UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL KÁTIA BRASILINO MICHELAN TRÊS HISTÓRIAS DE AFONSO HENRIQUES, COMPILAÇÃO, REPRODUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DE UMA TRAJETÓRIA E DE UMA IMAGEM. FRANCA 2008 KÁTIA BRASILINO MICHELAN TRÊS HISTÓRIAS DE AFONSO HENRIQUES, COMPILAÇÃO, REPRODUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DE UMA TRAJETÓRIA E DE UMA IMAGEM. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Gradação em História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História Área de concentração: História e Cultura Social Orientadora: Profª Drª Susani Silveira Lemos França FRANCA 2004 KÁTIA BRASILINO MICHELAN TRÊS HISTÓRIAS DE AFONSO HENRIQUES, COMPILAÇÃO, REPRODUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DE UMA TRAJETÓRIA E DE UMA IMAGEM. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Gradação em História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História Área de concentração: História e Cultura Social BANCA EXAMINADORA Presidente: ____________________________________________________________ Profª Drª Susani Silveira Lemos França 1º Examinador (a):______________________________________________________ 2º Examinador (a):______________________________________________________ Franca-SP, _____de___________de 2008. Aos meus pais. Agradecimentos À professora doutora Susani Silveira Lemos França, pela primorosa orientação, paciência e confiança, muito obrigada, espero ter correspondido, pelo menos minimamente, às suas expectativas. Às professoras Ana Paula Tavares Magalhães e Heloisa Guaracy Machado, pelas contribuições no exame de qualificação. À professora Zilda Maria Mendes Folqueto, pelas pacientes aulas de gramática. Ao amigo de todas as horas Marcus Vinícius Luz Moraes, pelos cuidados com as normas da ABNT. Ao Grupo de Estudo de História Medieval, em especial aos amigos Leandro Teodoro, Michelle Tatiane Souza e Silva e Simone, pelas contribuições com bibliografias, leituras e desabafos. À Lígia Conti e Luciana Parzewski, pelas leituras e considerações sobre o projeto. Ao grupo COBRA, pelas contribuições teóricas, em especial, ao professor Jean Marcel de Carvalho França, à Elisa Maria Verona e ao Raimundo Agnelo Soraes Pessoa. Às amigas de república, Giovana Liza Suarez, Lílian Martins de Lima e Tchella Fernandes Maso, pela compreensão, companherismo e revisões da dissertação. À minha irmã Meire Brasilino Michelan, pelo auxílio com o francês. À CAPES/UNESP-Franca, pela bolsa concedida. O fruto das letras é, por muitas razões, o mais aprazível, principalmente porque, suprimido o empecilho de qualquer separação espacial e temporal, elas exibem aos amigos a presença mútua, e não permitem que pereçam com o tempo as coisas dignas de lembrança. Pois até as artes teriam perecido, os juramentos ter-se-iam esvaído, todos os ofícios de qualquer religião teriam ruído, e o próprio uso da boa expressão ter-se-ia corrompido, se a misericórdia divina não tivesse providenciado para os mortais o uso das letras como remédio para a fraqueza humana. O exemplo dos antigos, a exortação e incentivo da virtude, não erigiria nem conservaria absolutamente nada, se a solicitude piedosa dos escritores e o zelo, vencedor do descuido, não tivessem transmitido aos pósteros. John of Salisbury, Policraticus (1159). RESUMO A presente pesquisa tem como proposta comparar três versões da história do primeiro monarca português, D. Afonso Henriques (1109-1185), que se encontram nas seguintes crônicas: Crónica Geral de Espanha de 1344, preparada pelo conde D. Pedro de Barcelos, Crónica de Portugal de 1419, anônima, mas atribuída por alguns estudiosos a Fernão Lopes, e Crónica de El-Rey D. Afonso Henriques, compilada por Duarte Galvão em 1505. O objetivo do confronto é pôr em evidência três versões de séculos diferentes de uma mesma história, para, assim, tentar notar as atualizações do passado que cada cronista realiza, a despeito de estruturarem seus textos a partir do recurso da compilação. Esta interrogação específica encontra-se norteada por um objetivo mais geral que é o de indagar sobre os parâmetros do fazer histórico no final da Idade Média e, para tanto, serão desdobrados nos capítulos da dissertação alguns temas incontornáveis para se entender as especificidades desse fazer histórico: as práticas de leitura possíveis entre os cronistas, o papel da compilação na construção das suas narrativas, a verdade histórica pretendida pelos cronistas, a noção de tempo nas crônicas, os diálogos dos cronistas com o seu tempo e os objetivos que norteiam cada uma das elaborações selecionadas. Em suma, o que se pretende é entender a construção da história de D. Afonso Henriques em três tempos diferentes, levando em conta que o fazer cronístico era a forma por excelência de registro do passado do século XII ao século XV. PALAVRAS CHAVES : Idade Média, Portugal, Fazer Histórico, Crônicas, Arquivos. ABSTRACT The research has as proposal to comapare three versions fo the history of the first portuguese king, D. Afonso Henriques (1109-1185), which are found in the following chronicles: Crónica Geral de Espanha de 1344, prepared by D. Peter Barcelos’ earl, Crónica de Portugal de 1419, attributed by some writes to Fernão Lopes, and Crónica de El-Rey D. Afonso Henriques, compiled by Duarte Galvão, in 1505. The objective of the comparison is to emphasize three versions of the same history from different centuries to, thus, try to notice the updates of the past that each chronicler accomplishes, despite structuring their texts from the source of compilation. This specific inquiry is oriented by a wider objective, which is to ask about the patterns of the historic labor of the late Middle Age and, for that, some themes will be developed in the elapse of the chapters, such as: the possibilities of the chroniclers’ reading, the role of the compilation in their narratives, the historical truth pretended by the chroniclers, the time organization in the chronicles, the values of the writing time of the chronicles and the objectives of their elaborations. In sum, the wanted is to understand the construction of the history of D. Afonso Henriques in three different times, knowing that the chronicles’ labour was the form for excellence for talk about of the past, from the 12th to the 15th centuries. Key words: Middle Age, Portugal, Historic Labor, Chronicles, Files. SUMÁRIO Introdução..........................................................................................................................10 Capitulo 1 Uma história montada e remontada ............................................................................... 14 Capítulo 2 O passado como exemplo nas crônicas medievais portuguesas ................................... 38 Capítulo 3 Percursos históricos na consolidação de um fundador da nacionalidade ................... 65 Conclusão ........................................................................................................................ 104 Bibliografia ...................................................................................................................... 107 10 Introdução [...]E outra maneira hy há de seguir em que non segue as palavras. Fazem as outras rimas iguais daquelas pera poderem caber no son, mais outra daquela cantiga que seguem non devem de tomar ou meter: fazem lhe dar aquele entendimento meesmo per outra maneira; e, pera maior sabedoria, pode lhe dar aquele meesmo em outro entendimento per aquelas palavras meesmas; asy he a melhor maneira de seguir, porque dá ao refran outro entendimento per aquelas palavras meesmas e tragem as palavras da cobra a concordarem com el.1 O Cancioneiro da Biblioteca Nacional traz alguns exemplares de um tipo de cantiga pouco estudada pela historiografia,2 a saber, as Cantigas de Seguir. Tratavam-se essas de cantigas que parafraseavam cantigas anteriores e destinavam-se a servir de modelo para serem reelaboradas por cantadores posteriores, que mudavam as rimas, mas seguiam alguns versos primitivos. Outro objetivo das cantigas era trazer ensinamentos sobre a arte de trovar, ou seja, tais cantigas eram exemplares de um jogo de recepção de escritos alheios e readaptação com novos motivos que foi corrente na produção escrita e oral ao longo da Idade Média. O modelo de reutilização de fontes anteriores, que caracterizava a arte trovadoresca medieval e que é a base das Cantigas de Seguir, é também um elemento fundamental no fazer histórico do final do medievo no reino de Portugal, mais especificamente nos séculos XIV, XV e início do século XVI, quando tem lugar os primeiros exemplares da escrita da história na forma cronística e em língua vernácula. A compilação, como será desdobrado no primeiro capítulo, era a forma por excelência da produção cronística medieval, que utilizava uma fonte principal e agregava a ela outros documentos que pudessem oferecer informações verdadeiras sobre o passado. Esse tipo de composição, contudo, não era uma peculiaridade da produção histórica, pois, além das crônicas e dos referidos cantares, os tratados de diversa natureza também conservavam e ampliavam os saberes através da manutenção e recuperação de modelos anteriores. 1 Apud. WILTON, C. Da Cantiga de Seguir. No Cancioneiro Peninsular da Idade Média. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1977. p. 32. Transcrição diplomática de Enrico Molteni _ II Cazoniere Portoghese Colocci-Brancurti, Halle, 1880, os 3 e 4, e do facsímle do códice reproduzido por Elza Paxeco Machado e José Pedro Machado – Cancioneiro da Biblioteca Nacional, vol I, Lisboa, 1949. 2 Ibid., p. 30. 11 A preocupação deste trabalho, entretanto, se restringe em pensar a compilação apenas no âmbito do fazer histórico cronístico português entre os séculos XIV, XV e início do XVI, principalmente no que se refere à consolidação das origens da história do reino, com a narração da história do reinado de D. Afonso Henriques, primeiro rei português. Para tal, foram selecionadas três crônicas em língua vernácula que contam a história do monarca: a Crónica Geral de Espanha de 1344, a Crónica de Portugal de 1419 e a Crónica de El-Rey D. Afonso Henriques, de 1505. O objetivo do confronto é pôr em evidência três versões de séculos diferentes de uma mesma história, para assim, perceber as atualizações do passado que cada cronista realiza. A Crónica Geral de Espanha de 1344, como consideram vários pesquisadores,3 foi a primeira grande composição cronística de origem portuguesa. Trata-se de uma versão, como propõe Lindley Cintra, em português, da Crónica Geral de Espanha, que o rei Afonso X mandara executar na segunda metade do século anterior, porém com várias alterações e ampliações em relação ao texto primitivo.4 A compilação é atribuída a Pedro Afonso, conde de Barcelos. A edição de Lindley Cintra, no entanto, foi elaborada a partir da refundição de 1400, de autoria anônima, pois não teria sido conservado nenhum manuscrito da primeira versão. Quanto ao conteúdo, a composição segue o ideário de uma história ibérica na qual conflui e se dimensiona o passado dos diversos reinos cristãos da Reconquista, incluindo o de Portugal. A crônica conta a história dos reis portugueses incluindo-a na história geral da Península em situação paralela à da história dos reis de Navarra e de Aragão.5 No que diz respeito à elaboração formal da crônica, ela imita o processo de compilação afonsina, repetindo informações oriundas de distintas fontes.6 As histórias relatadas na Crónica Geral de Espanha de 1344, na edição de Lindley Cintra, estão distribuídas em oitocentos e 3 Dentre os pesquisadores que consideram a Crónica Geral de Espanha de 1344 a primeira compilação histórica portuguesa podemos destacar: BASTO, M. Estudos. Cronistas e Crônicas Antigas, Fernão Lopes e a “Crónica de 1419”. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1960; FIGUEIREDO, F. A imagem do Inimigo à Construção do Herói: O reinado de Afonso Henriques na Crónica de Cinco Reis de Portugal. In: AMADO, Teresa. (org). A Guerra até 1450. Lisboa: Quimera, 1994; CINTRA, L. F. L. CINTRA, Luis Felipe Lindley. Introdução. In: Crônica Geral de Espanha de 1344. Edição Crítica do Texto Português. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol I: 1951, vol II: 1954, vol III: 1964, vol. IV: 1990. 4 CINTRA, L. F. L. CINTRA, Luis Felipe Lindley. Introdução. In: Crônica Geral de Espanha de 1344. Edição Crítica do Texto Português. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Vol I: 1951, vol II: 1954, vol III: 1964, vol. IV: 1990. 1951, p. CDXII-CDXIV. 5 Ibid., p. CDXIX. 6 KRUS, L. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: LANCIANI, G.; TAVANI, G. Dicionário da Literatura Medieval Galega e portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1997, p. 190. 12 cinqüenta e sete capítulos, dos quais dez capítulos abordam a história do primeiro rei português.7 A Crônica de Portugal de 1419, por sua vez, é considerada a primeira crônica portuguesa em que se nota mais claramente a intenção de destacar a história do reino português em relação aos demais peninsulares.8 Essa crônica ficou conhecida através de dois manuscritos tardios, datáveis do século XVI. O primeiro, encontrado por Artur de Magalhães Basto na biblioteca pública do Porto, em 1942, continha as histórias dos cinco primeiros reis portugueses. Por isso, a transcrição diplomática publicada por Basto, em 1945, recebeu o nome de Crónica de Cinco Reis de Portugal.9 O segundo manuscrito foi descoberto, em 1943, pelo Padre Carlos da Silva Tarouca,10 na biblioteca pública da Casa de Cadaval, em Muge. Este manuscrito contava a história dos sete primeiros reis portugueses (de D. Henrique até Afonso IV), sendo que o prólogo e alguns capítulos da história de D. Afonso Henriques foram incorporados ao manuscrito por um copista do século XVI, a partir da Crónica de El-Rey D. Afonso Henriques de Duarte Galvão. Tanto Arthur de Magalhães Basto quanto Carlos da Silva Tarouca, dentre outros, atribuíram a autoria da crônica a Fernão Lopes, mas Adelino de Almeida Calado,11 Hernâni Cidade,12 Costa Pimpão,13 Antônio Brasio,14 A. H. de Oliveira Marques,15 para mencionar apenas alguns nomes, preferem não arriscar um nome para a composição da crônica e deixá-la no anonimato. Todos esses estudiosos são unânimes quanto à importância dessa fonte para a historiografia portuguesa do século XV e Adelino de Almeida Calado, em sua edição crítica, chama a atenção para a irrelevância da questão da autoria da crônica, dizendo que a crônica não ganharia mais significado do que já lhe é atribuído, sendo o autor Fernão Lopes ou não.16 7 As histórias do reinado de Afonso Henriques encontram-se desde o capítulo DCCV, que trata da descendência dos reis de Portugal, até o capítulo DCCXIV, com a morte de Afonso Henriques 8 CALADO, A. de A. Crónica de Portugal de 1419. Edição Crítica com Introdução e Notas. Aveiro: Universidade de Aveiro, 1998. p. XXXVIII. 9 Crónica de Cinco Reis de Portugal, seguida da parte da Crônica Geral de Espanha que insere as histórias dos Reis de Portugal. Edição e apresentação Artur Magalhães Basto. Porto: Livraria Civilização, 1945. 10 Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, ed. crítica de Carlos da Silva Tarouca, 3 vols. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1952. 11 CALADO, A. de A., op. cit., p. XXXVIII. 12 CIDADE, H. Recensão crítica a Fernão Lopes de M. Basto, na “Revista da Faculdade de Lisboa”, Lisboa, 2ª série, t. 10, nº 3, 1944, p. 319-321. 13 COSTA, P. História da Literatura portuguesa: Idade Média, Coimbra, Atlântida, 1959, p. 224. e COSTA, P. Terão aparecido as crônicas perdidas de Fernão Lopes? Biblos, 27, 1951, p. 39-40. 14 BRÁSIO, A. Algumas observações sobre autoria das chamadas “Crónica de cinco” e “dos sete reis” tiradas da crítica interna. “Anais” da Academia Portuguesa da História. II série, vol 9, 1959, p. 66. 15 MARQUES, A. H. O. Artº Fernão Lopes no Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, Porto, Fogueirinhas, 1989. 16 Cf. CALADO, A. de A. 1998, op. cit., p. XLI. 13 Neste trabalho, a edição utilizada foi a de Artur Magalhães Basto, no entanto, ao invés de nomeá-la como Crónica de Cinco Reis, como proposto por Basto, optei pelo título mais conhecido de Crónica de Portugal de 1419.17 A data da composição da crônica, 1419, mostra que esta estaria ligada à afirmação da recém fundada dinastia de Avis, fazendo parte de uma suposta Crónica Geral de Portugal que se teria perdido ou não teria sido concluída. O texto referente à história de D. Afonso Henriques é composto por 40 capítulos que narram a vida de Afonso Henriques e um capítulo que se refere ao seu pai D. Henrique. A Crónica de El-Rey D. Afonso Henriques de Duarte Galvão é formada por 60 capítulos, que contam a história do primeiro rei português, mas incluindo a história do conde D. Henrique. A grande peculiaridade da crônica de Duarte Galvão é o acréscimo do prólogo dedicado ao rei D. Manuel, uma forma de cantar as glórias do rei, patrono da obra, como era comum no seu tempo.18 Nesse sentido, o prólogo consiste numa dedicatória, em que o cortesão presta homenagem à grandeza de D. Manuel exaltando seu heroísmo de novo cruzado que abrira para o mundo novos caminhos a serem percorridos e cristianizados. Além dessas fontes principais condutoras, alguns outros cronistas também se mostraram importantes para se entender o fazer histórico do período medieval, como Gomes Eanes de Zurara e Rui de Pina. No percurso de indagação acerca do fazer cronístico medieval, o primeiro capítulo será destinado a examinar o tipo de fazer histórico dos cronistas medievais portugueses. A ênfase recairá sobre a análise das possibilidades de leitura do período, ou seja, como se davam as escolhas dos textos para compor as crônicas, como se desenvolveu o processo de acesso à leitura e que tipos de textos eram comumente lidos. O capítulo traz igualmente um panorama sobre o papel do livro manuscrito, divulgador por excelência da palavra escrita durante o medievo, bem como sobre a emergência da tipografia e a ampliação das possibilidades de acesso ao livro. O segundo capítulo procura pensar a questão do tempo e da verdade nas obras cronísticas e o terceiro capítulo tem como objetivo demonstrar, através da comparação entre as três crônicas sobre Afonso Henriques, como as questões desenvolvidas nos capítulos anteriores surgem nos textos selecionados. Assim, nele será realizada uma análise comparativa dessas crônicas, com destaque para a visão de história de cada uma, bem como para os diferentes momentos históricos a que pertence cada uma. 17 AMADO, T. Crónica de Portugal de 1419. In: LANCIANI, G.; TAVANI, G. Dicionário da Literatura Medieval Galega e portuguesa. Lisboa: Editoral Caminho, 1997. 18SERRÃO, J. V. A Historiografia Portuguesa. Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 134. 14 Capitulo 1 Uma história montada e remontada. Por cuja rrezam o dito Fernam Lopez despendeo muito tempo em andar per os mosteiros e jgreias buscando os cartórios e os letreiros dellas pera auer sua enformaçam. e nam ajnda em este rreino mas ao rreino de Castella mandou elRey Duarte buscar muitas escreturas que a esto pertençiam. por quanto seu desejo nam era que os feitos de seu padre fossem escritos senom muy verdadeiramente.1 O cronista oficial do reino de Portugal Gomes Eanes Zurara (1410 – 1474), no prólogo da Crónica da Tomada de Ceuta (1453), ao justificar a demora para iniciar a escrita da história do reino português, destaca que o seu antecessor, Fernão Lopes (1380? – 1459), sob as ordens do rei D. Duarte (1391-1438), teve um árduo trabalho peregrinando por igrejas, mosteiros e cartórios à procura de letreiros e escrituras que pudessem oferecer informações verdadeiras sobre o passado português.2 O trecho escrito por Zurara relata uma prática corrente no fazer histórico dos séculos XIV e XV nos diversos reinos europeus que se constituíam como nações3: a submissão à vontade da coroa, que encomendava a crônica e financiava sua elaboração. A passagem adianta também algo acerca da atitude do cronista, que se serve de documentos oficiais para melhor elaborar a sua história dentro dos parâmetros de verdade de seu tempo. O que Zurara procura, no prólogo da Crónica da Tomada de Ceuta, é menos enaltecer o primeiro cronista, e mais fornecer informações sobre a empreitada a que se dedicava, a saber, continuar a história de D. João I (1357 – 1433) iniciada por Fernão Lopes, enfatizando o episódio da Tomada de Ceuta (1415). Tal atitude era bastante corriqueira no trabalho dos cronistas medievais portugueses, que normalmente destinavam 1 ZURARA, G. E. Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I. Org. PEREIRA, F. M. E. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1915, p. 12-13. 2 A citação do início do texto se refere, especificamente, à elaboração por Fernão Lopes da crônica sobre o rei D. João I (1357-1433), pai de D. Duarte. 3 Cf. GUENEÉ, B. O Occidente durante los siglos XIV y XV. Los Estados. Barcelona: Editorial Labor, 1973, p. 5. 15 os prólogos a engrandecer o alvo da crônica e a dissertar sobre seu próprio trabalho compilatório. Antes de Zurara, já Fernão Lopes tinha feito o mesmo, por exemplo, no prólogo da Crónica de D. Pedro I (1320-1367), dedicado a exaltar a virtude deste rei de primar pela justiça; ou nos prólogos da Crónica de D. Fernando (1345-1383), em que engrandece as qualidades deste rei, apresentando-o como grande cavaleiro e criador de fidalgos; e na Crónica de D. João I, em que o define como um rei muito virtuoso e de boa memória. Fernão Lopes foi o primeiro cronista oficial do reino português a quem coube organizar as primeiras crônicas sobre os reis de Portugal. É ele assumidamente autor das referidas Crónica de D. Pedro, Crónica de D. Fernando e Crónica de D. João I4, e alguns autores atribuem a ele, também, a autoria da conhecida Crónica de 1419.5 Até a primeira metade do século XVI, Fernão Lopes era praticamente um desconhecido,6 mas depois do século XIX, a crítica literária e os historiadores portugueses, em geral, consagraram-no como o grande cronista português, principalmente depois de Alexandre Herculano (1810-1877), que atribui a ele o título de “pai da história portuguesa”.7 Segundo Artur de Magalhães Basto, depois da menção do nome de Fernão Lopes no prólogo de Zurara, o mesmo só será lembrado novamente na segunda metade do século XVI, quando o cronista oficial Damião Góis (1502-1574) acusa Rui de Pina (1440-1552), sucessor de Zurara, de ter se apropriado das crônicas do primeiro cronista oficial português. Foi, a propósito, principalmente a partir da acusação de Damião de Góis, dentre outras informações, que o pesquisador Magalhães Basto apontou que Fernão Lopes escreveu as histórias da primeira dinastia – manuscrito anônimo encontrado em 1942 pelo próprio Basto na Biblioteca Pública do Porto. Concluiu também que, posteriormente, Rui de Pina teria compilado desse manuscrito as histórias de D. Sancho I (1152-1211), D. Afonso II (1185-1223), D. Sancho II (1207-1248), D. Afonso III (1210-1279), D. Denis (1261-1325) e D. Afonso IV (1291-1357).8 Só a compilação da história de D. Afonso 4 O rei D. João I faz parte da segunda dinastia dos reis portugueses, a dinastia de Avis. 5 A Crónica de 1419 é formada pelas histórias do Conde D. Henrique, do primeiro rei português D. Afonso Henriques, D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II, Afonso III, D. Denis e D. Afonso IV. A Crónica de 1419 também é conhecida como Crónica de Cinco Reis e ou de Sete Reis, no primeiro caso, o fragmento contém a história do reinado de Afonso Henriques até Afonso III, no segundo contém as histórias dos sete reis da primeira dinastia como mencionado acima. O manuscrito encontrado por Magalhães Basto contém as histórias dos cinco primeiros reis, porém, o autor admite que o que encontrou foi um fragmento de um texto maior, contendo a história da primeira dinastia. Falar quem atribui 6 Cf. BASTO, M. Estudos. Cronistas e Crônicas Antigas, Fernão Lopes e a “Crónica de 1419”. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1960, p. 359. 7 HERCULANO, A. Opúsculos. Lisboa: Imprensa Portugal, s/d, p. 5. 8 Além dessas, corre com o nome de Rui de Pina as crônicas de: D. Duarte, D. Afonso V e D. João II, da dinastia de Avis. 16 Henriques (1109-1185) teria sido encomendada ao seu contemporâneo, o guarda-mor da Torre do Tombo Duarte Galvão (1435-1517), que usou como base o mesmo manuscrito, como será desenvolvido mais adiante. Embora essa forma de retomada de escritos anteriores por parte de Duarte Galvão e Rui de Pina tenha levado alguns estudiosos9 a discutirem a suposta idéia de plágio, vale aqui destacar que o pressuposto de um nome próprio dando autoridade autoral aos textos escritos,10 que é tão cara para os leitores modernos, não constituía uma prática incontornável durante o período medieval. Não há nesse tempo uma definição para o que seja um sujeito autor, dado que a cópia era a forma por excelência de manutenção do escrito e conseqüentemente de preservação dos saberes, como bem descreve o franciscano São Boaventura (1221 -1274), no século XIII: um homem pode escrever as obras de outros, sem qualquer acréscimo ou alteração, e nesse caso ele será chamado simplesmente um “escriba” (scriptor). Um outro escreve os trabalhos de outros, com adições que não lhe são próprias; será então chamado de “compilador” (compilator). Um terceiro escreve tanto obras suas como alheias, mas dando o principal lugar à alheia, e reservando a sua própria para fins de explicação; será então chamado um “comentador” (commentator) [...] Um último escreve tanto obra sua como alheia, mas reservando o lugar principal para a sua e juntando a de outros para fins de confirmação; tal homem será chamado de “autor” (actor).11 Ou seja, em nenhum dos casos está pressuposta a idéia de originalidade, já que, para os medievais, narrar significa reescrever.12 Assim, quando Rui de Pina e Duarte Galvão usaram crônicas anteriores, nada mais fizeram do que seguir uma prática dominante no período.13 No entanto, provavelmente na época do autor que cogitou sobre o plágio, Damião de Góis – segunda metade do século XVI –, já era problemático copiar escritos alheios sem dizer a procedência, por isso a acusação que o mesmo lança sobre Rui de Pina. O gênero cronístico medieval, a propósito, não valoriza o nome do escritor do texto, pois o texto resulta de um gesto de escrita no qual o ato de contar é anônimo, porque 9 Joaquim de Carvalho analisando a idéia de que Zurara teria plagiado o livro da Virtuosa Benfeitoria do Infante D. Pedro, aponta que, antes de mais nada, não se pode considerar estes supostos plágios com os nossos sentimentos atuais de propriedade literária, cujas origens são modernas. E mais, adianta que, no tempo de Zurara, não havia preocupação com originalidade, mas de ser completo e verdadeiro, não importando se a verdade – ou o que se supunha como tal – tivesse sido descoberta e formulada anteriormente. Zurara, não cometeu às escondidas tais “plágios”: usou de uma prática consentida pela consciência literária de então. Cf. CARVALHO, J. Estudos sobre a cultura portuguesa do século XV. Lisboa: Por ordem da Universidade, 1949, p. 4, 193. 10 A idéia de um nome próprio garantindo propriedade jurídica autoral, juntamente com a idéia de plágio, surge, segundo Foucault, somente no século XIX, mas a presença um indivíduo autor garantindo unidade a uma obra começa a emergir por volta do século XVI com o processos inquisitoriais, quando passou-se a procurar e a punir responsáveis pela escrita. FOUCAULT, M. O que é um autor? Lisboa: Veja, 1992. 11 Comentários de São Boaventura ao segundo Livro das Sentenças de Pedro Lombardo, apud MINNIS, A. J. Medieval Theory of Authorship, Adershot: Wilwood House, 1988, p. 94. [tradução minha] 12 Cf. GUREVITCH, A. As categorias da Cultura Medieval Lisboa: Editorial Caminho, 1991, p. 19. 13 Cf. GUENEÉ, B. Histoire el culture historique dans l’Occident medieval. Paris: Aubier, 1991, p 70. 17 o que importa é a conservação dos acontecimentos notáveis e não o destaque para quem sucessivamente os relata na forma histórica.14 Desse modo, o comum ou regular era que não houvesse remissão direta às fontes anteriores. Fernão Lopes, Duarte Galvão e Rui de Pina foram os cronistas do fim do medievo que escreveram sobre a primeira dinastia dos reis de Portugal, assim, são os responsáveis por compor a história da formação e da consolidação do reino. Nesse processo compilatório, o cronista da Crónica de 1419 usara amplamente esse recurso na sua elaboração, baseando-se enormemente na parte da Crónica Geral de Espanha de 1344 referente ao reino português. Essa crônica fora elaborada pelo cortesão D. Pedro de Barcelos (1287-1354) e é considerada pela historiografia o primeiro exemplar cronístico escrito em língua portuguesa, que sobreviveu ao tempo, tratando-se de uma versão da Primeira Crônica Geral elaborada por Afonso X (1221-1284), o Sábio, rei de Castela e Leão (1252-1284), bisavô de D. Pedro e um dos reis que melhor traduziu, no final da Idade Média, a idéia de que um rei deveria ser, além de cavaleiro, sábio e impulsionador dos saberes escritos.15 Na crônica de Pedro de Barcelos, surge espaço para uma história do Condado Portucalense e do Reino de Portugal, independente da narrativa sobre Castela. Dentro da perspectiva de que foi através da compilação de textos antigos que se iniciou a escrita da história da formação do reino português, é importante pensar como era elaborado um texto de caráter compilatório. Segundo o historiador francês Bernard Gueneé, o que um compilador fazia era “escolher a fonte principal e acrescentar-lhe breves passagens de outras fontes, ou, ao contrário, combinar em partes iguais vários relatos anteriores, optar aqui por uma fonte, ali por outra; decidir aqui por abreviar, ali por seguir o texto ao pé da letra [...]”,16 portanto, era necessária certa erudição por parte do compilador para saber qual a melhor escolha e a melhor forma de arrematar o texto. Além desse tipo de fazer histórico baseado amplamente na compilação, outro dado fundamental sobre a produção cronística portuguesa dos séculos XIV e XV é que as obras de origem laica eram elaboradas por encomenda de um membro da casa real, não sendo o cronista mais do que um funcionário da corte, como é o caso de Fernão Lopes, 14 Sobre a questão, ver FOURNIER, A. A primeira parte da Crónica Geral de Espanha de 1344: o texto e a sua construção. Tese (Mestrado em Letras). Lisboa: Faculdade de Letras/ Universidade Clássica de Lisboa, 1996, p. 69. 15 Cf. VERGER, J. Homens de Saber na Idade Média. Bauru: Edusp, 1999, p. 177. 16 GUENEÉ, B. História. In: LE GOFF, J. e SCHIMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. 2 vols. Vol. I. Bauru: Edusp, 2002, p. 537. 18 Zurara, Duarte Galvão e Rui de Pina, ou então, de alguma forma, estava ligado à corte, como é o caso de D. Pedro de Barcelos. 17 O historiador Rodrigues Lapa, em seu estudo sobre os historiadores quinhentistas, acredita que só é possível falar destes em comparação com os cronistas medievais, pois, para ele, características como a temática e os métodos para assegurar a pretendida verdade dos fatos são fundamentalmente diferentes de uns para outros.18 Dessa forma, Fernão Lopes, Gomes Eanes de Zurara, cronistas do século XV, e Rui de Pina, Duarte Galvão e Garcia de Resende (1470-1536), cronistas do limiar do século XVI, mereciam o rótulo de quatrocentistas, enquanto João de Barros (1496-1570), Damião de Góis, Jerônimo Osório (1506-1580), Fernão Lopes de Castanheda (1500-1559) e Gaspar Correia (1495-1571), a despeito da proximidade temporal com os últimos citados, seriam, sim, justificadamente, historiadores quinhentistas, tanto na forma de escrita, quanto na temática voltada para a expansão ultramarina. A diferenciação, ainda que simplificada, toca no deslocamento temático que justifica que este trabalho se detenha no primeiro conjunto de cronistas. A proposta aqui é pensar os cronistas medievais que escreveram sobre os reis portugueses da primeira dinastia, assim, além dos citados, foi incluído o cronista cortesão D. Pedro de Barcelos, cujo texto serviu de base para a Crónica de Portugal de 1419, e foram deixados de lado Zurara, em razão de suas crônicas serem sobretudo experiências de expansão, e Garcia de Resende, que só escreveu uma crônica sobre a segunda dinastia portuguesa, a Crónica de D. João II. Partindo da idéia de que a compilação era a forma por excelência do fazer cronístico medieval, a preocupação fundamental deste trabalho é entender tal tipo de labor histórico, no qual o cronista seleciona, recorta e reescreve seu texto a partir de uma fonte condutora. Assim, algumas questões se tornam oportunas: qual o papel da leitura nas produções cronísticas mencionadas? Quais as possibilidades de leitura dos cronistas medievais? O que as crônicas explicitam sobre o que liam os cronistas para compô-las? Os cronistas eram leitores diferenciados de outros leitores de seu tempo? O que significava ser um leitor nos séculos XIV e XV, quando ainda era restrita a circulação de livros? Que tipos de textos os cronistas compilavam? Enfim, quais os processos de escolha, seleção e arremate da compilação de acordo com as possibilidades de leitura do tempo? No que diz respeito ao objetivo geral, vale ressaltar que, em se tratando de leitores medievais, a forma 17 O compilador da Crónica Geral de Espanha de 1344, D. Pedro de Barcelos, não era cronista oficial, mas sim um cortesão. No caso de Duarte Galvão, ele nunca chegou a ser cronista-mor da Torre do Tombo, mas ocupou o cargo de guarda-mor, que era um cargo régio. 18 Cf. LAPA, R. Introdução. In: LAPA, R. (Org). Historiadores Quinhentistas. Lisboa: Seara Nova, 1972. 19 como “dialogam” com os textos alheios, apesar da freqüente não explicitação da autoria, não é difícil de ser percebida, pois os mesmos transcrevem inteiramente os documentos em seus textos ou os readaptam, mas mantendo-se bastante presos. Através do cotejo com textos anteriores, podem-se notar as formas de manipulação e os tipos de utilização das crônicas precedentes. Quanto às possibilidades de leitura, é importante lembrar que o livro19 é um elemento fundamental para pensá-las, principalmente depois do século XVI, pois, como aponta Roger Chartier, “o único indício do uso do livro é o próprio livro”,20ou seja, é na materialidade do livro que se pode pensar que ele foi lido. Se não é desse formato que dispuseram os leitores medievais, que tipos de registros materiais estavam disponíveis no Quatrocentos português? Em outras palavras, importa perguntar que oportunidades de leitura tinham os cronistas, sem supor que o contexto livresco foi fundamental para eles. O fim do século XV e o início do século XVI testemunharam o advento de uma das mais importantes mudanças no universo da leitura, a invenção da imprensa de tipos móveis, que paulatinamente substituiu o texto manuscrito. O manuscrito, sem dúvida, triunfou como o grande divulgador da palavra escrita no medievo e não o deixa de ser de uma hora para outra. Os textos manuscritos eram produzidos tanto como peças soltas quanto organizadas em formato de livro, e tinham como suporte material o pergaminho ou o papel. O pergaminho, material amplamente difundido desde o século V, provinha da pele do carneiro ou da cabra. De uma pele cortavam-se, geralmente, dezesseis folhas. O trabalho para preparar a pele não era simples; depois de colocada em solução de cal (para tirar a gordura), devia ser secada, esfregada e polida.21 A escassez de pergaminho era tanta que, por vezes, eram usadas técnicas de abreviaturas, proporcionando escrever mais em pouco espaço – fato do qual reclamaram os gramáticos do século XVI.22 A difusão do papel ocorreu na Península Ibérica somente a partir do século XII, segundo Jacques Verger,23 porém, foi no fim do século XIV e no século XV que o seu uso se expandiu consideravelmente no tipo manuscrito. Em certa medida, tal difusão permitiu baixar o preço da fabricação dos manuscritos. No contexto francês, por exemplo, o já citado Jacques Verger afirma que o papel podia tornar-se “cinco vezes mais barato que o 19 Para o período medieval, em geral, entendia-se por livro o conjunto de folhas, manuscritas ou impressas, normalmente dobradas e cosidas, devidamente organizado para leitura do seu conteúdo. Cf. BUSTAMANTE. Livro. In: Lanciani, G.; Tavani, G. (org) Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1993. 20 CHARTER, R. Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 103 21 SARAIVA, A. J. História da cultura em Portugal, vol I. Lisboa: Jornal do Foro, 1950, p. 76. 22 Cf. MARQUES, O. A sociedade Medieval Portuguesa. Lisboa: Sá Costa Editora, 1971, p. 175. 23 VERGER, J. Os Livros da Idade Média Disponível em: . Acesso em: 28.mar.2007. 20 pergaminho no século XIV e até trezes vezes mais barato no século XV, graças à melhoria das técnicas de papelaria e à multiplicação das oficinas de papel”;24 em algumas regiões, contudo, como na Alemanha, a diferença foi bem menor. No fim do século XIV e no século XV, o uso do papel se expandiu consideravelmente no tipo manuscrito, mas, apesar das potencialidades do papel em algodão, o pergaminho, por sua durabilidade maior, não deixou de ser utilizado durante um bom tempo, ainda mais porque a técnica de preparação do papel consolidou-se somente no auge da impressa, quando os livros se tornam mais portáteis, mais procurados e mais abundantes, isto é, a partir de meados do século XVI. Artur Anselmo aponta ainda que, mesmo com a utilização do papel nos manuscritos, “o seu aspecto algodoado e fungível relegava-o para a conservação de textos de importância secundária”.25 Durante boa parte da Idade Média, além do preparo do material de escrita – papel ou pergaminho –, um texto manuscrito requeria um copista habilidoso que depois de riscar com um lápis aquilo a que chamamos de mancha, (o espaço destinado às letras) e as linhas, tomando o raspador numa mão e a pena de ave na outra, traçava minuciosamente os caracteres, deixando em claro as iniciais e o espaço para as decorações. Outro artista vinha encher esses espaços em branco desenhando grandes iniciais muito enfeitadas a vermelho, azul, verde, por vezes ouro e prata; outro, ainda pintava ornamentações, em certos casos pequenos quadros do assunto relacionado com o texto.26 O custo desse trabalho habilidoso e a referida escassez de material levavam a que o livro, como propõe Artur Anselmo, fosse considerado “não só um veículo privilegiado da transmissão do saber, mas também um objeto de alto valor material, cimélio a que se emprestava o requinte próprio da obra-de-arte, graças à conjugação de esforços entre copistas, calígrafos e iluminadores”.27 Determinar o custo que tinha o livro para a época é, contudo, bastante complicado,28 tanto que Jacques Verger, pensando o livro no contexto geral europeu, aponta que o preço desse era bastante variado, sendo os mais caros, geralmente, grandes Bíblias e volumes glosados. Esses belos manuscritos preservados em 24 VERGER, J. Os Livros da Idade Média Disponível em: . Acesso em: 28.mar.2007 25 ANSELMO, A. Estudos de História do Livro. Lisboa: Guimarães Editores, 1997. p. 11. 26 SARAIVA, A. J. História da cultura em Portugal, vol I. Lisboa: Jornal do Foro, 1950. p. 76. 27 ANSELMO, A. op. cit.,. p. 12. 28 Para se ter uma idéia dos custos dos livros, a consideração de José Saraiva, em a História da Cultura em Portugal, é bastante elucidativa: “um bispo do Porto em 1269 deixou ao tesoureiro do cabido 50 maravedis para comprar um Código legal, e outros 50 maravedis a um sobrinho para comprar umas Decretais. Para dar uma idéia destes preços lembramos que, segundo uma lei de tabelamento promulgada dezesseis anos antes, I maravedi era o preço de quatro carneiros vivos, ou um porco grande; 3 maravedis era o preço de um boi dos melhores. Assim cada um dos livros a que se refere o testamento do citado bispo valia tanto aproximadamente como 17 bois; ou 50 porcos; 200 carneiros.” Embora o relato descrito seja do século XIII, não se pode recusar o valor oneroso do livro mesmo que os preços tenham caído até o início do século XVI. Cf. SARAIVA, A. J. op. cit., p. 79. 21 certas bibliotecas particulares, no entanto, destinavam-se mais ao prestígio de seus destinatários do que à leitura propriamente dita. Além dos manuscritos de alto custo, existiam também “inúmeros pequenos volumes, por vezes sob a forma de simples cadernos soltos, nos quais anexavam ‘anotações’ de cursos, alguns fragmentos de questões disputadas, de sermões, de breves tratados práticos etc., que eram vendidos por algumas moedas”.29 Esses livros eram destinados a um uso mais cotidiano, por isso seu custo mais baixo, porém, é complicado especificar até que ponto à posse de um livro correspondia a um leitor, mesmo porque o acesso ao livro não implicava necessariamente em leitura, porque a maioria da população era iletrada, inclusive alguns possuidores de livros. Segundo Oliveira Marques, por aproximação que seja, não se sabe quantos teriam sido os estudantes no período medieval em Portugal, mas “naturalmente muito poucos”,30 segundo ele. O papel do manuscrito como mercadoria não deve ser superestimado, pois, como aponta Aires do Nascimento, “não houve em Portugal durante a Idade Média produção sistemática do livro manuscrito destinada ao comércio livreiro nem tão pouco este aparece assegurado para responder a necessidades de eventuais clientes”.31 O livro circulava, dessa maneira, sob a forma de empréstimos, por transmissão direta, em casos de doação ou testamento, ou por encomenda em algum scriptorum, o que significava um custo elevado.32 Em suma, em pequena escala e atendendo a interesses pontuais. Uma restrita circulação que se deveu em grande parte à dificuldade de manuseio, especialmente no caso dos livros em pergaminho – em geral livros grandes e pesados que ficavam normalmente restritos ao espaço dos arquivos e das bibliotecas. A restrição a esses espaços deve-se ao fato de que o livro era considerado, nos tempos anteriores à consolidação da imprensa, menos um veículo de saber e mais um artigo de luxo, pelo qual se pagava altos preços, “de forma que só as instituições poderosas ou altas personalidades logravam organizar livrarias”.33 Em Portugal, a maioria delas localizava-se nos mosteiros, entretanto, eram raras as obras que não tinham fins litúrgicos e ascéticos, exceto aquelas dos mosteiros de Lorvão, Santa Cruz de Coimbra e Santa Maria 29 VERGER, J. Os Livros da Idade Média . Acesso em: 28.mar.2007. 30 MARQUES, O. A sociedade Medieval Portuguesa. Lisboa: Sá Costa Editora, 1971. p. 178. 31 NASCIMENTO, A. Circulação do Livro Manuscrito. In: Lanciani, G. e Tavani, G. (org) Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1993. p. 155. 32 Cf. Ibid., p. 156. 33 SAMPAIO, A. F. de. História da Literatura Portuguesa Ilustrada. Lisboa: Tipografia da sociedade gráfica editorial, 1929. p. 1929. 22 de Alcobaça,34 que se mostraram centros de preservação e compilação de textos de temática um pouco mais abrangente, como por exemplo: o Livro das Aves atribuído a Hugo de S. Vitor (séc. XII), as diversas crônicas, as obras pedagógicas visando os mais variados alvos e estudos de teologia, filosofia e humanidades. Pode-se afirmar que não houve um mosteiro sem livraria, embora estas fossem em sua maioria com fins religiosos. Até 1400, os mosteiros eram os grandes livreiros, pois a corte portuguesa ainda era itinerante – em razão das guerras de reconquista – e não tinha podido sequer concentrar num depósito determinado os documentos da coroa e menos ainda estabelecer uma biblioteca com grandes pergaminhos.35 Durante a primeira dinastia, a livraria régia era compreendida como um patrimônio pessoal, do qual o rei podia desfazer quando necessário, já que dependia, sobretudo, da sua vontade. Somente no século XV, a livraria régia perde esse caráter pessoal para ser considerada propriedade da coroa. Segundo Joaquim Veríssimo Serrão, por iniciativa da recém fundada dinastia de Avis, o século XV em Portugal pode ser caracterizado por uma busca por códices e manuscritos que simbolizavam os tesouros da erudição antiga, desse modo, os membros da Casa Real que vão adquirindo pergaminhos começam a mandar reproduzir deles cópias.36 Os tipos de livros adquiridos pelos reis de Avis, como os inventários dessas bibliotecas demonstram, correspondiam bem à literatura em voga já desde o século XIV: eram obras de cunho moralista ou de exaltação religiosa; crônicas e romances de cavalaria; e, necessariamente, obras didáticas.37 Foi somente D. Afonso V (1432-1481) quem organizou uma livraria régia configurada como um arquivo destinado a reunir um conjunto considerável de manuscritos. O cronista Rui de Pina chega a mencionar esse dado na crônica que elaborou sobre esse reinado, ao dizer que “foi elle o primeyro Rey destes Reynos que ajuntou bõos livros e fez livraria em seus paços”.38 Essa menção faz pensar que a organização da livraria real não foi negligenciada pelo cronista, contudo, é difícil saber qual era a acessibilidade da livraria para os cortesãos. Da mesma forma, se as livrarias até os anos 1400 estavam restritas basicamente aos mosteiros, é legítimo pensar que os primeiros cronistas em questão – D. Pedro de Barcelos e Fernão Lopes – tiveram certa dificuldade de acesso aos documentos 34 Cf. SAMPAIO, A. F. de. História da Literatura Portuguesa Ilustrada. Lisboa: Tipografia da sociedade gráfica editorial, 1929. p. 62. 35 Cf. SERRÃO, J. V. A Historiografia Portuguesa. Lisboa: Editoral Verbo, 1972. p.36-38. 36 Cf. Id, História de Portugal. [1415-1495]. Vol. II. Lisboa: Editorial Verbo, 1977. p. 300. 37 MARQUES, O. A sociedade Medieval Portuguesa. Lisboa: Sá Costa Editora, 1971. p. 181. 38 PINA, R. Chronica del Rey Dom Affonso V. Lisboa: [s.n.], 1790. p. 608. 23 ali guardados. Acesso que, entretanto, no tempo de Duarte Galvão e Rui de Pina, deve ter sido facilitado pela ampliação das bibliotecas régias por iniciativa da dinastia de Avis. A despeito dessa pouca circulação, o livro contava com significativo valor simbólico, pois era visto como o principal veículo de saber. Contudo, ainda que tenha ganhado o estatuto de meio de conhecimento no fim do século XIV e no decorrer do século XV, graças à iniciativa dos príncipes de Avis, considera Susani França que “o certo é que continuam a circular em meios muito restritos, qual o dos nobres ou dos clérigos”.39 A autora acredita que o mesmo se pode dizer das livrarias laicas que, embora tenham se multiplicado e o acesso a elas tenha sido facilitado, “não se pode dizer que o aumento do número de leitores se confunda com a popularização desse artigo”.40 Mesmo nas grandes bibliotecas, os livros tinham um caráter mais de tesouro do que de instrumento funcional.41 O estudioso oitocentista Teófilo Braga, por exemplo, diz que era comum a prática, nessas bibliotecas medievais, de se prenderem os livros com correntes antifurto, e alguns livros possuíam fechaduras nas capas e, na maioria das vezes, eram guardados em locais considerados seguros. O uso desses instrumentos representava uma forma a mais de evitar os possíveis furtos.42 A invenção da imprensa, nesse sentido, veio facilitar a circulação e o manuseio, bem como baratear os custos da produção dos livros, graças à leveza do principal material utilizado, o papel, que tornou o livro aos poucos mais acessível, garantindo, assim, melhores condições para a produção de textos. Elizabeth Eisenstein chega a chamar as transformações decorrentes dessa invenção técnica de “revolução cultural”, todavia, aponta que a mudança de “transmissão mediante cópia manual e mediante cópia impressa não pode ser percebida sem a travessia mental de vários séculos”.43 Segundo o já citado pesquisador da história da leitura, Roger Chartier, é errôneo considerar, como fazem muitos historiadores ocidentais, apenas pelos padrões gutenberguianos,44 “a relação entre impressão, publicação e leitura”, pois a invenção de Gutemberg não resultou necessariamente na “criação de um grande conjunto de leitores”.45 Para ele, embora ela 39 FRANÇA, S. S. L. O Reino dos Cronistas Medievais (Século XV). São Paulo: Annablume; Brasília: Capes, 2006. p. 50 40 Ibid., p. 50. 41 NASCIMENTO, A. As livrarias dos príncipes de Avis. Biblos. Vol. LXIX (1993), p. 274. 42 BRAGA, T. História da Universidade de Coimbra nas suas relações com a Instrucção Publica Portugueza. 4 vols., Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1892-1902. p. 199 43 EISENTEIN, E. A Revolução da Cultura Impressa. Os primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Ática, 1998, p. 12. 44 A invenção da impressão de tipos móveis dá-se por volta de 1450, sendo a obra mais conhecida como a primeira impressa em tipos móveis a Bíblia de 42 linhas ou Bíblia Mazarina, de 1455. 45 CHARTIER, R. As revoluções da leitura no Ocidente. in: (org) ABREU, Márcia. Leitura, História e História da Leitura. Campinas: mercado de Letras, 2000, p19. 24 seja de “fundamental importância, não é a única técnica capaz de assegurar a disseminação em grande escala de textos impressos”.46 Em Portugal, a imprensa chegou logo após ter sido inventada, por volta de 1478, entretanto, fixa-se definitivamente somente em 1489, quando os judeus Izorba e Rabban Eliezer imprimem o comentário sobre o Pentateuco.47 Até 1550, segundo Albino Forjaz de Sampaio, são conhecidos 24 livros impressos em Portugal, sendo que, destes, “12 são hebraicos, 7 são latinos e 5 portugueses”.48 Um número, portanto, bastante pequeno. Esse predomínio dos impressos hebraicos, ou melhor, o fato de a impressa ter se desenvolvido em Portugal por mãos judias e os primeiros textos serem publicados em hebraico, segundo Sampaio, ocorre porque “os leitores nas comunidades hebraicas eram numerosos, pois os analfabetos entre os judeus sempre foram raros”.49 Se o caso dos judeus era, portanto, exceção, e entre os portugueses dos séculos XV e XVI a leitura não foi algo muito difundido, a imprensa não teve um impacto imediato sobre os leitores portugueses quatrocentistas e quinhentistas, mesmo porque as primeiras obras impressas, sendo em língua hebraica, não possibilitaram um aumento nas disponibilidades de leitura para esses leitores. Ainda assim, a imprensa hebraica não passou em branco para os portugueses, que a olhavam com maus olhos e desconfiança, e restringiram sua duração, tanto que, em 1497, foi decretada uma proibição impedindo a permanência dos livros hebreus no país, a não ser no caso de autores conversos; o que fez minguar a tipografia hebraica. Depois do hebraico, a segunda língua mais usada nas publicações em Portugal foi o latim, empregada normalmente para texto de fundo religioso. A partir, pois, desses dados, pode-se dizer que a imprensa buscou atender a um público certo, que já tinha familiaridade com o texto escrito, tanto o judeu quanto o clerical. Comparando-se os textos manuscritos com os primeiros textos impressos, é possível notar algumas semelhanças e diferenças entre eles. Quanto à forma, como aponta a autora Elizabeth Eisenstein, pode-se dizer que não houve uma modificação considerável, pois “quando se coloca uma cópia manuscrita tardia de um dado texto ao lado de uma das primeiras versões impressas, a tendência é achar que não houve mudança alguma, muito 46 CHARTIER, R. As revoluções da leitura no Ocidente. in: (org) ABREU, Márcia. Leitura, História e História da Leitura. Campinas: mercado de Letras, 2000. p. 20. 47 O Pentateuco é um livro composto pelos cinco primeiros livros do Antigo Testamento (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), também conhecido como Torá, que significada ensinamento em hebraico. 48 SAMPAIO, A. F. de. História da Literatura Portuguesa Ilustrada. Lisboa: Tipografia da Sociedade Gráfica Editorial, 1929. p. 258. 49 Ibid., p. 254. 25 menos uma mudança abrupta ou revolucionária”,50 ou seja, os primeiros impressos procuraram copiar um determinado manuscrito da forma mais fiel possível. O comércio do livro impresso manteve-se, de início, dentro dos estreitos canais do livro manuscrito. Assim, os primeiros livros impressos buscaram atender a uma demanda já existente, com a fabricação, prioritariamente, de livros religiosos, como: bíblias, livros litúrgicos (breviários, missais, livros de horas), hagiografias, etc., em língua latina e vulgar. Além desses, imprimiam-se gramáticas e alguma literatura profana.51 Em O aparecimento do livro, uma das obras de referência para o estudo desse tema, Lucien Febvre e Henry Jean-Martin consideram que os primeiros impressores e livreiros trabalhavam essencialmente com fins lucrativos, ou seja, os “livreiros do século XV aceitavam financiar a impressão de um livro apenas se julgassem seguros de poder vender um número suficiente de exemplares em um prazo razoável”.52 Como têm proposto os especialistas em história do livro e da leitura, a grande contribuição da imprensa foi a reprodução de cópias idênticas de um mesmo texto, algo impossível no tempo dos copistas, pois nem mesmo o próprio autor podia repetir o texto exatamente igual, quanto mais, punhos diferentes. O conteúdo do texto manuscrito estava, nesse sentido, muito mais sujeito a ser modificado e manipulado, suscetibilidade que foi, a propósito, um dos seus atributos fundamentais. Em outras palavras, essa lógica da mutabilidade inerente ao texto manuscrito mantém-se por um bom tempo, na medida em que em certos textos – como comunhão pascal, bulas, indulgências, letras de câmbio, cartas de censo, entre outras escrituras de uso massivo –, quando impressos, eram deixados pequenos espaços em branco para que fossem preenchidos à mão e se personalizassem com os dados do receptor ou do beneficiário.53 Assim, não se pode considerar que, no reino português do final do século XV e início do XVI, a invenção e a difusão da imprensa acarretaram um rompimento fundamental na história da leitura. O texto impresso, nos seus primórdios, não fez mais do que fixar e difundir um modelo já existente na cultura manuscrita, tendo a cópia manual sobrevivido fortemente, segundo Chartier, até o século XVIII, “embora durante muito tempo se tenha acreditado numa ruptura total entre uma e outra”.54 Nem mesmo a tradição dos copistas desapareceu, pelo contrário, “mesmo que a produção destes tenha sofrido 50 EISENSTEIN, E. A Revolução da Cultura Impressa. Os primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Ática, 1998. p. 36. 51 Cf. VERGER, J. Homens de Saber na Idade Média. Bauru: Edusp, 1999, passim. 52 FEBVRE, L.; MARTIN, H. J. O aparecimento do Livro. São Paulo: Hucitec, 1992. p. 356. 53 Cf. ÀLVAREZ, F. B. Del Escribano a la Biblioteca. La civilización escrita Europea en la Alta Edad Moderna (siglos XV-XVIII), (Col. História Moderna, nº 5). Madrid: Editoral Sintesis, 1992, p. 40. 54 Ibid., p. 9. 26 inflexões por toda parte e mais claramente até 1470, continuou-se a transcrever livros manuscritos até o início do século XVI. E, de qualquer maneira, os manuscritos mais antigos continuavam a ser utilizados”.55 No período conhecido como Alta Idade Moderna (do século XV ao XVII), nota-se a permanência da palavra escrita à mão, pois julgava-se, segundo Fernando Bouza Àlvarez, que a letra cursiva conseguia traduzir melhor os escritos de intimidade, caso, por exemplo, das cartas e testamentos. O molde prensado, por sua vez, condizia melhor com o universo dos escritos impessoais, como o dos panfletos. A privacidade que passa a ser atribuída ao escrito manual teve, de acordo com o historiador, um impacto inesperado na mentalidade coletiva: “a suposição de que os manuscritos deviam estar cercados de verdade”,56 ou seja, os escritos de próprio punho funcionavam de alguma forma para legitimar os conteúdos expressos. O desprestígio da letra impressa deveu-se também à disseminação da idéia de que dar um texto à imprensa era sinônimo de lançá-lo aos quatro ventos, enquanto escrever de próprio punho era uma forma de preservá-lo de leitores indesejados e de uma profusão de leitores anônimos.57 No caso dos cronistas, alvo deste estudo, é difícil saber até que ponto os mesmos entraram em contato com textos impressos. D. Pedro de Barcelos e o cronista da Crónica de Portugal de 1419 não tiveram contato algum, já que os mesmos não são contemporâneos à invenção da impressa, mas Duarte Galvão e Rui de Pina, embora tenham sido, provavelmente não tomaram contato ou tomaram muito pouco, por um lado, porque a imprensa se consolidou gradativamente em solo português, por outro, porque sua atividade no âmbito do arquivo régio não demandava esse contato. Vale ressaltar, igualmente, que esses cronistas tiveram suas obras impressas somente séculos depois, portanto, no que se refere a eles, as possibilidades de leituras mantêm-se ainda relacionadas aos manuscritos. Se, pois, até meados do século XVI, com a consolidação da imprensa, não ocorreram mudanças consideráveis nas possibilidades de leitura, dado que pouca diferença houve entre as disponibilidades materiais de textos que um cronista dos séculos XIV e XV poderia ter em mãos e um cronista do início do século XVI. No que diz respeito mais amplamente aos textos escritos no âmbito da corte,58 no qual estavam ambientados os 55 VERGER, J. Homens de Saber na Idade Média. Bauru: Edusp, 1999. p. 127. 56 ÀLVAREZ, F. B.,1992, op. cit., p. 43. 57 Ibid., p. 43. 58 Para Rita Costa Gomes, a corte foi definida pelos homens dos séculos XIV e XV como o lugar da presença do rei e, simultaneamente, o conjunto dos homens que o acompanham. Ver: GOMES, R. C. A corte dos reis de Portugal no final da Idade Média. Lisboa: Difel, 1995. 27 cronistas, é marcante, lembra Paul Zumthor, a manutenção da oralidade mesmo nos tempos de escritos impressos e manuscritos. A via oral foi a grande forma de divulgação dos saberes para um público mais vasto entre os cortesãos. Assim, no século XVI, para ele, nem o suporte impresso do livro ainda se tinha verdadeiramente imposto na prática, nem o conteúdo das mensagens se tinha inteiramente liberado de uma herança cultural de séculos dedicados às transformações vocais, nem, enfim, a autoridade se tinha definitivamente deslocado da palavra para a escrita.59 Não há uma expansão intensa do impresso nem da escrita entre a população em geral, pois saber ler e escrever significava para a época, sem dúvida, um estágio avançado de cultura.60 Desse modo, no ambiente cortês, o acesso às informações contidas em livros se deu sobretudo através das práticas orais. Em Portugal, segundo Oliveira Marques, “de quando em quando visitavam o paço jograis de ambulatórios ou trovadores convidados. Uns e outros haviam de narrar contos, lendas, declamar poemas, tocar e bailar”,61 o que ocorria não só para divertimento da corte, mas também para suprir a falta de acesso ao livro. A escrita, portanto, no período, era uma instituição através da qual uma comunidade podia se reconhecer, porém, não se comunicar.62 Tanto que uma das grandes fontes de diversão dos cortesãos foi a poética, marcada por uma forte relação entre escrita e oralidade.63 No caso específico da tradição escrita sobre a história de D. Afonso Henriques, o pesquisador Antônio José Saraiva defende a tese de que as histórias fixadas sobre o monarca tiveram raízes jogralescas, ou seja, a escrita prosificou uma tradição épica cantada que estava reunida numa denominada Gesta de D. Afonso Henriques, do início do século XIII. Tal herança explicaria o tom oral das escritas sobre o primeiro rei,64 principalmente nas Crónicas Breves do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. O caráter de oralidade era tão forte nas crônicas que, em várias passagens, elas anunciam um suposto ouvinte ou um leitor em pé de igualdade, como se pode perceber no seguinte trecho de Duarte Galvão: “a nouidade que esta cousa assi feita per elRey dom Affomso Hamrriquez, assim podera parecer a quem quer que a leer e ouuir, como pareçeo naquelle tempo (...)”.65 No entanto, seria pretensioso concluir a partir daí que as crônicas teriam sido lidas em público ou até mesmo teriam sido leitura dos cortesãos. Parece mais 59 ZUMTHOR, Paul. A letra e a Voz. A “Literatura” Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 111. 60 Cf. MARQUES, A. H. de O. A sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1987. p. 179. 61 Ibid., p. 179. 62 Cf. ZUMTHOR, 1993, op. cit., p. 110. 63 FINAZZI-AGRÒ, E. Escrita/Oralidade. In: Lanciani, G. e Tavani, G. (org) Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1993. p. 240. 64 Cf.SARAIVA, A. J. A épica medieval portuguesa. Lisboa: Biblioteca Breve, 1991, p.9. 65 GALVÃO, D. Crónica de El-Rey D. Afonso Henriques, Apresentação de José Mattoso. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995. p. 81. 28 cuidadoso pensar, como aponta Finazzi-Agrò, que a função espetacular, ou seja, escritos em formas de diálogos apresentados como pequenos acontecimentos teatrais, imiscui-se em toda a produção literária medieval, “diferenciada, precisamente, por uma atenção ao ouvido, à perfomance, que irá desaparecendo lentamente ao longo dos séculos – salvo, obviamente, na literatura especificamente teatral”.66 Esse recurso de escrita na forma de diálogos é usado pelos quatro cronistas aqui em questão, que abrem espaço nas suas narrativas para deixar falar as personagens das histórias. Na Crónica Geral de Espanha de 1344, como em outras crônicas medievais, a presença de elementos de oralidade podem ser explicados por duas razões: pelos ecos da oralidade na memória escrita; ou porque a utilização dessas formas orais aparece simplesmente para dar coesão ao texto escrito. Neste último caso, deve-se considerar a preocupação com um virtual leitor, no sentido de que essa coesão visaria assegurar a atenção para a leitura e evitar que o texto se apresentasse excessivamente monótono;67 daí a divisão em capítulos curtos. A pausa dos capítulos característicos das crônicas medievais, conforme António Fournier, visava conferir certo ritmo à narrativa, um ritmo marcado pela temporalidade interna de cada capítulo. Assim, a dimensão dos capítulos dependia do que seria narrado e da ênfase dada a cada narração, contudo, mantendo-se comumente uma divisão curta para evitar “um excessivo desenvolvimento narrativo, prejudicial à atenção de leitura num texto que pretende ser didático”.68 No entanto, mesmo diante dessa análise, ainda parece arriscado pensar numa leitura pública ou até mesmo pensar em possíveis leitores para as crônicas medievais, que, ao que tudo indica, estariam restritas ao público dos arquivos, ou seja, aos próprios cronistas e aos religiosos de mosteiros. O leitor das crônicas mais facilmente reconhecível é, nesse sentido, o próprio cronista, a quem cabia compilar as crônicas passadas: lê-las e retomá-las em uma nova forma escrita, mesmo que esta nova forma compilada estivesse recheada de passagens na íntegra de textos anteriores. Elisa Nunes Esteves define o cronista medieval como um “leitor-autor”, ou seja, “um receptor da matéria anterior, a ‘autoritas’, cuja obra é o resultado de um processo de recepção”.69 O cronista é tanto escritor como receptor da matéria escrita, ele recebe um texto e o reaproveita, é assim um leitor diferente daquele que 66 FINAZZI-AGRÒ, E. Escrita/Oralidade. In: Lanciani, G. e Tavani, G. (org) Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1993. p. 241 67 FOURNIER, A. A primeira parte da Crónica Geral de Espanha de 1344: o texto e a sua construção. Tese (Mestrado em Letras). Lisboa: Faculdade de Letras/ Universidade Clássica de Lisboa, 1996. p. 34. 68 Ibid., p. 35. 69 ESTEVES, E. N. A Crónica Geral de Espanha de 1344. Estudo Estético-Literário. 1994. Tese (Doutorado em Literatura Portuguesa). [S.l.]: Universidade de Évora. p. 24. 29 apenas lê, pois lê para reescrever o texto, ou seja, escolhe passagens e reutiliza textos. Diante disso, emergem as interrogações: como se dava essa leitura? Era minuciosa, ou mais mecânica? Era integral ou apenas daquelas partes que interessava retomar ou que foram encontradas? Mesmo considerando-se que o cronista lê e aproveita textos alheios, não convém afirmar que isso possa significar um questionamento dessas diversas fontes, tampouco uma seleção criteriosa baseada em uma análise interna e depois no confronto – como vieram a propor os metódicos –, apenas se pode dizer que o cronista, ao transcrever, subscreve a opinião extraída da sua fonte ou fontes.70 Em outras palavras, o cronista quase sempre reaproveita os textos que lhe são acessíveis no momento, mantendo-se preso a uma fonte prioritária que, por vezes, aparece como condutora de todo o texto, sem substantivas modificações. Deve-se, entretanto, considerar que, conquanto o cronista compilador siga de perto a opinião do cronista anterior, sua compilação inclui igualmente os interesses de seu tempo, e as atualizações que realiza traduzem de alguma forma esses valores. Na compilação, por exemplo, que o cronista Duarte Galvão faz sobre o reinado de Afonso Henriques, a partir de um manuscrito da Crónica de 1419, é notável que se baseou amplamente na crônica anterior, inclusive na ordenação dos capítulos, porém, o acréscimo de um prólogo enaltecendo o monarca vigente, D. Manuel (1469-1521), diz acima de tudo acerca dos interesses e valores que marcam o início do século XVI, a saber, fixar a história régia vinculando-a a predestinação reservada aos reis portugueses desde as origens: o avanço para além-mar. Assim, a escolha do reinado de Afonso Henriques e não outro rei qualquer, sem dúvida, deve-se ao fato de este rei representar a origem da expansão territorial e a conquista de espaço do cristianismo sobre o Islã. O texto, pois foi feito através da reprodução de textos mais antigos, mas está carregado de significados comprometidos com os interesses contemporâneos. Nesse sentido, torna-se complicado requerer dos cronistas uma originalidade na obra, pois essa é uma lógica que contradiz a prática do período. No entanto, a elaboração das crônicas, embora amparada na compilação, inclusive com reproduções na íntegra, não deve levar a pensar que o cronista que executa o recorte, a escolha e o arremate, esteja privado de responsabilidade sobre o que escreve. Se ele não conta com a autoridade autoral, cara aos modernos, goza da autoridade da função que ocupa, isto é, a do cargo de cronista, um cargo subordinado à casa real – solicitante e financiadora da produção das crônicas. Assim, o cronista se vê na nobre e dificultosa missão de agradar o financiador da empreitada. 70 FOURNIER, A. A primeira parte da Crónica Geral de Espanha de 1344: o texto e a sua construção. Tese (Mestrado em Letras). Lisboa: Faculdade de Letras/ Universidade Clássica de Lisboa, 1996. p. 70. 30 Além da mudança no fio condutor, o ato da reescrita dos textos cronísticos envolve alterações ocasionais e não intencionais ligadas ao próprio caráter de transmissão dos textos manuscritos. Um exemplo claro disso são as diferenças de datas entre as crônicas dos primeiros reis, a Crónica de Portugal de 1419, e as de Duarte Galvão e Rui de Pina (Crónica de El-Rey D. Afonso Henriques, Crónica de D. Sancho I, Crónica de D. Afonso II, Crónica de D. Sancho II e Crónica de D. Afonso IV). No caso da Crónica de Portugal de 1419, as datas aparecem na Era de César, como era uso corrente no século XV, já no segundo conjunto, nas crônicas da transição para o século XVI, há a atualização das datas para o calendário cristão. Provavelmente, como aponta Arthur de Magalhães Basto, os cronistas quinhentistas executaram mecanicamente as mudanças, sem que isso constituísse num problema para eles.71 Também a linguagem usada traz suas especificidades: a da Crónica de 1419 possui um caráter mais arcaico, enquanto a de Rui de Pina e a Duarte Galvão são caracterizadas pela substituição de palavras e locuções em desuso no século XVI por palavras ou locuções modernas.72 Mas essas mudanças nem sempre são corriqueiras no decorrer dos textos, pois não são raros os casos de se encontrar palavras arcaicas, nas crônicas do século XVI, que provavelmente passaram despercebidas pelos cronistas. Diante desse referido compromisso com fontes anteriores, a questão que se coloca é se o cronista medieval pode ser pensado como um autor que, ajuntando textos, cumpre ainda um papel unificador do relato. Qualquer obra medieval, como os historiadores têm destacado, ao transitar entre escrita e reescrita, lança mão de múltiplas vozes e de múltiplos tempos. O cronista tanto escreve quanto reescreve. É um leitor bem específico, que lê os documentos com o fim determinado de reaproveitá-los, introduzindo as perspectivas de outros congêneres na sua compilação. Em muitos casos, ele é o leitor de primeira mão dos documentos, principalmente, em se tratando de crônicas. Tratava-se, pois, de um leitor que lê para escrever e, ao fazê-lo, retomava e reordenava, como foi adiantado e como se pode notar no exemplo de Zurara do início deste capítulo, no qual o cronista se refere à busca de documentos oficiais em cartórios e igrejas por parte do seu antecessor para compor suas crônicas. Passagem que ilustra a preocupação dele e seus congêneres em retomar textos específicos e confiáveis para os padrões de verdade daquela época. Se esses tipos de fontes eram as suas prioritárias, outras, no entanto, freqüentaram as compilações. A Crónica Geral de Espanha de 1344, por exemplo, dada sua proposta abrangente de narrar a história 71 Cf. BASTO, M. Estudos. Cronistas e Crônicas Antigas, Fernão Lopes e a “Crónica de 1419”. Lisboa: Por ordem da Universidade, 1960, p. 62. 72 Ibid., p. 62. 31 da Península Ibérica desde o surgimento do mundo, passando pelas ocupações territoriais, guerras de reconquista e até a formação e a consolidação dos reinos peninsulares, recorre a vários tipos de fontes. Escrita por D. Pedro de Barcelos, sob a encomenda de D. Dinis, faz parte “da cadeia tradicional de textos historiográficos criados a partir da escola Afonsina”.73 A sua fonte mais imediata e mais importante é a Primeira Crónica Geral, de Afonso X (1121-1284), mas não se deve encará-la como mera tradução para o português, pois agrega outros documentos não usados na versão castelhana, como apontam inúmeros autores que se dedicaram à comparação das duas. Diego Catalan, por exemplo, mostra a reconstrução do processo compilatório das duas crônicas, defendendo a idéia de que a de D. Pedro de Barcelos compôs uma crônica bem mais ampliada do que a versão castelhana.74 Outra fonte da Crónica Geral de Espanha de 1344 de grande peso no período é a Crónica do Mouro Rasis, especialmente as partes que descrevem a geografia da Península e as que narram a história dos reis godos e da invasão muçulmana. Essa narrativa intercala- se, entre outras crônicas, com a história dos reis visigóticos extraída da história do Bispo Pelaio Oviedo, que agrega uma versão do Liber Regum e do Livro das Gerações.75 Além dessas fontes cronísticas, Lindley Cintra aponta que é possível identificar outras de natureza poética: o cantar jogralesco de Fernão Gonçalves; o próprio poema de ‘clerecia’ utilizado na Primeira Crónica; o segundo cantar dos Infantes de Lara; o cantar de Fernando I; e o cantar dos filhos de Sancho de Navarra.76 D. Pedro de Barcelos, um cortesão erudito, ao usar esse tipo de fonte, demonstra seu apreço pelos poetas e cantadores. Elisa Nunes Esteves, entretanto, adverte que o uso das fontes jogralescas pode já ter-se dado pela mediação da escrita, pois alguns poemas já teriam sido prosificados em outras fontes, e apenas alguns foram ali prosificados pela primeira vez.77 Quando se estuda a extensa narrativa que é a Crónica Geral de Espanha de 1344, para além de se constatar a variedade de registros discursivos que a mesma torna manifestos, não se pode esquecer que uma mesma variedade temporal penetra a sua construção. Assim, da mesma forma que se notam diversas vozes no texto, notam-se que suas reelaborações se inscrevem em uma cadeia de sucessivas reestruturações que põem 73 ESTEVES, E. N. A Crónica Geral de Espanha de 1344. Estudo Estético-Literário. 1994. Tese (Doutorado em Literatura Portuguesa). [S.l.]: Universidade de Évora. p. 20. 74 Cf. MENÉNDEZ PIDAL, D. C. De Alfonso X al conde de Barcelos, cuatro estudios sobre el nascimiento de la historiografia romance en Castilla y Portugal. Madrid, Editorial Gredos, 1962, p. 11. 75 Cf. KRUS, L. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Lanciani, G. e Tavani, G. (org) Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1993. p. 189-190. 76 CINTRA, L. F. L. Crónica Geral de Espanha de 1334, Introdução, (vol I). Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda., 1951. p. XXXIII 77 ESTEVES, E. N. Narrativas da Crónica Geral de Espanha de 1344. Lisboa: Vega, 1998. p. 8. 32 em diálogo o passado remoto, o passado próximo e o presente do próprio cronista. Um claro jogo de leituras, compilações e acréscimos. Dessa maneira, não vale à pena tentar buscar a origem de determinado relato ou determinada descrição, pois as idéias e formulações são comumente manipuladas. A forma de construção que usava o cronista pode, pois, ser caracterizada como de recorte e ajuntamento; uma fragmentação inicial que será organizada pelo cronista em uma narrativa coerente. Era basicamente nisso que consistia o fazer histórico no seu tempo: reunir, mais do que criar algo novo. Do núcleo da história da Península Ibérica da Crónica Geral de Espanha 1344, por exemplo, surge uma narrativa independente relativa às histórias dos primeiros reis de Portugal, como foi explicitado anteriormente. Esta narrativa serviu de base para a conhecida Crónica de 1419, encomendada, provavelmente, pelo então infante D. Duarte. Trata-se esta, do mesmo modo, de um texto resultante da colagem de vários documentos, como apontou Artur de Magalhães Basto.78Algumas dessas fontes, como indica Fernando Figueiredo, estão explicitamente referidas no corpo da crônica, outras são identificáveis através de comparações, sendo as principais fontes da crônica hoje conhecidas: a “Crónica de 1344 (fonte principal), a Crónica do Mouro Rasis (referente da expressão: <>), De exugnatione Sacalabis e Vita Sancti Theotonii; e provavelmente também os Anais de Afonso Henriques”.79 Além dessas mencionadas, afirma António José Saraiva que entre essas ‘escrituras antigas’ não se contam apenas as crônicas e as tradições registradas, mas também os documentos autênticos, como, por exemplo, a carta de Inocêncio III chamando à cruzada, o juramento que o conde de Bolonha, futuro S. Afonso III, fez em Paris antes de vir para Portugal, ou as cartas que o papa enviou aos senhores de Portugal e aos frades menores para que recebessem como rei o irmão de D. Sancho II. São documentos de chancelaria.80 Nessa crônica, ocorre, portanto, a utilização de fontes de origem laica bem como religiosa, que são compiladas num mesmo texto, demonstrando – como a citação de Zurara no início deste capítulo parece sugerir – a crença em que o uso do maior número possível de fontes assegurará a versão mais fidedigna dos acontecimentos. 78 Em 1942, Artur de Magalhães Bastos encontrou na biblioteca pública do Porto um manuscrito que o mesmo datou como sendo uma cópia do século XVI de um manuscrito do século XV, sobre os primeiros reis de Portugal. Bastos dedicou-se por vários anos ao estudo deste manuscrito, comparando o texto encontrado com textos posteriores e anteriores para saber a origem do manuscrito, a autoria, as fontes e o aproveitamento dele por cronistas posteriores. 79 FIGUEIREDO, F. A imagem do Inimigo à Construção do Herói: O reinado de Afonso Henriques na Crónica de Cinco Reis de Portugal. In: AMADO, Teresa. (org). A Guerra até 1450. Lisboa: Quimera, 1994. p. 377. 80 SARAIVA, A. J. O crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa: Gradiva, 1993. p. 162. 33 No que diz respeito à forma de compilação, a Crónica de 1419 traz algumas diferenças se comparadas às crônicas mais conhecidas de Fernão Lopes, as de D. Pedro, D. Fernando e D. João I (primeira e segunda parte). Segundo Luis de Sousa Rebelo, essas são crônicas nas quais o discurso histórico é “concebido e elaborado dentro de certos programas de persuasão, cujo eixo semiológico assenta na questão do poder político considerado em função da família real”,81 já a Crónica de 1419 oferece “uma ordem narrativa de caráter linear na apresentação dos sucessos, que em tudo se acomoda ao modelo tradicional do gênero cronístico”.82 Rebelo, visando principalmente as concepções de poder em Fernão Lopes, chega mesmo a não incluir a Crónica de 1419 na sua análise, considerando-a parte de um gênero diferente das crônicas que correm com o nome de Fernão Lopes. Tratar-se-ia essa de uma narrativa plenamente compilatória, que prioriza o encadeamento cronológico dos fatos, sem certa criticidade que alguns especialistas apontam existir nas demais crônicas de Fernão Lopes. Quando aponta a descoberta da Crónica de 1419 em meados do século XX, Teresa Amado compartilha da idéia de Rebelo, afirmando que “são as outras três crônicas que justificam dar a Fernão Lopes um lugar único, pela novidade face à tradição e pela exceção face aos seus contemporâneos”.83 Os dois autores referidos diferenciam as três crônicas em razão seja pelo claro vínculo entre história e poder, seja pelos processos de elaboração. Mas a distinção entre os dois conjuntos de crônicas perde relevância quando se tem como objetivo notar a persistência do recurso à compilação que caracterizou a erudição medieval. Um modelo que transpõe o século XV, mantendo-se como base também para Duarte Galvão e Rui de Pina. Ou seja, mesmo que Fernão Lopes seja normalmente reconhecido por suas crônicas mais elaboradas, a importância da Crónica de Portugal de 1419, sendo sua ou não, não pode ser minimizada, especialmente em razão do seu aproveitamento pelos cronistas posteriores. Embora o estilo de escrita seja considerado inferior ao das crônicas de D. Pedro, D. Fernando e D. João, estas são do mesmo modo devedoras de um fazer histórico que tem a compilação de vários documentos, a partir de uma fonte principal, como modelo. E o cronista, neste caso, tem o papel de amarrar os textos em uma narrativa coerente, na maioria das vezes apagando sua voz no texto. 81 REBELO, L. de S. A concepção do poder em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1983. p. 18. 82 Ibid., p. 115. 83 AMADO, T. Fernão Lopes. In: Lanciani, G. e Tavani, G. (org) Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1993. p. 272. 34 O cronista Duarte Galvão, embora escrevendo já no século XVI,84 segue à risca essa prática, por isso é caracterizado como um historiador nos moldes medievais.85 Teria ele escrito a história do reinado fundador do reino sob a encomenda do “Venturoso”, o rei D. Manuel. Segundo Luis Krus, Duarte Galvão redigiu a Crónica de El-Rey D. Afonso Henriques com base em documentos conservados no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, tendo herdado o espírito hagiográfico com que os textos de Santa Cruz descreviam a história de D. Afonso Henriques; assim, esta crônica acaba por fazer “dele a santidade raiz de um reino e de uma realeza providenciais, predestinando o Portugal manuelino para as missões da evangelização universal e da vitória final sobre o Islã”.86 A crônica de Duarte Galvão tem duas características que são recorrentemente destacadas: a profunda semelhança com a Crónica de 1419 e a tentativa de enaltecer o reinado de D. Manuel, encomendador da obra. Apesar do caráter hagiográfico, apontado por Luís Krus, e da utilização das fontes de Santa Cruz, é inegável a proximidade da mesma com o texto encontrado por Artur de Magalhães Basto.87 Este aponta que a crônica de Galvão tem estreitas afinidades com a Crónica de 1419, encontrando-se todos os capítulos desta naquela, com acréscimo de apenas dois, nos quais Galvão se insere na narrativa para opinar sobre o que está sendo narrado. Basto também aponta que “entre Galvão e a Crónica de Cinco Reis há longuíssimos trechos em que não se encontram diferenças de redação, nem na ordenação das matérias”.88 Comparando as duas crônicas, ele mostra que os dois capítulos nos quais o cronista declaradamente se insere na narração possuem grandes diferenças de estilo em relação ao restante do texto. Mas vale acrescentar também que há também capítulos na crônica de Galvão que se apresentam mais divididos do que os da Crónica de 1419, provavelmente com a finalidade de tornar mais claros os acontecimentos e melhor ordenados os assuntos. 84 O prólogo da Crónica de El-Rey D. Afonso Henriques traz como data inicial de sua elaboração o ano de 1505. 85 Cf. LAPA, R. Introdução. In: LAPA, R. (Org). Historiadores Quinhentistas. Lisboa : Seara Nova, 1972. 86 KRUS, L. Crónica. In: Lanciani, G. e Tavani, G. (org) Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1993, p. 174. 87 Artur de Magalhães Basto denominou o texto que encontrou como Crónica de Cinco Primeiros Reis, porém, trata-se do mesmo texto da Crónica de 1419. Em 1945 Carlos da Silva Tarouca tornou pública a informação de que na Livraria da Casa de Cadaval havia uma crônica com as histórias dos sete primeiros reis portugueses. Arthur de Magalhães Basto, comparando este manuscrito com o que encontrara em 1942, chegou à conclusão que na crônica de Cadaval o copista do século XVI, talvez por falta do prólogo e da história de Afonso Henriques no manuscrito que copiou, utilizou a versão de Duarte Galvão para suprir a lacuna. 88 BASTO, A. de M. Estudos: Cronistas e Crônicas Antigas. Fernão Lopes e a Crônica de 1419. Coimbra: Oficinas Atlântida. 1960. p. 60. 35 Além da crônica já apontada, Serrão afirma que Duarte Galvão consultou por autorização régia “papéis que se guardavam no cartório dos Crúzios”.89 No entanto, vale ressaltar que as aproximações da Crónica de El-Rey D. Afonso Henriques com a Crónica de 1419 são extremamente marcantes e evidentes. A grande novidade da crônica de Galvão é o prólogo dedicado ao rei D. Manuel, no qual o cronista deixa claro que a empreitada a qual se dedica foi ordenada pelo monarca reinante. Tomando como ponto de partida o valor simbólico de Afonso Henriques, primeiro rei português, o objetivo da compilação é louvar este rei e “estabelecer uma linha de continuidade histórica para a glorificação do Venturoso”.90 O nome de Duarte Galvão é normalmente relacionado com o do cronista oficial seu contemporâneo Rui de Pina, tanto porque este continua a escrita da história do reino português iniciada por Galvão, quanto pelas acusações de “plágio” lançadas sobre eles. A historiografia portuguesa, em geral, aponta várias semelhanças entre as crônicas de Rui de Pina e as crônicas de Fernão Lopes e Zurara. Segundo Lopes de Almeida, a semelhança explica-se, por um lado, pelo fato de que Rui de Pina é um “escritor numa época de transição da historiografia, ele ainda não se reveste da toga solene dos humanistas, conserva muito da roupagem da idade anterior, simplicidade e não empolgamento”.91 Por outro, porque Pina bebe dessas fontes senão por completo, em grande parte. Isso mais especificamente no caso das crônicas sobre a primeira dinastia, pois o cronista de D. João II, em algumas passagens, só atualiza o vocabulário e as datas da versão anterior, a Crónica de 1419. Pina não fez nada mais do que seguir seu antecessor, mantendo um estilo que se pode chamar mais medieval do que moderno, o que quer dizer que Pina segue a lógica compilatória dos seus antecessores, bem como a temática histórica ainda centrada na vida do rei e nos seus feitos – traço distintivo da história escrita no final da Idade Média. Pensando nas fontes utilizadas pelos cronistas, é curioso ainda notar que, nas crônicas em questão, aparecem algumas remissões aos autores clássicos, como nesse exemplo de Duarte Galvão: “porque, como diz Aristotilles, o primçipio he mais da metade das cousas”.92 Mas é difícil saber se os cronistas leram os clássicos ou simplesmente os citaram de segunda mão, como parece ser, segundo Joaquim de Carvalho, o mais provável, especialmente no caso dos escritos de Gomes Eanes de Zurara, que é o que mais recorre a 89 BASTO, A. de M. Estudos: Cronistas e Crônicas Antigas. Fernão Lopes e a Crônica de 1419. Coimbra: Oficinas Atlântida. 1960. p. 132. 90 SERRÃO, J. V. A Historiografia Portuguesa. Lisboa: Editorial Verbo,1972. p. 132. 91 ALMEIDA, M. L. de. Crônicas de Rui de Pina. Porto: Lello e Irmão Editores, 1997. p. XXII. 92 GALVÃO, D. Crónica de El-Rey D. Afonso Henriques, Apresentação de José Mattoso. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995. p. 207. 36 esse tipo de referência.93 Os cronistas Galvão e Pina vivem em um tempo que se costuma definir como humanista, dado o gosto pela retomada dos clássicos, mas ainda assim não se pode precisar o grau de proximidade que os mesmos tiveram com os textos desses autores, se os leram de fato ou apenas compilaram de algum lugar. Como lembra Joaquim Veríssimo Serrão, a influência cultural da Itália,94 berço do humanismo, fez-se sentir a partir do reinado de D. Afonso V, quando este trouxe mestres daquele país para ensinar e cultivar as letras, proporcionando a divulgação desse pensamento em Portugal.95 Os cronistas aqui abordados são, em larga medida, devedores da Escola Afonsina, caracterizada pela busca de certa fidelidade a um texto antecedente como garantia de verdade. Segundo Lindley Cintra, “é completamente estranho aos hábitos dos cronistas da escola afonsina, ao tratar do passado, falar seja do que for que não tenham achado por escrito”.96 Nesse sentido, os textos dos cronistas medievais devem ser pensados considerando-se seu diálogo com a tradição e as convenções que o caracterizam. Em suma, os cronistas pertencem a uma tradição na qual a cópia era a forma por excelência de manutenção do passado e garantia da verdade dos fatos. Diante dessas considerações, pode-se aventar a hipótese de que os cronistas liam muito pouco para compor suas crônicas, escolhendo normalmente uma fonte principal e juntando a esta alguns documentos oficiais, de cunho religioso ou filosófico, bem como obras trovadorescas. Ou seja, os documentos não tinham uma origem tão variada, dado que não eram muitas as possibilidades no período. Os próprios cronistas medievais se apresentam como “ajuntadores” de histórias, “isto é, reproduzem em grande parte o que encontraram em outros livros”.97 Eles não tinham intenção de escrever obras inovadoras, mas sim prestar um serviço ao que encomendou a crônica e, para isso, seguiam a tradição de juntar os documentos antigos, dando uma nova versão a eles. Da mesma forma que não realizaram muitas leituras, pode-se afirmar que os cronistas medievais não realizavam leituras de diversos gêneros, como textos teológicos e filosóficos, por exemplo. Em primeiro lugar, como foi adiantado no início deste capítulo, porque as possibilidades de leitura não eram abundantes, os livros eram caros e raros, muitas vezes tratados mais como tesouros do que como objeto de erudição, portanto, não 93 CARVALHO, J. Estudos sobre a cultura portuguesa do século XV. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1949. p. 8-55. 94 Cf. Ibid. 95 Cf. SERRÃO, J. V. História de Portugal. 1977, p. 320. 96 CINTRA, L. F. L. Crónica Geral de Espanha de 1334, Introdução. (vol I) Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1951. p. CCCLXXXVI. 97 FRANÇA, S. S. L. O Reino dos Cronistas Medievais (Século XV). São Paulo: Annablume; Brasília: Capes, 2006. p. 13. 37 eram acessíveis – apenas o eram alguns pequenos tratados e livros religiosos. Em segundo lugar, porque não fazia parte da tradição cronística medieval demandar um grande levantamento e exame de várias fontes, a leitura se restringia a crônicas mais antigas, alguns textos de origem religiosa e documentos oficiais, que eram incorporados a uma fonte principal que conduzia a narrativa, freqüentemente com trechos idênticos. Esse panorama, desse modo, teve como preocupação apresentar alguns aspectos da produção medieval portuguesa voltada para os escritos sobre o passado, mostrando que esse tipo de fazer histórico não tinha preocupação nem com a originalidade nem com remissões a autores e fontes. Além disso, os cronistas apenas retomavam e acrescentavam o estritamente necessário, sem mudar amplamente o que havia sido dito, e faziam uso dos recursos próprios do seu tempo, a saber, um tempo movido pela vontade de consolidar e preservar verdades alimentadas no passado e projetadas para conduzir o presente e o futuro.98 A busca pela verdade, sem dúvida, foi uma característica persistente em todo fazer histórico cronístico medieval, razão pela qual o capítulo que se segue será dedicado a pensar como se compõe essa verdade no tempo dos cronistas em questão. Visando entender a forma de construção histórica que alimentou o Ocidente por alguns séculos, a questão a ser desdobrada gira em torno das implicações de uma verdade construída com o financiamento do poder monárquico e respaldada por este. 98 Cf. KOSELLECK, Reinhart. Historia, historias y estructuras formales del tiempo in: Futuro Pasado. Para uma semântica de los tiempos históricos. Trad. Norberto Smilg. Barcelona/Buenos Aires/ México: Paidós, 1993. 38 Capítulo 2 O passado como exemplo nas crônicas medievais portuguesas “A história é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mestra da vida, a mensageira da Antigüidade”.1 Cícero2 “o presente é brevíssimo; o futuro, duvidoso; o passado, certo”. Sêneca3 Esses dizeres de Marco Túlio Cícero (106 a.C- 43 a.C.) e Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C.- 65 d.C.) traduzem formas de pensar a história e o tempo na Antiguidade que, de alguma, se mantiveram como pressupostos do fazer histórico ao longo de vários séculos, podendo ser reconhecidos, embora com outros fundamentos, na produção dos cronistas dos séculos XIV, XV e início do século XVI. A proposta deste capítulo consiste em analisar a permanência de alguns aspectos da percepção do tempo dos antigos nas visões de mundo dos ocidentais pré- modernos,4 mais especificamente nos cronistas, como é o caso do passado com caráter pedagógico e pautado no acontecimento como garantia de verdade. Para Cícero, a história é reveladora da verdade e por isso mestra da vida, o que significa que ela tem uma função pedagógica, já que o passado serve para ensinar o presente e o futuro. Esse aspecto educacional do passado pressupõe, em certo sentido, a possibilidade de repetitividade da história, no entanto, com a era das explorações (Descobrimentos) e o chamado progresso tecnológico, abre-se aos europeus um horizonte de diversidades culturais, ao lado da consolidação da possibilidade de mudança e da interferência do homem no mundo 1 Historia vero testis temporum, lux veritatis , vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis [Tradução Minha]. 2 CÍCERO, (De oratore II, 9-36). In: CICERÓN, M. T. El Orador. Ed. Bilingue. Texto revisado y traducido por A. Tovar y A. R. Bujaldón. Barcelona: Alma Mater, 1967. 3 SENECA, L. A. Los Siete Libros de la Sabiduría.[tradução para o espanhol Pedro fernández Navarrete]. Bracelona: Edicomuicación, 1995. p. 169. [tradução minha] 4 Cf. KOSELLECK, R. Los Estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Barcelona/Buenos Aires/ México: Ediciones paidós, 2001. p. 20. 39 material, o que provoca o questionamento do modelo ciceroniano de conservação dos valores dos tempos idos. Segundo os apontamentos do historiador Reinhart Koselleck, todavia, até o século XVIII, as histórias são úteis como ilustrativos de doutrinas morais, teológicas, jurídicas e políticas.5 A Revolução Francesa, para o supracitado historiador, torna-se o ponto chave para a crise do modelo ciceroniano, pois a idéia de revolução não comporta a capacidade de repetição do passado e, sim, a busca pela ruptura. A partir daí, o homem tende a considerar, segundo ele, que o futuro não resulta das experiências do passado, mas se insere em um horizonte de expectativas.6 Durante o período medieval, ao contrário, pode-se dizer que a função exemplar caracteriza a produção sobre o passado e está presente em discursos muito diferentes: encontra-se em textos hagiográficos, em crônicas e em livros de ensinança.7 A supracitada passagem de Sêneca apresenta o passado como certo, ou seja, amparado no que aconteceu, e verdadeiro justamente por isso. Já o futuro mostra-se incerto, mas podendo ser parcialmente delineado pelo passado. Assim, o passado pode servir como referência para o que virá, como ocorre no pensamento ciceriano, porém o futuro pode guardar surpresas, ou seja, não seria confiável da mesma forma que o que já ocorreu. A mesma idéia é recorrente nos ensinamentos do pensador cristão Santo Agostinho (354 d.C. – 430 d.C.), que considerava que o passado poderia ser apreendido através da memória, o presente poderia ser explicado contemplando-o, mas para o futuro restavam apenas a espera e a esperança.8 As crônicas medievais são conduzidas por uma diretriz, na qual o tempo é claramente cronológico, definido pelos eventos e, da mesma forma, projetiva, já que as crônicas visam dar exemplos para a posteridade, ou seja, tem uma perspectiva tanto memorialista quanto moralista. A partir dessa notável duplicidade, interessa aqui interrogar: quais as mudanças entre a percepção de tempo dos antigos e dos cronistas medievais? Quais os fundamentos do fazer histórico cronístico? Como os cronistas registram o passar do tempo e a historicidade dos acontecimentos? Quais os tipos de eventos que são descritos pela matéria cronística? Qual a verdade pretendida pelos cronistas? No que se pauta essa verdade? De saída, vale adiantar algumas considerações sobre a relação com o tempo dos homens medievais, levando em conta tanto aspectos da vivência cotidiana quanto de como a 5 Cf. Cf. KOSELLECK, R. Futuro Pasado. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, 1993, p. 43 6 Cf. Id., Los Estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Barcelona/Buenos Aires/ México: Ediciones paidós, 2001, p. 20. 7 Cf. AMADO, T. Os gêneros e o trabalho textual. In: RIBEIRO, C. A.; MADUREIRA, M. (coord.) O gênero do texto medieval. Lisboa: Edições Cosmos, 1997. p. 14. 8 Cf. GUREVITCH, A. As categorias da cultura medieval. Lisboa: Editorial Caminho, 1990, p. 138. 40 sociedade situa-se no tempo, vive e percebe sua historicidade.9 De acordo com Aron Gurevitch,10 Ivan Domingues,11 Paul Zumthor,12 Jacques Le Goff,13 entre outros, a noção de tempo dos medievais resulta de uma combinação de visões de mundo pagãs e cristãs. Para os bárbaros, nas sociedades agrárias, o tempo era determinado pelos ritmos da natureza e percebido, principalmente, pelas mudanças das estações do ano e pelos astros celestes. Era um tempo muito ligado ao mitológico, pois a memória dos grupos sociais, ao longo dos anos, transformava em mitos os acontecimentos. Para esses povos bárbaros, o culto dos antepassados era indispensável, pois estes representavam os laços que uniam o presente e o passado, e era através da genealogia das gerações que se construía a medida do tempo local. Apesar, entretanto, dessa noção genealógica no pensamento desses povos, o passado, o presente e o futuro encontravam-se alinhados e coexistiam; portanto, para os bárbaros, em certo sentido, existia só o tempo presente: o único que era verdadeiramente concreto.14 Com a passagem do paganismo para o cristianismo, a noção de tempo foi reorganizada