Bandas Militares no Brasil: difusão e organização entre 1808-1889 Fernando Pereira Binder VOLUME I São Paulo - Setembro de 2006 - Bandas Militares no Brasil: difusão e organização entre 1808-1889 Fernando Pereira Binder VOLUME I (Texto) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista - UNESP, como exigência parcial para a obtenção do título de mestre. ORIENTADOR: Prof. Dr. Paulo Castagna São Paulo - Setembro de 2006 - A Cecília & Valerie AGRADECIMENTOS Muitas pessoas colaboraram para que esta fosse feita, fornecendo informações, livros, partituras, documentos, artigos, trabalho e amizade. Agradeço a todos que despenderam comigo um bem valioso e irrecuperável: o tempo. Aos professores Paulo Castagna e Alberto Ikeda pela orientação e auxílio deste os primeiros esboços desta pesquisa; agradeço por acreditarem em mim e em meu trabalho, agradeço às críticas, nem sempre boas mas sempre sinceras. Ao colega e amigo Marcelo Hazan pelo incentivo, pelas sugestões no trabalho e pela meticulosa revisão final nos manuscritos. Agradeço também a ele e a Catherine Hazan pelo auxílio no Rio de Janeiro. A José Reinaldo de Lima Lopes, Paulo Henrique Martinez, Hendrik Kraay e Jaelson Bitran Trindade pelas sugestões e esclarecimentos sobre algumas questões historiográficas. A Luís Miguel Correia, António Jorge Marques, Sérgio Dias, André Guerra Cotta, Lucas Robatto, Adriano de Castro Meyer, Pablo Sotuyo Blanco, Mary Angela Biason, Carlos Eduardo de Souza, Rogério Budasz e Gerson Tung pela presteza e generosidade em ceder-me informações. Júlio Neuparth & família pelo auxílio na publicação da biografia de Erdmann Neuparth. A Douglas Fábio Ferreira e Fábio Garboggini pela ajuda com as leis e partituras. Aos colegas de mestrado Áurea Demaria Silva, Matheus “Tadeu” Bitondi, Alicia Cupani, Chiquinho de Assis pela companhia e amizade. A Rosângela, Thaís, Carlão, Expedito e demais funcionários do IA que sempre me ajudaram nestes dois anos. À FAPESP que financiou esta pesquisa em suas duas fases: em 2002, com bolsa de iniciação científica; 2004-2006, com bolsa de mestrado. RESUMO Esta dissertação estuda a atuação das bandas militares no Brasil durante o período monárquico (1808-1889). O objetivo principal é esclarecer o papel destes conjuntos na difusão das práticas e repertórios associados a este tradicional veículo: a banda de música. A hipótese é que as bandas militares tiveram duas funções: simbólica, enquanto brasão sonoro da monarquia brasileira, e infra- estrutural, subministrando à sociedade civil os elementos necessários a esta prática musical. Fontes de diversos tipos foram consultadas: registros oficiais, legislação administrativa, relatos de cronistas e viajantes, documentação iconografia e o repertório musical para banda. Primeiramente este trabalho procura definir o que era uma banda de música no início do século XIX e as razões pelas quais estes conjuntos foram introduzidos no exército. Em seguida, investiga como era a participação das bandas militares em festas e cerimônias oficiais, no Rio de Janeiro e em outras partes do Brasil. Por último analisa em termos estatísticos e conceituais a legislação administrativa produzida pelo exército relativo às bandas militares. As evidências sugerem que as bandas de música foram introduzidas no exército luso-brasileiro na passagem do século XVIII para o XIX, como parte de uma cultura aristocrática na qual se inscrevia a oficialidade. As bandas militares pontuaram as festas reais e oficiais em vários momentos, ocasiões que não dispensavam de considerável pompa oficial. A partir de 1840 bandas militares tornaram-se mais comuns, devido à expansão do exército e pelo surgimento de outras corporações militares, como a Guarda Nacional e as Polícias Militares provinciais, que também equiparam seus quadros com bandas de música. Tais bandas intensificaram a ocupação das ruas e praças em outras ocasiões, além das festas e desfiles oficiais. Essa atuação constante e diversificada contribuiu para a vinculação da banda de música a traços militares, como repertório, uniforme e instrumentação. Á dissertação inclui a edição de cinco obras representativas. Palavras-chave: banda de música, banda militar, festas reais, música cívica, música militar. Área de conhecimento: Música - Instrumentação Musical. ABSTRACT This dissertation studies the activities of military bands in Brazil during the monarchic period (1808- 1889). The main objective is to elucidate the role of these groups in the establishment of repertoire and performance practices associated with this traditional ensemble: the wind band. My hypothesis is that military bands had both a symbolic role, serving as a sort of sonorous “coat of arms” for the Brazilian monarchy, as well as a structural role, providing the civil society with the elements necessary for the development of this variety of musical practice. My research included several types of resources: official registries, administrative legislation, chronicles of traveling reporters, iconographic documentation and band repertoire. First, I describe the composition of the bands at the beginning of the Nineteenth Century and the reasons for which these groups were introduced into the army. Second, I investigate the manner in which the military bands participated in festivities and official ceremonies in Rio de Janeiro and other places in Brazil. Finally, I present a conceptual and statistic analysis of the administrative legislation concerning the military bands. Evidence suggests that bands were introduced into the Portuguese-Brazilian army sometime around the end of the Eighteenth century as part of an aristocratic culture, which included military officials. The military bands participated in occasions that required considerable official pomp, such as royal and official ceremonies and festivities. From 1840 on the military bands became more common due the increasing size of the army and the formation of new military corps such as National Guard and the provincial military police, which also included bands in their ranks. Besides performing at official parades and festivities, these bands also performed in streets, parks and other public places. These constant and diversified activities contributed to the formation of the wind bands, which retain some of the same characteristics as the military bands, such as repertoire, uniforms and instrumentation. I also edited five representative works which are included in this dissertation. Keywords: wind band, military band, official festivities, civic music, military music. SUMÁRIO DO VOLUME I ÍNDICE DE EXEMPLOS MUSICAIS Exemplo musical 1: dom Pedro I, Hino, (folha 1, recto, compassos 1 a 2) ........................................ 33 Exemplo musical 2: Sigismund von Neukomm, Hino Marcial cantado no enforcamento dos condenados à morte em razão da Revolução Pernambucana, 1817 ........................................... 65 ÍNDICE DE FIGURAS Figura 1: Música do 1º regimento da Armada Real Portuguesa em 1793............................................22 Figura 2: Decreto de 20 de agosto de 1802 especificando a formação instrumental das bandas de música para o exército português ....................................................................................................23 Figura 3: Música a bordo do Áustria por T. Ender ................................................................................57 Figura 4: O festivo desembarque da princesa Leopoldina no dia 06 de novembro de 1817, por F. Frühbeck .........................................................................................................................................57 Figura 5: O desembarque no Rio de Janeiro, por F. Frühbeck ............................................................58 Figura 6: Desembarque da princesa Leopoldina no Arsenal Real da Marinha, por T. M. H. Taunay ..58 Figura 7: Estátua de São Jorge e seu cortejo precedendo a procissão do Corpo de Deus, por J. B. Debret..............................................................................................................................................59 Figura 8: Bando que anunciou a coroação de dom Pedro I, por J. B. Debret. .....................................59 Figura 9: Aclamação de dom João VI, por J. B. Debret. .......................................................................60 Figura 10: Charameleiros anunciando dom Pedro II na Abertura da Assembléia................................60 Figura 11: Bandas de negros no Vale do Paraíba ................................................................................81 Figura 12: Uniformes dos músicos do 2º batalhão de infantaria, 1850 .....................................................81 Figura 13: Banda São Benedito em Botucatu (SP) em 1915................................................................82 Figura 14: Anúncio de instrumentos no Almanaque Laemmert em 1849.............................................82 Figura 15: Decreto nº7685 de 06 de março de 1880 regulamentando o funcionamento do Conselho de Fornecimento .............................................................................................................96 ÍNDICE DE TABELAS Tabela 1: Média e Taxa de Crescimento dos textos nos 7 períodos considerados..............................97 Tabela 2: Média das séries do Grupo Banda. .......................................................................................98 Tabela 3: Aumento no número de componentes conforme o decreto de 11 de dezembro de 1811..101 Tabela 4: Distribuição no número de componentes nas bandas do exército......................................101 Tabela 5: Média das séries do Grupo Músico .....................................................................................105 Tabela 7: Hierarquia entre os músicos segundo instrumentos ...........................................................108 Tabela 8: Soldos dos músicos registrados nas coleções de leis brasileiras e portuguesas,em réis ..113 Tabela 8: Instrumentos de música a ser utilizados pelas bandas do exército em 1848 .....................122 Tabela 9: Instrumentos a serem distribuídas para as bandas de música do exército segundo o decreto n.5352 de 23 de julho 1873. ............................................................................................123 ÍNDICE DE QUADROS Quadro 1: Formações instrumentais de bandas luso-brasileiras e portuguesas entre 1793-1825 ......32 Quadro 2: Músicos que acompanharam a princesa Leopoldina em 1817............................................40 Quadro 3: Instruções para a presença de bandas militares no Livro de Ordens do Dia da Guarda da Polícia do Rio de Janeiro ...........................................................................................................45 Quadro 4: Dias de gala segundo o Aviso de 07 de março de 1825......................................................55 Quadro 5: Integrantes da banda do 2º batalhão de caçadores em 1837 .............................................70 Quadro 6: Ano da criação de bandas das Polícias Militares em alguns estados brasileiros................76 Quadro 7: Grupos e séries criados para a analise da legislação administrativa sobre bandas de música do exército ..........................................................................................................................91 Quadro 8: Periodização adotada para a análise da legislação administrativa .....................................92 Quadro 9: Hierarquia de oficiais, oficiais inferiores e praças no exército imperial brasileiro..............105 Quadro 10: Função musical dos instrumentos prescritos pelo decretos de 1802 e 1817 ..................122 ÍNDICE DE GRÁFICOS Gráfico 1: Distribuição por Diplomas dos textos coletados nas coleções de lei.................................. 89 Gráfico 2: Grupo Abordagem, séries Prioritário e Colateral, Média da Série, Média Final da Série e Média de Textos por período. .........................................................................................................95 Gráfico 3: Quantidade de textos publicados nos grupo de séries Banda, Músico e Infra-estrutura em função do grupo Abordagem.......................................................................................................... 98 ABREVIAÇÕES ANRJ – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (RJ) CCLB – Coletânea da Coleção de Leis do Brasil (Anexos 2 e 3) CCLPT – Coletânea de Coleção de Leis de Portugal (Anexo 4) MIOP – Museu da Inconfidência, Ouro Preto (MG) ACMSP – Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (SP) DPESN – Fundo Decretos do Poder Executivo Sem Número, Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (RJ) AHEX – Arquivo Histórico do Exército (Rio de Janeiro, RJ) ODPC – Livro de Ordens do Dia da Polícia da Corte, Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (RJ). ÍNDICE Introdução................................................................................................................................................. 8 1. Bandas de música luso-brasileiras: revisão de conceitos a partir de formações instrumentais entre 1793-1826 .....................................................................................................................................13 1.1 Instrumental europeu, transformações e classificações: bandas de oboé, harmonia e bandas mistas.................................................................................................................................14 1.2 Bandas de música em Portugal................................................................................................18 1.3 Bandas de música no Brasil .....................................................................................................24 2. Bandas militares: os brasões sonoros da aristocracia.......................................................................34 2.1 Ordem na festa: bandas militares e música nas ruas da corte entre 1808 a 1818..................43 2.2 Ecos de ordem: bandas e festa nas províncias .......................................................................61 2.3 O éthos militar...........................................................................................................................77 3. Direito, legislação administrativa e história serial: considerações para a análise dos textos das coleções de leis. .....................................................................................................................................83 3.1 A criação da série: a escolha dos elementos...........................................................................86 3.2 Séries e grupos.........................................................................................................................90 3.3 Procedimentos estatísticos.......................................................................................................92 4. As bandas do exército nas Coleções de Leis entre 1808 e 1889......................................................94 4.1 Grupo Abordagem ....................................................................................................................94 4.2 Grupo Banda ............................................................................................................................97 4.2.1 O tamanho das bandas.....................................................................................................99 4.2.2 Quem pode ter banda de música....................................................................................102 4.3 Grupo Músico .........................................................................................................................104 4.3.1 Engajamento dos músicos: mestres, músicos e aprendizes..........................................105 4.3.2 A remuneração dos músicos ..........................................................................................110 4.3.3 Arrecadação de fundos e contabilidade .........................................................................113 4.3.4 O ensino musical no exército..........................................................................................117 4.3.5 Instrumental ....................................................................................................................120 4.3.6 Fardamento.....................................................................................................................124 Conclusões...........................................................................................................................................125 Bibliografia do volume I ........................................................................................................................127 SUMÁRIO DO VOLUME II ÍNDÍCE DE QUADROS Quadro 1: Gêneros em Mercedes Moura Reis (1952). .......................................................................... 3 Quadro 2: Atualização da nomencatura do Hino Patriótico de Marcos Portugal................................. 10 Quadro 3: Atualização da nomencatura do Marcha Triunfal de Sigismund Neukomm ....................... 10 ÍNDICE Introdução................................................................................................................................................ 2 1. Normas editoriais ................................................................................................................................ 5 1.1 Convenções de grafia musical ...................................................................................................... 5 2. Obras Editadas.................................................................................................................................... 6 2.1 Marcha em Sol, [Francisco Gomes da Rocha, (1746? - 1808)?] .................................................. 6 2.2 Hino Patriótico da Nação Portuguesa, Marcos Portugal (1762 - 1830) ........................................ 7 2.3 Marcha Triunfal, Sigismund Ritter von Neukomm (1778 - 1855) ................................................ 10 2.4 Hino Militar, João Martins de Souza............................................................................................ 11 2.5 Pavilhão Brasileiro - Anacleto de Medeiros (1866 - 1907) .......................................................... 11 3. Partituras ........................................................................................................................................... 13 3.1 Marcha em Sol, [Francisco Gomes da Rocha?], (1746? - 1808)................................................ 14 3.2 Hino Patriótico da Nação Portuguesa, Marcos Portugal (1762 - 1830) ...................................... 15 3.3 Marcha Triunfal, Sigismund Ritter von Neukomm (1778 - 1855) ................................................ 28 3.4 Hino Militar, João Martins de Souza............................................................................................ 55 3.5 Pavilhão Brasileiro - Anacleto de Medeiros (1866 - 1907) .......................................................... 67 4. Aparato Crítico .................................................................................................................................. 80 4.1 Marcha em sol, [Francisco Gomes da Rocha?] .......................................................................... 80 4.2 Hino Patriótico da Nação Portuguesa, Marcos Portugal ............................................................. 80 4.3 Marcha Triunfal, Sigismund Ritter von Neukomm....................................................................... 81 4.4 Hino Marcial, João Martins de Souza.......................................................................................... 84 4.5 Pavilhão Brasileiro, Anacleto de Medeiros .................................................................................. 84 Bibliografia do volume II ........................................................................................................................ 86 SUMÁRIO DO VOLUME III ÍNDICE Introdução............................................................................................................................................... 2 Anexo 1 - Transcrição das Ordens do Dia da Guarda Real da Polícia Militar da Corte, 1809 – 1817.. 3 Anexo 2 - Coletânea de textos sobre bandas no exército nas coleções de leis brasileiras (texto completo em CD-ROM)........................................................................................................................ 15 Anexo 3 - Coletânea de textos sobre bandas no exército nas coleções de leis brasileiras (extrato em papel).............................................................................................................................................. 17 1.1 Índice da Coletânea das Celeção de Leis do Brasil ................................................................ 18 Anexo 4 - Coletânea de textos sobre bandas no exército nas coleções de leis portuguesas........... 123 Anexo 5 – Análise da legislação: tabelamento e gráficos.................................................................. 157 1.2 Tabelamento das Leis ........................................................................................................... 158 1.3 Estatísticas Finais .................................................................................................................. 165 8 INTRODUÇÃO A banda de música foi uma das instituições musicais mais presentes e populares no Brasil durante o século XIX, contribuindo para a formação de músicos para as orquestras (SALLES, 1985, p. 11) e para evolução de gêneros musicais em voga no período (DUPRAT, 1988, p. 6). Genericamente, banda é um conjunto musical formado por instrumentos de sopro e percussão. Sua instrumentação moderna começou a se estruturar na França quando Jean Baptiste Lully (1632-1687), no reinado de Luís XIV (1638-1715), substituiu por oboés e fagotes as antigas charamelas e dulcianas. Nesta época, as bandas de música atuavam basicamente nas cortes e nas igrejas da elite aristocrata, sem a conotação de conjunto popular que possui hoje. A popularização das bandas de música na Inglaterra iniciou-se entre 1830 e 1850, quando ocorreu o que Trevor Herbert qualifica como uma das mais notáveis mudanças sociológicas que ocorridas na história da música: o engajamento das massas de trabalhadores comuns como ouvintes e executantes de instrumentos de metal (HERBERT, 1997, p. 177). Para Herbert, a popularização das bandas na Inglaterra deveu-se a diversos fatores. Um deles foi a criação e adaptação das válvulas aos instrumentos de metal, tornando-os mais fáceis de se aprender e tocar. Outro fator importante foi o desenvolvimento de novos métodos industriais de manufatura; com isso os instrumentos passaram a ser produzidos em grandes quantidades e podiam ser vendidos a preços baixos e acessíveis às classes populares. A urbanização, já iniciada na Inglaterra, também ajudou a popularização das bandas, pois criou uma nova idéia de comunidade e um novo mercado para os fabricantes e comerciantes dos instrumentos musicais. Também contribuiu para a popularização da brass band, a típica formação inglesa da segunda metade do século XIX, o estímulo à pratica musical das classes inferiores, emanado de alguns setores da sociedade inglesa, que consideravam a música uma recreação racional e propiciadora de desenvolvimento moral. Além disso, as bandas também eram promovidas por novas estratégias comercias: além da propaganda, a venda a prazo permitia o acesso de pessoas com poucos recursos aos instrumentos musicais. O ápice desse processo foi o surgimento de competições entre brass bands em 1852. Estas competições públicas, comercialmente 9 criadas e gerenciadas, tornaram-se muitos populares; nelas o espetáculo não era apenas o concerto musical, mas a disputa das bandas que competiam entre si por prêmios (HERBERT, 1997, p. 177- 180). Vicente Salles foi um dos poucos musicólogos brasileiros que estudou com mais interesse a história das bandas brasileiras. Para ele, as formações “modernas” começaram a ser introduzidas no Brasil a partir de 1808, com a transferência da corte portuguesa ao Rio de Janeiro: O grande impulso dado à formação das bandas militares no Brasil começou, como vimos, com a transmigração da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Mas a banda da Brigada Real trazida por D. João VI, em 1808, ainda era arcaica. Em Portugal, a banda de música começou a se modernizar somente em 1814, quando seus soldados regressaram da guerra peninsular, trazendo brilhantes bandas de música, onde predominavam executantes contratados, principalmente espanhóis e alemães [...]. A música militar claramente aparecida em bases orgânicas, na metrópole, em 1814, forneceria o modelo para a formação das bandas civis (SALLES, 1985, p. 20). Embora considerasse a banda da Brigada Real “arcaica” em comparação aos modelos que emergiram em Portugal a partir de 1814, Salles ainda considerava que este conjunto representava um avanço sobre os modelos brasileiros - as “primitivas, deficientes e imperfeitas bandas de pífanos, charamelas, trombetas, cornetas e tambores” (1985, p. 18) ou, nas palavras de José Ramos Tinhorão, a “confusa formação de músicos tocadores de charamelas, caixas e trombetas vindas dos primeiros séculos da colonização” (1976, p. 89). Contrasta-se o teor pejorativo destas considerações com o tom saudosista do comentário do padre José Diniz, quando ele constatou o desaparecimento, em algumas festas religiosas do Recife, “dos trombeteiros e cornetas, dos timbaleiros e das velhas e queridas charamelas” substituídas pelas “músicas dos regimentos” na segunda década do século XIX (1979, p. 108). Salles não define qual seria a “formação arcaica” da banda da Brigada Real, nem tampouco explicita os critérios utilizados para atribuir imperfeição aos outros conjuntos. Já a “confusão” a que se refere Tinhorão origina-se mais na incapacidade moderna em entender como os conjuntos antigos eram organizados. Isso tem várias causas: a indiferença dos musicólogos brasileiros com história dos conjuntos e instrumentos de sopro, a desatenção dada à literatura organológica, uma carência 10 enorme de estudos aprofundados sobre bandas, seus instrumentos e seu repertório, principalmente no período anterior a 1870. Tal situação produziu vários equívocos, como o de Tinhorão, que em capítulo intitulado “As bandas de músicas das fazendas” utiliza como exemplos conjuntos constituídos por coro e orquestra (1975, p. 71-91). Muitos autores vinculam o surgimento das bandas civis à formação das bandas militares, entre eles Vicente Salles, conforme a citação transcrita acima. Assim, o objetivo desta dissertação é esclarecer a função das bandas militares no processo de difusão das bandas de música no Brasil. A hipótese é que as bandas militares tiveram duas dimensões distintas: uma de caráter simbólico e, outro, infra-estrutural. Bandas militares muitas vezes tomavam parte das festas oficiais da monarquia luso-brasileira, tanto em honra à família real e imperial - aniversários, noivados, casamentos, batizados etc - quanto por razões de Estado - aclamações, vitórias militares e celebrações cívico-políticas em geral. Esta exposição freqüente teria favorecido a divulgação deste tipo característico de conjunto instrumental - a banda de música - como um importante elemento simbólico na representação monárquica. Esta abordagem se inspira no estudo de Lílian Schwarcz (1998) sobre a representação de dom Pedro II, apresentada no livro As Barbas do Imperador. Neste trabalho a autora demonstra como a imagem do imperador serviu à criação de símbolos e rituais de afirmação do poder central imperial e à construção de uma representação nacional. Sob este ótica, pretendo situar as bandas de música militar como um dos elementos sonoros das cerimônias e rituais do poder monárquico e analisar sua difusão como parte das re-apropriações destes símbolos de poder. Em relatos de cronistas, viajantes, documentos oficiais e outras fontes bibliográficas examinei a atuação das bandas militares em quatro festas importantes ocorridas no Rio de Janeiro entre 1808 a 1818: o desembarque da família real, em 1808; o casamento da princesa Maria Teresa, em 1810; a recepção à princesa Leopoldina, em 1817; e a coroação de dom João VI, em 1818. Posteriormente investiguei a comemoração de ocasiões semelhantes em outros pontos do país por meio de relatos, crônicas e histórias das músicas regionais com o objetivo de comparar estes dois pólos: corte e província. Por outro lado, a criação e manutenção das bandas militares subministraram à sociedade civil os elementos necessários para a atuação deste tipo de conjunto: fornecendo instrumentos, músicos, repertório e ensino (KIEFER, 1997, p. 17). Este aspecto infra-estrutural foi enfocado através da 11 análise da legislação administrativa. Embora esta legislação venha sendo recorrentemente utilizada como fonte para a história das bandas, ela ainda não havia sido objeto de um estudo sistemático. Entre os anos de 1808 e 1889, coletei 93 textos relativos às bandas de música do exército, apresentados nos anexos 2 e 3. A partir desta documentação foi possível conhecer como as bandas militares se organizaram durante o período em questão. Em torno a estes dois eixos, esta dissertação foi organizada em quatro capítulos. No primeiro, caracterizo meu objeto de estudo - banda de música - como um objeto histórico, sujeito a variações e transformações no tempo. Conjuntos de instrumentos de sopro e percussão são muito antigos, com funções, repertório e formações variando no tempo e no espaço, aspectos freqüentemente desconsiderados na bibliografia brasileira. Através do critério de formação instrumental e de modelos de bandas definidos para a Europa Central em Camus (1976) e Polk ([2001]) estudo a variação dos modelos brasileiros, re-avaliando o processo de introdução das bandas de música no exército luso- brasileiro na passagem do século XVIII para o XIX. Este capítulo é complementado no volume II, com edições de cinco obras escritas para banda, em período representativo ao tratado nesta dissertação. No segundo capítulo, abordo a atuação das bandas militares nas festas reais selecionadas. Através dos relatos de cronistas, viajantes e documentos oficiais identifico algumas das bandas militares que estiveram à disposição da corte joanina para, em seguida, situá-las no desenrolar das quatro festas. O mesmo procedimento foi feito para cerimônias análogas, comemoradas em diferentes partes do Brasil. Destas observações, verifico a existência de um éthos militar que as bandas de música oitocentistas herdaram e re-utilizaram. Uma versão condensada dos capítulos 1 e 2 foi publicada nos Anais do IV Encontro de Musicologia Histórica (BINDER, 2006a). No terceiro capítulo, proponho uma maneira para estudar a legislação administrativa coletada. Partindo da abordagem proposta por Paulo Henrique Martinez (2003) para o uso da documentação administrativa e dos procedimentos da história serial descritos por Flamarion Cardoso (1983), desenvolvi um método de análise que possibilitou traçar a linha de atuação do Estado Imperial brasileiro relativamente às bandas militares: a criação de séries baseadas nos temas registrados na legislação e seu tratamento estatístico. 12 No capítulo 4, apresento a análise da legislação coletada através do método desenvolvido no capítulo 3. Estudo a atuação do Ministério da Guerra desde 1808 até a proclamação da república na criação e manutenção da estrutura e dos regulamentos relativos às bandas de música das diversas unidades militares. 13 1. BANDAS DE MÚSICA LUSO-BRASILEIRAS: REVISÃO DE CONCEITOS A PARTIR DE FORMAÇÕES INSTRUMENTAIS ENTRE 1793-1826 O dicionário musical New Grove II traz duas definições para o termo banda: a primeira refere- se a praticamente qualquer conjunto de instrumentos musicais. A segunda define um grupo de músicos que executam combinações de instrumentos de sopro e percussão; ou ainda madeiras, metais e percussão (POLK, [2001], p. inum.). Esta acepção, mais detalhada que a primeira, ainda diz o seguinte: Na Europa, a banda de sopros e percussão é descendente dos grupos ‘altos’ ou ‘fortes’ do período medieval e dos civic waiters, ou Stadtpfeifer, que geralmente se apresentavam ao ar-livre e por isso usavam instrumentos de metal muito sonoros e percussão. As bandas eram freqüentemente móveis, tinham um apelo popular (elas executavam formas mais ligeiras de música, freqüentemente para uma audiência não paga; desta maneira elas também serviram como importante ferramenta de propaganda, ou ao menos ajudavam em promover um fervor nacionalista ou patriótico), e eram freqüentemente associadas com tarefas civis e militares e, por isso, uniformizadas. A orquestra, por outro lado, é descendente dos instrumentos ‘baixos’ ou ‘suaves’ (cordas e instrumentos de sopro mais suaves), que se apresentavam em ambientes fechados. Era originalmente associada com a igreja ou à nobreza e, posteriormente, a concertos formais de música mais ‘séria’ ou sofisticada para audiências pagantes (POLK, [2001], p. inum., tradução minha).1 Uma peculiaridade do termo banda é a certa raridade em encontrá-lo sozinho, desacompanhado. Quase sempre, ao lado de banda existe um adjetivo ou locução adjetiva: banda civil, banda militar, banda religiosa, banda processional, banda de palco, banda fora de palco, banda de marchar, banda de rock, banda de pagode, banda de axé, banda country etc. Esta grande diversidade de usos e termos complica o trabalho do pesquisador, principalmente para fins de classificação. O New Grove II apresenta três critérios para isto: função, formação, estilo ou gênero musical. 1 In Europe the wind and percussion band is descended from the ‘high’ or ‘loud’ groups of the medieval period and from the civic waits or the Stadtpfeifer, who generally performed outdoors and therefore used predominantly loud brass and percussion instruments. Bands were often mobile, had a vernacular appeal (they usually performed lighter forms of music, often to a non- paying audience; as such they have also served as useful propaganda tools, or at least assisted in promoting nationalistic or patriotic fervour), and were often associated with specific military or civic duties and were thus uniformed. The Orchestra, on the other hand, is descended from the medieval ‘low’ or ‘soft’ instruments (strings and softer wind instruments), and usually plays indoors. It was originally associated with the church or the nobility, and later with formal concerts of more ‘serious’ and sophisticated music for which audiences paid. 14 Na historiografia musical brasileira predomina uma classificação que discrimina as bandas em civis e militares. A predominância desta abordagem, que pode ser descrita como funcionalista, dificulta a compreensão de outros aspectos importantes sobre esta prática musical e as sociedades nas quais estes grupos atuaram. O estudo das formações instrumentais é um dos aspectos que tal abordagem ajuda a ocultar. Além disso, ou por causa disso, é comum colocar-se sob um mesmo “guarda-chuva” desde conjuntos de charameleiros setecentistas até bandas militares republicanas. Mesmo em trabalhos onde os instrumentos são claramente identificados, o caráter dado é meramente quantitativo ou informativo, quase uma curiosidade. Muitas vezes os nomes dos instrumentos são automaticamente modernizados, dando-se pouca atenção às diferenças entre a nomenclatura atual e as antigas, bem como seus significados históricos e organológicos. Um exemplo disto é o que acontece aos termos pistões, cornetas e suas variantes, indicações quase sempre interpretadas como trompetes, desconsiderando a enorme variedade de instrumentos e nomenclaturas em uso no século XIX (ver BINDER, CASTAGNA, 2005). Desta forma, o desconhecimento ou a desatenção aos instrumentos das bandas européias, e suas diferentes combinações, constituem empecilho a uma compreensão das formações instrumentais que existiram no Brasil e em Portugal, e como elas se modificaram. 1.1 Instrumental europeu, transformações e classificações: bandas de oboé, harmonia e bandas mistas Apresento aqui um exame bastante sucinto, embora necessário, da instrumentação utilizada nos países de tradição austro-germânica e francesa desde a segunda metade do século XVII até o início do século XIX. As classificações apresentadas não devem ser consideradas herméticas e/ou mutuamente exclusivas que, desta forma, refletiriam mais o critério de classificação empregado do que as características próprias das bandas. Um exemplo claro das dificuldades metodológicas que a nomenclatura apresenta aparece na locução adjetiva banda militar. Segundo Polk, esta expressão surgiu no final do século XVIII para designar uma banda regimental que consistia de instrumentos de madeiras, metais e percussão. No século XIX a expressão popularizou-se em referência a bandas que tinham funções militares 15 específicas e eram mantidas por instituições ou oficiais militares ou um conjunto com certa formação instrumental sem vínculos ou tarefas militares. Na linguagem moderna, Polk desaprova o uso da locução banda militar para tais conjuntos, recomendando o uso de bandas de sopros mistas; para a autora, o uso de banda militar deve ser reservado aos conjuntos mantidos por instituições militares ([2001], p. inum.). Se, por um lado, o critério classificatório de constituição instrumental evita certas ambigüidades, por outro encobre indícios históricos e sociológicos que podem revelar aspectos importantes para o estudo do passado destes conjuntos, como mostraremos no capítulo 2. Segundo Camus (1976, p. 3), a música dentro das forças armadas possui quatro funções inter-relacionadas: a) desenvolver o espírito de corpo e o moral da tropa, b) auxiliar nas tarefas de campo, c) prover com música cerimônias militares e d) prover com música atividades sociais e recreativas. Camus também distingue em dois os conjuntos musicais dentro dos exércitos: field music e band of music, grupos que, já no século XVIII, “possuíam sua própria organização, tradição e repertório. Estes conjuntos existiam simultaneamente e no final do século eram freqüentemente combinados em ocasiões especiais” (1976, p. 6, tradução minha).2 Estes dois conjuntos serão denominados, nesta dissertação, por banda marcial e banda de música, respectivamente. A banda marcial executava principalmente música funcional para tarefas de campo - conduzir sinais e ordens, auxiliar a manutenção da cadência da marcha e os movimentos da tropa -, além de tomar parte nas cerimônias militares, como paradas e formaturas (CAMUS, 1976, p. 4). A banda de música também participava das cerimônias militares e provia com música as atividades sociais, recreativas. Foi no reinado de Luis XIV (1638-1715) que surgiu o modelo de banda do qual se derivaram os padrões instrumentais posteriores utilizados em boa parte da Europa. Na corte real francesa, os ensambles formados por instrumentos da família dos oboés, substituíram as charamelas e baixões do modelo alemão. A banda dos Guardas Dragões de Brandemburgo, por exemplo, era composta por 2 There were throughout the [18th] century two distinct types of music that had their own organization, traditions and repertoire. These existed simultaneously and by the end of the century were often combined for special occasions. 16 duas charamelas soprano e uma tenor, baixão e tambores. Esta formação ficou conhecida por Alta- Kapelle, ou Alta Musique e foi muito popular na Europa entre os séculos XIV a XVI. O novo conjunto, inicialmente implementado por Batispte Lully na corte francesa era formado por três oboés, baixão ou fagote e tambor. Haendel escreveu música para esta formação, sua Grand Overture of Warlike Instruments, ou Música para Fogos de Artifício (1749) utiliza uma versão expandida deste modelo, ao qual foi adicionado tímpanos (POLK, [2001], p. inum.). Entre 1743 e 1762 ocorreu a transição da banda de oboés para o conjunto conhecido como harmoniemusik, ou banda de harmonia, como chamarei aqui, com a fixação de um par de trompas, a diminuição de três para dois oboés e o emprego de clarinetes e flautas, adicionados ou em substituição aos oboés. As combinações mais freqüentes para este tipo de conjunto eram “pares de oboés, trompas e fagotes; pares de clarinetes, trompas e fagotes; pares de oboés, clarinetes, trompas e fagotes” (CAMUS, 1976, p. 29, tradução minha).3 As bandas de harmonia se disseminaram entre a aristocracia européia tendo como principal modelo o conjunto da corte vienense do imperador José I que, em 1782, reuniu os melhores instrumentistas de sua corte em seu conjunto (HELLYER, [2001], p. inum.). Camus destaca o fato que “devido ao pequeno número de partes, de cinco a oito, muita música escrita para esta formação é considerada música de câmara, ignorando-se seu significado militar” (1976, p. 29, tradução minha).4 Na verdade, a jornada dupla era muito comum aos músicos das bandas de oboés e harmonia: A partir do final do século XVII as bandas de oboé freqüentemente tinham jornada dupla, tocando música militar e em celebrações ao ar livre, conforme o exigido. Também tocavam em ambientes fechados para eventos de corte, como conjuntos independentes ou como parte de uma orquestra. Os oito oboés dos Mosqueteiros tocavam para divertimentos, festas aquáticas, bailes e outros eventos da corte francesa. Dois trompistas nomeados para a corte de Württemberg em 1713 eram requeridos tanto na orquestra como na banda regimental. Quando o Tratado de Utrecht trouxe paz em 1713, as bandas foram empregadas em batismos, bailes, serviços religiosos e carnavalescos, e acompanhavam os membros da família real em suas viagens. Mais tarde, os contratos para os instrumentistas de sopro admitidos pela corte de Esterházy em 1761 indicam que eles também executavam tanto serviços militares como na corte. Foi a partir destes grupos que as “harmonias” se desenvolveram; 3 [...] pair of oboes, horns, and bassons; pair of clarinetsm horns, and bassons; pair of oboes, clarinets, horns, and bassons. 4 Because of this small number of parts, from five to eight, is has been assumed that the music written for these combinations was chamber music, and their military significance has been ignored. 17 o termo era aplicado tanto aos grupos de instrumentos de sopro empregados pela aristocracia (e outros) como para pequenas bandas militares (POLK, [2001], p. inum., tradução minha).5 As bandas de oboés e harmonia demonstram as dificuldades que classificações rígidas podem provocar, onde torna-se obscura “a linha entre a música militar e a música civil ao ar-livre, como as serenatas, cassações e divertimentos” (CAMUS, 1976, p. 30, tradução minha).6 Exemplos conhecidos de música para as bandas de harmonia são os divertimentos e serenatas para instrumentos de sopro de Wolfgang Amadeus Mozart. Influenciadas pela moda turca que se espalhou pela Europa no século XVIII, as bandas de harmonia agregaram instrumentos de percussão aos sopros, provocando uma nova transformação no instrumental. No início, a “música turca” ou “janízara” poderia significar qualquer instrumento de percussão tomado de empréstimo aos janízaros (nome dado às tropas de elite dos sultões otomanos), mas “ao final do século isto tinha se estandardizado em referência ao uso de bumbos, pratos, tamborim e triângulo” (CAMUS, 1976, p. 36, tradução minha).7 Para equilibrar a sonoridade do conjunto, afetada pela introdução da percussão, o número de clarinetes foi aumentado, flautins, requintas e trombones também foram adicionados. Esta formação foi denominada como banda mista ou militar; mista em referência aos diferentes tipos de instrumentos, madeiras, metais e percussão; militar devido à importância das bandas militares para sua padronização, embora ainda existissem conjuntos nesta configuração que não pertenciam ou mantidas por instituições ou oficiais militares. Este padrão e suas variações foram adotados em muitos lugares até meados do século XIX, antes da revolução provocada pela introdução dos instrumentos de válvulas e pistões nas bandas: 5 From the end of the 17th century bands of hautbois often did double duty, playing military music and for outdoor festivals as required, but also playing indoors for court events, either as an independent ensemble or as part of an orchestra. The eight hautbois of the Mousquetaires played for divertissements, water parties, balls and other events at the French court. Two horn players appointed to the Württemberg court in 1713 were expected to play both in the orchestra and in the regimental band. When the Treaty of Utrecht brought peace in 1713, the band was employed for baptisms, balls, church services and carnival, and accompanied members of the royal family on their travels. Later in the century, contracts for the wind players hired by the Esterházy court in 1761 indicate that they too performed both military and court duty. It was from such groups that the ‘Harmonien’ developed; the term was applied both to groups of wind instruments employed by the aristocracy (and others) and to small military bands. 6 The line between military music and outdoor civilian music as the serenades, cassations and divertimenti have been called, is therefore obscured. 18 Por volta de 1810 as maiores bandas militares européias tinham alcançado seu tamanho atual, tendo posteriormente aumentado o número de clarinetes e adicionado requintas e, na Alemanha, freqüentemente cornos de basseto; os instrumentos de metal incluíam normalmente trombones, ao passo que os pares extras de trompas e trompetes disponibilizavam diferentes [afinações]. Na Inglaterra, o serpente era reforçado por bass horn e, nas regiões alemãs, por contra-fagotes. Uma banda típica de infantaria francesa em 1809 consistia de flautim, requinta, seis a oito clarinetes em si bemol, dois fagotes, duas trompas, dois ou três trombones, um ou dois serpentes, caixa, bumbo, pratos e pavilhão chinês (crescente turco) (POLK, [2001], p. inum., tradução minha).8 1.2 Bandas de música em Portugal Assim como o estudos da música religiosa dos séculos XVIII e XIX no Brasil pressupõe o exame do repertório português, o entendimento da história das bandas no Brasil, no mesmo período, também necessita considerar o desenvolvimento destes conjuntos em Portugal, caminho já apontado por Vicente Salles (1985, p. 18-20). O militar português Raimundo José da Cunha Mattos (1776-1839) foi um dos primeiros autores a distinguir os dois tipos de conjuntos mencionados acima: a banda marcial e a banda de música. Mattos chama o primeiro tipo de instrumentos bélicos - tambores, cornetas e trombetas - responsáveis pela execução dos toques, sinais e comandos para a tropa, que ele classificou em três qualidades: 1º Toque de advertência, 2º Toque de execução, 3º Toque de continência: e por eles tão somente, e sem o socorro da voz dos chefes, se podem fazer todas as evoluções militares. Os principais toques são os seguintes: Alvorada – Chamada – Generala – Rebote – Missa – Rancho – Faxina – Assembléia – Ordem – Castigo – Recolher – Retreta - Rezar – Oficiais – Sargentos – Bandos – Tambores – Marchar em diferentes direções – Atenção, ou Advertência. Os tambores, cornetas e trombetas devem ser muito exercitados nestes toques; e os oficiais e soldados hão de estar com eles muito bem familiarizados para não confundirem os diversos mandamentos (1837-1846, p. 291-220, v. 3). 7 [...] by the end of the century it had been standardized into a reference to use of the bass drum, cymbals, tambourine, and triangle. 8 By about 1810 the larger European military bands had reached their present size, having further increased the number of clarinets and added small clarinets and in Germany often basset-horns; the brass instruments regularly included trombones while extra pairs of horns and trumpets made different crookings simultaneously available. In England the serpent was supported by the bass horn and in the German lands by the double bassoon. A typical French infantry band of 1809 consisted of piccolo, E clarinet, six to eight B clarinets, two bassoons, two horns, trumpet, two or three trombones, one or two serpents, side drum, bass drum, cymbals and pavillon chinois (Turkish crescent). 19 Os dicionários de música de Ernesto Vieira (1899), Pedro Sinzig (1959) e Tomas Borba (1956- 1958) possuem o verbete banda marcial, sem explicitar as diferenças entre este conjunto e a banda de música. Escritores mais modernos como Brum ([1987?]) e Reis (1962) Almeida (1969) discriminam tais diferenças, chamando-os também por fanfarra ou bandas de tambores e cornetas. Nenhuma das duas edição da Enciclopédia da Música Brasileira possui verbetes para estes termos (MARCONDES, 1977, 1998). Até o presente momente, o conjunto de sopros e percussão português melhor estudado é o conjunto de trompetistas da corte portuguesa que fazia parte da Charamela Real, instituição musical que atuou de ca.1454 até a segunda metade do século XIX. Além do conjunto de trompetes, cuja inclusão parece ter ocorrido em 1724,9 a Charamela Real também possuía uma banda de música. O trompetista e musicólogo Edward Tarr estudou alguns instrumentos e o repertório do corpo de trompetistas, ambos preservados no Museu dos Coches de Lisboa.10 Na primeira parte de seu estudo, Tarr discorre sobre a história da instituição e mostra que o termo charamela podia se referir tanto ao conjunto de trompetes como à banda de música: Quanto ao significado geral da palavra, parece ter se referido desde o século XV ao conjunto de instrumentos de sopro livre da corte portuguesa e, por conseguinte, também à Alta-Kapelle composta por instrumentos de palheta dupla e trombones ou ao corpo de trompetistas da corte. Como consta nos documentos, podia também se chamar Charamela apenas um dos grupos (1980, p. 183, tradução minha).11 Ainda segundo Tarr, em data desconhecida o “instrumental dos tocadores de madeiras se transformou, sob a influência de Versalhes, de um grupo de sopros com charamela, bombarda e trombone naquela Bande des Hautbois” (1980, p. 189, tradução minha),12 isto é, o instrumental da banda da Charamela Real, típico de um grupo de Alta-Kapelle, foi modificado em favor dos oboés, embora o termo charamela permanecesse para a designação do conjunto. 9 Para a contratação dos músicos ver DODERER, 2001. 10 O museu possui 22 trompetes e 26 livros de partituras datados do século XVIII. 11 Was die zwiete, allgemeinere Bedeutung des Wortes charamela betrifft, so scheint es seit dem 15. Jahrhundert die vereinigten Freiluftinstrumente des portugiesischen Hofs - also sowohl die aus Doppelrohrblattinstrumenten und Zugposaunen bestehende Alta-Kapelle als auch das Hoftrompeterkorps - bezeichnet zu haben. Wie es aus den Akten erscheint, konnte aber auch nur die eine oder andere Gruppe Chamanela heiβen. 20 Peculiaridades na nomenclatura dos instrumentos e instrumentistas não foram exclusivas à língua portuguesa. Camus já apontou algo semelhante na língua inglesa, onde o termo hautboy podia referir-se tanto ao executante do oboé como ao músico militar em geral, distinguindo-os dos tocadores de tambores e pífanos das bandas marciais (1976, p. 25). Em Portugal, uma informação datada de 1740 indica que, àquela época, a denominação charamela ainda era aplicada às bandas de oboé da Armada Real, um dos corpos da marinha de guerra portuguesa: Em [agosto de] 1740 encontrava-se aquartelado no Castelo de São Jorge o Regimento da Armada Real. Uma praça executante do boase (termo adulterado de oboé), da charamela, envolveu-se em desordem, da qual resultou levar uma pontada de chuço (CUTILEIRO, 1981, p. 6). Nesta passagem fica claro que o músico era um oboísta e que o conjunto era denominado por charamela, indício de que, nesta época, o instrumental da banda da Armada Real já se modificara, tal como ocorrera na Charamela Real. Também é provável que, na data indicada, a banda da Armada já não contasse nem com charamelas propriamente ditas, nem mesmo com baixões ou dulcianas, utilizando instrumentos mais modernos, da família dos ‘boases’. Ao que tudo indica, foi por volta da última década do século XVIII que as bandas de música, sob o modelo dos conjuntos de harmoniemusik ingressaram definitivamente no exército português. Concomitantemente, a palavra charamela foi sendo substituída por música para designar as bandas. Por sua vez, o termo banda ainda não possuía nenhuma acepção musical, como mostra o verbete da segunda edição do dicionário de Rafael Bluteau: BANDA, s.f. lado v.g., desta banda, d’aquella. § - do vestido, os vivos, com que se aforrão as bordas de còr diversa da peça, ou semelhente. § - no Bras. [brasão] especie de talim, com que se atravessa diagonalmente o escudo do alto angulo do lado direito, ao angulo baixo do esquerdo. § - Banda d’artilharia, os tiros desparados dos canhões à bordo de hum de navio, huma bordada: banda de frechas as que despara hum certo corpo de gente (1789, p. 164, v. 1). 12 ... wird sich das Instrumentarium der Holzbläser unter dem Einfluβ von Versailles von dem einer Bläsergruppe mit Schalmei, Pommem und Zugposaune zu demjenigen einer Bande des hautbois gewandelt haben. 21 Já o termo charamela possui verbete no dicionário, indicando apenas o instrumento e não o conjunto: CHARAMELA, s. f. instrumento musico de sopro, a modo da trombeta direta, de certas madeiras fortes tem huns buracos. ¶ CHARAMELEIRO, s. m. o que toca a charamela (BLUTEAU, 1789, p. 263, v. 1). A figura 1,13 atualmente em posse do Arquivo Histórico Militar português, datada de 1793, indica que o que hoje chamamos de banda de música era denominado apenas por música. O título da gravura é “Muzica do 1o Regimento da Armada Real 1793” e nela estão representados nove músicos portando os seguintes instrumentos: uma flauta, dois oboés ou clarinetes, um clarim, duas trompas, um fagote, um bumbo e uma caixa surda. Trata-se de uma banda de harmonia. Segundo averiguou Ernesto Vieira, no mesmo ano, 1793, a divisão portuguesa que tomou parte na campanha do Rossilhão14 incluía um “vinte e dois pífaros, tambores e um tambor-mor, para cada regimento de infantaria, oito trombetas e um timbaleiro para cada regimento de cavalaria, oito tambores para a brigada da cavalaria” assim como um “mestre diretor de música do exército” (1900, p. 442, v. 2). Em 1795 o italiano Caetano Tozi era o mestre da banda e recebia 10 mil reis por mês (CUTILEIRO, 1981, p. 7). No alvará de 28 de agosto de 1797, dom João, então príncipe regente, criou a Brigada Real da Marinha, reorganizando dois regimentos da Armada Real e um regimento de Artilharia da Marinha (SILVA, 1828, p. 448-460). Embora já houvesse uma banda de música em pelo menos um dos regimentos, o 1º, como mostra a ilustração da figura 1, o decreto não a menciona. Possivelmente, para regularizar o conjunto, que já existia, constou do aditamento a este decreto, publicado a 11 de novembro de 1797, o seguinte parágrafo: “Sua Magestade permite que a Real Brigada tenha Música, e que seja composta do mesmo número de pessoas, que para este fim se concederão á nova Legião de Cavalaria Ligeira” (SILVA, 1828, p. 463). Nas coleções de leis da época não encontrei nada a respeito da legião ou de sua banda. Todavia, Cutileiro traz algumas informações sobre este conjunto, que o autor denomina por charanga 22 e não uma banda (ambos os termos foram usados ambiguamente aqui e no restante da monografia em questão). Quando a legião foi extinta os músicos foram incorporados à banda da Brigada Real da Marinha, que passou a ter 18 instrumentistas, o que motivou o regimento de infantaria da corte a encaminhar petição ao príncipe para que sua banda também pudesse contar com o mesmo efetivo (CUTILEIRO, 1981, p. 15). Figura 1: Música do 1º regimento da Armada Real Portuguesa em 1793 O decreto de 20 de agosto de 1802 (figura 2)15 evidencia que o processo de inserção das bandas no exército português já estava concluído nesta data. Até o momento, esse é o mais antigo documento conhecido no qual os instrumentos utilizados na formação das bandas militares portuguesas são prescritos. Observe-se que, no texto do decreto, o termo utilizado é música e não banda. 13 CUTILEIRO, 1981. 14 Conflito que envolveu França, Portugal e Espanha entre 1793 a 1795. 15 Ver anexo 3, CCLPT:02. 23 Figura 2: Decreto de 20 de agosto de 1802 especificando a formação instrumental das bandas de música para o exército português Este decreto é citado inúmeras vezes em diversas fontes diferentes como se fosse legislação aplicada ao Brasil, ou mesmo brasileira, o que não é bem caso. Como se lê no texto, músicos estavam autorizados em certas unidades da tropa portuguesa. No entanto, existem indícios de que tal decreto teve reflexos no Brasil, pois algumas unidades portuguesas estiveram por aqui durante longos períodos, assunto a ser tratado adiante. Apesar das bandas de música em Portugal remontarem a meados do século XVIII, o repertório musical mais antigo permanece praticamente desconhecido. O exemplo mais remoto de música portuguesa para banda que encontrei é uma obra de Marcos Portugal composta em 1809 e publicada em 1810, o Hymno patriotico da nação portugueza.16 A obra foi escrita para pares de requinta, flajolé, flautim, clarinete em si bemol, trompa em mi bemol, trompetes em si bemol, fagote, duas vozes, serpente e bumbo. O hino foi composto em Lisboa como o último número da cantata La 24 Speranza ou L’Augurio Felice, encenada no Teatro São Carlos em comemoração ao aniversário de dom João (ANDRADE, 1967, p. 138, v. 1). Em 1810, uma versão para coro e banda do Hino Patriótico foi impressa em Lisboa. Foi considerado o hino nacional brasileiro até 1822 e português até 1834. Sua edição consta no volume II da dissertação. Uma composição posterior ao hino de Marcos Portugal é o Hino Real17 de Joaquim de Menezes e Ataíde (1765-1828), que foi reitor do colégio de Santo Agostinho de Lisboa, arcebispo titular de Meliapor, vigário capitular e governador da diocese do Funchal. Quando escreveu a obra, por volta de 1826, era Arcebispo de Elvas, informação que consta no frontispício do manuscrito. A instrumentação da peça utiliza flautim, requinta, quatro clarinetes, par de trompas, par de trompetes, fagote, baixo e bumbo. 1.3 Bandas de música no Brasil Conforme exposto, o surgimento de bandas em “bases orgânicas” no exército português ocorreu na passagem do século XVIII para o XIX, portanto antes de 1814 como propunha Salles. Além disso, como mostraremos abaixo, existem indícios que mostram a existência de bandas de música no Brasil com padrões instrumentais semelhantes àqueles encontrados em Portugal, antes da chegada da corte portuguesa ou da banda da brigada da Real da Marinha. A despeito da importância dada a este conjunto, pouco se sabe de concreto sobre sua atuação. Cutileiro dá informações que vão além da repetida presença da banda na comitiva real, mas estas informações, infelizmente, são imprecisas e não especificam os documentos onde foram registradas. Segundo ele, antes da transferência ao Brasil, ou da fuga de Portugal, o regente da banda era o italiano Pascoal Corvalini, mas não está claro se ele teria ou não vindo ao Brasil: Antes de a corte partir para o Rio de Janeiro era regente da charanga da Brigada Real de Marinha o italiano Pascoal Corvalini, que viera foragido da França com o seu amigo, o conde de Novion, ambos napolitanos, e 16 PORTUGAL, Marcos “Hymno Patriótico / Da Nação Portugueza / A Sua Alteza Real / o Príncipe Regente / N. S. / Para se cantar com muitas vozes. / E mesmo à maneira de Coro / Com acompanhament.to de toda a banda militar / Em Lisboa / No anno de 1810 / Musica de Marcos Portugal”. Impresso da Biblioteca Nacional de Lisboa, cód. 784.71(469). 17 “Himno Real / Para a Continência da Sereníssima / Senhora Infanta / D. Izabel Maria / Regente do Reino / Composto e Dedicado a Mesma / Sereníssima Senhora / Pelo / Arcebispo Bispo d Elvas”. Biblioteca Nacional de Lisboa, Seção de Música, Fundo Conde Redondo, ms 71.1. 25 que fizeram uma ótima parelha de impostores, aquele envolvido numa negociata escandalosa de chapéus para a Guarda Real da Polícia e este na compra de instrumentos para a Charanga da Armada. A vinda de outro impostor, o Junot, fez correr estes, para se instalar aquele! (1981, p. 7-8). Um dos poucos documentos apresentados por Cutileiro é uma reprodução fac-similar de um fragmento não identificado que trata do uniforme dos músicos, assinado pelo 1º visconde de Anadia, João Rodrigues de Sá e Melo, então secretário de Estado da Marinha e Ultramar, em 13 maio de 1807: Os Músicos conservarão o mesmo Uniforme Pequeno actual, e, quando a Brigada usar do Grande Uniforme, terão um uniforme das cores, e feitio do Pequeno, usando nele dos galões, de que atualmente usão no Uniforme encarnado (1981, p. 15). No Brasil, os poucos documentos conhecidos que citam a presença da banda da Brigada Real da Marinha são fés de ofício do músico baiano Damião Barbosa de Araújo, recentemente localizados na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional (BLANCO, 2006, p. 271). Os documentos confirmam que a banda veio com dom João VI e que Damião acompanhou a corte portuguesa de Salvador para o Rio de Janeiro. Muitos autores acreditam que, antes de 1808, não existiam bandas de música, nos modelos mais “modernos” das bandas de harmonia. A autoridade freqüentemente citada para validar esta idéia de “atraso” dos conjuntos brasileiros é José Ramos Tinhorão, particularmente uma passagem onde ele procurou destacar a precariedade e não a ausência das bandas militares antes da chegada da corte. O argumento construído por Tinhorão baseia-se na inexistência de bandas de música na recepção dada a dom João, tal como esta foi descrita pelo padre Luis Gonçalves dos Santos, o padre Perereca, em suas famosas Memórias para Servir de História ao Reino do Brasil. Segundo Tinhorão, não se trataria de esquecimento pois... ...a existência de uma banda naquele dia festivo, alias não escaparia a um comentário do minucioso padre Perereca, pois, dez anos depois, em 1818, quando D. João foi aclamado Rei, [...] ele não se esqueceu de anotar a presença de “uma numerosa banda de música dos regimentos de guarnição da Corte” (1976, p. 89-90). 26 No entanto, outra descrição da entrada de dom João na cidade do Rio de Janeiro cita a presença de banda de militares. Trata-se da Relação das Festas que se fizeram no Rio de Janeiro, uma carta datada de 3 de fevereiro de 1809, enviada por um português morador do Rio de Janeiro a seu irmão em Lisboa, onde ocorreu impressão, em 1810. Na primeira das três vezes em que é mencionada a presença das bandas regimentais na ocasião, o missivista faz a seguinte descrição: A câmara fez iluminação entre o chafariz e o mar. Era esta um edifício de madeira, em que se gastaram mais de 4 contos de réis. Este edifício fazia vista de uma fachada de Palácio todo iluminada, com seus coretos de música nas extremidades. [...] As músicas dos Regimentos estavam dispostas em torno do edifício tocando harmoniosas sinfonias (Relação das festas, 1810, p. 10). O próprio padre Perereca apontou a presença de música em várias passagens durante a entrada de dom João no Rio de Janeiro, embora em nenhuma delas ele utilize as locuções banda de música ou banda militar. As palavras usados por ele foram: instrumentos músicos, música vocal e instrumental, música marcial, melodiosas vozes e música (SANTOS, 1981, p. 174, 179, 179, 182, 184, respectivamente, v. 1). Esse descompasso entre os termos utilizados no início do século XIX e a expectativa dos estudiosos modernos, que procuravam por banda, fez que com a atuação destes conjuntos passasse desapercebida. Com efeito, historiadores, musicólogos e folcloristas discutiram repetidas vezes a origem da palavra banda, procurando em sua etimologia informações que ajudassem a compreender a história destes conjuntos. Atiraram no alvo errado, pois, até onde nos foi possível examinar, somente na segunda década do século XIX é que a locução adjetiva banda de música passou a ser usada com freqüência no Brasil. No relato do padre Perereca, a palavra banda aparece pela primeira vez na descrição do noivado de Maria Teresa, ocorrido a 13 de maio de 1810: “bandas dos regimentos de linha, e milicianos” (SANTOS, 1981, p. 251, v. 1). Curiosamente, é na ementa do decreto de 27 de março 1810,18 portanto poucos dias antes do noivado, que este termo aparece pela primeira vez na legislação administrativa: “bandas de Música dos regimentos”. O decreto foi publicado nas coleções de leis daquele ano, volumes que o padre conheceu e utilizou na composição de suas Memórias. 27 O texto deste decreto já dá indícios da existência de bandas de música nos corpos militares do Rio de Janeiro antes de 1808 pois, logo em seu início, consta o enunciado: “Querendo conservar aos Regimentos de Infantaria e Artilharia desta Corte a Música que foi estabelecida, com a aprovação dos Vice-Reis do Estado, pelos Coronéis e Oficiais dos Regimentos [...]”.19 De 1720 a 1808, a patente de vice-rei foi sistematicamente conferida ao governador-geral do Brasil. Em 1763, com a transferência da sede administrativa da Colônia de Salvador para o Rio de Janeiro, o governador- geral fluminense passou a ter o direito de utilizar a patente. Este cargo era preenchido por um aristocrata; o último vice-rei do Brasil foi dom Marcos de Noronha e Brito, oitavo conde dos Arcos, que assumiu em 1806 e preparou a recepção da família real (VAINFAS, 2000, p. 583-584). Os cargos de governador-geral e de vice-rei eram essencialmente militares, embora seus ocupantes não fossem militares de profissão (PRADO Jr, 2000, p. 314-316). A tropa de primeira linha estacionada no Rio de Janeiro, a que aludia o decreto de 1810, era formada por três regimentos de infantaria e um de artilharia, a saber: regimento de infantaria nº 1, ou Bragança, comandado pelo brigadeiro João de Barros Pereira do Lago Sarmento; regimento de infantaria nº 2, ou Novo, comandado pelo coronel Domingos de Azevedo Coutinho; regimento de infantaria nº 3, ou Moura, comandado pelo brigadeiro Camilo Maria Tonelet; regimento de artilharia, comandado pelo coronel José de Oliveira Barbosa (SANTOS, 1981, p. 178, v. 1). A primeira linha, também chamada de tropa linha, regular ou paga, era profissional e ficava permanentemente em armas. Era quase sempre composta por regimentos portugueses, completados por soldados engajados no Brasil que, a princípio, deviam ser brancos, condição que nem sempre conseguia ser observada. Para o alistamento concorriam os soldados voluntários, que eram poucos, e os soldados forçados - os considerados criminosos e vadios. Quando estes não eram suficientes executava-se temido recrutamento (PRADO Jr, 2000, p. 318). A principal unidade tática era o terço, substituído no reinado de dom José pelo regimento (MAGALHÃES, 2001, p. 86-88). As tropas de primeira linha 18 Ver anexo 3, CCLB: 02 19 Ver anexo 2, CCLB:02, grifo meu. 28 estavam em constante movimentação pelo Brasil, sendo enviadas aos pontos onde sua presença fosse necessária (p. 198). Sendo os oficiais da primeira linha de origem portuguesa, não seria estranho que eles reproduzissem na capital da colônia o que se praticava na metrópole: dotar com música os regimentos que comandavam. No caso dos quatro regimentos mencionados, sendo estes portugueses, todos, a princípio, faziam jus ao que estabelecia o decreto de 20 de agosto de 1802, podendo receber dotação do erário português para o pagamento de músicos. Não é apenas em referência ao Rio de Janeiro que existem indícios da presença de bandas de música antes de 1808. No final do século XVIII e início do século XIX, Recife, Olinda e João Pessoa, então denominada Paraíba, possuíam conjuntos com instrumentação muito similar ao prescrito no decreto português de 1802, como se deduz desta passagem de Pereira da Costa: As bandas de música militar entre nós datam de fins do século XVIII, pelas que foram criadas nos regimentos milicianos do Recife e Olinda por ato do governador D. Tomás José de Melo, a cujo exemplo foi criada também uma no terço auxiliar de Goiana, em 1789, mantida pela respectiva oficialidade, e mediante consentimento daquele governador. Das bandas marciais de então, nada encontramos sobre a sua particular organização; mas da de uma de um regimento de linha da guarnição da vizinha cidade da Paraíba, em 1809, constante de dois pífaros, um dos quais, Manuel de Vasconcelos Quaresma, era o mestre, duas clarinetas, duas trompas, um fagote e um zabumba, bem podemos fazer uma idéia das nossas [as pernambucanas] (COSTA, 2004, p. 121, v. 7). As milícias, mencionadas nesta passagem, eram tropas auxiliares à primeira linha. Foram conhecidas no Brasil como terços auxiliares até 1796, quando dona Maria deu às tropas brasileiras a mesma organização usada em Portugal (MELO, 1982, p. 108). Também eram conhecidas por segunda linha. Oficiais e soldados eram recrutados entre a população civil da colônia para o serviço obrigatório e gratuito. Os soldados não estavam permanentemente mobilizados, como as tropas da primeira linha, reunindo-se em determinadas épocas do ano, em exercícios, ou quando convocadas para serviço. O enquadramento territorial era feito com base nas freguesias e por categorias de população: brancos, negros, mulatos, comerciantes, artesãos etc. (PRADO Jr, 2000, p. 320). 29 Coube ao músico Francisco Januário Tenório parte importante na organização das bandas em Pernambuco, como mostra um ofício 15 de novembro de 1822 do brigadeiro José Correia Melo, comandante das armas da Província de Pernambuco: Assentou praça em 27 de maio de 1793 no Regimento de Olinda, onde organizou e ensaiou uma classe de música, que compôs a banda do Regimento e depois organizou uma outra para o Regimento de Artilharia. Em 1810 passou por contrato e praça o Mestre de Banda do Regimento do Recife e serviu até 1817: Neste ano foi nomeado pelo general Luis do Rego, mestre de música da Divisão que com ele viera do Rio de Janeiro, mediante a gratificação mensal de 24$000. Por ordem do mesmo general, organizou as músicas do 1.º e 2.º Batalhões de Milícias de segunda linha, ensinando e compondo música para as mesmas bandas, e depois passou a servir no 3.º Batalhão de Caçadores, incumbido de igual trabalho, assim como no 2.º, em idênticas condições (COSTA, 2004, p. 121, v. 7) A carta régia de 26 de setembro de 1811, enviada por dom João ao governador e capitão general da Capitania de Pernambuco, confirmava estas informações: Caetano Pinto de Miranda Montenegro, do meu Conselho, Governador e Capitão General da Capitania de Pernambuco. Amigo. Eu o Príncipe Regente vos envio meu saudar. Constando na minha real presença que no Regimento de Infantaria de Linha desse Recife existe, desde longo tempo uma música com a aprovação dos Governadores e Capitães Generais a qual é mantida por contribuição do Corpo da Oficialidade do mesmo regimento, e considerando quanto esta pensão será onerosa à dita Oficialidade, e que este método além disso ser de algum modo prejudicial á exata disciplina militar do regimento: sou servido autorizar- vos para mandar praticar a respeito da manutenção da dita música aquilo mesmo, que quanto à música dos regimentos de Infantaria e Artilharia desta Corte se acha estabelecida pelo meu Real Decreto de 27 de março de 1810; cuja cópia, para vossa inteligência será com esta carta regia. Assim o terei entendido executares. Escrita no Palácio do Rio de Janeiro em 26 de setembro de 1811.20 Vicente Salles acreditava que não havia bandas de música no Pará antes de 1836, quando forças imperiais foram deslocadas de Pernambuco para reprimir a Cabanagem. No entanto, a carta régia de 20 de julho de 1812,21 enviada ao bispo e governadores do Pará, mencionava que o regimento de linha de Estremóz possuía “música desde a sua criação conservada até ao presente pelas economias do mesmo Regimento”. A carta também autorizava à Junta da Fazenda do Pará o 20 Ver anexo 2, CCLB:03, grifo meu. 21 Ver anexo 2, CCLB:04 30 pagamento de 48$000 para o mesmo regimento, ou seja, o mesmo valor pago aos quatro regimentos da corte pelo decreto de 27 de março de 1810. Os regimentos de infantaria portugueses de Moura, Bragança e Estremóz foram enviados ao Brasil em 1767 e eram unidades da tropa de primeira linha. O regimento de Estremóz, inicialmente aquartelado no Rio de Janeiro, participou dos conflitos no Sul, na repressão à Inconfidência Mineira e, em 1803, foi enviado ao Pará (MAGALHÃES, 2001, p. 198). A carta régia de julho de 1812 não diz quando foi criada a banda do regimento do Pará, mas Salles afirma que, desde que o regimento de Estremóz lá se instalara, amiudaram-se “as notícias sobre música marcial” (1985, p. 24). O flautista Antonio Silva Conde integrava o regimento, mas não está claro se ele chegou a atuar como músico, pois Conde era cirurgião formado na Inglaterra22 o que abre am possibilidade dele ter sido o cirurgião do regimento. A primeira ocasião, no século XIX, em que Salles descreve a atuação de bandas de música no Pará foi em 1823, na aclamação de dom Pedro I, portanto vinte anos depois da chegada do regimento em questão. Àquela época ainda não haveria no Pará “banda de música regularmente organizada, mas simples ternos” (1985, p. 25), pois este era o único conjunto mencionado no documento23 que registrou a cerimônia, no qual há uma alusão ao bando do Senado da Câmara que percorreu as ruas da cidade na véspera da aclamação. Uma passagem posterior no mesmo documento mostra que Salles talvez tenha se enganado. Ao descrever a manhã da aclamação aparece mencionado a presença de uma “música de regimento” que, como vimos, poderia indicar uma banda de música. Segundo recolheu Salles ... ... às 8 horas foi realizada a solenidade de Aclamação, minuciosamente descrita no documento, dizendo-se que “continuaram as músicas dos Regimentos, como o seus agoniosos Sons não interrompessem”, isto é, tocando sem interrupção (SALLES, 1985, p. 25).24 22 Segundo Aires de Andrade, Conde era “tido como o primeiro flauta no Brasil [...] admirado até na Inglaterra, onde estudou e se formou em medicina” ANDRADE, 1967, p. 47, v. 41 23 Trata-se de: Conselho Federal de Cultura. As câmaras municipais e a independência. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1973. 2 vols (Publicações do Arquivo Nacional; 71) 24 A citação entre aspas é transcrição do documento feita por Salles. 31 No ano de 1812, em Ouro Preto, Florêncio José Ferreira Coutinho, mestre de música e timbaleiro do Regimento de Cavalaria de Linha, junto com alguns trombetas e soldados músicos pediam ao seu comandante autorização para assinar um pedido para a criação da Irmandade de Santa Cecília (LANGE, 1983, p. 253). No inventário das obras do arquivo musical de Florêncio, feito em 1821, constava entre as “Grades p.r Florencio J.e Ferr.ª“- possivelmente composições de sua autoria - duas entradas de marchas: uma indicada apenas como Marcha, outra como 35 Marchas Militares. Essas marchas não deveriam ser muito diferentes da que hoje está preservada no Museu da Inconfidência, até o momento, a mais antiga obra brasileira de música para banda que se conhece. Mary Angela Biason publicou uma transcrição da obra, situando-a no final do século XVIII.25 A autoria foi atribuída a Francisco Gomes da Rocha pois, além dele ter sido músico militar, a caligrafia no manuscrito seria sua. A instrumentação da Marcha utiliza duas flautas, duas trompas e baixo instrumental, possivelmente executado por um fagote, o que a caracterizaria o conjunto como banda de harmonia. A obra está editada no volume II desta dissertação. O decreto de 31 de agosto de 1809, que criou uma legião de caçadores a pé e a cavalo na capitania da Bahia, previa um músico-mor e oitos músicos com os soldos de 240 e 160 réis diários, respectivamente. Embora instrumentos não estejam indicados, o número de instrumentistas, nove ao todo, sugere que uma instrumentação não muito diferente da utilizada em João Pessoa ou àquela prevista no decreto português de agosto de 1802. Embora o decreto de 27 de março de 1810 já estipulasse que alguns regimentos da corte podiam contar com 12 a 16 músicos de sopro, foi somente sete anos depois, no decreto de 11 de dezembro de 1817, que os respectivos instrumentos foram explicitados. Feito especialmente para regularizar as bandas vindas de Portugal na Divisão Auxiliadora, este decreto prescrevia a seguinte composição para as bandas militares: um flautim, uma requinta, três clarinetes (dois primeiros e um segundo), duas trompas, um clarim, um trombone ou serpente, um fagote, uma caixa de rufo e um bumbo, com 12 integrantes ao total. Os instrumentos com os quais as bandas poderiam aumentar 25 A peça está gravada em: Colegium Musicum de Minas. A origem. [Belo Horizonte]: Sonhos e Sons, [2000]. 1 CD. 32 seu tamanho, até o número máximo de 17 músicos, também foram previstos: um primeiro flautim, um segundo e um terceiro clarinete, um segundo clarim, um segundo fagote e um serpente.26 No arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, o Hino, de autoria de dom Pedro I utiliza uma formação muito próxima à disposta no decreto de 1817: dois flautins, uma requinta, dois clarinetes, dois trompetes, duas trompas, um trombone, um serpente, caixa e bumbo. No manuscrito, escrito em partitura, existe linhas reservadas para coro a quatro vozes, que o imperador não escreveu. No frontispício existe a seguinte inscrição: “Nº 7 / Hymno / Composto por S. Alteza / O Principe Real / Offerecido / Ao 3 º Regimento de Melicias / Pertence a Antonio Joaq.m Teixra”.27 O exemplo 2 traz a transcrição da primeira folha da partitura. Embora o papel possua a marca d’água “1808” a história do 3º regimento de infantaria de milícias da cidade de São Paulo aponta como 1825 o ano mais provável para a composição do hino. Conhecido até maio de 1822 como Regimento dos Úteis, o 3º regimento participou, em 25 de agosto 1825, da recepção a dom Pedro I, que visitava a cidade (RODRIGUES, 1978, p. 71). O quadro 1 resume os diferentes arranjos instrumentais das bandas portuguesas e brasileiras citadas no texto: Quadro 1: Formações instrumentais de bandas luso-brasileiras e portuguesas entre 1793-1825 Bandas Portuguesas Bandas no Brasil 1793 1802 1810 ca.1826 ca.1800 1809 1817 1825 Flautim 1 4 1 – 2 1 a 2 2 Flauta 1(flauta?) – – – 2 – – – Requinta – – 2 1 – – 1 1 Clarinete 2 (oboés?) 3 2 4 – 2 3 a 5 2 Trompa 2 2 2 2 2 2 2 2 Clarim 1 1 2 2 – – 1 a 2 2 Fagote 1 1 2 2* 1* 1 1 a 2 1 Trombone – – – – – – 1 a 2 1 Serpente – – 1 1 – – – – Percussão 2 3 1 1 – 1 2 1 TOTAL 9 11 16 13 5 8 11 a 16 12 * Em ambas as partituras, Baxo e Bassi referem-se a um baixo instrumental genérico, considerado nesta tabela como fagote. Como se pode observar, a Marcha de Gomes da Rocha aproxima-se de um modelo banda de harmonia, com flautas usadas em substituição aos clarinetes ou oboés. As formações portuguesa, de 26 Ver anexo 2, CCLB:07. 33 1793 e 1802, e brasileira, de 1809, estão a meio caminho de se tornarem mistas: já incorporaram os instrumentos de percussão, mas ainda não adquiriram totalmente instrumentos de reforço melódico (flautins, clarinetes e requintas) e baixos (trombones e serpente), o que já se verifica nas bandas portuguesas de 1810 e 1827 e nas brasileiras de 1817 e 1825. Exemplo musical 1: dom Pedro I, Hino, (folha 1, recto, compassos 1 a 2) 27 ACMSP, N. 366 P199. 34 2. BANDAS MILITARES: OS BRASÕES SONOROS DA ARISTOCRACIA A transferência da corte para o Rio de Janeiro intensificou as comemorações das festas reais e religiosas, que também se tornaram mais suntuosas, afinal o rei compareceria pessoalmente a algumas ocasiões, exigindo pompa à sua altura. Nem todas as festas tinham o mesmo objetivo, embora conjugassem uma série de elementos, discursos e regras ditadas pelo Estado - arcos, trajetos, participantes etc - em diferentes vozes, gestos, monumentos, danças. (SOUZA, 1999, p. 17, 211-212). Como veremos, as bandas militares foram uma destas vozes cerimoniais. Até onde foi possível estabelecer, a celebração das festas reais entre 1808 a 1816 contou apenas com as bandas militares que já estavam no Rio de Janeiro em 1808. Estiveram à disposição das autoridades fluminenses entre sete e nove conjuntos. Além da banda da Brigada Real da Marinha, que viera com a corte, cada um dos quatro regimentos de primeira linha possuía seu conjunto, como já mostrado no capítulo 1. Somavam-se a estes as bandas de música do 1º e 3º regimentos de milícias.28 Em 1816 e 1817 outros conjuntos vieram da Europa. De Portugal vieram duas divisões militares que traziam bandas de música em seu contingente: a Divisão de Voluntários Reais do Príncipe e a Divisão Auxiliadora. Ainda em 1817 vieram mais três conjuntos acompanhando aristocratas europeus de passagem ou mudança para o Rio de Janeiro: dois na comitiva da princesa Leopoldina, um na comitiva do duque de Luxemburgo. A Divisão de Voluntários Reais do Príncipe - posteriormente do Rei - era composta de dois batalhões de caçadores, três esquadrões de cavalaria e uma companhia de artilharia; os Voluntários foram convocados por dom João para lutar na Cisplatina. A tropa desembarcou no Rio de Janeiro em março de 1816 e, segundo o padre Perereca, a banda de música da Divisão estava presente na ocasião. Os Voluntários Reais permaneceram no Rio de Janeiro até 12 de junho daquele ano, quando dali partiram para o sul do país, onde participaram da nos conflitos pela posse da Província da Cisplatina (SANTOS, 1981, p. 68, v. 2). Os Voluntários voltaram à Europa após o sucesso 28 Ver anexo 1, vol. III. 35 brasileiro nas lutas pela independência, em novembro de 1823 (BARROSO, RODRIGUES, 1922, p. 23). A Revolução Pernambucana motivou outra grande movimentação de soldados em ambos os lados do Atlântico.29 Tropas oriundas do Brasil e de Portugal foram enviadas para o Nordeste para combater os rebelados. Para guarnecer o Rio de Janeiro, onde permaneciam apenas a Guarda Real Polícia da Corte e um esquadrão de cavalaria de Minas Gerais, dom João mandou vir a Divisão Auxiliadora. A Divisão era formada por dois batalhões de infantaria, nos 11 e 15, e pelo batalhão de caçadores nº 3; cada uma destas unidades tinha sua banda de música. Para regularizar a presença destes conjuntos, foi baixado o decreto de 11 de dezembro de 1817. O exército no tempo de dom João era uma instituição diferente da atual. Hoje a carreira militar está associada à “aquisição de conhecimentos técnicos específicos, a incorporação de um conjunto de valores e atitudes orientados por uma disciplina rigorosa e a uma forte unidade corporativa” (SOUZA, 2004, p. 161). Em 1808, o exército português ainda era uma instituição do Antigo Regime; resumidamente, aristocratas e fidalgos ocupavam os postos de oficiais, pobres e plebeus serviam como praças e soldados. Para a oficialidade, a ascensão na carreira dependia do status familiar e de constantes demonstrações de fidelidade através de serviços prestados à Coroa, serviços retribuídos pelo rei através de promoções, patentes e mercês. Assim, muitas das promoções concedidas aos oficiais que em 1840 tinham o posto de general, foram acompanhadas de outras mercês régias, como baronatos e outros títulos de nobreza (SOUZA, 2004, p. 167). Como foi visto no capítulo 1, uma das funções das bandas militares era participar das cerimônias militares e, como veremos, as festas reais possuíam parte destinada a paradas e desfiles de tropas. Além disso, a convergência entre exército e nobreza no oficial-aristocrata colaborou para que as bandas militares participassem nas festas reais. Com efeito, simbolizar status e poder é uma das mais antigas funções associados aos instrumentos de sopro. Desde os meados do século XVII que os conjuntos de trompetes e tímpanos era um índice de classe característico da nobreza européia; algumas cortes contaram com ensembles formados por dúzias destes músicos. Este era o 29 Para detalhes da movimentação ver PAULA, 1976, p. 271. 36 caso da corte real portuguesa que, desde 1724, contava com um grupo de 16 músicos, contratados pelo conde de Tarouca por ordem de dom João V.30 A Guilda Imperial dos Trompetes de Corte e Campo e Tímpanos de Corte e Exército (Reichszunt der Hof- und Feld-trompeter und Hof- und Heerpauker) foi a mais importante corporação destes músicos, com modelos e regulamentos seguidos em toda a Europa. Fundada em 1623 através de privilégio real concedido pelo Imperador Fernando II, do Sacro Império Romano-Germânico, a Guilda cristalizou direitos que remontavam ao século XV. Aos seus membros era garantida a exclusividade do ensino e da execução de tais instrumentos, que só poderiam soar “para as casas de imperadores, reis, eleitores, duques, príncipes, condes, lordes e outros nobres ou cavaleiros, ocasionalmente para pessoas especialmente qualificadas como, por exemplo, aquelas que possuíam um grau de doutor” (TITCOMB, 1956, p. 57). Os privilégios da Guilda foram continuamente reafirmados até 1764 mas, no final do século XVIII, sua situação da era bastante precária, sendo extinta em 1810 por decreto do Imperador Friedrich Wilhelm III (p. 56). Segundo Tarr... ... o período entre 1750 e 1815 foi uma época de crise para o trompete. De um lado a arte de execução no clarino [o registro agudo do instrumento] foi levado ao seu ápice. Por outro lado, no entanto, o estilo composicional modificou-se devido às novas idéias burguesas de sociedade. O trompete representava a antiga cultura cortesã e expressava desmesuradamente um afeto heróico fora de moda (TARR, 1988, p. 138, tradução minha).31 Assim como os conjuntos de trompete, o emprego de bandas de música nas cortes européias era bastante antigo, como foi tratado no capítulo 1. Na segunda metade do século XVIII, quando os ensambles de trompetes entraram em declínio, as bandas de harmonia começaram a se espalhar pela Europa. A introdução das “harmonias” nas unidades militares estava relacionada a certos hábitos aristocráticos que os oficiais daquele continente possuíam. Conforme aponta Camus: Os oficiais dos exércitos europeus do século XVIII, sendo principalmente da nobreza, estavam acostumados aos entretenimentos musicais e não desejavam abrir mão deste prazer enquanto em serviço. Como os únicos 30 Tarouca era o embaixador português em Haia, Holanda. Documentos sobre a contratação dos músicos podem ser encontrados em DODERER, 2001. 31 The period between 1750 and 1815 was a time of crisis for the trumpet. On the one hand the art of clarino playing was brought to its zenith. On the other hand, however, the compositional style had changed owing to a new bourgeois ideia of society. The trumpet represented the old courtly culture and expressed one-sidedly an old fashioned heroic Affekt. 37 músicos autorizados no regimento eram os percussionistas e pifanistas, os oficiais, às suas próprias custas, freqüentemente contratavam músicos profissionais, vestiam-nos os uniformes, e os tinham servindo como a música regimental (CAMUS, 1976, p. 21, tradução minha).32 A oficialidade portuguesa também era essencialmente aristocrata e a introdução das bandas de música no exército parece ter ocorrido pelos mesmos motivos. Isto fica bastante explícito na expressão “objeto de luxo”, utilizada por Cunha Mattos ao tratar dos primeiros músicos contratados no exército português: A música dos Portuguezes no tempo da antiga milícia consistia em Trombetas, Pifanos, Timbales e Tambores, tanto no mar como em terra. Quando se introduziu alguma ordem na marcha das tropas foi a Trombeta abandonada pela Infantaria e reservada para a Cavalaria, por se entender que não era fácil tirar sons para a cadência do passo dos soldados. Pouco à pouco foram introduzidos, como objeto de luxo alguns instrumentos de sopro; e os tocadores ou músicos eram sustentados pelos Chefes dos Corpos, ou pelos Oficiais e Soldados (MATTOS, 1837-1846, p. 182, v. 2). O depoimento de Cunha Mattos é muito significativo, afinal ele testemunhou esse processo.33 Se Mattos representa o ponto de vista do oficial que contratava os músicos, Erdmann Neuparth, músico alemão que ficou famoso como diretor da banda que acompanhou a princesa Leopoldina, representa a visão dos músicos que tocavam privadamente a tais oficiais-aristrocratas. Em sua autobiografia ele escreveu: Por acaso havia um comissinado que procurava Musicos por um Reg. to Francez que estava tambem em na Espagna que era 119. Regto de Ligne. Contracdei-me como musico por 72. francos por mes. os musicos contractados eram Sete e o Mestre. o Deposito estava em Dux ao pìe de Baiona, tinhamos que travessar toda a frança, e gastamos perto de 3 Meses [...]. O Coronel e a Officialidade ficaraõ muito contendo com a chegada de Musica, mas não durou muito tempo, porque o mestre era um Bebado, e não tinha nem uma nota de musica, e não savia arranjar, 32 The officers of eighteenth-century European armies, being primarily of the nobility, were accustomed to musical entertainments and did not forego this pleasure while in service. Since the only musician authorized in the regiments were drummers and fifers, the officers, at their own expense, often hired professional musicians, clothed them in uniform, and had them serve as the regimental “musick”. 33 Raimundo José da Cunha Mattos foi fundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vogal do Conselho Superior Militar, comendador da Ordem de São Bento da Aviz, duas vezes deputado na Assembléia Imperial, sócio correspondente do Instituto Histórico da França, da sociedade Real Bourdonica e da Academia Real de Ciências de Nápoles. Cunha Mattos nasceu em 1776 na cidade de Faro, Portugal, aos 14 anos ingressou no exército português no regimento de artilharia do Algarve onde participou da campanha do Rossilhão. Serviu por mais de 20 anos nas ilhas de S. Tomé e Príncipe, na costa africana, onde chegou a ocupar o cargo de governador. Por volta de 1815 foi para o Rio de Janeiro, em 1817 participou da expedição a Pernambuco onde permaneceu até 1819 quando retornou à corte. Em 1822 foi mandado para Goiás como governador da província, em 1826 foi para o Rio Grande do Sul e em 1831 estava de volta à corte. Em 1835 chegou ao posto de marechal-de-campo, o terceiro posto mais alto da hierarquia do exército no império (Revista do Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro, 1839, p. 72-76). 38 portanto a nossa musica era uma boracheira, eu estava enfastiado, poz me a travalhar e arrangei p.ª a nossa musica Varias Valzes pas reduble e Marchas e outras cousas, que nos ensaiamos entre nos sem que o mestre o soubesse, quando estiverem esaido, eu lhes offereci o mestre p.ª as tocar en casa de Coronel, mas o mestre não quiz e ainda se sangou commigo por eu me atrever de arranjar e ensaiar musica sento elle o mestre; mas nos continuamos os nossos ensaios como dantes, um dia quando nos estivemos ensaiando, passou o Coronel e como ouvio Subio, e preguntou porque não se tocava aquella Musica em sua Casa, eu lhe diz então, que ja aquella Musica eu avia offerecido ao Mestre mas que elle não queria que se tocasse; O Coronel ordenou então, que a noite se havia de tocar aquella Musica em sua cassa com a mesma Gente e sem o Mestre, o mestre deve ordem de ficar em sua casa aquella noite, e nunca mas fez servir no Reg.to ficou doende e em pocas dias moreo; e eu fiquei entaõ de Mestre, e como tal fiz a guerra Pininsular (BINDER, 2006b, p. 85-86). Embora na passagem acima Neuparth refira-se ao tempo em que servia o exército francês, não parece provável que, no exército português, ele realizasse trabalho diferente. Mesmo porque eram os oficiais que financiavam a manutenção das bandas de música, com o dinheiro próprio ou através dos descontos nos soldos de oficiais e soldados. Este tema, e os desvios de conduta associados, freqüentaou por muito tempo a legislação administrativa do exército, que tentava coibir abusos e corrupção através do financiamento público, assunto a ser tratado no capítulo 4. Neuparth dá um depoimento bastante contundente sobre isso. Em 1816, já no exército português, ele fez... ... nova contracta por mais um anno por 1$400 rs por dia porque abadia de minha vontade 200 rs por dia. Athe aquelle tempo os Musicos de contrada forem pagos por o Reg.to, cada Official e cada soldade dava um dia de soldo para pagar a Musica. Havia então muita ladroeira; com este pé davam licença aos Soldados e recolhião o prèe e o pão com desculpa que era p.ª pagar a musica. Mas o Lord Bresforte, acabou com esta Ladroeira, Mandou fazer uma Ordem de Exercito em que determinou, que o Mestre de Musicca não receberia mais daqui adiante de que 920 Rs por dia e os Musicos de Contracta 370 Rs. Pruivido aos Com mandantes debaixa de severas penas não poder tar mas i nem menos de Sua Algibeira. Ainda hoje existe a mesma lei Era em 1816. eu fiz entaõ nova contacta comforma a nova lei por um anno. ate 1817, no mes de Junho, quando foi nomeado pela Regencia de Reino p.ª Mestre de Musica da Nau D. J. Sexto que estava p.ª ir p.ª Itália p.ª buscar a Ima D. Leopoldina ArquiDuqueza de Áustria (BINDER, 2006b, p. 89). A maneira como Erdmann chegou ao Brasil também mostra que algumas vezes a barreira entre músicos militares e músicos de corte podia ser fluída. Em 1809 ele ingressou no 119.º regimento de infantaria de linha do exército francês, unidade com a qual participou da campanha 39 napoleônica na península ibérica. Após a derrota do exército francês, em 1814, abandonou seu regimento integrando-se ao exército português, o regimento lusitano estava... ... ao pèe de Toulose que foi a ultima Batalha que houve na Guerra Peninsolar, e seguiuse a Paz. Depois de Paz feita o meu Reg.to conservou-se ahinda por aquelles Sitios, mas o Reg.to ja naõ tinha Dinheiro p.ª pagar os Soldados nem a Musica ja me devião seis meses e naõ havia esperanças de receber vingtim, e vi que a cousa hia de mal p.ª peor, resolvi-me a abandonar os Francezes, o que fiz; algumas legoas de quel sitio estava o quarto Reg.to Portuguez que procurava um Mestre de Musica, deixei então os francezes e foi offerecer-me, foi logo aceito, e foi feito o contracto a 1$600 rs por dia, p.ª accompagnar o Reg.to Para Portugal; era no dia 9 de Maio de 1814 (BINDER, 2006b, p. 88). Chegando a Lisboa, Neuparth continuou como mestre de música da banda do regimento, também entrou para a orquestra do Teatro da Rua dos Condes e, posteriormente, foi trabalhar na orquestra do Teatro São Carlos. Neste último trabalhou pouco tempo devido ao fechamento dos teatros em razão do luto oficial pela morte da rainha Maria I. Em 1816, Neuparth foi convidado pela regência para organizar e dirigir a já referida banda que acompanhou a princesa Leopoldina da Áustria para o Brasil. O séqüito da futura primeira esposa de dom Pedro I era bastante numeroso, teriam sido cerca de 1220 pessoas, além de vacas, bezerros, porcos, ovelhas, galinhas, patos e uma coleção de 600 canários e outros pássaros do Brasil para amenizar o tédio da viagem. A comitiva era tão grande que o chanceler Metternich teria dito que a Arca de Noé era “certamente um brinquedo de criança comparado ao navio de carreira Dom João VI” (WAGNER, BANDEIRA, 2000a, p. 39, v. 1). A 2 de junho de 1817, Leopoldina e seus acompanhantes partiram de Viena dirigindo-se para Florença, onde chegaram no dia 14. Aguardavam as naus Dom João VI e São Sebastião que os transportariam ao Brasil. Estas duas saíram de Lisboa a 6 de julho e chegaram a Livorno no dia 26, já com a banda de Neuparth embarcada. Na manhã de 15 de agosto finalmente navegaram em direção ao Brasil (LIMA, 1996, p. 544 e 739-540). Uma série de documentos a respeito da contratação da banda que acompanhou Leopoldina foi transcrita por Ângelo Pereira no livro Os Filhos de El-Rei D. João VI, entre estes uma lista com os 40 nomes dos músicos e seus instr