda na sonoridade e no ritmo a memória da música. Na Antiguidade, a poesia era cantada com acompanhamento da lira, instrumento musical do qual se originou a expressão ‘lírico’ para se referir a gênero poético ou musical consagrado à expressão de sentimentos e pensamentos íntimos. Com Horácio, Catulo e Tibulo, a poesia deixou de ser cantada para ser lida. Na Idade Média trovadoresca (séculos XI – XIV), a poesia voltou a ser cantada, porém o instrumento que a acompanhava não era mais a lira e sim o alaúde, a guitarra, a flauta ou a viola. A partir do século XV, a poesia passou a ser recitada. No século XIX, os simbolistas, desenvolvendo o gosto pela melopeia, promovem a conciliação entre poesia e música. Na essência, a poesia permaneceu sempre a mesma. Como já verificamos anteriormente, na Idade Média, toda poesia era cantada. As primeiras manifestações da poesia lírica se deram na arte músico-poética dos trovadores provençais e dos trouvéres do norte da França. Os trovadores medievais da Península Ibérica foram fortemente influenciados pelas canções dos mestres de Provença e suas cantigas foram registradas nos cancioneiros com o intuito de se preservar as tradições orais da poesia cantada. (PERRONE, 1988) É ainda Perrone (1988) quem discute que, durante o Renascimento, a poesia começou a manifestar-se como arte independente do acompanhamento musical, graças, especialmente, à invenção da imprensa no século XVI, que acentua a distância entre música e poesia. Mesmo assim, a poesia, que então passa a ser difundida por outro canal (impresso) mantém algumas características relacionadas à antiga união entre poesia e música. Assim, consoante Silveira (2008, p.74), “A poesia abriga muitas vezes formas como o madrigal, a balada, o rondó e a cantiga, além da métrica, da harmonia, do refrão, do andamento e da melodia estarem presentes em muitas entonações poéticas”. Entretanto, o nascimento da literatura colonial no Brasil está marcado ainda pela tradição medieval. Uma das razões para isso é que não havia nenhuma impressora no Brasil colonial. Portanto, a obra de Gregório de Matos, por exemplo, o maior poeta do período barroco brasileiro, não foi publicada durante sua vida. Suas letras eram manuscritas contendo, muitas vezes, transcrições de acompanhamento de viola, deixando perceber sua filiação poética às formas nascentes da canção popular. (PERRONE, 1988, p.16) 46 Já no período do Arcadismo, o poeta brasileiro Domingos Caldas Barbosa introduziu a modinha e o lundu na corte de Lisboa, utilizando a viola para acompanhamento de suas composições. No século XIX, os poetas românticos associaram o sentimentalismo da modinha ao apelo, às emoções individuais. Estudos de José Ramos Tinhorão, que investigou a relação de figuras literárias com a prática musical do século XIX, concluíram que “a verbosidade das canções populares dos meados do século, executadas nos salões aristocráticos, se deve a uma transposição dos modelos literários vigentes” (PERRONE, 1988, p.17). Destaca-se, nesse período, o escritor Domingos Gonçalves de Magalhães, cujo nome aparece na partitura de várias composições líricas do compositor Rafael Coelho. Juntos, esses dois nomes podem representar o exemplo de parceria mais antigo no Brasil. Na segunda geração romântica, Laurindo Rabelo destaca-se pelos seus versos musicais. As letras de modinha que compôs foram compiladas em um capítulo à parte, no livro Poesias completas de Laurindo Rabelo, organizado pelo professor Antenor Nascentes, justamente por “resistirem tão bem como poesia”. No início do século XX, não faltam contribuições de poetas literários para a música popular: Goulart de Andrade, Hermes Pontes, Álvaro Moreira, Orestes Barbosa. (PERRONE, 1988) Noel Rosa (1910-1937), importante nome na música brasileira, contraria os nomes citados anteriormente, pois não tinha nenhuma ligação com o mundo literário, e mesmo assim é apontado como exemplo de qualidade literária na música popular. “O filósofo do samba” atraiu a atenção dos críticos literários pela sua genialidade e sabedoria através de versos compostos com linguagem coloquial e agilidade verbal. (PERRONE, 1988) Na década de 1950, o movimento musical intitulado Bossa Nova destaca-se pela forma elaborada, tanto do ponto de vista musical como do literário. Castilho e Schlude (2002, p.27) comentam que “Até antes da Bossa Nova (1958/59), a música era atribuída por muita gente ao cantor e não ao letrista e ao compositor, devido à falta de divulgação apropriada sobre estes últimos. Com a Bossa Nova, a poesia é personalizada. Autores passam a cantar também.” Tatit (2004, p.237) aponta que a Bossa Nova foi a primeira reviravolta musical operada integralmente no domínio da canção popular. A bossa nova de João Gilberto neutralizou a potência de voz até então exibida pelos intérpretes. A bossa nova é herdeira direta do samba-samba (samba para falar de si próprio). Gênero requintado da música brasileira, cujo criador é João Gilberto, caracteriza-se pelo padrão de ‘triagem’, uma vez que busca 47 eliminar todas as características excessivas, tanto na melodia como na letra. O estilo de João Gilberto ‘exige uma escuta contígua, quase colada’. O final da década de 1960 é marcado pelos festivais da canção que propiciaram, conforme Antonio Cândido, “vasta musicalização de poesia, que é uma das faces que ela mostra ao nosso tempo, transformando os poetas em letristas e cantadores” (PERRONE, 1988, p. 35). Desses festivais ressoou um novo nível de sofisticação das letras de canção cujos compositores se consagrariam na história da MPB. Uma das mais importantes vozes é, sem dúvida, Chico Buarque. Tatit (2004) afirma que um dos fenômenos mais importantes da história da música brasileira, o Tropicalismo, movimento liderado por Caetano Veloso, Gilberto Gil e Torquato Neto, na década de 1960, suscitou critérios de ‘mistura’ para a canção brasileira. O Tropicalismo teve papel relevante no cenário brasileiro não apenas pela significação histórica, mas pela significativa influência do movimento em gêneros musicais que ainda surgiriam. E é justamente por admitir a mistura de diversos estilos na canção brasileira que o Tropicalismo é ativado sempre que surgem formas de exclusão no mundo musical. Ou, nas palavras de Tinhorão (1986, p.267), o Tropicalismo: não deixou de cumprir seu papel de vanguarda do governo de 1964 na área da música popular: rompidas as resistências da parte politicamente consciente da classe média universitária, que tentava a defesa de uma música de matrizes brasileiras, as guitarras do som universal puderam completar sua ocupação do mercado brasileiro. E assim, a partir da década de 1970, em lugar do produto musical de exportação prometido pelos baianos com a ‘retomada da linha evolutiva’, institui-se nos meios de comunicaç