A S F A N T Á S T I C A S V I A G E N S D E L Ú C I O O M A R A V I L H O S O E O M Í T I C O E M A P U L E I O E L I E T E M A R L Y D ' O N Ó F R I O * Pensando no tema Viagem...Viagens, lembrei-me da incrível viagem de Lúcio, personagem de Apuleio - autor que viveu entre 126 e 170 da era cristã, madaurense de origem, figura polêmica e controvertida como se depreende de sua obra. Nesta, podemos acompanhar a viagem ao maravilhoso - porque é a esse mundo do fantástico que nos remetem as aventuras do homem transformado em asno, e, como tal, viajante de terras inóspitas e memoráveis como as dos contos de fadas - e viagem ao mítico - porque a esse tempo nos conduzem as peripécias do jovem ansioso por conhecer as artes mágicas, bem como a própria condição de asno a que se vê submetido. Por que um asno? O próprio Lúcio, emprestando verossimilhança à sua metamorfose, afirma que as longas orelhas lhe permitiam ouvir melhor o que de outra forma lhe seria vedado. Mas parece haver também uma razão mítica, como o aponta a Profa. Sílvia de Carvalho em sua análise antropológica do Hino a Demeter e os Mistérios Eleusinos, de autoria atribuída a Homero e traduzido pela Profa. Daisi Malhadas: além disso, há indícios de que o hurro já tinha, em tempos micênicos, uma importância r eligiosa que, suspeitamos, deve estar ligada justamente ao sacerdócio. Lévèque(...) reproduz um afresco de Tirinto, mostrando uma procissão de personagens com cabeças de burro. Podemos lembrar também a obra de Apuleio (O Asno de Ouro ou As Metamorfoses), obra bem posterior (e latina), é verdade (século II D.C.), mas cuja inspiração é grega e * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa. Itinerários, Araraquara, n° 8,1995. - 77 - parece bem arcaica. Nela. o asno aparece como associado ao sacerdócio de ísis... (p. 34). O livro de que tratamos inspirou-se numa versão grega antiga, atribuída a certo Luciano, ou, talvez, mais remotamente, a Lúcio de Patras; Apuleio acrescentou à tal versão o episódio de Amor e Psique, detalhes mais notáveis da recuperação da forma humana e todo o capítulo relativo à iniciação aos cultos de mistério de ísis. Além dessa inspiração grega, uma releitura de O Asno de Ouro, também conhecido como Lúcio, O Asno ou Metamorfoses, permite-nos analisar, de imediato, sua forma, que remonta, possivelmente, às mais populares de poesia que floresceram no período arcaico da literatura latina, simultaneamente aos Carmina Convivalia (poemas - cantos proferidos durante os banquetes e fonte dos poemas épicos presentes nas obras de Lívio Andrônico e Névio), sendo constituídas pelas atellanae, pelos fescennini e pelas saturae dramaticae. As atellanae tinham esse nome por terem nascido na cidade de Atei la; representavam em geral tipos característicos: Pappus - o velho ridículo; Maccus - o bobo; Dossenus - o corcunda sábio, personagens estes que permanecem na comédia latina posterior, conservando-se seus traços nas farsas e, nas páginas de Apuleio, nas figuras retratadas: as alcoviteiras, os donjoões, os moleiros, a polícia, o hortelão, o avarento, o agiota, os vendedores de peixe, e, sobretudo, os cornudos. Os fescennini eram semelhantes às atellanae, provindo seu nome da cidade etrusca de Fescennia. Compunham-se de diálogos de caráter satírico, malicioso e também licencioso, recitados em festas religiosas pelos camponeses. A essas composições, mais tarde, juntaram-se o canto e a dança, constituindo-se as saturae dramaticae. Em seu comentário à tradução de O Asno de Ouro, Ruth Guimarães, analisando a dissolução da literatura latina nessa época, destaca uma renovação, entretanto, que ocorre com o aparecimento do romance: Surgira com o Satylicon, o livro mais estranho de toda a Literatura Romana, atribuído a Petrônio- sátira forte, feroz, cruel, realista, impiedosa, obscena, sem nenhuma ternura humana, sem nenhum pensamento generoso, sem nenhum ideal. Livro que chafurda na imoralidade e na corrupção, parecendo deleitar-se o seu autor com elas. No entanto, espelhava com uma verdade dolorosa a vida da sociedade romana do tempo. Nas pegadas desse livro funesto viria Apuleio com O Asno de Ouro, e viria Gil Blas, de Santilkma, dezessete séculos mais tarde, e viriam depois Tristram Shandy e Tom Jones (p. 7). Também é ela - Ruth Guimarães - quem explica o aparente cochilo de Apuleio-autor ao apresentar o personagem-narrador Lúcio como cidadão grego, cujo berço declara ter sido a Himeto ática, o Istmo ifireu e a Tenaro espartana no livro I , 1, e, inesperadamente, no livro X I , 13, ao identificar-se com ele, quando afirma ser um pobre cidadão africano de Madaura: Imagino que, como se trata de narrativas populares, o Lúcio, o Asno, Apuleio enfim, é este, aquele, e outros, gente de todos os tipos e feitios, é o que escuta e é o que conta, para se resumir no fim, numa síntese, como o homem de Madaura que enfeixou os contos (p. 13). O romance satírico, dividido em onze livros, narra em primeira pessoa as aventuras do jovem Lúcio, que parte de Corinto rumo a Tessália, onde se praticam as artes mágicas, imbuído do desejo de conhecê-las. Temos, aqui, a primeira etapa das viagens de Lúcio, uma viagem espacial que penetrará as outras duas espécies de viagem, ao maravilhoso e ao mítico, em toda a obra. Chegando a Hípata, importante cidade da Tessália, é hospedado por Milão, um rico avarento, cuja esposa, Panfília, é uma temida feiticeira. A empregada Fótis torna-se amante de Lúcio, que a convence a levá-lo ao salão onde Panfília faz suas mágicas e, vendo-a transformar-se em coruja, induz Fótis a passar sobre o corpo dele o mesmo unguento usado pela feiticeira; mas Fótis troca o pote e, em vez de ave, Lúcio vê-se transformado em asno. Iniciamos aqui a viagem ao maravilhoso: o incidente seria banal, pois bastaria que ele comesse pétalas de rosa para desencantar-se, se, naquela noite, bandoleiros das montanhas não assaltassem a casa de Milão, a quem assassinam, roubando-lhe toda a prataria e o ouro, carregando tudo às costas dos três animais ali encontrados: o cavalo de Lúcio, o próprio Lúcio, agora asno, e um asno verdadeiro. Dirigem-se ao esconderijo nas montanhas, onde mantêm prisioneira a jovem Caridade, pela qual pretendem elevado resgate. O noivo da prisioneira, Tlepólemo, disfarçado de bandido, embebeda os ladrões e salva a jovem e o burro Lúcio, o qual, após algum tempo sob a proteção do casal, cai nas mãos de uma mulher malvada e de um rapaz igualmente mau. Pesando sobre ele a calúnia de luxúria, vê-se condenado à castração, mas consegue salvar-se, passando por novas aventuras e pelas mãos de camponeses, depois de um bando de homossexuais - falsos sacerdotes da deusa Atargátis, cuja estátua carrega nas peregrinações. Descoberta a falsidade dos sacerdotes, Lúcio é vendido a um moleiro, que o atrela à mó. Nesse trabalho penoso, tem a oportunidade de ouvir e presenciar três episódios de adultério. É, depois, vendido a um hortelão, que o perde para um soldado presunçoso. Passa a servir a donos de uma pastelaria ou confeitaria e, finalmente, consegue alimentar-se dignamente, como homem que é, sob a aparência de burro, até que seus donos descobrem tão diferentes hábitos gastronômicos num burro e passam a usá-lo, a partir disso, como atração circense, ganhando muito dinheiro às suas custas. Uma mulher criminosa é condenada a ter relações sexuais com o burro Lúcio, em público, no anfiteatro. Para evitar tal contacto com uma celerada, Lúcio foge e, chegando a uma praia, desesperado, suplica à deusa ísis que o auxilie. Embora o maravilhoso e o mítico permeiem todo o livro, marcamos nesta etapa o mergulho na viagem aos domínios do mito. A deusa ísis aparece ao nosso herói, na praia, em sonhos e orienta-o sobre o procedimento que deve ter para voltar à forma humana: deverá comer as rosas que o sacerdote ofereceria a ela, no dia seguinte, durante uma procissão religiosa. Lúcio obedece e, cheio de alegria, retoma a sua identidade real e recupera - dom inigualável - a linguagem! Inicia-se nos rituais secretos de adoração a ísis, é consagrado, adquirindo o esplendor que cabe aos eleitos da deusa. Uma nova iniciação é-lhe exigida; desta vez, ao deus Osíris que, findos os ritos, aconselha-o a transferir-se para Roma, onde exerce dupla função: sacerdote e advogado. Esta é a linha central da narrativa, à qual se incorporam doze microfábulas, ouvidas de outrem ou presenciadas por Lúcio enquanto asno, que mantêm o interesse e a vivacidade da ação. Neste romance satírico-picaresco, Apuleio traz-nos a linguagem do dia-a-dia, simples, clara, direta, às vezes; em outras, pesada de intenções. Nele sentimos bem as palavras de Jaa Torrano: As mentiras são símeis aos fatos enquanto se dissimula a unidade que, por estar na raiz da similitude, une, simultaneamente, em um só lugar, o símil e o ser-mesmo (...). Ao dar-se como símil, o ser-mesmo se dissimula pela simulação dessa similitude que, na força do semelhar e do simular, apresenta-o como simulacro (a mentira símil) (p. 26). Este simulacro presente em toda a macrofábula de Lúcio conduz- nos à carnavalização do romance latino, representada pela tendência de oposição à norma, de vazão ao instinto, revolta, crítica, em suma, negação de valores maiores ou socialmente aceitos. Temos aqui o herói pícaro, homem por dentro, asno por fora, usando de sua condição física para melhor ouvir e bisbilhotar sem punição, em oposição ao herói mítico, representado na literatura latina por Enéias, filho da deusa Vénus, que vive orientado para a realização ideal. Também sentimos o espírito dionisíaco, enquanto embriaguez, libertando os instintos e expondo o verdadeiro "eu" de cada um, guiando - talvez, melhor dizendo, desviando - para caminhos do prazer, da luxúria, do pecado, os incautos viandantes da narrativa de Lúcio. E, então, a força da natureza que embriaga o homem e, de acordo com o deus de que deriva - Baco - notabiliza-se pela aceitação da vida tal qual se apresenta, sem otimismo ou pessimismo, mas vida plena, em seu valor absoluto, como pensava Nietzsche. Representando o período do declínio do Império e da literatura latina, a sátira picaresca de O Asno de Ouro traz-nos a palavra símil, criadora e mantenedora do simulacro em que o homem se desumaniza, não apenas no sentido físico, mas também no sentido moral, como os animais, cuja aparência chega a assumir. O livro X I , relatando a metamorfose asno/homem graças à interferência da deusa ísis, mostra-nos o mais longo texto sobre os cultos de mistério que nos chegou da antigüidade. Em Antigos Cultos de Mistério, Walter Burkert diz que os mistérios eram rituais de iniciação de caráter voluntário, pessoal e secreto, que visavam a uma transformação do espírito por meio da experiência do sagrado (p. 24). Em seu relato, Lúcio revela a deusa ísis, identificando-a com a Lua e todas as deusas, o que a faz brilhar tanto no mundo dos vivos como no dos mortos: Venho a ti, Lúcio, comovida por tuas preces, eu, mãe da Natureza inteira, dirigente de todos os elementos, origem e princípio dos séculos, divindade suprema, rainha dos Manes, primeira entre as habitantes do céu, modelo uniforme dos deuses e das deusas. Os cimos luminosos do céu, os sopros salutares do mar, os silêncios desolados dos infernos, sou eu quem governa tudo isso, à minha vontade. Potência única, o mundo inteiro me venera sob formas numerosas, com ritos diversos, sob múltiplos nomes. Os frígios, primogênitos dos homens, me chamam deusa- mater, e deusa do Pessinúncio; os atenienses autóctones, Minerva Cecropiana; os cipriotas banhados pelas ondas, Vénus Pafiana; os cretenses portadores de flechas, Diana Ditina; os sicilianos trilingües, Prosérpina Estígia; os habitantes da antiga Elêusis. Ceres Acteana; uns Juno, outros Belona; estes Hécate, aqueles Ramnúsia. Mas os que o Sol ilumina com seus raios nascentes, quando se levanta, e com seus últimos raios, quando se inclina para o horizonte, os povos das duas Etiópias e os egípcios poderosos por seu antigo saber, honram-me com o culto que me é próprio, chamando-me pelo meu verdadeiro nome: rainha ísis (Apuleio, s/d,p. 182). Ela vem disposta a ajudá-lo, mas também a cobrar sua devoção ilimitada: Mas, acima de todas estas coisas, lembra-te e guarda sempre gravado no fundo do teu coração, que toda a tua carreira, até o fim da tua vida, e até o teu derradeiro suspiro, me foi penhorada (Apuleio, S.d, p.183). Iniciou-se, então, a preparação ritual de Lúcio: ele agregou-se, como leigo, na qualidade de companheiro e comensal, aos sacerdotes. Entrementes, ísis aparecia-lhe em sonhos, insistindo que não adiasse por mais tempo sua iniciação, à qual, por temor religioso, não se dispusera ainda. Um presságio de uma recompensa em forma de um servidor, havido em sonho e realizado no dia seguinte, quando servos provenientes de Hípata lhe trouxeram seu cavalo branco, fê-lo, finalmente, decidir-se a procurar o sacerdote, que o aconselhou a aguardar com paciência a manifestação - 8 2 - divina, já que o próprio ato da iniciação representa uma morte voluntária e uma salvação obtida pela graça (Apuleio, s.d, p. 191). Chegado afinal o dia de sua consagração, o sacerdote o acolheu, leu para ele textos escritos em caracteres desconhecidos que orientaram os preparativos. Após uma cerimônia de purificação pela água, seguiram-se dez dias de jejum e recolhimento, findos os quais foi vestido de linho e levado à parte mais recuada do santuário. Os ritos que se seguiram, Lúcio omite-os por preceito, só narrando o que era permitido: Aproximei-me dos limites da morte. Pisei o portal de Prosérpina, e voltei, trazido através de todos os elementos. Em plena noite, vi brilhar o Sol, com uma luz que cegava. Aproximei-me dos deuses dos infernos, dos deuses do alto: vi-os face a face e adorei-os de perto. Eis aí a minha narração, e o que não ouvistes, estás condenado a ignorar. Limitar-me-ei a relatar o que for permitido, sem sacrilégio, revelar à inteligência dos profanos (Apuleio, S.d, pp. 192/193). Após todos os rituais secretos, Lúcio sobe ao estrado de madeira erguido diante da imagem da deusa, vestido com a estola olímpica - nome que os iniciados davam aos trajes cerimoniais - carregando uma tocha acesa e tendo na cabeça uma coroa de palmas. Completa-se o cerimonial e Lúcio volta a Madaura, depois a Roma. A l i , inicia-se no culto de Osíris, orientado por novo oráculo onírico. Uma terceira iniciação é-lhe exigida e Osíris lhe aparece - em sonho - incitando-o a continuar resolutamente sua carreira de advogado, e fazendo-o, enfim, entrar para o colégio de seus pastóforos, elevando-o à classe de decuriâo qüinqüenal. Comentando tal seqüência, Burkert diz que assim, a iniciação marcaria uma etapa entre a condição de fiel de maneira geral e a indicação para o corpo administrativo. No entanto, não há qualquer indicação de que um tal cursus honorem uniforme e constante constituísse a regra (p. 62). Interessante é notar, ainda, que o nome do sacerdote da primeira iniciação de Lúcio era Mitra, não casualmente o nome de uma antiquíssima divindade indoiraquiana, documentada desde a Idade do Bronze, cujo nome significa, para Burkert: o intermediário, no sentido de tratado e promessa de fidelidade. Algumas etapas dos cultos de mistérios, como o ritual de purificação - a que chamamos batismo -, o jejum e abstinência - igualmente usados nos dias atuais, nas religiões mais difundidas - a passagem da morte para a vida plena - fundamento das religiões cristãs -, a simbologia da própria palavra mitra, além dos mistérios eles-mesmos, fazem-nos pensar que, realmente, os rituais religiosos se preservam em práticas mais ou menos requintadas, porém e sempre, irmanadas por um princípio mítico comum que se situa na crença, na fé que move montanhas, em qualquer tempo ou lugar dentro daquilo que chamamos o humano do homem. Como conclusão, acrescentaríamos que viajar ao maravilhoso e ao mítico é a manifestação do anseio maior do homem de transitar pela vida em busca do divino. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APULEIO, L. O Asno de Ouro. Rio de Janeiro: Ed. Tecnoprint S.A., s.d. BURKERT, W. Antigos Cultos de Mistério. São Paulo: EDUSP, 1991. CARVALHO, S. M. S. 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