ANDRÉ LUIS SILVA EIRAS AUTONOMIA PELA ASSERTIVIDADE: A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DO PARTIDO DOS TRABALHADORES (2003-2010) MARÍLIA 2013 ANDRÉ LUIS SILVA EIRAS AUTONOMIA PELA ASSERTIVIDADE: A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DO PARTIDO DOS TRABALHADORES (2003-2010) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Área de concentração: Relações Internacionais e Desenvolvimento Orientador: Prof. Dr. Marcelo Fernandes de Oliveira MARÍLIA 2013 Eiras, André Luis Silva. S---t Autonomia pela Assertividade: A Política Externa Brasileira do Partido dos Trabalhadores (2003-2010) / André Luis Silva Eiras. – Marília, 2013. 107 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais ) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2013. Bibliografia: f. 98-107 Orientador: Marcelo Fernandes de Oliveira 1. Política Externa Brasileira. 2. Governo Lula. 3. Autonomia pela Assertividade. I. Autor. II. Título. CDD --- ANDRÉ LUIS SILVA EIRAS AUTONOMIA PELA ASSERTIVIDADE: A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DO PARTIDO DOS TRABALHADORES (2003-2010) Dissertação para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, na área de concentração de Relações Internacionais e Desenvolvimento. BANCA EXAMINADORA Orientador: ______________________________________________________ Dr. Marcelo Fernandes de Oliveira (FFC/UNESP) 2º Examinador: ___________________________________________________ Dr. Francisco Luiz Corsi (FFC/UNESP) 3º Examinador: ___________________________________________________ Dr. Caroline Kraus Luvizotto (UNOESTE) MARÍLIA 2013 À Yeshua Hamashia, tudo. AGRADECIMENTOS Ao Professor Marcelo Fernandes de Oliveira, que foi, sinceramente, um divisor na minha vida acadêmica quando, no início dos trabalhos, propôs uma mudança completa nas minhas reflexões sobre a política externa brasileira. Aos meus professores da UNESP que proporcionaram interessantes discussões e pontos de vista diversos, em especial à Rosângela de Lima Vieira, Sueli Andruccioli Félix, Marina Gusmão de Mendonça, Júlio Gomes e Jayme Wanderley Gasparoto. Aos colegas da pós-graduação, que me auxiliaram nas mais diversas maneiras possíveis, seja em companheirismo nas minhas estadas em Marília quanto em gratificantes debates acadêmicos, em especial à Natália Redígolo, Beatriz Sabia, Sérgio Urbaneja, Guilherme Astolpho Aguiar, Mauri da Silva, Abraão Pustrelo e Ana Lúcia Gasparoto. Aos pesquisadores do IGEPRI pelas valiosas discussões nos encontros do grupo, em particular à Camilla Geraldello e Aubrey Leonelli. À CAPES, pelo auxílio financeiro durante o mestrado. Minha família sempre me apoiou, principalmente meus pais e minha irmã. Sempre suportaram o grande tempo dedicado ao estudo solitário e aos livros. Eles foram sempre incentivadores fantásticos. RESUMO Este trabalho tem por objetivo analisar a política externa brasileira no governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Primeiramente foi realizado um levantamento histórico da formação do Partido dos Trabalhadores, a fim de caracterizar o pensamento petista sobre a política externa. Buscamos semelhanças e divergências entre partido e governo, desenhando um paralelo com os princípios tradicionais da diplomacia brasileira para identificar as linhas de ruptura e de continuidade. Posteriormente, foi apresentado os conceitos de autonomia pela distância, autonomia pela participação e autonomia pela diversificação. Sustentamos que o conceito de autonomia pela diversificação não traduz de maneira consistente a política externa brasileira durante o governo Lula, sendo, portanto, necessário cunhar outro conceito: o da autonomia pela assertividade. Sua premissa básica é a de uma política externa mais afirmativa no que diz respeito à defesa dos interesses brasileiros perante os demais países do sistema internacional. O conceito de autonomia pela assertividade seria representado na prática pela adesão do país aos princípios e às normas internacionais via alianças Sul-Sul, reivindicando diversas polaridades como princípio ordenador da política internacional contemporânea. Nesse sentido, é demonstrado o protagonismo brasileiro na formação de alianças estratégicas, a priorização da América do Sul e a preferência pelo eixo Sul-Sul nas relações internacionais do Brasil. Palavras-chave: Política Externa Brasileira; Governo Lula; Autonomia pela Assertividade. ABSTRACT This work aims to analyze the Brazilian foreign policy in the government Luiz Inacio Lula da Silva (2003-2010). Firstly we make a survey of the formation of the Workers Party in order to characterize their thought about foreign policy. We seek similarities and differences between party and government, drawing a parallel with the traditional principles of Brazilian diplomacy to identify the lines of rupture and continuity. Later, we present the concepts of autonomy through distance, autonomy through participation and autonomy through diversification. We argue that the concept of autonomy through diversification does not translate consistently in the Brazilian foreign policy during the Lula government, therefore, we need to forge another concept: autonomy through assertiveness. Its basic premise is that of a more assertive foreign policy regards to the defense of Brazilian interests before other countries in the international system. The concept of autonomy through assertiveness in practice would be represented by the country's accession to the principles and international standards through South-South alliances, claiming various polarities as ordering principle of contemporary international politics. In this sense, it is explained the Brazilian role in the formation of strategic alliances, the prioritization of South America and the preference for the South-South of Brazil in international relations. Keywords: Brazilian Foreign Policy; Lula Government; Autonomy for Assertiveness. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIEA Agência Internacional de Energia Atômica ALALC Associação Latino-Americana de Livre Comércio ALCA Área de Livre Comércio das Américas ALCSA Área de Livre Comércio Sul-Americana ASA Cúpula América do Sul-África ASPA Cúpula América do Sul-Países Árabes BRICS Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul CAN Comunidade Andina de Nações CSNU Conselho de Segurança das Nações Unidas FMI Fundo Monetário Internacional FOCEM Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul IBAS Índia, Brasil, África do Sul MERCOSUL Mercado Comum do Sul MINUSTAH Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti MRE Ministério das Relações Exteriores OMC Organização Mundial do Comércio ONU Organização das Nações Unidas PEI Política Externa Independente PT Partido dos Trabalhadores TNP Tratado de Não-Proliferação UNASUL União de Nações Sul-Americanas UNCTAD Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10 2 A BASE TEÓRICA DA POLÍTICA EXTERIOR DO BRASIL .......................................... 16 2.1 Introdução ....................................................................................................................... 16 2.2 A formação e a evolução do pensamento do PT sobre Política Externa ........................ 17 2.3 A evolução do pensamento petista sobre política externa .............................................. 24 2.4 A política externa do Brasil no Governo Lula (2003-2010) ........................................... 32 3 AUTONOMIA E DESENVOLVIMENTO PELA ASSERTIVIDADE ............................... 36 3.1 Introdução ....................................................................................................................... 36 3.2 As três autonomias ......................................................................................................... 38 3.2.1 Autonomia pela Distância ....................................................................................... 38 3.2.2 Autonomia pela Integração ou Participação ............................................................ 40 3.3 A Autonomia pela Assertividade .................................................................................... 44 4 O EXERCÍCIO DA AUTONOMIA: CONTINUIDADE E MUDANÇA ............................ 55 4.1 Introdução ....................................................................................................................... 55 4.2 Relações com os Países Desenvolvidos ......................................................................... 57 4.2.1 O papel dos EUA ..................................................................................................... 58 4.2.2 A União Europeia .................................................................................................... 66 4.3 Integração Sul-Americana: prioridade diplomática ........................................................ 68 4.3.1 Mercosul .................................................................................................................. 71 4.3.2 UNASUL ................................................................................................................. 75 4.4 Relações com os Países em Desenvolvimento ............................................................... 78 4.4.1 Brasil e China .......................................................................................................... 86 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 95 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 98 10 1 INTRODUÇÃO Esta dissertação começou com a proposta de se compreender a questão da autonomia na política externa do Brasil durante o governo Lula (2003-2010). A princípio, a abordagem inicial em utilizar-se do conceito de “autonomia pela diversificação” não foi suficiente para compreender a política externa do período, em que a utilização de uma ideologia específica do Partido dos Trabalhadores marcou o período. A definição por um novo conceito, o de “autonomia pela assertividade” justifica-se pela relevância em compreender o nexo entre a diplomacia tradicional e a praticada pelo governo Lula, aliado a um debate cada vez maior sobre o tema. A academia intensificou, nestes últimos anos, os debates na área de Relações Internacionais sobre uma nova formulação de política externa brasileira. Segundo Almeida (2010), há intelectuais identificados politicamente com Fernando Henrique Cardoso e que sustentam a impropriedade das mudanças propostas na gestão de Lula para a inserção internacional brasileira, e que a diplomacia denominada “lulopetista”1 estaria dispensando relacionamentos internacionais consolidados ao longo da história com nações desenvolvidas, como Estados Unidos e os países europeus, para celebrar novas parcerias com países em desenvolvimento e com menor intensidade política e econômica para modelar estruturas internacionais favoráveis aos tradicionais interesses brasileiros. Segundo essa visão, os esforços concentrados durante o governo FHC em fazer retornar o Brasil à condição de ator relevante no cenário internacional durante nos anos 1990, na perspectiva da busca de uma autonomia pela integração2, foram tornados em vão. Para esses intelectuais ligados ao governo de FHC, essa troca deu-se com um reavivamento de ideologias nacionalistas e “terceiro-mundistas” orientadoras da ação da diplomacia brasileira sob o termo “lulopetismo”. Por outro lado, intelectuais e pensadores mais próximos do viés ideológico de esquerda, e, portanto, identificados com o governo Lula 3 , buscam demonstrar que as 1 Lulopetismo, ou lulopetista, é um termo geral utilizado para caracterizar a política do Partido dos Trabalhadores em conjunto com a figura pessoal do presidente Lula da Silva. 2 Este conceito será melhor desenvolvido no capítulo 3. 3 Dentre os mais famosos destaca-se o Professor e Assessor-Especial da Presidência da República Marco Aurélio Garcia, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, o diplomata José Maurício Bustani, os pesquisadores Moniz Bandeira, Maria Silvia Portela de Castro, e os professores Paulo Vizentini, Paulo Nogueira Batista Jr, Ricardo Seitenfus. Dentre os intelectuais da “oposição”, podemos citar Marcelo de Paiva Abreu, Paulo Roberto de 11 mudanças na política externa brasileira são essenciais, pois tratam de reivindicar espaços de poder ao país e a seus parceiros internacionais de semelhante capacidade econômica, política e social, que cumpririam papéis relevantes no mundo mesmo sem possuírem determinado poder nos importantes fóruns internacionais de tomada de decisões econômicas e sociais. Contudo, ao invés de aprofundar a discussão do Brasil e sua orientação de política externa por meio de construção de modelos teóricos parcialmente isentos de ideologia, esse grupo de intelectuais promove uma visão política partidária na condução nacional, que definirá nossa inserção no mundo no século XXI. O debate acadêmico-científico sobre a construção de um novo modelo de inserção internacional por meio da política externa no período democrático brasileiro, principalmente durante o governo Lula (2003-2010), revive antigas discussões teóricas e ideológicas entre “entreguistas” e “nacionalistas” 4 , “liberais” e “desenvolvimentistas” 5 , o “último dos primeiros” e “o primeiro dos últimos”6, “neoliberais” e “neodesenvolvimentistas”, Estado logístico e Estado Normal 7 , entre tantas outras dicotomias. Há também uma extrema politização da política externa que ocorreu durante os últimos anos entre partidários do governo Lula e da oposição. Podemos, segundo Almeida (2006), estabelecer uma divisão desses grupos de intelectuais em três categorias sintéticas, em que esses intelectuais ligados ao governo Lula encontram-se nos grupos 1 e 2: 1. “vozes autorizadas”, isto é, os produtores originais de posições e discursos para a diplomacia em questão; 2. “apoiadores externos”, isto é, membros da academia e profissionais dos meios de comunicação que concordam, no essencial, com as grandes linhas do discurso e da prática diplomática; 3. “independentes” ou “críticos”, ou seja, aqueles que se dedicam ao registro de posições e à análise de suas implicações políticas e econômicas para as relações internacionais do Brasil, mantendo um olhar crítico sobre os fundamentos e as tomadas de posição da atual diplomacia. Almeida, Rubens Barbosa, Clovis Brigadão, João Augusto de Castro Neves, Mario Cesar Flores, Celso Lafer, Demétrio Magnoli, Pedro da Motta Veiga e Eduardo Viola, por exemplo. 4 Principais debatedores: Luis Carlos Bresser-Pereira, Helio Jaguaribe e Paulo Nogueira Batista Jr. 5 Principais debatedores: Eugenio Gudin e Roberto Simonsen 6 Reflexão iniciada no Itamaraty quando Fernando Collor assumiu a presidência e desenvolvida melhor pelo diplomata Celso Amorim em suas duas passagens pela chancelaria brasileira. 7 Conceito cunhado pelo professor Amado Cervo, da UNB. 12 Em meio a esse debate, surge algumas formulações e proposições acadêmicas de estratégia de diversificação dos relacionamentos externos do país utilizadas no passado, apresentando-as como novidade política. Para isso, utiliza-se modelos conceituais da década de 1950 produzidos na academia norte-americana, com pouca adaptação às condições nacionais, promovendo, assim, um certo anacronismo histórico que contribui para legitimar as ações políticas da ideologia do partido político no poder. Desse quadro político, surgem constructos conceituais que interpretamos como equivocadas, conduzindo-nos a indagar sobre as suas pertinências para a classificação da política externa brasileira no governo Lula da Silva. Nesta perspectiva, para tentar contribuir e clarificar o debate, elaboramos as seguintes indagações: é viável, dentro de uma perspectiva analítica, classificar e enquadrar períodos históricos da política externa brasileira por meio de conceitos tais como autonomia pela distância e autonomia pela integração? Caso positivo, o que permite sugerir que a política externa do governo Lula pode ser classificada pelo conceito de autonomia pela diversificação? Haveria nuances na prática da diplomacia brasileira durante o governo Lula que poderiam contestar o conceito da autonomia pela diversificação? Portanto, qual a proposta conceitual analítica provável da política externa brasileira durante o governo Lula (2003-2010)? Para responder a essas indagações, nossa hipótese é a de que há viabilidade de classificar e enquadrar períodos históricos da política externa brasileira na lógica do conceito de autonomia. Entretanto, sustentamos que o conceito da autonomia pela diversificação não expressa adequadamente a política externa brasileira exercida durante o governo Lula (2003- 2010). Faz-se necessário, portanto, cunhar outro conceito que denominaremos de “autonomia pela assertividade”, pois o governo Lula teve como premissa de sua ação consolidar uma política externa mais afirmativa no tocante à defesa dos interesses brasileiros no mundo. Nesse sentido, assertivamente, a diplomacia brasileira passou a defender a adesão do país aos princípios e às normas internacionais por meio de alianças conhecidas como “Sul- Sul”, revivendo discursos e mecanismos políticos e institucionais internacionais identificados com o movimento dos países não alinhados durante os anos de 1960 a 1980. Esses realinhamentos serviriam para reduzir as assimetrias nas relações externas com países de maior poder internacional, permitindo aos países em desenvolvimento ocupar um espaço maior na tomada de decisões sobre assuntos globais. 13 Ademais, permitiria também a seus parceiros um “falar mais alto” internacionalmente e um “bater na mesa”, criando condições abstratas e práticas sem grandes consequências para um exercício mais assertivo de seus interesses nacionais. Por esse motivo, em resposta ao unilateralismo norte-americano, por exemplo, o governo Lula e seus novos parceiros internacionais optaram por resgatar e viabilizar o multipolarismo como princípio ordenador da política internacional em oposição à dinâmica do multilateralismo prevalecente no mundo pós-1945. Em 2005, durante o evento “Brasil: Ator Global”, o Presidente Lula afirmou8 que: Um mundo plural - ou 'multipolar', como às vezes se diz - não é um desejo piedoso de diplomatas ou acadêmicos idealistas. É uma exigência dos dias que correm. A negação da pluralidade de polos, pretensamente 'realista', reduz as relações internacionais apenas à expressão da força militar. Para afirmar a democracia no plano internacional, é preciso reconhecer que a pluralidade de visões é legítima e que há um espaço crescente a ser dado à ação diplomática. Ser democrata no plano global é acreditar que todos têm direito a ser atores, que cada ator tem suas razões e que, enfim, nem sempre a razão do mais forte é a mais forte das razões (BRASIL, 2007, p. 41). Este multipolarismo é compreendido como um movimento amplo em busca da desconcentração e regulação de novos polos de poder nas relações internacionais. A dimensão prática desse exercício intelectual, ideológico e político, pode ser encontrada no protagonismo brasileiro durante a formação do G-49, que visa a reforma da ONU; na criação do G-20 agrícola10; na criação do G-20 financeiro11; na aproximação com países africanos e árabes; na discussão sobre a questão da segurança internacional envolvendo material atômico; no enfrentamento com os Estados Unidos, principalmente na discussão sobre a ALCA12; na criação do Fórum IBAS13; a atuação conjunta no BRICS14 com apoio a entrada da Rússia e da China na OMC15; etc. 8 Discurso do Presidente Lula no evento “Brasil: Ator Global”, Paris, 13.07.2005, in Repertório de Política Externa: posições do Brasil, p. 41. 9 O G-4 é uma aliança entre Alemanha, Brasil, Índia e Japão com a proposta de apoiar as propostas uns dos outros para ingressar em lugares permanentes no Conselho de Segurança das Nações Unidas. 10 Grupo de países emergentes criado em 20 de agosto de 2003, em Cancún, México, focado principalmente na agricultura. 11 Grupo formado em 1999, após sucessivas crises financeiras da década de 1990, pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia. 12 Área de Livre Comércio das Américas, proposta de 1994 para eliminar barreiras alfandegárias entre 34 países das américas. O projeto da ALCA está parado desde 2005 quando da última Cúpula das Américas, em Mar Del Plata, Argentina. 13 O Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul, comumente abreviado para IBAS, também chamado de G3, é um acordo feito entre Índia, Brasil e África do Sul de caráter político, estratégico e econômico. 14 Outra mudança prática trata da disposição do governo Lula em arcar com os custos do exercício da sua liderança na América do Sul por meio da proposta da ALCSA16, onde desempenhou papel proeminente para a solução pacífica de crises regionais, agindo como liderança sul-americana orientada na busca de um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Os custos reais dessa disposição ainda não foram medidos, entretanto ela contribuiu para ampliar as tensões de vários vizinhos contra o Brasil em torno de questões específicas, vindo a sermos rotulados de imperialistas. É importante lembrar também a experiência no Haiti, a crise do Mercosul, principalmente no relacionamento bilateral com a Argentina, a crise com a Bolívia na questão do gás, a crise com o Equador e empreiteiras brasileiras, as dificuldades com a Venezuela e Chávez, a crise de Itaipu com o Paraguai, entre outras ocasiões em que o Brasil exerceu sua assertividade. Isto posto, em nossa hipótese a política externa do governo Lula buscou muito mais abrir espaços políticos entre países de menor poder relativo e países em desenvolvimento para formular sua assertividade como norma da afirmação de seus interesses externos, tendo em vista fomentar a existência de um grande país que, para alguns, ainda não existe na seara internacional nesse início de século XXI. Como consequência dessas ações, alguns relacionamentos com parceiros internacionais de longo prazo ficou prejudicado, trocando o tradicional pelo novo, bem como, no âmbito regional, redespertando algumas desconfianças historicamente já solucionadas. A demonstração empírica da nossa hipótese partirá da assertiva de que é incorreto afirmar que o elemento inovador da política externa de Lula foi sua diversificação. Isso ocorreu outrora durante a Política Externa Independente nos anos 1960, a qual, sob outra denominação, foi levada a cabo durante o governo militar visando tornar o Brasil um Global Trader. Em nossa visão, a política externa do governo Lula não inovou em priorizar as relações Sul-Sul, enquanto estratégia para não submeter-se aos interesses das grandes potências. Parte-se da premissa de que a diplomacia no período destacado recebeu novos elementos ao apresentar ideais historicamente ligados ao Partido dos Trabalhadores e de seus dirigentes que assumiram a formulação da política nacional. 14 Acrônimo cunhado por Jim O´Neill, economista chefe do grupo financeiro Goldman Sachs, que se refere as economias em desenvolvimento do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (BRICS). 15 A Organização Mundial do Comério é uma organização internacional que trata das regras do comércio internacional. 16 Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA), projeto formulado durante o governo Itamar Franco, visava a construção de um bloco econômico sul-americano 15 A partir dessa influência, a priorização do desenvolvimento da América Latina e das relações Sul-Sul se explicará, como veremos no capítulo 2, a partir da ideia de autonomia pela assertividade desenvolvida no capítulo 3. A fim de implementar uma política externa diferenciada, a administração petista retomou elementos das políticas desenvolvimentistas e, em conjunto com sua assertividade, buscou colocar o Brasil em destaque nas grandes questões mundiais, como veremos no capítulo 4. 16 2 A BASE TEÓRICA DA POLÍTICA EXTERIOR DO BRASIL 2.1 Introdução O Partido dos Trabalhadores é atualmente um dos maiores e mais importante partido que atua na política brasileira. Em um breve retrospecto histórico, é possível destacar duas características determinantes no contexto político e social da época em que foi fundado, as quais guiarão o partido a elaborar as bases e os discursos filosóficos ao longo de sua trajetória: a redemocratização do Brasil e a organização de um movimento popular, a partir do surgimento de um novo sindicalismo emergente durante as greves de 1978 (MENEGUELO, 1989). Participante ativo enquanto partido de oposição e presente nas disputas eleitorais desde 1989, o PT desenvolveu uma base política sólida e uma estruturação interna de suas propostas políticas. Com o esgotamento do modelo neoliberal no fim do século XX, o partido consegue disseminar melhor seus ideais elegendo, em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo de Presidente da República Federativa do Brasil, tendo conseguido uma reeleição para o segundo mandato até 2010. Em oito anos de governo, são inegáveis os diversos avanços alcançados, como também as mudanças implementadas pela gestão o PT. Não cabe neste trabalho analisar as diversas medidas adotadas, sobretudo no âmbito social, carro-chefe da sua propaganda política. Iremos, porém, avaliar apenas a política externa executada ao longo destes anos, buscando delinear suas características gerais e avaliar as linhas de continuidade e de ruptura existentes, contrapondo-as ao acumulado histórico da diplomacia brasileira. Sendo assim, em um primeiro momento, será feito uma contextualização histórica a partir da formação do Partido dos Trabalhadores, identificando preliminarmente algumas de suas bases de sustentação, necessárias para o entendimento futuro das origens da estratégia petista de inserção internacional para o Estado brasileiro. Em segundo lugar, uma identificação da evolução do pensamento petista em política externa, por meio da análise de alguns documentos produzidos nos encontros da base do partido e dos programas de governo disponibilizados durante os processos eleitorais. Nesse sentido, vamos apresentar as principais características da política externa do governo Lula 17 (2003-2010) e buscar caracterizar nela a influência do PT, bem como seus desdobramentos mais relevantes. 2.2 A formação e a evolução do pensamento do PT sobre Política Externa A política externa brasileira, traçada historicamente pelo seu corpo diplomático, junto com seus dirigentes políticos, teve vários períodos marcantes em sua história contemporânea. Seu início deu-se na transferência da sede da monarquia portuguesa para o território brasileiro, constituindo o episódio em uma primeira experiência de política externa, embora não havendo ainda um sentimento nacional, consolidado apenas com o Estado independente. Durante o governo imperial, observa-se aspirações nacionais para a construção da soberania e do imaginário nacional, e uma tentativa, ainda que preliminar, mas já com intenções definitivas, de consolidar suas fronteiras nacionais em um único país, ao contrário do que ocorreu nas antigas colônias espanholas nas Américas. No final do século XIX e início do XX, o Brasil inicia sua inserção na divisão internacional do trabalho como uma nação de grande vocação agrícola para o monocultivo de exportação, tendo como produto base o café – e, em períodos momentâneos, a borracha, absorvida em grande quantidade pelo mercado norte-americano, graças ao crescimento de sua indústria automobilística (CERVO; BUENO, 2002). Esse novo vínculo do país com o sistema econômico internacional, iniciado no período republicano, coincidiu com etapa nacional de mudanças sociais e econômicas. O fim da escravidão estimulou um fluxo imigratório, transformando o tecido social do país, principalmente com o trabalho livre difundido, favorecendo assim o crescimento das cidades e estimulando a formação de um mercado interno. Segundo Cervo e Bueno (2002), graças à expansão da produção cafeeira no oeste paulista, o Brasil passou a controlar cerca de 65% da oferta no mercado mundial, motivada principalmente pela crescente demanda dos Estados Unidos. Embora a República tenha trazido poucas modificações na estrutura socioeconômica interna, basicamente conservadora, encontramos uma transição do modelo agroexportador para o desenvolvimentista e a introdução de alguns princípios de política externa, como o pan-americanismo, por exemplo, durante o período da gestão diplomática pelo Barão do Rio Branco, entre 1902 a 1912. Essa diplomacia multilateral trouxe ao país uma participação ativa 18 nas reuniões pan-americanas, levando o Itamaraty a valorizar a presença brasileira nos debates responsáveis pela definição de princípios e normas de convívio da comunidade internacional (PINHEIRO, 2004). A primeira atuação de destaque deu-se durante a Segunda Conferência da Paz de Haia (1907), com a delegação brasileira chefiada por Ruy Barbosa, em que o tema principal foi a criação de uma Corte Internacional de Justiça. Embora Ruy Barbosa buscasse intensamente assegurar um lugar permanente para o Brasil, com base no princípio da igualdade das nações, as principais potências mundiais impediram que a composição do tribunal se alterasse. Mesmo assim, o pensamento universalista de forte influência jurídica-liberal foi indelevelmente marcada na diplomacia brasileira a partir de então (CERVO; BUENO, 2002). Neste período da gestão do Barão do Rio Branco, a delimitação das fronteiras com os países sul-americanos, fortemente negociada durante todo o período imperial, foi concluída com êxito nos primeiros anos do século XX. Dentre as principais negociações, destaca-se o Tratado de Petrópolis em 1904 com o Bolívia, em que o Brasil adquiriu o território que hoje é o Estado do Acre, com o Uruguai em 1909, e o Tratado de Limites e Navegação Fluvial, de 1907, grande vitória para nossa diplomacia, demarcando o território com quatro nações, Venezuela, Colômbia, Equador e Peru (CERVO; BUENO, 2002). Posteriormente, durante a República dos bacharéis, no período entre 1912-1930, o Brasil procura inserir-se no chamado “concerto de nações civilizadas”, com o envolvimento na Primeira Guerra Mundial e na experiência da Liga das Nações. Segundo Almeida (2004), mesmo com a tentativa de entrar no sistema internacional, o relacionamento político com as grandes potências econômicas e militares não se deu em igualdade, com o país ainda em sua condição de “potência menor”. Com as crises político-militares e financeiras na primeira metade do século XX, o Brasil começa a formular uma política externa própria, com o objetivo de aprofundar seu desenvolvimento. Essa nova “era nacional” introduz certas alterações nas correlações de forças sociais e na própria estrutura decisória do sistema político brasileiro, introduzidas inicialmente pela Revolução de 1930 e seus desenvolvimentos subsequentes. É nessa fase que se passa de uma postura mais ou menos passiva em relação ao sistema internacional para uma tentativa, ainda que inicial, de inserção positiva e afirmativa nos quadros da ordem mundial em construção (ALMEIDA, 2004). 19 O período de 1930 e 1940 é dominado por uma redefinição de prioridades políticas internas e de alianças externas no contexto das crises da ordem política e econômica internacionais 17 . Grande parte da política externa do governo de Getúlio Vargas foi mobilizada para a necessidade de conseguir recursos financeiros e materiais para a industrialização do país, como a instalação de uma usina siderúrgica no país, mediante o apoio dos Estados Unidos (CORSI, 2000). No período entre 1945 a 1960 temos uma fase de maior participação do Brasil na construção de uma nova ordem mundial com sua participação, por exemplo, na conferência de Breton Woods, em 1944. Dentro de um quadro de barganhas políticas e de interesse econômico que o início da Guerra Fria proporcionou ao país, encontramos uma primeira iniciativa multilateral de promoção internacional, a Operação Pan-Americana proposta pelo Governo Kubitschek em 1958. A política regional é marcada, também, por uma forte promoção do desenvolvimento nacional por meio de políticas ativas de industrialização, mediante a cooperação econômica no contexto sul-americano e a promoção de esquemas de integração, como a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC 18 ) (PINHEIRO, 2004). Durante os conturbados anos dos governos de Jânio Quadros e João Goulart, o Brasil experimenta uma política externa cunhada como “independente”, constituindo uma espécie de hiato inovador na tradicional diplomacia dominada pelo conflito Leste-Oeste. Formulada por políticos como Afonso Arinos e San Tiago Dantas, bem como por diplomatas como Araújo Castro, essa iniciativa brasileira trouxe uma atuação independente no cenário internacional – aliança preferencial com os Estados Unidos pensada em termos de vantagens econômicas a serem barganhadas em função da Guerra Fria, e elementos de não-alinhamento com os parceiros tradicionais, como, por exemplo, a articulação de propostas desenvolvimentistas que resultaram na criação, em 1964, da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD)19 (CERVO; AMADO, 2002). Encontramos, em seguida, um longo período de governo militar no país, entre 1964 e 1985. Em seu período inicial, o Brasil o reenquadramento no conflito ideológico EUA-URSS 17 Destaca-se a crise econômica internacional provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929 e o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939. 18 Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), iniciativa de integração comercial iniciada na década de 1960, cujos membros Argentina, Brasil, Chile, México, Paraguai, Peru e Uruguai pretendiam criar uma área de livre comércio na América Latina. 19 Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, cujos objetivos principais eram o de uma revisão da arquitetura do sistema multilateral de comercio e a criação de mecanismos de promoção de uma inserção mais ativa dos países em desenvolvimento na economia mundial. 20 com a volta ao alinhamento político do Pan-americanismo definidos por Washington no governo de Castelo Branco (1964-1967). Posteriormente há uma certa revisão ideológica e uma busca de autonomia tecnológica entre 1967 a 1985. Esse período tem maior participação do Brasil nos esforços de construção de uma “nova ordem econômica internacional”, com atuação destacada em todos os foros multilaterais. Segundo Cervo e Bueno (2002), o período é caracterizado por diversos rótulos, como a “Diplomacia pela Prosperidade”, no governo Alberto Costa e Silva; o “Brasil Grande Potência”, no período de Emílio Garrastazu Médici; o “Pragmatismo Responsável” sob a presidência de Ernesto Geisel; e a “Diplomacia Ecumênica” no último governo militar, de João Figueiredo. Durante a consolidação do sistema democrático, com o fim dos governos militares em 1985, houve uma redefinição das prioridades e afirmação da vocação regional, com forte reversão de paradigmas tradicionais, principalmente durante a década de 1990, por onde o país necessitava adaptar-se a uma nova ordem global, com novas prioridades e formas de ação, como abertura incondicional e algumas reversões de prioridades por uma adequação mundial. Os elementos mais significativos da postura internacional brasileira caracterizam-se pelo processo de integração subregional no Mercosul e de construção de um espaço econômico na América do Sul e a continuidade da abertura econômica e da liberalização comercial na adaptação dos novos desafios da globalização (ALMEIDA, 2009). Ainda segundo Almeida (2004), entre uma política externa tradicional, por definição alinhada com as grandes potências, e uma política externa mais “independente” e ativa, foi elaborado o conceito de mudança com continuidade que se pretende uma renovação clássica do paradigma de inserção internacional brasileiro caracterizada por uma visão de futuro, complementada por uma adaptação criativa na política e na economia. Essa continuidade é apresentada nas grandes linhas de atuação da diplomacia nacional expostas no artigo 4º da Constituição Federal de 1988, que mantiveram-se quase intocadas nos últimos governos, e são estabelecidas com os seguintes princípios: a) a independência nacional; b) a prevalência dos direitos humanos; c) a autodeterminação dos povos; d) a não-intervenção; 21 e) a igualdade entre os Estados; f) a defesa da paz; g) a solução pacífica dos conflitos; h) o repúdio ao terrorismo e ao racismo; i) a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; e j) a concessão de asilo político. Cabe ao Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) formular e executar a política externa brasileira em defesa dos interesses nacionais. A década de 1990, e início dos anos 2000, com os governos de Collor/Itamar e Fernando Henrique Cardoso, representou um retorno do Brasil à relações bilaterais- hemisféricas, com uma grande atualização da tradição multilateral da política e da economia internacional (PECEQUILO, 2010). Essa evolução da política externa focou, principalmente no Brasil, uma ampliação das parcerias estratégicas e de um maior adensamento de intercâmbio com os países da região e os em desenvolvimento pelo globo, em função de nossos potenciais internos e externos. O Presidente Lula da Silva assume o poder em 2003 baixo grande tensão econômica, devido principalmente quanto a desconfiança que o mercado possuía durante a campanha eleitoral de 2002 – em especial o Fundo Monetário Internacional (FMI)20 – em relação a posse de um governo de esquerda, tendo em vista o discurso contrário às instituições financeiras internacionais que o Partido dos Trabalhadores (PT) mantinha desde sua origem (GIAMBIAGI, 2011). A equipe econômica, entretanto, manteve a mesma linha do governo anterior, com política monetária de juros altos e controle da inflação, acalmando, assim, o mercado. O compromisso no plano econômico do PT, e que seria ligado a uma formulação própria de política externa para o país, era o de reduzir o grau de dependência financeira externa do Brasil, mobilizando uma política de promoção comercial mais “ativa”, como 20 O Fundo Monetário Internacional (FMI) é uma organização internacional que pretende assegurar o bom funcionamento do sistema financeiro mundial pelo monitoramento das taxas de câmbio e da balança de pagamentos, através de assistência técnica e financeira. Sua criação ocorreu pouco antes do final da segunda guerra mundial, em julho de 1944, e sua sede é em Washington, DC, Estados Unidos. Atualmente conta com mais de 187 nações. 22 escreveu Lula (2002) na “Carta ao Povo Brasileiro”21, documento balizador de suas propostas de governo, em que o povo brasileiro precisa e deseja “trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas”. Essa intenção, embora tivesse sido partilhada pelos outros partidos em disputa presidencial, foi expressada no desenvolvimento de sua política externa de uma forma particular, como veremos ao longo do trabalho. A criação do Partido dos Trabalhadores, na década de 1980, se caracteriza como um momento de inflexão, condicionado pela crise do modelo econômico de substituição de importações adotado no período anterior, e também de crise do regime militar (1964-1985), que culminaram em um processo de abertura política e fim do período ditatorial. A greve de 12 de maio de 1978 é considerada o ponto inicial da luta emancipacionista dos trabalhadores brasileiros por melhorias nas condições de vida e de trabalho. De acordo com a Carta de Princípios do então incipiente Partido dos Trabalhadores, as greves do ABC “[...] mostram a retomada, em toda a linha, das formas clássicas de luta: grandiosidade das assembleias gerais, a ação decisiva dos piquetes e dos fundos de greve” (CARTA DE PRINCÍPIOS, 1979). Neste sentido, a ligação do PT com as entidades sindicais ocorreu de maneira bastante íntima. Sob a ordem da luta pela justiça social, pela liberdade e contra o regime militar, o PT adquiriu o apoio dessa classe e atingiu a categoria de trabalhadores em um sentido mais abrangente, além dos estudantes e dos intelectuais. Portanto, o Partido dos Trabalhadores teria nascido “[...] da vontade de independência política dos trabalhadores, já cansados de servir de massa de manobra para os políticos e os partidos comprometidos com a manutenção da atual ordem econômica, social e política” (CARTA DE PRINCÍPIOS, 1979). O Manifesto do partido22 afirma que [...] em oposição ao regime atual e ao seu modelo de desenvolvimento, que só beneficia os privilegiados do sistema capitalista, o PT lutará pela extinção de todos os mecanismos ditatoriais que reprimem e ameaçam a maioria da sociedade. O PT lutará por todas as liberdades civis, pelas franquias que garantem, efetivamente, os direitos dos cidadãos e pela democratização da 21 Carta pública dirigida à sociedade brasileira pelo então candidato Lula da Silva em 22 de Junho de 2002, onde explicita suas motivações de desejos de governo. Disponível em: 23 Manifesto aprovado pelo Movimento Pró-PT, em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion (SP), e publicado no Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1980. 23 sociedade em todos os níveis. (MANIFESTO DO PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1980) No contexto da sua formação política, o Partido dos Trabalhadores sempre se definiu como um partido à esquerda do espectro político, em uma postura crítica ao reformismo dos partidos ligados à socialdemocracia, defendendo, historicamente, diversas posições políticas consideradas radicais. Isso não se aplica apenas às decisões em política interna. Ao transpô-la para o plano externo, o que se observa é que o PT, mesmo sendo um dos poucos partidos que desde seu início preocupou-se em traçar um projeto de política internacional, apresentou, durante sua consolidação, posturas internacionais consideradas extremadas pela oposição. Assim, além de defender ideais socialistas, o partido apresenta um histórico de adesão aos interesses e às causas das principais lideranças esquerdistas, sobretudo da América Latina. Dessa forma, sua articulação política internacional ocorreu em consonância com outros partidos e grupos de esquerda latino-americanos, como o apoio concreto aos diferentes processos de luta na América Central e no Caribe, seja na Nicarágua, em El Salvador, na Guatemala, como para a Frente Ampla Uruguaia e aos partidos comunistas de Cuba e de outros países, bem como do apoio aos movimentos sociais, sendo o MST o principal deles. Outras organizações, como a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a Frente de Libertação Nacional da Argélia (FLN), dentre vários partidos comunistas e socialistas de países ocidentais bem como países da Europa Oriental e do Norte, tiveram a mesma atitude solidária do PT. Na América do Sul, foi expressivo na solidariedade com as entidades de defesa de Direitos Humanos no Chile, na Argentina e no Uruguai. Neste sentido, o PT valorizou posteriormente o Foro de São Paulo23, sendo um fator importante na consolidação de um pensamento internacional do partido. No contexto da década de 1990, de intensas crises internas nos países socialistas, o Partido dos Trabalhadores optou por caminhos próprios na arena internacional, desenvolvendo suas relações com os mais diversos partidos democráticos e de esquerda existentes no cenário político mundial. Essa opção em pluralizar sua atuação materializou-se na reunião do FSP em Julho de 1990, com diversos partidos, movimentos sociais e organizações. 23 O Foro de São Paulo (FSP), constituído inicialmente em 1990, é um encontro de partidos políticos e organizações não governamentais de esquerda da América Latina e Caribe. 24 Além do FSP, o PT participa da Conferência Permanente de Partidos Políticos de América Latina (COPPAL) e da Coordinación Socialista Latinoamericana (CSL). Também verificou-se manifestações de solidariedade internacional ao movimento grevista em apoio à CUT que estendeu-se ao partido, passando a relacionarem-se com os líderes e outros partidos políticos vinculados às diversas centrais sindicais (ALMEIDA, 2004) Diante disso, verifica-se que a articulação política do PT apresentou um viés socialista, característica que o partido carregou consigo ao longo de sua atuação no país, tanto em âmbito interno quanto no cenário externo, ao imprimir, em uma particular readaptação da política externa brasileira, características como um pretenso antiamericanismo, uma ênfase nas relações Sul-Sul e uma visão latino-americanista. Discussões acerca da aplicabilidade de tais princípios, quando da ascensão do partido à Presidência da República, merecem ser feitas, como as sugeridas acima. Neste momento, é importante ressaltar que as mudanças ocorridas na relação entre o governo, sob a gestão de Lula e do Partido dos Trabalhadores, e a diplomacia brasileira, de uma forma geral, ocorreram no plano do discurso e de algumas ações na elaboração e na execução da política externa do Brasil. Essas mudanças foram sendo preparadas e consolidadas ao longo dos anos com a evolução do pensamento petista sobre a política externa e sobre a sua participação nas eleições nacionais, até a vitória de 2002. 2.3 A evolução do pensamento petista sobre política externa Eleito após sucessivas candidaturas ao cargo de Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, ex-sindicalista e um dos fundadores do PT, é visto hoje como um dos presidentes mais populares que o Brasil teve. No entanto, ao retomar sua história, verifica-se que ele teve sua trajetória bastante distinta ao que se apresenta atualmente. Candidato às eleições presidenciais pela primeira vez em 1989, Lula perdeu o segundo turno para Fernando Collor de Mello, candidato pelo pequeno Partido da Reconstrução Nacional (PRN). A eleição de Collor está dentro de uma luta ideológica por parte da sociedade brasileira, a qual sentiu-se intimidada diante da possibilidade de ascensão ao poder do candidato petista, percebido negativamente por sua ligação aos ideais esquerdistas e sua suposta radicalização. 25 Embora as duas candidaturas não estivessem ligadas aos tradicionais quadros da política brasileira – o que ilustra a situação de crise dos partidos tradicionais que tiveram seus candidatos derrotados –, o PT pregava, na época, uma reforma no modo que o capitalismo desenvolveu-se durante os governos militares, enquanto que Collor, com seu programa de característica extremamente personalista, era associado a uma mudança e modernização de cunho liberal, ao insistir na falência do Estado e na liberalização da economia como pré- requisito para a modernização do país (SALLUM, 2011) Nesta primeira candidatura, o discurso de Lula evidencia, condicionado pelo caráter de suas propostas e pela terminologia adotada em sua retórica, “uma típica plataforma dos partidos esquerdistas da América Latina no período clássico da Guerra Fria, o que era, aliás conforme a sua vocação afirmadamente socialista [...]” (ALMEIDA, 2003, p. 88). Neste sentido, um possível governo liderado pela “Frente Brasil Popular24”, conforme constou no “Plano de Ação” anexo à plataforma programática, destacava os seguintes pontos no item 6, os quais, apesar de não se apresentarem especificamente como propostas de política externa25 , podem ser assim interpretados: a) independência nacional; b) política externa “independente”; c) combate a espoliação pelo capital internacional; d) respeito à autodeterminação dos povos; e) solidariedade aos povos oprimidos. Excetuando a característica terminologia adotada pelo partido, conceitualmente tais proposições permanecem ainda atuais e de acordo com as posições tradicionalmente defendidas pelo Brasil. Ainda assim, um hipotético governo liderado pela Frente Brasil Popular implicaria em algumas alterações na atuação da política externa nacional, uma vez que se pretenderia implementar uma “política anti-imperialista, prestando solidariedade irrestrita às lutas em defesa dos trabalhadores pela democracia, pelo progresso social e pelo socialismo” (ALMEIDA, 2003, p. 89). Este caráter militante dos discursos do PT se fez presente em outros momentos, como, por exemplo, na intenção de decretar moratória unilateral da dívida externa como solução para a questão do endividamento brasileiro. Essa manobra influenciou negativamente na imagem do partido e contribuiu com sua rejeição durante as disputas eleitorais. Entretanto, 25 Coligação PT/PCdoB/PSB. 25 Ver: GPRI - Grupo de Pesquisas em Relações Internacionais, A Política Externa nas Plataformas dos Candidatos a Presidente do Brasil em 1989. Brasília, 1989, Universidade de Brasília, p. 55-56. 26 devido à delicada conjuntura política transitória da época, Lula foi derrotado por uma pequena diferença de votos no segundo turno26. Logo após as eleições de 1989, Lula deu continuidade ao seu trabalho político visando as próximas eleições. No ano seguinte patrocinou com o PT, o Foro de São Paulo. O objetivo desta primeira reunião, como verificado anteriormente, foi o de congregar as esquerdas do continente e discutir sobre os principais acontecimentos do pós queda do Muro de Berlim. A principal motivação do encontro foi reunir as esquerdas do continente, para refletir o mundo pós-queda do Muro de Berlim e pensar alternativas às políticas neoliberais executadas pelos governos de Fernando Collor (Brasil), Carlos Menem (Argentina), Alberto Fujimori (Peru) e Carlos Salinas de Gortari (México). (CERVO, 2000, p. 5). O Foro de São Paulo contou com a participação ativa da Frente Ampla do Uruguai, da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) de El Salvador, da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) da Nicarágua, do Partido Revolucionário Democrático (PRD) do México e do Partido Comunista de Cuba, dentre diversas outras lideranças políticas de esquerda. Além do Foro de São Paulo, o PT participava também regularmente da Conferência Permanente de Partidos Políticos da América Latina (COPPAL) e da Coordinación Socialista Latinoamericana (CSL). Essas participações expressam uma característica do partido que Valter Pomar27, no documento intitulado “A política internacional do PT”28, denomina “pluralidade”, a qual teria sido acentuada a partir de 2003, quando Lula chegou ao poder e o PT passou a influenciar na política externa brasileira. Além dessa pluralidade, o PT teria ainda enfatizado o latino- americanismo na atuação política brasileira. O PT apresentou-se, nas eleições de 1994, de maneira mais organizada e com propostas melhor elaboradas, derivadas de intensos debates internos29. Afirma de início, a necessidade de haver no país um projeto nacional de desenvolvimento, ideia que seria retomada posteriormente na elaboração da política externa do governo Lula a partir de 2003. Ela recupera elementos do nacional-desenvolvimentismo de governos anteriores que reorientaram positivamente a política externa brasileira em direção a uma postura mais autônoma na dinâmica do sistema internacional. O termo Política Externa Independente, 26 Fernando Collor foi eleito com 49,94% dos votos válidos, contra 44,23% do candidato Lula da Silva. 29 Ex-secretário de relações internacionais do PT. 30 Documento divulgado no IV Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores, realizado em 2010. Disponível em . 29 Ver “A Política Internacional do PT”. p. 4 27 como vimos anteriormente, fazia parte da linguagem petista quando o assunto era política externa. Este projeto nacional de desenvolvimento, nas palavras do então candidato à presidência, deveria apresentar [...] um modelo de crescimento que favoreça a criação de um gigantesco mercado de bens de consumo de massas que permita redefinir globalmente a economia, dando-lhe, inclusive, novas condições de inserção e de cooperatividade internacionais” (BOLETIM ADB, 1994, p. 9). Assim, o PT mostrava sinais de que a política externa seria um elemento de grande importância para alcançar seus objetivos, sendo, portanto, parte integrante e indispensável deste grande projeto nacional. Na visão de Lula e do PT, “[...] o Brasil não pode sofrer passivamente a atual (des)ordem mundial. Ele tem de atuar no sentido de buscar uma nova ordem política e econômica internacional justa e democrática” (BOLETIM ADB, 1994, p. 9). Esta frase foi reiteradas vezes repetida por Lula durante sua Presidência. O Presidente Lula, em conjunto com seu ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, alertou sobre a necessidade de democratização das relações internacionais, com a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, uma vez que a conjuntura mundial havia se alterado e os arranjos institucionais e políticos de outrora não se aplicavam mais à realidade da época. O propósito foi reforçado no discurso de abertura da Assembleia-Geral da ONU em 2005: A reforma do Conselho de Segurança destaca-se como peça central do processo em que estamos envolvidos. A necessidade de fazer com que o Conselho se torne mais representativo e democrático é reconhecida pela imensa maioria dos Estados-membros. No horizonte histórico em que vivemos, nenhuma reforma do Conselho de Segurança será significativa se não contemplar uma expansão dos assentos permanentes e não- permanentes, com países em desenvolvimento da África, da Ásia e da América Latina em ambas as categorias. Não podemos aceitar a perpetuação de desequilíbrios contrários ao espírito do multilateralismo. (BRASIL, 2007, p. 70) Este foi um dos principais objetivos perseguidos pela diplomacia brasileira durante o governo Lula com impactos práticos importantes, como veremos no capítulo 4. 28 Ademais, indicou certas prioridades nas relações a serem mantidas pelo Brasil com as demais nações do sistema internacional, com especial destaque à América do Sul. Dessa forma, o fortalecimento do Mercosul seria de grande importância para nosso país, enquanto espaço para integração, visando equilibrar as relações com as nações desenvolvidas, como os EUA e a União Europeia. Nesse sentido, Lula elencou também as demais parcerias brasileiras, compostas por países como a China, a Índia, a Rússia e a África do Sul, por serem países que [...] como o Brasil, não podem ser absorvidos pelos atuais blocos e têm um potêncial econômico, dimensões e presença internacional suficientemente importantes para levar adiante ações comuns no plano econômico, em intervenções políticas particulares ou mais amplas, na cooperação técnico- científica, etc. (BOLETIM ADB, 1994, p. 8). Pode-se afirmar que essa afirmação é uma antevisão do que seria os empreendimentos em que o Brasil tomou parte, como o IBAS e o BRICS. Apesar da derrota, logo no primeiro turno para o candidato do PSDB Fernando Henrique Cardoso, Lula e o PT não deram indícios de desistência e se mantiveram na busca pelo aperfeiçoamento de suas ideias e propostas, com o intuito final de ascender ao poder do Estado brasileiro. Em relação às eleições de 1998, pode-se afirmar que o PT esteve concentrado em se opor ao modelo neoliberal e seus desdobramentos na política, na economia e na sociedade brasileira. Nessa perspectiva, o PT e seus diversos aliados da coalizão “União do Povo Muda Brasil”30 promoveram críticas ao governo FHC31 com relação à abertura da economia ao capital estrangeiro e consequente perda de soberania econômica. Nesse contexto, a política externa adquiriu maior importância na visão da coalizão política, sob o discurso da necessidade de alterar a inserção internacional brasileira a partir da adoção de uma postura mais firme na defesa de seus interesses, estando diretamente expresso nas diretrizes do programa de governo. A lógica da assertividade na política externa começava a ser construída. Prova dessa lógica é a diretriz de número 12, sob o título “Presença soberana no mundo”, que apresenta o princípio da autodeterminação enquanto elemento fundamental e 30 Coligação PT-PDT-PCdoB-PSB-PCB. 31 Coligação PSDB-PFL-PPB-PTB-PSD 29 direcionador de uma vontade em executar uma política externa que o Brasil atuasse “com decisão visando alterar as relações desiguais e injustas que se estabeleceram internacionalmente”. É a partir dessa ideia e de seu desenvolvimento futuro que será possível elaborar o conceito de assertividade e defender sua presença na política externa do governo Lula em seus dois mandatos. O PT retomou o desejo de lutar por reformas nos organismos políticos e econômicos mundiais, tais como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), além da elaboração de novas instituições internacionais. Isso em função de uma crise financeira, a qual dava indícios de se agravar mundialmente, trazendo o receio de que essas instituições existentes não fossem suficientemente capacitadas para enfrentá-la. O programa de governo destacava novamente o desejo de desenvolver a integração sul-americana no âmbito do Mercosul e, ao mesmo tempo, aproximar e fortalecer as relações Sul-Sul com os países citados no programa de governo das eleições de 1994. Vale ressaltar, no entanto, que a motivação fundamental para esse desejo era de se contrapor ao projeto norte-americano, tido por “imperialista”, da Área de Livre Comércio entre as Américas (ALCA), ao qual, em conjunto com o neoliberalismo, os petistas se opunham frontalmente. Nesse momento, o discurso do PT já se mostrava relativamente moderado em relação às proposições que o partido afirmava desde sua formação. Isso se explica pelo fato de que o Plano Real implantado em 1994 durante o governo Itamar Franco, no qual Fernando Henrique Cardoso foi Ministro da Fazenda (1993-1994), dava sinais de que conduziria a economia brasileira para a estabilidade, constituindo-se como principal argumento da candidatura de FHC à reeleição em 1998. Esta mudança no discurso petista caracteriza-se pela adoção de um discurso cada vez mais brando e maleável, a partir do abandono de grande parte de sua característica militante. Este fato ficaria ainda evidente nas eleições de 2002, momento em que Lula e o PT demonstraram maior cautela na elaboração das bases de sua campanha política, apresentando- se com “um novo realismo diplomático” (ALMEIDA, 2003, p. 92). Na resolução do XII Encontro Nacional do partido, o PT afirma que as relações internacionais: [...] não devem ser entregues à lógica dos mercados desregulados ou ao mando imperial levado a cabo pelas instituições da globalização neoliberal – FMI, Banco Mundial, OMC, ALCA. Dessa forma, a soberania nacional deve 30 ser associada estreitamente com soberania popular e com solidariedade internacional entre os povos oprimidos pelo imperialismo. Mais do que um ‘PROJETO NACIONAL’, trata-se de formular um projeto que incorpore a defesa da nação e se proponha a transformá-la e a lutar por uma outra ordem internacional. (RESOLUÇÃO DO XII ENCONTRO NACIONAL DO PT, 2001, p. 35) Dessa maneira, a política externa assume novamente um papel de grande relevância na atuação política brasileira, no contexto de instabilidade dos mercados financeiros internacionais. No que se refere à redução dessas vulnerabilidades externas, o PT previa ações como “[...] a recuperação do saldo comercial e a redução do déficit na conta de serviços do balanço de pagamentos, com vistas à diminuição acentuada do déficit das transações correntes” (MERCADANTE; TAVARES, 2002). Ademais, o protecionismo praticado pelos grandes países deveria ser combatido, uma vez que sua prática provoca distorções ao comércio, restringindo a participação dos países em desenvolvimento. A atuação diplomática brasileira deveria se concentrar na busca por reduzir tais tensões, além de um claro esforço em promover a regionalização com os países da América Latina, como verificamos estar expresso na Constituição Federal de 1988. Com relação à ALCA, foi afirmado no plano de ação que o governo brasileiro não assinaria o acordo [...] se persistirem as medidas protecionistas extra-alfandegárias, impostas há muitos anos pelos Estados Unidos. [...] A persistirem essas condições a ALCA não será um acordo de livre comércio, mas um processo de anexação econômica do Continente, com gravíssimas consequências para a estrutura produtiva de nossos países, especialmente para o Brasil, que tem uma economia mais complexa. (BALANÇO DE POLÍTICA EXTERNA, 2010). O PT pretendia com essa afirmação enfatizar a necessidade de haver mecanismos compensatórios nos processos de integração regional para que as economias mais vulneráveis pudessem obter alguma vantagem do livre comércio, e não somente favorecer os ganhos das nações mais desenvolvidas. Nesse sentido, o PT indicava, ainda que de maneira suave, uma flexibilização em seu discurso. Se em um período anterior, a ALCA constituía-se puramente em um projeto de anexação imperialista estadunidense dos demais países do continente americano, sem vantagem alguma para estes, nesse momento a proposta havia adquirido outra possibilidade. Sendo assim, a coalizão política passou a indicar que 31 “As negociações da ALCA não serão conduzidas em um clima de debate ideológico, mas levarão em conta essencialmente o interesse nacional do Brasil. Nosso governo se esforçará para construir um relacionamento sadio e equilibrado com os Estados Unidos, país com o qual mantemos importante relação comercial. Além disso, o Brasil deverá propor aos países do Continente relações fundadas no equilíbrio, na cooperação e em mecanismos compensatórios que favoreçam um desenvolvimento harmônico”. (BALANÇO DE POLÍTICA EXTERNA, 2010). Já no governo, a política externa brasileira conduzida pela diplomacia lulopetista tratou de por fim as negociações da ALCA. Para tanto, utilizou-se de aliança com os países sul-americanos, especificamente da Argentina e da Venezuela. Ademais, a diplomacia brasileira adotou posturas de enfrentamento aberto com os Estados Unidos em outras esferas, tais como a OMC, buscando defender assertivamente nossos interesses como, por exemplo, nos contenciosos do algodão e da laranja e das patentes médicas. Em resumo, o que se pretende afirmar é que, desde sua origem, o PT disseminou um discurso de caráter militante, uma vez que o contexto político da época de crise do regime militar e de transição democrática criava as condições ideais para a organização de um movimento popular. Cabe ressaltar que o PT sempre caracterizou-se por ser um partido com forte organização e de rápido crescimento de suas bases. Esta organização refletiu também na sua atuação externa, ao aproximar-se de partidos e movimentos sociais de países no estrangeiro, sobretudo na América Latina e nos países oriundos da URSS. Como afirmado anteriormente, o Foro de São Paulo constitui-se em importante arena de discussão e articulação da esquerda latino-americana, patrocinado pelo PT. A partir de 2003, esta atuação foi ampliada por meio da ascensão ao poder no Estado brasileiro, conferindo-lhe maior visibilidade interna e externa. No entanto, o partido passou por algumas reformulações para poder atingir o objetivo de obter a direção política da república brasileira. Isso fica evidente ao analisar as propostas de governo e discursos proferidos ao longo de seus dois mandatos. Contudo, a amenização do discurso sobre política doméstica parece não ter ocorrido também no campo externo, exigindo assim uma análise das semelhanças e divergências entre partido e governo e seu impacto sobre os princípios tradicionais da diplomacia brasileira, objetivando identificar as linhas de ruptura e de continuidade na gestão do PT no poder executivo nacional. 32 2.4 A política externa do Brasil no Governo Lula (2003-2010) A participação assídua do Partido dos Trabalhadores nas disputas eleitorais, e seu papel enquanto partido de oposição, trazem algumas transformações em sua imagem política. A preocupação em delinear as linhas gerais de um projeto nacional de desenvolvimento para o Brasil, e consequentemente de uma política externa que viabilizasse esse objetivo, apresenta- se como uma constante na trajetória política do partido, como se pode observar nos principais documentos apresentados. A análise destes fatos aponta para um momento posterior, quando Lula é eleito e assume junto com o PT o poder executivo do Brasil. É necessário traçar comparações entre a atuação histórica da diplomacia brasileira e a ação política a partir de então. A função da política externa é defender os interesses nacionais de um país em âmbito internacional, como reflexo de suas demandas internas. Historicamente, a diplomacia do Brasil apresenta certa linearidade em sua atuação, consagrada em torno de princípios claros e consensuais. Em matéria de política externa, o artigo 4º da carta constitucional da República Federativa do Brasil de 1988, como vimos anteriormente, diz que as relações internacionais do país deverão pautar-se nos seguintes princípios: 1) independência nacional; 2) prevalência dos direitos humanos; 3) autodeterminação dos povos; 4) não-intervenção; 5) igualdade entre os Estados; 6) defesa da paz; 7) solução pacífica dos conflitos; 8) repúdio ao terrorismo; 9) cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; 10) concessão de asilo político. Os princípios acima destacados constituem-se em um guia para a moderna diplomacia brasileira do atual período democrático. Tradicionalmente, nossa política externa busca aplicá-los em âmbito externo, sobretudo quanto à independência nacional, autodeterminação dos povos e não intervenção, sempre respeitando tais parâmetros ao desenvolver suas estratégias de inserção e atuação em grandes questões internacionais. Neste mesmo sentido, com a chegada de Lula no poder, foi preciso ainda congregar as posições defendidas pelo PT e algumas preferências políticas dos dirigentes do Itamaraty, ou seja, do Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim e do Secretário-Geral Samuel Pinheiro Guimarães. A ascensão do Presidente Lula ao governo nacional em 2003 teve como pano de fundo um contexto de instabilidade associada à crise do capitalismo neoliberal e ao declínio relativo da hegemonia norte-americana. Houve um esgotamento da capacidade de governança das 33 instituições de Bretton Woods, bem como de questionamento dos reais limites da globalização econômica e financeira. Diz-nos Hirst, Lima e Pinheiro (2010) que: “Atualmente a política externa brasileira é formulada e conduzida num ambiente doméstico e internacional complexo e é fruto de coalizões de interesses de atores domésticos e internacionais com variada capacidade de influência. Neste quadro, um dos traços que marcam este governo é a consolidação de uma característica que já se anunciava na administração anterior mas que adquiriu novas nuances com a projeção externa de natureza econômica - decorrente do crescimento da economia do país - e política – em função da postulação do governo por maior participação nos assuntos de natureza internacional: a pluralização de atores e a politização da política externa.”. (p. 2). Desse modo, a criação de um vácuo relativo de poder em um cenário político de multipolaridade, ainda que dependente das grandes potências para sustentar o sistema internacional, elevou o desejo de outros países, sobretudo no econômico, em atuar para seu próprio reconhecimento, com vistas a democratizar as instituições internacionais. Enquanto isso, a crise de 2007/08 confirmou a necessidade e a urgência de reformas nas instituições internacionais. Ao entender que a administração anterior executou uma política externa que reduziu a margem de manobra de atuação brasileira, subordinando-se aos interesses das grandes potências, o Presidente Lula e os demais idealizadores da “nova diplomacia” buscaram criar um meio de superação do neoliberalismo praticado até então, a partir da adoção de estratégias políticas que retomam ideais desenvolvimentistas e pró-integração regional. Logo, três grandes temas podem ser considerados prioridades na agenda do governo Lula: a) expansão do Mercosul; b) busca de acordos comerciais bilaterais e multilaterais no âmbito regional, em detrimento aos acordos com grandes potências; e c) conquista de assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Ademais, destaca-se ainda a atuação no eixo Sul-Sul por meio de alianças seletivas expressas em acordos de cooperação como o BRICS, IBAS, cúpulas inter-regionais com países árabes e africanos. Nessa perspectiva, no decorrer de seu mandato, Lula conseguiu atrair significativa atenção ao Brasil, por meio de uma participação hiperativa nas grandes questões internacionais, a qual, apesar de trazer alguns ganhos positivos ao país, foi também alvo de intensas críticas. Dentre elas, para alguns autores, como d’Ávila e Stuenkel (2010, p. 14), a principal consiste em afirmar “os riscos e os perigos de confundir os interesses nacionais com 34 os interesses partidários, a política de Estado com a política de governo, a visão de país com os credos ideológicos”. Em artigo recente, Almeida (2010) destaca que a busca pelo assento permanente no CSNU teria tomado proporções além do necessário, produzindo ações nas mais diversas frentes de atuação por vezes equivocadas e que, objetivamente, não trouxeram ganhos efetivos ao país. Ou seja, a necessidade de demonstrar capacidade para lidar com grandes questões, ao assumir a onerosa liderança da MINUSTAH, a missão de paz da ONU no Haiti, ou ainda expressa em ações mais questionáveis como a intervenção no caso de Honduras, o apoio ao Irã na questão nuclear ou a intromissão na tão delicada questão entre Israel e Palestina, configuram algumas das críticas feitas pela mídia nacional e internacional ao Brasil32. Ademais, Almeida (2010) afirma que a diplomacia teria trabalhado mais em função de um protagonismo mundial para o governo Lula que em favor do desenvolvimento nacional, visto que o acesso a mercados para a exportação de produtos brasileiros ficou praticamente restrita ao âmbito da Rodada Doha da OMC. Diante disso, pode-se questionar a procedência das decisões e ações implementadas pelo Estado brasileiro a partir da ascensão de Lula e do PT ao poder. Muitas são também as críticas da oposição com relação à natureza da política externa brasileira, que afirma constantemente tratar-se não de uma política de governo, mas sim de uma política partidária. Frente a tais críticas à nova postura diplomática brasileira, Marco Aurélio Garcia, secretário de relações internacionais do PT por mais de dez anos e Assessor Especial da Presidência da República para Assuntos Externos durante a gestão Lula da Silva, afirmou que Em qualquer governo sempre existe algum viés partidário. A implementação de políticas de Estado não é um mero exercício técnico. O interesse nacional é interpretado pelo partido ou pela coligação partidária que a sociedade conduziu à direção do Estado. O fato de o governo Lula ser um governo de esquerda não o exime de ter princípios. Ao contrário, torna esses princípios mais imperativos. (GARCIA, 2010). Ao deixar os interesses nacionais descritos no artigo 4 da Constituição Federal a cargo da livre interpretação do partido no poder, como sugerido pelo assessor, torna natural a 34 Ver editorial do jornal “O Estado de São Paulo”. Os erros da política externa. Disponível em: . 35 sobreposição de elementos ideológicos e partidários. Há, portanto, o risco de negligenciar a atuação política, sobretudo de princípios tradicionais da diplomacia brasileira. É, de fato, justo e necessário que o Brasil esteja engajado na busca pela democratização das instituições e por uma melhor representatividade do sistema internacional. Porém, tratar como um objetivo a qualquer custo apresenta-se como estratégia arriscada aos demais interesses nacionais de relevância. Exemplo disso é a crítica de opositores à política externa de Lula quanto ao abandono dos Direitos Humanos, a simpatia por chefes de governo “ditatoriais” – como Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, que governa a Guiné Equatorial, na África; Alexander Lukashenko, presidente de Belarus; Mahmoud Ahmadinejad do Irã; Muamar Kadafi da Líbia e Fidel Castro, de Cuba, por exemplo –, ou a ingerência em assuntos externos, atitudes que, de acordo com os críticos, poderiam gerar problemas à imagem do país. Diante disso, fica mais claro apontar que a política externa brasileira durante os oito anos sob o governo Lula sofreu transformações em seus principais objetivos, condicionadas pela conjuntura externa multipolar que se configurou após a queda do Muro de Berlim e do pós-11 de setembro de 2001. No entanto, um relativo distanciamento em relação aos países mais desenvolvidos e a priorização diplomática para os países em desenvolvimento no âmbito das relações sul-sul, refletem a parcela ideológica presente na diplomacia idealizada pelo Presidente Lula, o Ministro Celso Amorim, o Secretário-Geral do MRE, Samuel Pinheiro Guimarães e pelo Assessor-Especial Marco Aurélio Garcia. Este último questionou recentemente: É importante ou não ter essa política? Ou nós queremos ser uma ilha de prosperidade em meio a um oceano de desigualdades? Esse é um tema fundamental. No mundo multipolar que se está constituindo, nós queremos aparecer sozinhos ou na excelente companhia dos países vizinhos? Nesse mundo que está em modificação, nós queremos ter uma relação forte com os países da África, da Ásia e do mundo árabe ou nós queremos ficar presos às nossas velhas fidelidades com os EUA e a Europa?. (GARCIA, 2010, grifo nosso) Coincidentemente, a circunstância histórica de expansão da economia internacional fez com que o comércio com os países em desenvolvimento aumentasse conjunturalmente, o que não indica necessariamente ser fruto apenas do esforço político brasileiro. A política da “não-indiferença” e da solidariedade aos países que se assemelham ao Brasil em termos de 36 desenvolvimento é, de fato, nobre e altiva, não fosse a direção em que o Brasil emprega esforços políticos e econômicos, por vezes desnecessários e alvo de críticas por parte de certa parcela da opinião pública nacional e internacional. Diante disso, identifica-se que o PT empenhou-se em criar uma agenda de política externa própria. Ainda que os elementos de continuidade existam, a política externa sob a gestão Lula apresenta elementos inovadores ao imprimir características próprias à ação externa brasileira. A esse movimento alguns autores têm defendido que a radicalização da política externa brasileira sob a diplomacia lulopetista é uma resposta do governo Lula a ortodoxia macroeconômica adotada de empréstimo do governo FHC (ALMEIDA, 2007). A radicalização da política externa na lógica clássica da ação política do PT antes de alcançar o poder do Estado brasileiro significou uma resposta doméstica às suas bases políticas e ideológicas originais, mas também colocou em risco interesses nacionais de longo prazo do país devido a um exercício excessivo de sua assertividade. No próximo capítulo, alguns desses elementos serão observados mais detalhadamente e buscaremos rascunhar um novo conceito para análise da política externa brasileira: a autonomia pela assertividade. 3 AUTONOMIA E DESENVOLVIMENTO PELA ASSERTIVIDADE 3.1 Introdução A política externa é um importante componente da estratégia de desenvolvimento dos Estados, uma vez que consiste em um instrumento efetivo na defesa dos interesses nacionais diante outros países. É também objeto de estudos e análises feito por pesquisadores de diversas áreas que se concentram em identificar as linhas gerais das políticas praticadas pelos Estados e de suas alterações conforme cada governo que, na maioria das vezes, insere traços de inovação com consequentes mudanças. A ascensão de Lula ao poder despertou intensa curiosidade na comunidade científica brasileira. Sob o discurso da mudança, parcela considerável da população foi mobilizada em torno das expectativas criadas por um discurso que exaltou a necessidade de imprimir profundas transformações à atuação política brasileira. Nessa direção, a política externa 37 também passou por uma revisão em seus principais pontos, demandando dos analistas a elaboração de novos conceitos capazes de expressar o momento proposto. Nas ciências sociais sua contextualização é ampla. Na Filosofia, por exemplo, o conceito é geralmente empregado com referencia à liberdade, no sentido de que um ente pode decidir livremente suas ações com base na sua razão individual e agir a partir dessas decisões. Andrew Hurrel definiu autonomia, em sua tese de doutoramento, como “o grau de efetiva independência que um Estado é capaz de obter” (HURREL, 1986, p. 2). Ou seja, nenhum Estado é totalmente autônomo ou dependente, mas alguns deles são mais ou menos do que os outros. De acordo com Hurrel (1986), autonomia implica na capacidade em determinar as políticas nacionais de forma independente e coerente, resistindo às tentativas de controle externo, adaptando-se às tendências no ambiente internacional. Ele apresenta também quadro modos de parcerias contribuindo para a autonomia: 1) aceitação de posição subordinada, mas com intenso desejo de influência regional; 2) exploração da rivalidade entre potências como forma de barganha; 3) política de diversificação ilimitada; e 4) formação de coalizão com Estados mais fracos (HURREL, 1986, p. 21). Iremos verificar ao longo do trabalho que essas tentativas foram adotadas pelo governo Lula. O diplomata Gelson Fonseca Jr. (2004), em suas análises sobre a autonomia nos períodos da PEI do início da década de 1960, e do Pragmatismo Responsável dos anos 1970, relacionou-a à diversificação das relações externas do Brasil. Como observamos neste trabalho, a diversificação de nossa política exterior não é algo novo na história, com sustentou o Presidente Lula em diversos discursos oficiais. Como sugerimos anteriormente, uma perspectiva interpretativa das linhas da política externa adotada pelo Brasil passa pela avaliação do grau de autonomia apresentado pelo país em suas ações políticas internacionais. Isso porque a ideia de autonomia tornou-se um componente central no pensamento da diplomacia brasileira. Historicamente, é possível detectar momentos de maior ou menor autonomia do país no cenário internacional, relacionado a um contexto mais geral de interação entre os Estados. Em uma definição simplificada e superficial, pode-se resumir que o grau da autonomia varia nos períodos em que o Brasil esteve mais próximo ou mais afastado da zona de influência de uma potência hegemônica que dominava o sistema internacional em determinado período histórico. 38 O conceito de autonomia relaciona-se diretamente com a conjuntura do sistema internacional no período analisado. Logo, seja em um contexto unipolar, multipolar ou apolar, o grau de autonomia usufruído pelos países, sobretudo os periféricos, tende a variar ao longo da história. Para melhor caracterizar esta relação, na seção a seguir buscamos definir três principais conceitos que se encaixam na classificação da política externa brasileira dos últimos trinta anos na perspectiva conceitual da autonomia. São eles: “autonomia pela distância”; “autonomia pela integração”; e “autonomia pela diversificação”. Posteriormente, apresentaremos o conceito de “autonomia pela assertividade”, em contraposição à autonomia pela diversificação. 3.2 As três autonomias A literatura especializada sugere que a diplomacia brasileira apresenta certa linearidade em suas premissas básicas, oscilando em alguns momentos devido ao contexto internacional e à própria gestão interna em determinados períodos. O resultado é a aproximação ou o afastamento com relação aos EUA e às principais potências, bem como em maior ou menor esforço desenvolvimentista do país. Parte desta literatura tem elaborado conceitos para a compreensão das diretrizes da política externa brasileira praticada, pelo menos, desde 1930, ainda que, majoritariamente indique consistência em suas características fundamentais, como, por exemplo, o respeito ao direito internacional, aos princípios de não-intervenção e autodeterminação, entre outros. Como resultado dessas características e estratégias, podemos identificar três grandes conceitos que explicam o exercício da política externa brasileira nas últimas décadas: a) autonomia pela distância; b) autonomia pela integração ou participação; e c) autonomia pela diversificação. 3.2.1 Autonomia pela Distância 39 Os anos 1970 foram marcados pela crise do nacional-desenvolvimentismo. O modelo econômico de substituição de importações encontrou seu ponto de saturação ao mostrar-se insuficiente para conduzir o país durante os períodos de instabilidade econômica, caracterizados pela crise da dívida externa, os choques do petróleo, tendo a Guerra Fria como pano de fundo no cenário internacional. O conceito de autonomia pela distância, proposto por Fonseca Jr (2004), se enquadra neste contexto. A diplomacia brasileira passou a adotar uma postura de afastamento em relação à agenda das principais potências da época, promovendo um não-alinhamento automático aos regimes internacionais vigentes. O Brasil buscou, assim, conservar sua soberania nos assuntos econômicos e políticos de seu interesse em âmbito externo, ao mesmo tempo em que, internamente, viveu a crise do regime militar. Esta crise caracterizou-se pelo próprio esgotamento do modelo nacional- desenvolvimentista, e promovendo uma rápida industrialização do país, porém não foi capaz de impulsionar um salto qualitativo, sobretudo no âmbito social e na busca por tecnologias mais avançadas para diversificar a matriz produtiva do país. Ao contrário, o que ocorreu foi um aumento significativo da concentração de renda e, consequentemente, da pobreza. Assim, a incapacidade de promover a redistribuição da renda, juntamente com a crise da dívida externa, condicionou o fim do nacional-desenvolvimentismo e também do regime militar (VELASCO E CRUZ, 2001). Embora durante este período o regime militar ainda estivesse em vigor, houve um resgate de princípios da política externa independente, com a promoção do distanciamento do centro hegemônico e diversificando assim seu relacionamento internacional. Dessa maneira, classificar a política externa do período analisado como uma estratégia de autonomia pela distância implica em afirmar que os cenários, doméstico e internacional, apresentavam uma dinâmica que criou condições para que o Brasil adotasse essa postura de afastamento. Passaria, assim, a defender e a priorizar as negociações, sobretudo a comerciais, no âmbito multilateral, bem como em seguir a lógica protecionista, aproximando-se dos países terceiro-mundistas (ALMEIDA, 2007). Nessa linha, o Brasil buscou garantir o interesse nacional pela via industrial, beneficiando o setor empresarial industrial doméstico e estrangeiro aqui presentes (SOARES DE LIMA; SANTOS, 2001). Na inserção internacional, a diplomacia brasileira adotou a postura de negociar em favor de uma coalizão político-industrialista, no sentido de apoiar as demandas internas por 40 protecionismo. Isso garantiu a necessidade de se reformar o comércio mundial, enquanto meio para a promoção do desenvolvimento industrial doméstico (VIZENTINI, 1995). O papel da diplomacia brasileira era o de defender princípios de organização do comércio internacional nas negociações multilaterais condizentes tanto com a lógica protecionista do modelo de desenvolvimento nacional-econômico, quanto os posicionamentos dos países do Terceiro Mundo. Apesar disso, com as transformações ocorridas no mundo, em especial no pós-Guerra Fria, esta estratégia não lograva maiores êxitos. Segundo Fonseca Jr (1998, p. 368): [O] acervo de uma participação positiva, sempre apoiada em critérios de legitimidade, nos abre a porta para uma série de atitudes que tem dado uma nova feição ao trabalho diplomático brasileiro. A autonomia, hoje, não significa mais ‘distância’ dos temas polêmicos para resguardar o país de alinhamentos indesejáveis. Ao contrário, a autonomia se traduz por ‘participação’, por um desejo de influenciar a agenda aberta com valores que exprimem tradição diplomática e capacidade de ver os rumos da ordem internacional com olhos próprios, com perspectivas originais. Perspectivas que correspondam à nossa complexidade nacional. 3.2.2 Autonomia pela Integração ou Participação O fim do regime autoritário, junto com o esgotamento do modelo econômico nacional- desenvolvimentista, combinado ao falecimento do presidente eleito Tancredo Neves, em 1985, propiciou a ascensão à presidência de José Sarney. Este, em busca de legitimidade e de sustentação política, nomeou uma equipe de governo que refletia a heterogeneidade da coalizão que apoiou a transição à democracia, que, segundo Pinheiro (2004), associada ao fim do modelo de substituição de importações, levantou dúvidas sobre o americanismo e o globalismo, conceitos então dominantes na política externa brasileira. Apesar de possuir a hegemonia da orientação nacional-desenvolvimentista em setores específicos do governo, sobretudo àqueles relacionados ao comércio exterior, havia alguns críticos do modelo anterior de desenvolvimento, favoráveis a uma revisão do nacional- desenvolvimentismo em direção a uma política macroeconômica mais convergente com a agenda liberal, em consolidação na economia internacional (VELASCO E CRUZ, 1997). 41 O insucesso dos diversos planos econômicos no governo Sarney e, por consequência, a ausência de retomada do desenvolvimento, gerou as condições necessárias à hegemonia dessa orientação econômica liberal no aparato burocrático do Estado brasileiro e entre a elite econômica nacional. Iniciou-se portanto, ao final da década de 80 e início da década seguinte, uma dupla transição: o retorno à democracia e a adesão às práticas liberais do livre-mercado. Essa nova configuração política, econômica e social do Brasil contava agora com um Estado que se queria participativo na dinâmica do livre-mercado e receptivo às transformações advindas do processo de globalização e da democracia. Segundo Pinheiro (2004), a nova situação conta com o apoio da sociedade em geral e pela sustentação de uma nova formulação de política externa nos quadros profissionais do governo. Nessa nova realidade encontra-se as iniciativas de cooperação entre Brasil e Argentina em meados dos anos 1980, durante o governo Sarney, que culminaria com o Tratado de Assunção em 1991, criando formalmente o Mercosul33. Sob a tônica da modernização, e adaptando-se aos novos tempos, a gestão de Fernando Collor de Mello (1990-1992) passa a dar maior atenção aos setores estratégicos da economia, bem como ao processo de integração regional. Essa tendência, na esfera internacional servirá mais tarde de base para a elaboração do conceito de autonomia pela participação. Os períodos dos governos Collor de Mello e Itamar Franco, segundo Vigevani e Cepaluni (2011, p. 91), caracterizam-se por uma fase de transição, na qual o “[...]paradigma da política externa brasileira não havia se esgotado totalmente, e outro ainda não havia sido posto em seu lugar”. Alia-se a isso o fato de que a atuação mais direta do presidente da República torna-se ligeiramente maior do que a presença do Itamaraty como ator principal no processo de formulação decisória da política externa. Embora a presença do presidente Collor seja forte no início, a entrada de Celso Lafer no MRE trás novamente a formulação e a implementação quase que exclusiva para o corpo diplomático, visto que a crise política interna do país impossibilitava ao presidente maior atuação internacional (VIGEVANI, 2011). No seu lugar, estaria sendo implementado um novo padrão internacional que teria como característica central “a autonomia [traduzida] por 33 O Mercado Comum do Sul (Mercosul) é uma união aduaneira da América do Sul com os seguintes países participantes: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, e Venezuela. 42 “participação”, por um desejo de influenciar a agenda aberta com valores que exprimem [a] tradição diplomática [brasileira]” (FONSECA JR., 2004, p. 368). Mais tarde, a evolução da autonomia pela participação passaria a ser chamada de autonomia pela integração. Segundo Fonseca Jr (2004, p. 363-374), De acordo com a nova perspectiva do governo, o país passou a ter maior controle sobre o seu destino e a resolver melhor seus problemas internos pela participação ativa na elaboração das normas e das pautas de conduta da ordem mundial. Assim, participando ativamente na organização e na regulamentação das relações internacionais, nas mais diversas áreas, a diplomacia brasileira contribuiria para o estabelecimento de um ambiente favorável ao seu desenvolvimento econômico, objetivo que foi o eixo da ação externa do Brasil durante a maior parte do século XX. Esse padrão de inserção internacional parece ter sido funcional para o país enquanto o ambiente internacional cooperativo da época prevalecia. Contudo, essa conjuntura foi alterada a partir de 2001 com os ataques terroristas de 11 se setembro, os quais conduziram a política externa do governo norte-americano de George W. Bush a retomar a dinâmica do unilateralismo no seu exercício de poder global. Para Vigevani e Oliveira (2003), a política externa manteve a decisão de participar de maneira ativa nos foros internacionais, buscando benefícios mais concretos com menor geração possível de custos. Se a participação era inevitável, então ela deveria ocorrer de maneira mais vantajosa, acompanhada de maior institucionalização. Esta nova conjuntura obrigou o governo FHC a realizar um acerto de rota no sentido da ampliação das relações brasileiras com outros países, tais como a China, a Índia e a África do Sul. Outra necessidade foi a de aproximar e desenvolver diálogos e negociações com o Mercosul e a União Europeia, na tentativa de aumentar a margem de manobra das ações brasileiras num contexto de crescente fechamento por parte dos EUA (VIGEVANI; OLIVEIRA, 2003). Nas palavras de Fernando Henrique Cardoso Se me coubesse sintetizar a política externa de meus dois mandatos, lançaria mão de uma expressão cunhada por um antigo assessor, o embaixador Gelson Fonseca, e diria que se buscou nesse período a autonomia pela participação numa realidade internacional em mutação [...] Procuramos 43 redefinir a política exterior do país segundo dois eixos, ambos norteados pela busca de autonomia via uma maior participação na dinâmica internacional. O primeiro foi a disposição em exercer um papel ativo na remodelação normativa do sistema internacional e, por conseguinte, de seus padrões de legitimidade. O segundo foi a determinação de aproveitar as oportunidades e combater as assimetrias do processo de globalização, de modo a favorecer a retomada de um crescimento sustentável [...] (CARDOSO, 2004). O embaixador Seixas Correa (2000, p. 31) afirma também que A agenda da diplomacia sofreu alterações, mas não mudaram os princípios fundamentais da política externa, os que nos acompanham desde o início de nossa história, em especial o de buscar, mediante a negociação pragmática e a afirmação dos valores nacionais, preservar a nossa unidade e a inteireza do nosso projeto nacional de desenvolvimento, assegurando o maior grau possível de autonomia para nossos movimentos. Uma autonomia que não mais se atinge pelo distanciamento, pela recusa ou pela confrontação, mas sim pela aproximação, pelo diálogo, pela integração. Em resumo, esta política externa executada na gestão de FHC teria tido estreita ligação com a implantação no país de um modelo econômico neoliberal, com a intenção de atrair investimentos, empresas e tecnologias, objetivando influenciar a formulação de princípios e regras este sistema e buscando trocar a exclusão pela pró-atividade, caso o país estivesse em conformidade com o regime internacional vigente,. Essa tendência, como veremos, será aprofundada no governo Lula, em uma crescente busca pela ampliação da autonomia do país nos assuntos internacionais. Os autores Vigevani e Cepaluni (2007) defendem que a passagem da gestão de FHC para Lula da Silva implicou também na alteração das diretrizes diplomáticas brasileiras. Neste ponto, a “autonomia pela participação” no governo FHC tornou-se “autonomia pela diversificação” na administração de Lula e do PT. A política externa de FHC, ainda que praticante do multilateralismo, optou por uma negociação direta com os países desenvolvidos, em detrimento das relações sul-sul, tendo em vista as assimetrias do sistema internacional. A política externa do governo Lula, por outro lado, percebeu as relações sul-sul como instrumento de redução de tais assimetrias, mantendo uma postura multipolarista, porém com maior ênfase na defesa da soberania nacional e a adoção de um espírito de liderança regional. Essa postura diplomática não é nova, como apresenta o conceito de autonomia pela diversificação, sendo que a variação e a diversificação nas relações promovidas pelo Brasil 44 foi, por diversas vezes no passado, adotada pela diplomacia brasileira. Seu adensamento vem dos anos 1950, afirmando-se, mais tarde, como padrão da inserção internacional brasileira no governo Jânio Quadros e João Goulart com a PEI, a qual, com novas roupagens, foi mantida em diversos pontos, pelo regime militar (1964-1985) (VIGEVANI; CEPALUNI, 2011). Ademais, a própria autonomia pela participação também teria sido caracterizada por uma diversificação, condicionada pela virada unilateralista norte-americana no pós-11 de setembro de 2001. Nesta perspectiva, a diplomacia no governo Lula tão somente a teria aprofundado. Mas, não é este o principal ponto da dissertação. Durante a construção do objeto de pesquisa, verificamos que a política externa do governo Lula pode ser caracterizada como um momento de inflexão no padrão de inserção internacional do Brasil. Ela poderia ser fruto de uma releitura de modelos de política externa do passado, quando prevaleceu a diversificação. Como ressaltado tanto pelo presidente Lula quanto pelo ministro Celso Amorim, o país necessitava de um projeto nacional de desenvolvimento, sendo a política externa uma das alternativas para viabilizá-lo. Porém, apresenta uma nova “roupagem”, condicionada por características particulares que buscam imprimir a ideia de uma política externa "ativa e altiva34”, colocando o Brasil em posição de destaque nas discussões dos principais temas da agenda internacional do século XXI. A seguir, são apresentadas as percepções e os questionamentos que conduziram-nos à refletir sobre este conceito, bem como expor o conceito de autonomia pela assertividade e a sua pertinência na classificação da política externa brasileira no período referente ao governo Lula. 3.3 A Autonomia pela Assertividade Para caracterizar este novo conceito é necessário identificar algumas características particulares da política externa brasileira durante o período compreendido entre 2003 a 2010. Retomaremos, posteriormente, a relação entre o Partido dos Trabalhadores e a política externa 34 Classificação presente em diversos discursos de Celso Amorim, que se encontram disponíveis em: 45 do governo Lula, apresentada na primeira p