1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras - FCL/ UNESP Campus de Araraquara - SP MAGNA TÂNIA SECCHI PIERINI AS FORMAS HÍBRIDAS EM OS PESCADORES DE RAUL BRANDÃO ARARAQUARA – SP 2008 2 MAGNA TÂNIA SECCHI PIERINI AS FORMAS HÍBRIDAS EM OS PESCADORES DE RAUL BRANDÃO Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Campus de Araraquara, para a obtenção do título de Mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Área de concentração em Estudos Literários, sob a orientação da Profª Drª Guacira Marcondes Machado Leite. ARARAQUARA - SP 2008 3 Pierini, Magna Tânia Secchi As formas híbridas em “Os Pescadores” de Raul Brandão / Mágna Tânia Secchi Pierini – 2008 122 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientador: Guacira Marcondes Machado Leite l. Literatura -- História e crítica -- Teoria. 2. Mito. 3. Ambivalência. I. Título. 4 MAGNA TÂNIA SECCHI PIERINI AS FORMAS HÍBRIDAS EM OS PESCADORES DE RAUL BRANDÃO Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Campus de Araraquara, para a obtenção do título de Mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Área de concentração em Estudos Literários. Linha de Pesquisa: Teoria e crítica da poesia. Orientadora: Profª Drª Guacira Marcondes Machado Leite. Data de aprovação: 28 de março de 2008. MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA _________________________________________ Presidente e Orientadora: Profª. Drª. Guacira Marcondes Machado Leite UNESP - Araraquara _________________________________________ Membro Titular: Profª. Drª. Renata Junqueira UNESP - Araraquara _________________________________________ Membro Titular: Profª. Drª. Ana Maria Domingues de Oliveira UNESP - Assis Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP - Campus de Araraquara - SP 5 Ao meu marido Fábio Lucas, pela compreensão e pelo amor dedicados todos os dias. 6 AGRADECIMENTOS A Deus, pela força e determinação que me foi dada diante dos obstáculos surgidos ao longo do caminho; Aos meus queridos pais, Celso Luiz Secchi e Ana da Silva Secchi, pela vida e pela educação que me deram; À professora Guacira Marcondes Machado Leite, por ter me conduzido aos caminhos das descobertas literárias e por toda a sabedoria compartilhada; Às professoras Renata Junqueira e Ana Maria Domingues de Oliveira, componentes da banca, pelas valiosas contribuições fornecidas ao trabalho; A todos os professores, amigos e demais pessoas que de alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho, em especial, à Sônia Marins pelo apoio de sempre. 7 “Tudo dura o que duram os reflexos agitados. Só este rio imenso segue o seu curso inalterável e incessante para aquele mar profundo”. Raul Brandão, 1985, p. 13. “Há manhãs em que a poeira do mar se mistura à poeira azul do céu. Um hálito fresco e húmido, uma exalação viva e salgada, vem do largo e das profundas – de toda essa constante agitação, que nos dá um sentimento de vida ilimitada”. Raul Brandão, 1985, p. 32. 8 RESUMO O objetivo principal deste trabalho é verificar a constituição da linguagem poética e colaborar na valorização literária de Os Pescadores de Raul Brandão, obra pouco estudada pela crítica. Pautando-se numa pesquisa acerca das temáticas que envolvem as principais obras deste escritor e realizando um estudo aprofundado em torno da composição da obra citada nos âmbitos da problemática de seu gênero literário e principalmente do trabalho realizado com a linguagem, pode-se notar uma combinação entre vários recursos lingüísticos, sonoros e artísticos, além da construção de um narrador lírico. Este percorre seu caminho ficticiamente, rumo às descobertas interiores que se estendem de um plano particular (do ser como indivíduo) para um plano geral (todos os seres humanos). Assim, percebeu-se que esta obra também trata de temáticas importantes e tradicionais na literatura como a busca pelo sentido da vida e da morte e as questões que envolvem a existência humana, por exemplo. Porém, o autor utiliza-se principalmente dos valores da estética simbolista e impressionista em Os Pescadores escolhendo um estilo de escrita que se constitui numa prosa poética em que é justamente a constante presença dos mitos, seja como configuradores do tempo, do espaço ou do próprio ser humano, que faz com que a obra se aproxime de grandes obras tanto de Raul Brandão como da literatura universal. Palavras-chave: Hibridismo, Prosa Poética, Correspondência, Mito, Ambivalência. 9 RÉSUMÉ L’objectif principal de ce travail est de vérifier la constitution du langage poétique et de collaborer à la valorisation littéraire d’ Os Pescadores de Raul Brandão, une oeuvre peu étudiée par la critique. À partir d’une recherche à propos des thèmes qui concernent les principaux ouvrages de cet écrivain, et faisant l’ étude approfondie du genre littéraire de l’œuvre que nous examinons, et principallement du travail fait sur son langage, on peut y remarquer une combinaison de plusieurs ressources linguistiques, sonores et artistiques ainsi que le choix d’un narrateur lyrique. Il parcourt son chemin de manière fictive vers les découvertes intérieures qui se prolongent sur un plan particulier (l’être comme individu) et sur un plan général (tous les êtres humains). Ainsi, on apperçoit que cette oeuvre parle aussi des thèmes importants et traditionnels de la littérature: la recherche du sens de la vie et de la mort et des questions qui concernent l’éxistence humaine, par exemple. Toutefois, l’auteur se sert surtout des valeurs de l’esthétique symboliste et impressioniste dans Os Pescadores, choisissant un style d’écriture qui constitue une prose poétique. C’est justement là où est la présence constante des mythes comme les confugurateurs du temps, de l’espace ou de l’être humain même. Tel fait approche cette oeuvre des grands ouvrages tant de Raul Brandão que de la littérature universelle. Mots-clés : Hybridisme, Prose Poétique, Corréspondances, Mythè, Ambivalence. 10 SUMÁRIO RESUMO.............................................................................................................07 RÉSUMÉ.............................................................................................................08 INTRODUÇÃO...................................................................................................10 1. RAUL BRANDÃO: VIDA, OBRAS, INFLUÊNCIAS E ESTÉTICAS VIGENTES..........................................................................................................13 1.1. As obras brandonianas: temáticas diferenciadas ou vários enfoques da mesma temática?................................................................................25 2. A PROBLEMÁTICA DO GÊNERO LITERÁRIO EM OS PESCADORES.....................................................................................................41 2.1. A autobiografia.................................................................................45 2.2. O impressionismo.............................................................................49 2.3. A poesia simbolista...........................................................................52 2.4. A narrativa poética............................................................................55 2.5. A narrativa de viagem.......................................................................57 3. AS FACES DO NARRADOR E A LINGUAGEM POÉTICA......................61 3.1. A escolha e a combinação das palavras e dos sons...........................81 3.2. Luz: efeitos e significações...............................................................88 4. A CONSTRUÇÃO DA ESPACIALIDADE NA OBRA................................93 4.1. O itinerário mítico e a viagem do eterno retorno..............................98 4.2. Os movimentos totalizadores do eterno retorno.............................107 CONCLUSÃO...................................................................................................112 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................114 ANEXOS: A. Tabela comparativa......................................................................................120 B. O Porto de Margate ao nascer do sol – William Turner e Impressão, sol nascente – Claude Monet..................................................................................121 C. Mapa Político de Portugal............................................................................122 11 INTRODUÇÃO Raul Brandão foi um escritor do período de transição entre os séculos XIX e XX. Teve uma vasta produção entre romances, contos, ensaios, publicações em jornais, folhetos, memórias, peças de teatro e obras marcadas pelo hibridismo literário. Foi com Húmus (1917) e com um conjunto de peças reunidas em Teatro (1923) que o autor se consagrou como um importante escritor português do início do século XX, trabalhando principalmente com a temática da existência humana diante do sentido da vida e da morte. Por ser um escritor de período de transição, Raul Brandão vivenciou e participou de várias mudanças nos aspectos históricos, culturais e estéticos, levando marcas dessas influências para suas obras como se menciona no primeiro capítulo deste trabalho, em que se apresentam os dados biográficos, as estéticas vigentes e de maior influência na produção da obra em análise, além de tratar da evolução da conceituação crítica sobre a obra brandoniana. A discussão em torno das temáticas que envolvem as obras de Brandão, juntamente com o levantamento de hipóteses acerca da composição, temática e valor literário de Os Pescadores também são discutidos nesse capítulo inicial. A obra estudada apresenta uma problemática quanto ao gênero, caracterizando- se como sendo híbrida, pois apresenta traços da autobiografia ao narrar lembranças de lugares e fatos vivenciados pelo autor por meio da memória e da imaginação, e assemelha-se à narrativa de viagem pelos relatos registrados como num diário e pelo itinerário percorrido. Além disso, a obra faz referência à estética impressionista por meio de termos específicos da linguagem pictórica e de intertextos sobre pintores e remete à poesia simbolista na utilização de uma linguagem peculiar, baseando-se principalmente na teoria das correspondências, na escolha e combinação das palavras, realizando um “trabalho de poeta simbolista” sugerido através de efeitos sinestésicos e metáforas, por exemplo. Elementos estruturais da narrativa poética também podem ser encontrados, como a estrutura paralelística e a presença dos mitos, visto que uma das principais características deste gênero é a presença de uma estrutura aparente de narrativa que se subordina aos elementos que compõem a linguagem poética. Todos esses componentes foram identificados partindo-se da análise da epígrafe e dos dados formais da obra. Assim, os respectivos gêneros ou estéticas mencionados acima são contextualizados por meio de suas respectivas teorias, relacionando-se sua constituição com exemplos da obra. 12 Chegando à conclusão de que se trata de uma obra composta por gêneros limítrofes, fez-se necessário analisar a linguagem, ou seja, a prosa poética que se apresenta por meio de três discursos oscilantes: o discurso narrativo, o narrativo de caráter memorialístico e o poético. Dessa forma, esses discursos são apresentados quanto às suas especificidades e ocorrências na obra por meio de análises e interpretações de trechos em que os respectivos discursos são predominantes e também, por meio da tabela encontrada no Anexo A. O discurso narrativo é caracterizado quanto aos focos e vozes narrativas, tempo do discurso, tempo cronológico e oscilações quanto à pessoa do discurso com base nas teorias de Normam Friedman (1967) e Gerard Genette (2000), Benedito Nunes (2000) e Émile Benveniste (1976), trabalhando-se a presença da narrativa de viagem e identificando-se um narrador/ protagonista. Já o discurso memorialístico é apresentado com base nos trechos em que há a introspecção do narrador ao passado e em momentos em que o mesmo revive as lembranças de situações vivenciadas em sua infância nas regiões citadas durante a obra. Enfatiza-se o uso do monólogo interior, da memória e da autobiografia com base na teoria de Santo Agostinho (1973), Benedito Nunes (2000) e Dominique Maingueneau (1995). Por último, analisa-se o discurso poético que aparece em predominância sobre os demais, já que a linguagem em análise é poética. Nesse discurso, há um narrador lírico que descreve cenas do espetáculo natural observado e dos pescadores. A análise dos componentes desse discurso apóia-se na apresentação da teoria de Roman Jakobson (1971) e sua possível utilização em trechos que contenham funções de linguagem como a emotiva e a metalingüística; a escolha, combinação e relações de significação entre todos os componentes da prosa poética de Os Pescadores, mostrando a presença da poesia simbolista e do Impressionismo, assim como a freqüente presença da luz e das cores e suas diversas manifestações. A teoria de Gaston Bachelard sobre os quatro elementos fundamentais na alquimia e do espaço poético também embasa essa análise, juntamente com Maurice Lefebve (1980) e demais obras teóricas que tratam do trabalho com o texto poético. Assim, a construção da espacialidade em Os Pescadores apresenta-se a partir da configuração de vários tipos de espaços, como por exemplo, os espaços físicos, os abstratos, os poéticos e míticos além de serem agrupados em eixos espaciais marcados principalmente pelas oposições entre pólos como, por exemplo, as relações entre horizontalidade e verticalidade. 13 Além dessas acepções, há as configurações espaciais gerais, ou seja, o espaço itinerário e o circular que se referem, respectivamente, ao itinerário mítico e à viagem do eterno retorno. Esse itinerário mítico é construído pelo narrador lírico que percorreu imaginariamente o itinerário real da costa portuguesa passando pelo mar e por terra. A contemplação diante desses espaços construiu o fio mítico do itinerário das buscas interiores que compõem a existência humana. Todo esse percurso da viagem é marcado pela disposição gráfica em forma de diário e principalmente pela referência às narrativas míticas ou aos mitos de origem caracterizando as marcas do eterno retorno. Assim, esse itinerário traçado pelo narrador por terra e pelo mar é analisado juntamente com os elementos que marcam o eterno retorno como o “ar”, o ritmo e as repetições, baseando- se principalmente nas obras de Mircea Eliade (1963 e 1988) a fim de estabelecer relações e significações entre todos os componentes da obra. 14 1. RAUL BRANDÃO: VIDA, OBRAS, INFLUÊNCIAS E ESTÉTICAS VIGENTES. Raul Germano Brandão nasceu em 1867 na Foz do Douro, distrito pertencente ao Porto, e morreu em 1930, em Lisboa. Passou a infância e a adolescência à beira-mar, pois foi filho e neto de pescadores. Publicou sua primeira obra literária em 1890, um livro de contos intitulado Impressões e Paisagens e foi contemporâneo de Antônio Nobre, Camilo Pessanha e Alberto Oliveira, por exemplo. Integrou-se ao grupo “Os Nefelibatas” (defensores do Simbolismo e Decadentismo) aproximadamente em 1891, do qual foi publicado o folheto Os Nefelibatas de autoria coletiva e com o pseudônimo de Luís Borja. Freqüentou o Curso Superior de Letras no Porto, mas, por vontade dos pais, seguiu a carreira militar. Em 1896 foi para Guimarães, onde conheceu e se casou com Maria Angelina, possuindo uma casa denominada Casa do Alto, próxima a essa cidade, lugar em que também realizou composições literárias. Dedicou-se ao jornalismo desde muito jovem, o que o ajudou em suas reflexões filosóficas sobre as questões morais. Publicou reportagens no Correio da Manhã e ensaios de crítica literária na Revista de Hoje e na Seara Nova, entre outras. Raul Brandão foi um escritor do período de transição entre o século XIX e o século XX, sofrendo influências variadas. Ele assistiu ao esgotamento do Naturalismo, ao enveredamento pelo esteticismo, ao surgimento do Decadentismo e do Simbolismo, ao primeiro Modernismo (com a geração de Orpheu) e ao início do segundo Modernismo com o grupo da Presença, passando por períodos literários e contextos históricos, ideológicos distintos e por variadas tendências. Seu estilo de escrita se assume na transitoriedade vivenciada que corresponde tanto às influências estrangeiras e portuguesas como a uma originalidade que encontra seu fundamento nesse culto da transição, ou seja, nessa miscelânea de influências, transformando-o num autor de grande importância dentro da literatura portuguesa. Conforme afirma Álvaro Manuel Machado (1984): [...] Raul Brandão não se assume conscientemente na sua originalidade de transição nem, por outro lado, faz dessa transição estético-cultural que atravessa um sistema de vanguarda de geração literária. Tudo nele é intuitivo e puramente pessoal. No entanto, tudo nele (talvez mais do que em Pessoa), reflecte uma mudança estética, histórica e social que colectivamente se vai enraizando, indo do rastro do primeiro Romantismo na Geração de 70, então (no período de formação brandoniana) ainda actuante e mesmo culturalmente decisivo, à elaboração de um modernismo, o de Orpheu, que a si próprio se limitou no início como pura vanguarda e depois foi sendo recuperado (sobretudo a partir da revista Presença), em termos de 15 consciência crítica, como interpenetração do “moderno” e do “antigo”. (MACHADO, 1984, p. 12) Dessa forma, o antigo e o moderno permearam as obras de Raul Brandão e foram expressos principalmente pela ruptura da linguagem, sobretudo nas obras ficcionais, cuja culminância foi Húmus (1917). Esse escritor deixou uma obra marcada pelo hibridismo dos gêneros literários, pela desarticulação da sintaxe, por momentos de grande valor poético, de intensidade dramática e de reflexão da condição humana, publicando obras no domínio da ficção, do gênero memorialístico, do gênero dramático e, também, um único poema1. Antes de prosseguir com as informações sobre as produções brandonianas, é importante apresentar brevemente o contexto histórico, cultural, ideológico e estético que Portugal vivenciava nos períodos compreendidos entre 1867 e 1930, nos quais Raul Brandão viveu e se estabeleceu como escritor, além de salientar as principais estéticas e escritores que influenciaram suas produções literárias. Embasarão a apresentação desses contextos as obras de: Antônio José Saraiva & Óscar Lopes (1975), Arnold Hauser (1982) e Antônio Soares Amora (1961). Portugal, juntamente com o mundo todo, passou por várias transformações sociais, políticas, econômicas, tecnológicas e culturais ao longo dos anos e de maneira acentuada na segunda metade do século XIX e início do século XX. Foi um período de transição, de surgimento e mudança de conceitos que afetaram diretamente todas as pessoas daquela época e, conseqüentemente, alteraram as características da produção artística com o passar dos anos. Nas décadas de 60 e 70, a nação lusitana passou por um pequeno progresso agrícola e desenvolvimento da burguesia rural. Porém, as condições de vida e da cultura não se alteraram, já que os setores industrial, tecnológico e econômico apresentavam pouco avanço, principalmente se comparado aos demais países da Europa. Esse contexto resultou em várias manifestações das camadas sociais como a oposição ao imposto de consumo, por exemplo, impulsionando o grupo formado por alguns jovens escritores coimbrãos participantes da Questão Coimbrã na década de 60 a novamente lutar pela renovação literária e ideológica em Portugal. Entre eles, estavam Antero de Quental, Teófilo Braga, João Augusto Machado de Faria e Maia, Manuel de Arriaga e Eça de Queirós que se reuniram num Cenáculo em Lisboa no início da década de 70 1 Esse poema foi publicado em O Monitor (cf. José Carlos Seabra Pereira, pref. A A Noite de Natal de Raul Brandão e Júlio Brandão, Lisboa, 1891, pp. 95-96) e intitula-se “Tema Simples”. 16 criando as “Conferências Democráticas”, projeto de reformas da sociedade portuguesa que se pautava, principalmente, na aproximação de Portugal das preocupações intelectuais de seu tempo como a Unificação da Itália, a queda do II Império francês, a guerra franco-prussiana e a Comuna de Paris, por exemplo. A partir de 1890, Portugal vivenciou um período de perturbação social e econômica com a degradação do sistema constitucionalista, com o Ultimatum anunciado pela Inglaterra, com as dificuldades vivenciadas pela monarquia, com o assassinato do rei D. Carlos e seu filho e com a conseqüente crise política que se estendeu até a Proclamação da República, em 1910. Também foi um período de difusão das idéias positivistas comtianas, das descobertas científicas em torno do inconsciente humano e da fenomenologia psicológica, valorizando as verdades concernentes à espiritualidade do homem como sendo tão importantes como as tendências materialistas da época. Segundo Arnold Hauser (1982), as estéticas vigentes na segunda metade do século XIX na Europa foi o Naturalismo na literatura e o Impressionismo na pintura. O primeiro retratou a sociedade sob o prisma dos problemas sociais e patológicos relacionados ao homem, em que a hereditariedade e o determinismo ocasionado pelo meio eram as principais características, tendo como representantes em Portugal, Lourenço Pinto, Teixeira de Queirós e Abel Botelho. Gradativamente, essa estética deu lugar às idéias referentes ao esteticismo. Este priorizava a “atitude passiva e puramente contemplativa perante a vida, a transitoriedade e a natureza suspeita da experiência e o sensualismo hedonista” (HAUSER, 1982, p. 1062). Assim, valorizou-se a “arte pela arte” divulgada pelo Parnasianismo, estética literária da poesia cujo principal propósito era a preocupação com a forma e com uma arte de caráter ornamental. Essa idéia, que também foi disseminada entre os simbolistas, refere-se à definição da arte somente com base no aspecto formal não ressaltando os conteúdos sociais, éticos e políticos, por exemplo. Foi no período conturbado das últimas décadas do século XIX que surgiram o Decadentismo e o Simbolismo. A valorização de antigas culturas, o helenismo, o rococó e o impressionismo numa fase mais amadurecida compõem a essência desse estado de decadência2. Assim, os sentimentos de “transformação e decomposição” (HAUSER, 1982, p.1068), o prazer pela destruição, a fadiga e a idéia de abismo na qual a vida está inserida não eram assuntos novos na história da literatura e da arte, aparecendo no 2 O termo “decadência” ligado a um ideal estético surgiu aproximadamente em 1880 para designar uma expressão formal do estilo. 17 Decadentismo com mais intensidade. Nas terras lusitanas, a formação desse estilo ocorreu a partir das contradições internas do próprio Naturalismo, tendo como principal representante o escritor Fialho de Almeida, também se relacionando ao sentimento de crise, desilusão e decadência vivenciados pelos lusitanos na vida política e social nesse período expressado por meio de textos com ideais pessimistas. Já o Simbolismo, surgiu na França com a publicação de Les fleurs du mal (1857). Baudelaire apoiou-se na visão swedenborgueana de que tudo no universo estabelece relações de correspondência e expressou essas relações através de efeitos sinestésicos, imagens e símbolos em seus poemas. Em pouco tempo os ideais e características dessa estética atingiram âmbito universal com sua propagação em vários idiomas. Em Portugal, o Simbolismo chegou num momento de crise espiritual e decadência de alguns meios filosóficos e artísticos europeus do final do século, coincidindo com o sentimento de pessimismo e frustração do povo devido a causas históricas, tendo como impulso, além das influências francesas já comentadas, a publicação do Manifesto Simbolista em 1886 no Fígaro pelo grupo “Vencidos na Vida”. Assim, na mesma década surgiram várias produções que caracterizaram essa estética da valorização do mundo subjetivo, metafísico e do culto do estilo como capaz de propor uma revolução formal, ocasionada pelo potencial da linguagem contido nos aspectos sonoros, semânticos e sintáticos em que: [...] a transfiguração da realidade, no sentido do enriquecimento de seus valores líricos e plásticos (até certo ponto um neobarroco) resultou numa expressão em que é evidente a obsessão da sinestesia, da beleza plástica das imagens, das metáforas, das alegorias, dos mitos, dos símbolos e a beleza musical da linguagem e seu poder sugestivo e até encantatório[...](AMORA, 1961, p. 28, 29). Estiveram inseridos no movimento simbolista português Eugênio de Castro, Guerra Junqueiro, Antônio Nobre, Camilo Pessanha, Júlio Dantas e os prosadores Raul Brandão, Malheiro Dias, Aquilino Ribeiro. Dessa forma, conforme a opinião de Antônio Soares Amora (1961), a literatura portuguesa do final do século XIX e início do século XX se opôs à literatura realista-naturalista quanto ao conteúdo de expressão da realidade baseada nas tendências da filosofia antimaterialista, bem como à forma, na utilização da linguagem literária como veículo de transmissão de valores, e quanto à participação da vida social portuguesa, servindo aos movimentos nacionalistas como por exemplo na reação contra o Ultimatum inglês em 1890 e durante a República. 18 Revistas como Insubmissos e Boémia Nova de 1889 disputavam a introdução das inovações rítmicas e estilísticas, trazendo as novidades dos demais países europeus (principalmente da França) para Portugal. Assim, algumas tendências do historicismo e da literatura romântica voltaram nesse período, como o subjetivismo que se apóia na valorização do espírito como elemento fundamental do ser humano, a angústia metafísica, expressando o sentido transcendente da realidade e o nacionalismo que destacou a beleza da paisagem portuguesa no pitoresco de suas regiões: Os temas do sonho evasivo, da intuição vidente, da mística oculta, bem como a respectiva estilística de símbolos multivalentes e sinestesias, tenderam, na literatura portuguesa, a agarrar-se ao historicismo, ao pitoresco regional, ao moralismo discursivo, a um nacionalismo mais ou menos sebastianista, a um idealismo pronunciadamente religioso. (SARAIVA & LOPES, 1975, p. 1048) Há, portanto, um “neo-romantismo academizante” (SARAIVA & LOPES, 1975, p. 1049) no início do século que se subdivide em dois grupos correspondendo ideologicamente os monarcas e os republicanos. No primeiro, estão as correntes como o Neogarretismo, o Nacionalismo e o Integralismo, consideradas tradicionalistas, apoiadas pela extensa literatura de caráter historicista do século XIX e por escritores como Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, enquanto no segundo grupo estão a Renascença portuguesa e o Saudosimo. Porém, alguns escritores como é o caso do poeta Antônio Nobre não se enquadraram em tais moldes. O início do século XX, no entanto, caracterizou-se também por várias mudanças em todos os aspectos da vida humana. O crescente avanço científico e tecnológico se expandiu continuamente por todo o mundo e a burguesia vivenciou a belle époque, grande período de prosperidade cultural cujos centros localizavam-se em Paris e Viena. A indústria expandiu e lançou invenções que revolucionaram o mundo, como por exemplo o automóvel, o aeroplano, o telégrafo e o cinema. As carruagens e caravelas passaram a ser substituídas por locomotivas e barcos no transporte de produtos e pessoas e o mundo entrou na era da velocidade e da imagem. Mas, apesar de todas as conquistas, acentuaram-se as desigualdades sociais, entre outros motivos, devido à má distribuição da renda. Essas desigualdades continuaram (e continuam até hoje) fazendo com que se difundissem as idéias socialistas e anarquistas entre os trabalhadores, sendo um dos principais motivos de protestos entre os homens e as nações. Assim, em 1914 eclodiu a Primeira Guerra Mundial e em 1917, a Revolução Socialista na Rússia 19 czarista. Esses dois marcos históricos encerraram a belle époque e abalaram a sociedade burguesa. Os prejuízos recorrentes da participação na guerra foram evidentes em todos os países. Tratando especificamente de Portugal, sua participação acarretou o aumento das dificuldades no novo regime, resultou em golpes militares e em problemas financeiros, econômicos e sociais com amplitude não vivenciadas anteriormente pelos lusitanos. Gradativamente foi ocorrendo o predomínio demográfico das principais cidades e da economia, gerada pelo setor industrial, mas, num ritmo menor que nos países capitalistas evoluídos. No campo da filosofia, Bergson introduziu o conceito de tempo como duração interior marcado pelo “ir e vir” descontínuo entre passado, presente e futuro e na literatura, a manifestação desse tempo ocorreu nas constantes oscilações do pensamento do personagem nessas três instâncias do tempo, denominado tempo psicológico. Enquanto isso, Freud deu início à Psicanálise desenvolvendo pesquisas e descobertas em torno do inconsciente humano. Suas pesquisas foram consideradas um marco na história da ciência e da própria Humanidade, causando impacto na época e mudando os conceitos em torno dos sonhos e da sexualidade humana. Todos esses acontecimentos de grande importância possibilitaram o surgimento de movimentos artísticos que discutiram e representaram esse turbilhão de mudanças vivenciadas no início do século XX, além de criticarem as opressões causadas ao homem. Tais movimentos são as vanguardas européias e entre as que se destacaram estão: o Futurismo, o Expressionismo, o Cubismo, o Dadaísmo e o Surrealismo. Essas vanguardas mostraram as agitações da vida moderna nas manifestações artísticas e ressaltaram a necessidade da arte de se desprender do passado e tratar de temas modernos com visão crítica sobre o presente. Importantes revistas surgiram nesse período da República com a finalidade de disseminar as tendências difundidas na Europa e, principalmente, estimular momentos de reflexão e discussão diante das diversas tendências estéticas que Portugal vivenciava nesse período, reunindo artigos dos principais escritores da época. São exemplos das principais revistas a Águia e a Seara Nova e, nessa última, passaram os mais importantes escritores desse período como Teixeira Gomes, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, entre outros. Em 1915, com a publicação da revista Orpheu, surgiu a Primeira Geração do Modernismo Português, apresentando-se num contexto de renovação política e de 20 ressurgimento do nacionalismo lusitano. Assim, a literatura portuguesa da época procurou atualizar o país em relação às muitas renovações artísticas que emergiam por toda a Europa, como novidades literárias e correntes de vanguardas, buscando relacioná-los com a realidade do país, além de valorizar o gosto pelas ciências ocultas e uma religiosidade heterodoxa. São representantes desse período grandes nomes como Almada Negreiros, Mário de Sá Carneiro e Fernando Pessoa. Outras revistas também colaboravam na propagação dos ideais da Primeira geração Modernista como, por exemplo, Centauro, Exílio, Ícaro, Portugal Futurista, Contemporânea e Athena. A Segunda Geração do Modernismo Português articulou-se principalmente em torno da revista Presença de 1926 a 1932. Nesse momento, Portugal passava por mais uma crise política que levou o país à ditadura em 1932; além disso, a crise econômica decorrente da queda da Bolsa de valores em 1929 nos Estados Unidos teve grande repercussão mundial, inclusive na vida dos portugueses nesse período. Os presencistas estenderam os ideais lançados desde a publicação de Orpheu, mas sem o radicalismo daquela geração, buscando “uma literatura e uma arte desarticuladas, se não mesmo alheadas, de qualquer doutrina directamente interventora” (SARAIVA & LOPES, 1975, p. 1091) a fim de obter a síntese entre o moderno e o clássico. Dessa forma, elementos como a confissão e a análise introspectiva passaram a ganhar o valor necessário. Como representantes dessa segunda geração tem-se José Régio, João Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, Fausto José, Antônio Navarro, Casais Monteiro, Miguel Torga, entre outros. Quanto às influências que marcaram as obras de Brandão, e tendo como base a obra de Álvaro Manuel Machado (1984), destacam-se a Herança romântica, o Neo- Romantismo, Nacionalismo e Anarquismo, a Geração de 70 e as estéticas vigentes entre a segunda metade do século XIX e início do século XX, como, por exemplo, o Naturalismo, o Decadentismo, o Simbolismo e o Modernismo, já comentados anteriormente. A respeito da Herança romântica, é notável a empatia de Brandão com a essência desse movimento literário que foi justamente a expressão da subjetividade por meio do culto do “eu” interior em suas contradições, “o jogo de máscaras de que a escrita se torna cúmplice” (MACHADO, 1984, p. 23), ou seja, a ironia romântica levada à ambigüidade da narrativa como ocorre em obras de Camilo Castelo Branco; além disso, a atração pela paisagem descrita com base no imaginário popular, observada em Viagens na minha terra (1846) de Almeida Garrett, por exemplo, e presentes em alguns 21 contos de Impressões e Paisagens (1890) e em trechos de obras brandonianas como em Os Pescadores (1923), As Ilhas Desconhecidas (1926) e Portugal Pequenino (1930). Raul Brandão publicou vários artigos em revistas e jornais da época sobre a importância do século XIX numa totalidade histórico-cultural, como período de conscientização nacional de literatura, e também escreveu artigos sobre representantes do Romantismo português como Garrett e Herculano. Sobre Garrett, Brandão ressaltou a capacidade desse autor de apresentar a variedade dos pontos de vista no ser humano, expondo o sentido trágico criador da verdade romântica que tem na ironia o elemento mais importante de sua obra. A estrutura desconexa e oscilante entre romance, novela e diário íntimo, os personagens grotescos e trágicos e o narrador com difícil diferenciação do autor textual são algumas das influências de Camilo em obras brandonianas como em Húmus (1917), por exemplo. Também o conceito de “Deus” como expressão de sofrimento e de dor, mostrado muitas vezes nas obras de Raul Brandão como “fantasmas”, visão niilista tão presente em suas obras aproxima-o de Camilo e de Shakespeare, um dos grandes modelos do Romantismo europeu. Nesse período também surgiu um “romantismo libertário e folhetinesco” (MACHADO, 1984, p. 27) que se baseou numa proposta de escrita centrada na fragmentação e na descontinuidade do discurso, oscilando entre confessionalismo e análise, conhecido também como romance íntimo. Assim, a idéia de marginalização social do herói (que é doido porque não aceita a força triunfante da matéria, um herói- idéia mais do que um personagem), também se encontra em algumas obras de ficção de Raul Brandão desde a invenção de K. Maurício em 1894, considerando “seu álter-ego ‘filósofo’ e ‘louco’ que se suicida” (MACHADO, 1984, p. 29) e aparece em obras como História dum Palhaço (1896). Nos anos 80 e 90, período de formação intelectual de Raul Brandão surgiu o Neo-romantismo filosófico, o Nacionalismo e o Anarquismo, expandindo-se na poesia e na ficção de inspiração russa, sobretudo a de Dostoievski, propondo um espírito revolucionário em defesa do proletariado com base nos ideais de Marx. Juntamente com esses idealismos surgiu a crítica ao Positivismo comtiano liderada principalmente por Sampaio Bruno na busca da recuperação do romantismo intimista. Muitas das idéias filosóficas, históricas e literárias de Sampaio Bruno exerceram influência na obra de Raul Brandão. 22 No final da década de 80 e durante a década de 90 surgiram vários periódicos principalmente em Lisboa e no Porto exercendo influência ideológica na época. Vários desses periódicos retomavam a “linguagem panfletária do Romantismo libertário do [...] Eco dos Operários de Antônio Lopes de Mendonça” (MACHADO, 1984, p. 32). Porém, encontrava-se presente o anarquismo3, formado a partir das novas influências literárias, como a dos escritores russos. O romance russo exerceu influência em Portugal principalmente nesse período compreendido entre o fim do século XIX e início do século XX. Como exemplo na obra de Brandão, há um texto publicado na Revista de Hoje4 intitulado O Anarquismo – Diário de K. Maurício e que depois foi reutilizado pelo autor na estrutura de História dum Palhaço (1896), assim como outros textos publicados em periódicos, em que o anarquismo é visto de maneira ambígua: Brandão condena os atos terroristas como incapazes de resolver o problema social enfrentado pelo homem e, por outro lado, valoriza o sentimento anarquista de sonho, tema que aparecerá ao longo de toda a sua obra. Victor Hugo também influenciou os escritores portugueses dessa geração, por volta de 1880 e 1890, na transposição de elementos filosóficos difusos da literatura de transição e até nas idéias políticas, sociais, históricas e religiosas numa época em que a França era considerada modelo de civilização. As traduções das obras de Victor Hugo e dos outros escritores franceses eram publicadas nos folhetins em Portugal. Portanto, segundo Machado (1984), é a partir de uma vasta herança do Romantismo português, que tratou o imaginário português de Garrett até o Romantismo anarquista e pré-simbolista de Gomes Leal, passando por Camilo Castelo Branco, pelo romantismo intimista e pelo folhetim, que Raul Brandão construiu sua própria visão do mundo e a originalidade de sua escrita. A partir daí inicia sua atividade literária no Porto em 1890 com a publicação do primeiro livro, Impressões e Paisagens, e com a elaboração do manifesto coletivo Os Nefelibatas, além de textos críticos publicados nos jornais. Os ideais dos nefelibatas portuenses incitaram uma ruptura geral comum a outros grupos, situando-se principalmente no nível dos gêneros. Tais ideais foram apresentados nas revistas Boêmia Nova e Os Insubmissos, ambas com seis números. 3 O anarquismo refere-se aqui ao “elemento ideológico neo-romântico” segundo afirma Álvaro Manuel Machado, 1984, p. 33. 4 Publicação mensal sociológica e de arte (1894 – 1896), nº 1 de 15 de dezembro de 1894 de nove números, dirigida por Júlio e Raul Brandão. 23 Nessa época, a literatura portuguesa era de caráter decadentista, ligando-se à evolução da Geração de 70 entre os anos 80 e 90, na fase de formação do grupo “Vencidos da Vida” no que se refere à história das idéias sociais e políticas. Esse grupo era liderado por Oliveira Martins que foi também quem ampliou o conceito de decadência nacional por toda a Europa baseando-se numa visão histórico-cultural entre “grande progresso industrial” europeu e o sentimento de “desnorteamento” do ser humano em meio a tantas transformações. Brandão acompanhou esses ideais, expondo essa visão decadentista e a consciência dos problemas trazidos pelo progresso em História dum Palhaço (1896). Mas, desde os primeiros textos e sob influência dos importantes criadores da Geração de 70, como Antero de Quental e Eça de Queirós, ele retomou elementos do Romantismo tardio, fundindo-os com influências estrangeiras naturalistas, decadentistas e simbolistas vindas de Baudelaire, Verlaine, Flaubert, Poe, entre outros. Essas influências encontram-se presentes na elaboração da escrita brandoniana, juntamente com semelhanças estéticas entre Eça e Brandão e Brandão e Fialho, por exemplo, na construção de narrativas feitas de “fragmentos descritivos, compostas por impressões e pelo culto da paisagem como os primeiros românticos” (MACHADO, 1984, p. 53), como pode-se notar em alguns contos de Impressões e Paisagens (1890), por exemplo, os contos A Pimpinela e Um marinheiro, mesmo esse livro contendo predominantemente a temática naturalista e decadentista-simbolista. Em Coimbra, surgiram várias revistas com o objetivo de expandir as tendências decadentista-simbolistas com textos dos grandes nomes do Simbolismo europeu, juntamente com a divulgação teórica desse movimento, como é o caso da revista Arte. Paralelamente, havia também revistas publicadas no Porto e em Lisboa com o mesmo objetivo, e entre os autores participantes encontravam-se Raul Brandão, Júlio Brandão, Antônio Nobre, entre outros. Assim, por todo o país se estendiam essas publicações. Toda essa acumulação de tendências finisseculares5 colaborou para a construção da estética própria de Raul Brandão que foi elaborando uma linguagem simbólica baseada tanto na experiência nefelibata como nos ideais do Simbolismo, levando ao extremo essa estética da transição, conforme afirma Álvaro Manuel Machado (1984): [...] da mesma maneira que para o nosso maior poeta simbolista, Camilo Pessanha, também para Raul Brandão, o nosso maior simbolista da prosa, a verdadeira originalidade da elaboração duma linguagem simbólica não 5 As tendências finisseculares referem-se às tendências estéticas do final do século XIX e início do século XX. 24 poderia cingir-se a esse faustoso preciosismo verbal simbolista. (MACHADO, 1984, p. 68) As marcas simbolistas na obra brandoniana podem ser identificadas principalmente nas produções em que a infância e adolescência do autor aparecem mitificadas por recuos memorialísticos transfiguradores do tempo e do espaço e expressos principalmente pela linguagem simbólica e pelo sonho. Esse sonho tem várias conotações estéticas, históricas e sociais, funcionando “como uma espécie de catarse, imobiliza gestos e idéias” (MACHADO, 1984, p. 70), podendo ser comparado ao “lado” emotivo do ser humano, fundamental para a sua existência completa, juntamente com a razão. A dor também aparece com freqüência associada ao sonho em muitas obras como temas-síntese do sentimento finissecular retratados na elaboração de uma linguagem que retrata uma concepção pessoal desse símbolo. Assim, segundo Álvaro Manuel Machado (1984), é notável a presença de características decadentista- simbolistas nas obras brandonianas. Porém, tem-se “um simbolismo baseado no fragmentarismo da própria estrutura da obra” (MACHADO, 1984, p. 72), como ocorreu em História dum Palhaço (1896), além de uma progressiva melhora na elaboração de sua linguagem simbólica que pauta-se principalmente numa relação entre os gêneros numa tentativa de junção da poesia, ficção e ensaio. De História dum Palhaço (1896) a Os Pobres (1906), três obras mostraram esse percurso de amadurecimento da escrita brandoniana. São elas: Noite de Natal (1899), peça feita com colaboração de Júlio Brandão, O Padre (1901) e A Farsa (1903). Esta última, segundo Álvaro Manuel Machado (1984), apresenta uma linguagem naturalista “que se integra na própria temática simbolista” (MACHADO, 1984, p. 75), apresentando elementos que aparecerão novamente em obras como Os Pobres (1906) e Húmus (1917), caso, por exemplo, do tempo presente na categoria de personagem mais que na de elemento diegético, da temática social do sonho e da dor. A criação de um personagem abstrato, simbólico, o Gabiru, a circularidade temporal na narrativa e o levantamento acentuado das questões existencialistas como a dor e a angústia universal, o sentido da vida e da morte, o trágico ligado ao grotesco e o símbolo da árvore, símbolo-chave nas obras de Raul Brandão, são encontrados nessas obras de 1906 e 1917. Passando para as características da modernidade nas obras que coincidem com o período modernista, é necessário salientar que Raul Brandão baseou seu conceito de modernidade no modelo russo, na valorização do tempo narrativo como um dos temas da obra, construindo-se de maneira circular e cuja principal representação ocorreu com Húmus (1917). Assim, as obras citadas anteriormente, já pré-anunciavam essa 25 concepção circular do tempo na narrativa que caracteriza, juntamente com a ruptura estrutural da linguagem já comentada, as marcas decadentistas e simbolistas, “como síntese inovadora de toda a ficção brandoniana” (MACHADO, 1984, p. 93). Os três volumes de Memórias I (1919), II (1925) e III (1933), podem ser considerados modernos no sentido de recuperarem os gêneros mais tradicionais em pleno modernismo vanguardista. Com Teatro (1923), por exemplo, volume contendo O Gebo e a Sombra, O Rei Imaginário e O doido e a morte, Raul Brandão renovou profundamente o gênero dramático com peças que misturavam o esquema simbolista e personagens absurdas ao impacto dos ideais modernos. Álvaro Manuel Machado (1984) classificou as obras Os Pescadores (1923) e As Ilhas Desconhecidas (1926) como pertencentes ao gênero da narrativa de viagens, também de caráter tradicional, conforme afirma: [...] fundem-se anotações sobre paisagens, lugares, costumes, problemas sociais, com uma tensão criadora memorialística que não se limita a descrever, antes a cada passo sobre si mesma se interroga, captando uma linguagem popular, renovadora, que a ela se assimila. (MACHADO, 1984, p. 107). Assim, os aspectos modernos apresentados por essas duas obras estão vinculados a manifestações simbólicas, fixas na memória que se transfiguram numa atemporalidade, em momentos em que o narrador reflete diante do sentido da vida, como em: “É que tudo, até as coisas, num dado momento, foram para mim seres de uma vida extraordinária;” (BRANDÃO, 1985, p. 12). Raul Brandão também conciliou o moderno e o antigo em obras como Os Pescadores (1923) e As Ilhas Desconhecidas (1926) numa fusão de diversos gêneros tradicionais, a literatura de viagens e a autobiografia, transcritos numa linguagem predominantemente poética e com características da estética simbolista. Por último, Portugal Pequenino (1930), com co-autoria da esposa Maria Angelina e o livro O Pobre de pedir (1931), publicado postumamente. Nessa primeira obra, nota-se, segundo o crítico que embasa esse capítulo, uma visão de Portugal sob a ótica das mazelas do cotidiano em contraste com o Portugal mítico das descobertas marítimas. Já O Pobre de pedir retoma vários elementos da simbologia de Dostoievski apresentada anteriormente em Os Pobres (1906), como a presença de uma personagem feminina redentora, por exemplo. Depois dessa rápida passagem pelas principais obras brandonianas enfatizando- se a presença das influências vivenciadas pelo autor no que concerne aos contextos sócio-histórico, cultural e estético vigente, é possível confirmar as palavras do início do 26 capítulo de que Raul Brandão vivenciou várias tendências passando por várias influências, estrangeiras e nacionais. Todas essas influências foram fundamentais na elaboração de uma escrita marcada pela miscelânea de tendências e pela construção de uma originalidade dentro da literatura portuguesa, como é o caso de Húmus (1917), considerada pela crítica como: [...] a convergência suprema de toda a potencialidade criadora de Raul Brandão. Permanece como obra-tipo da originalíssima confluência de tendências estéticas tão diversas, que vão do Romantismo ao Modernismo, criando uma modernidade abrangente e única (MACHADO, 1984, p. 112) 1.1. As obras brandonianas6: temáticas diferenciadas ou vários enfoques da mesma temática? Passando para a questão das obras, torna-se necessário salientar a evolução dos estudos críticos em torno da valorização da produção de Raul Brandão. Para embasar esse estudo, serão utilizadas, principalmente, as obras de José Carlos Seabra Pereira (1995) e Vítor Viçoso (1999). Segundo Seabra Pereira (1995), a leitura da obra de Raul Brandão passou por algumas fases da crítica literária. A primeira delas foi a fase em que as obras desse escritor foram consideradas “menores”, como sendo obras superficiais, sem imaginação literária e sempre idênticas, e o próprio escritor como não se enquadrando em nenhuma categoria específica. Defendiam essa opinião críticos como Antônio Sérgio e Castelo Branco Chaves, por exemplo. A partir do Modernismo com a crítica presencista, começou-se a notar a grandeza e originalidade da escrita desse autor que, apresentando- 6 Impressões e Paisagens (1890) - contos, Vida de Santos (1891), O Arraial (1893/1894) – revista, História dum Palhaço (1896) – romance, Maria (1896) – conto, A noite de Natal (1899) – peça em três atos de Raul e Júlio Brandão; O padre (1901) – folheto, O triunfo (1902) – peça em cinco atos, O maior castigo (1902) – peça em três atos de autoria de Raul e Júlio Brandão, A Farsa (1903) – romance, Os Pobres (1906) – romance, El-Rei Junot ( 1912) – ensaio, A conspiração de 1817 (1914) – ensaio, O cerco do Porto (1915) – ensaio, Húmus (1917) – romance, Memórias I (1919) – confissões, Os Pescadores (1923) – romance, Teatro (1923) – peças de teatro, Memórias II (1925) – confissões, As ilhas Desconhecidas (1926) – romance, A morte dum Palhaço (1926) – romance, O mistério da árvore (1926) – romance, Jesus Cristo em Lisboa (1927) – tragicomédia em sete quadros e em parceria com Júlio Brandão, Eu sou um homem de bem (1927) – monólogo, O avejão ( 1929) – peça em um único ato, Portugal pequenino ( 1930) – romance, O pobre de pedir ( 1931) – romance publicado postumamente, Memórias III (1933) – confissões, publicado postumamente. É importante salientar que algumas das peças como O Triunfo e O Maior castigo se perderam. 27 se nas obras ficcionais com textos em formas narrativas, trouxe para essa estrutura, na maioria das vezes, elementos da criação poética. Esse novo olhar sobre a obra de Raul Brandão iniciou-se com João Gaspar Simões e foi seguido por nomes como Vitorino Nemésio, Antônio Feliciano Ramos e Túlio Ferro, por exemplo. As novas leituras da obra brandoniana feitas por críticos que surgiram a partir da Presença, resultaram num “pronunciamento marcante na evolução diacrônica do horizonte de recepção da obra de Raul Brandão” (PEREIRA, 1995, p. 270). Mas, é somente a partir da década de 50 que surgiram estudos complexos e aprofundados sobre o autor em análise e suas obras, encaminhados por David Mourão-Ferreira e Vergílio Ferreira que reconheceram a antecipação de Raul Brandão quanto à evolução temática e formal da ficção narrativa como o romance do absurdo e o nouveau roman em obras como Húmus (1917), por exemplo. As concretizações atuais sobre a produção brandoniana identificam o Expressionismo e o Existencialismo como presentes em obras publicadas principalmente no século XX. O Expressionismo foi uma das vanguardas do início do século XX. Entre seus princípios encontrava-se a expressão interior do artista com relação também a fatos exteriores como a opressão dos trabalhadores em situações de exploração social, por exemplo. Para os expressionistas, o progresso científico teria proporcionado a submissão do homem ao materialismo, acentuando a divisão de classes sociais. Assim, essa arte expressou a subjetividade num confronto entre artista e objeto descrito, resultante dos pontos de vista diferentes sobre o mesmo objeto. A religião, o trágico e a morte foram seus temas freqüentes. Já o Existencialismo referiu-se a ideais filosóficos surgidos com Kierkegaard e ampliados por Jean-Paul Sartre no início do século XX defendendo, entre outras coisas, a tese de que a condição existencial precede a essência, ou seja, inicialmente o homem existe no mundo e só depois se define como ser, tornando-se o único responsável pelas suas atitudes e escolhas. Dessa forma, ao iniciar a “breve” reflexão sobre as temáticas pelas quais são compostas as principais obras de Raul Brandão, visto que somente essa reflexão daria a confecção de outro trabalho, surgiu a pergunta: as obras brandonianas possuem temáticas diferenciadas ou vários enfoques da mesma temática? Com freqüência a crítica da segunda metade do século XX classifica a obra do escritor estudado em dois grandes grupos caracterizados por temas e composições em comum, conforme se pode observar: “Assim Raul Brandão figura uma das faces – a face sombria – da multividência utópica. Mas a essa face se contrapõe uma outra – a do 28 sonho que irradia luminosa [...]” (SEABRA, 2000, p. 379). Nessa face “sombria” são classificadas as produções cujos enfoques remetem às principais temáticas de Raul Brandão relacionadas às reflexões em torno da dor, da angústia existencial diante da vida mesquinha e da morte, do espanto e do sofrimento humano em suas buscas eternas, tanto no aspecto social como no aspecto metafísico. Essa temática pessimista é notada, segundo os críticos, em obras como A Farsa (1903), Os Pobres (1906), Húmus (1917) e no conjunto de peças reunidas em Teatro (1923), por exemplo, em que “um expressionismo grotesco” se instaura numa “busca paradoxal do seu sentido na dinâmica universal” (VIÇOSO, 2000, p. 41). Já na face considerada “luminosa”, as obras são geralmente classificadas pela presença freqüente da personificação e interiorização das paisagens, pelas viagens ao longo do litoral português e pelas impressões sinestésicas transmitidas por meio de arranjos poéticos. Nelas, marcas da estética impressionista podem ser identificadas com recorrência, na utilização de termos relacionados à pintura como “pinceladas”, “brochas cheias de tinta” e “paleta”, por exemplo, ou indiretamente. São considerados exemplos dessa temática as obras Os Pescadores (1923), As Ilhas Desconhecidas (1926) e Portugal Pequenino (1930). Aparentemente, pode-se afirmar que essas três últimas obras afastam-se do núcleo temático central de questionamentos das demais obras de Raul Brandão por enfatizarem as impressões e paisagens observadas. Mas, ao atentar para os mecanismos de constituição das mesmas, confirma-se o que Óscar Lopes disse: “Todos os seus livros são, no fundo, refundições do mesmo livro. Os temas, as personagens, os pequenos motivos e fórmulas estilísticas reaparecem constantemente, em versões mais ou menos retocadas” (LOPES, 1987, p. 346). Tal afirmação apresenta-se como ambígua podendo ser considerada como um elogio ou uma crítica à obra desse escritor português. Porém, ao se observar as grandes obras ao longo da história da literatura, é possível notar que as principais temáticas não se alteraram ao longo dos tempos e em geral, relacionam-se a questionamentos ou ações em torno dos mistérios que envolvem a vida e o ser humano: o amor, a solidão, a morte, as angústias existenciais, a busca da identidade, o duplo, os problemas sociais que afetam diretamente o homem, entre outros. Portanto, os temas literários são, em suma, os mesmos, havendo algumas oscilações de enfoque entre um e outro dependendo do estilo do autor ou da época em que se escreve. Dessa forma, são os mecanismos específicos de composição da obra escolhidos pelo escritor e também relacionados ao estilo que contribuirão para o 29 reconhecimento e valorização literária da mesma. É o que acontece com Os Pescadores, pois, mesmo criando uma ambientação predominantemente paisagística, a obra apresenta reflexões em torno da existência humana expressos principalmente por meio dos mitos. Assim, os temas da dor, do sofrimento e do espanto diante da vida, da angústia existencial, da miséria humana, tanto sócio-econômica como psicológica, da busca pelo sentido da vida são geralmente representados nas obras brandonianas por personagens grotescas; por solilóquios de um narrador que se pauta também nas manifestações oníricas expressas por meio de uma estrutura lingüística geralmente fragmentada, com a presença de construções simbólicas e com marcas do expressionismo. Porém, o que se pretende afirmar nesse capítulo é o fato de Os Pescadores ser considerada obra pertencente à segunda face, a “luminosa” e conter também temas encontrados na “sombria”: não explicitamente como em A Farsa (1903) e Húmus (1917), mas por meio de uma linguagem sutil, já que a preocupação maior do narrador de Os Pescadores (1923) é desejo de registrar lembranças passadas e a beleza da costa lusitana por meio do trabalho com a linguagem. Para confirmar que a obra em análise contém elementos da temática central brandoniana, será realizada uma comparação entre alguns símbolos, características estruturais e temas de Os Pescadores (1923) com a ocorrência dos mesmos ou de correspondentes semânticos em Húmus (1917), considerada a obra mais importante de Brandão. Essa aproximação se apoiará na análise de Húmus realizada pelo crítico e estudioso da produção ficcional de Raul Brandão, Vítor Viçoso (1999). Começando pela primeira comparação e partindo dos elementos naturais, há em Húmus a presença do elemento “terra” como elemento natural fundamental presente em toda a obra, manifestando-se em sua constituição do duro e do mole. Assim, a presença das pedras e da lama aparece constantemente associada à mesquinhez dos personagens levados aos questionamentos interiores e até à morte. Em Os Pescadores, o elemento “terra” também aparece fazendo referência ao solo e aos caminhos, não sendo tão enfatizado, já que o elemento de destaque é a “água” do mar. Terra e água são elementos naturais opostos quanto às suas matérias constituintes, porém, assemelham-se no fato de serem ambos símbolos da ambivalência, ou seja, de simultaneamente conterem em si, os princípios do benéfico e do maléfico. O princípio do benéfico desse elemento em Húmus aparece ligado a outro elemento natural que também é símbolo freqüente na obra de Brandão, a árvore, pois, é por meio da terra que a árvore germina e 30 cresce, representando o nascimento de uma vida, a relação “céu e a terra”e a relação simbólica entre o ser e o absoluto : “Entre a árvore, o céu e a terra há um compromisso de ternura...” (BRANDÃO, [19-?], p. 81), enquanto o maléfico relaciona-se com o fato de a terra ser o espaço destinado ao enterro dos corpos dos mortos, apresentando-se simbolicamente na obra como o solo que sustenta a putrefação humana em vida, as fofocas e os mexericos, por exemplo, já que o homem restringe sua vida inteira à falsidades, mentiras, máscaras e mesquinhez, como observa-se: “Iludistes os outros e a ti próprio te iludiste. Agora não. Agora sentes capaz de tudo. As grandes sombras que se entravaram a vida, ei-las reduzidas a dois punhados de cinzas. [...] O homem é sempre a mesma lama [...]” (BRANDÃO, [19-?], p. 136). Já em Os Pescadores, a ambivalência do elemento “água” na figura do mar assegura a própria sobrevivência da população de pescadores, que vivem basicamente da atividade da pesca, e também serve de fonte de revelação do narrador, representando todos os seres humanos ao ver-se refletido e questionar sobre sua existência nos espelhos das águas claras do mar. Mas também leva para suas profundezas muitos pescadores, resultando no sofrimento de suas famílias: “Todos eles vivem no mar – e morrem no mar.” (BRANDÃO, 1985, p. 24). As “imagens aquáticas” segundo Vítor Viçoso (1999) também podem ser identificadas nas duas obras. Porém, Húmus enfatiza as águas paradas e a umidade da vila, geralmente referenciadas à noite. Isso indica a profundidade e afundamento dos sofrimentos, dos questionamentos e incertezas diante da existência e até como marcas simbólicas de uma morte interior dos seres, já que os habitantes da vila na obra, assim como qualquer ser humano, vivem cercados pelas poças de mentiras e máscaras sociais. Já em Os Pescadores, mesmo havendo referências às águas paradas do fundo do mar, são as “águas correntes” que aparecem em destaque, mostrando a fluidez das águas que impulsionam o dia-a-dia dos pescadores associada à fluidez da vida que passa sem dar uma nova chance: ela não será mais a mesma, assim como a água no curso do rio. É por meio dessas metáforas ou de repetições de situações relacionadas às “águas correntes” (ou seja, por construções simbólicas como em Húmus), mas com uma escolha de combinações mais sutis e indiretas que o narrador de Os Pescadores também expressa a preocupação com essa existência que a cada novo dia escapa por entre os dedos humanos, como ocorre com a água, levando-o a momentos de angústia e questionamentos interiores em torno das questões existenciais. A marca da temporalidade cíclica do eterno retorno por meio do mito cosmogônico é notável em ambas as obras. Em Húmus, essa marca textual é 31 representada pelas estações do ano: primavera, verão, outono e inverno, pela chuva e pela presença freqüente do luar “como devir cíclico das suas metamorfoses” (VIÇOSO, 1999, p. 283) alternando as idéias de claridade e obscuridade, vida e morte. Porém, em Os Pescadores, a marca lingüística dessa temporalidade cíclica é identificável principalmente nas partes do dia: manhã, tarde e noite que se alternam seqüencialmente dentro de cada capítulo e entre os capítulos, além das descrições dos pores-do-sol e auroras, como pode ser notado na tabela no Anexo A. Portanto, são encontradas marcas e elementos textuais diferentes, mas, em ambas, há a referência tanto ao tempo cíclico como ao mito cosmogônico e ao mito de origem do nascimento7 , também lembrados por Vitor Viçoso (1999) na análise utilizada, sendo que em Húmus enfatiza-se prioritariamente a noite e a carga simbólica que a envolve além das mudanças cíclicas mais longas como as estações do ano, por exemplo, se comparadas às partes do dia em Os Pescadores, em que há o destaque justamente para o “dia”. O tema da morte aparece de duas maneiras em ambas as obras, tanto a morte relacionada a valores místicos como a morte humana ocasionada pela dor física e existencial. Em Húmus, quando aparece relacionada a valores místicos, geralmente vem figurativizada na presença constante de fantasmas de pessoas mortas que atormentam os humanos ou fantasmas que simbolizam a própria consciência que persegue por sempre lembrar das atitudes erradas, como em: “Tu lutas contra esta figura que dentro de ti te impele; - tu queres fugir de ti próprio, queres separar-te de ti mesmo, e não podes. Só consegues, à custa de esforços desesperados, manteres dentro [...] da máscara que escolheste” (BRANDÃO, [19-?], p. 136). Em Os Pescadores há algumas manifestações de fantasmas fazendo referências principalmente às lembranças dos familiares ou de pescadores mortos no mar que o narrador recorda no decorrer da obra. Já a morte humana como algo natural ou resultado da dor física aparece em Húmus relacionada à degradação e cadaverização do ser humano ainda vivo. Isso ocorre por meio de questionamentos existenciais que os matam dia-a-dia, ou mesmo narrando a morte miserável de alguns personagens da obra, como sentir frio até a morte em uma noite gelada, por exemplo. Já em Os Pescadores, esse outro aspecto da morte refere-se principalmente à tristeza das mulheres que perderam seus maridos no mar e que são recuperáveis somente pela lembrança. A questão do sonho e do devaneio que aparecem com freqüência nas obras desse escritor podem ser considerados como temas que se referem ao ser humano no plano 7 ELIADE, Mircea, 1963, p. 25 32 inconsciente no estado de sonho e no plano subconsciente no estado de devaneio8. Tanto em Húmus como em Os Pescadores a presença do sonho e do devaneio é freqüente, estando, na primeira obra, voltado principalmente para a morte, dor e sofrimento dos personagens: “O sonho é um – a realidade é outra: a realidade é uma figura só de dor.” (BRANDÃO, [19-?], p. 93) enquanto na segunda, esses sonhos e devaneios estão geralmente ligados a momentos de reminiscências da infância, da casa e à paisagem da Foz do Douro. Esse questionamento em torno do sonho remete a uma importante citação de Vitor Viçoso: “Para Brandão, o sonho é a energia capaz de superar o tédio” (VIÇOSO, 1999, p. 336). Sendo assim, talvez seja o sonho/devaneio como forma de superação do tédio um dos motivos que levaram o autor à composição de Os Pescadores. Na construção de uma viagem imaginária como forma de superação do tédio proporcionado pelo contexto social e político em que a obra foi escrita, buscando a fusão entre pólos opostos, e até numa ironia na busca do reencontro da dimensão poética numa sociedade voltada para a ciência, conforme afirma o mesmo crítico. Já o tema da dor, da solidão, do tédio, do sofrimento, da angústia é mostrado principalmente por meio das marcas do expressionismo brandoniano que ressalta os problemas sociais da miséria humana e da presença de personagens ou cenas grotescas9. Em Húmus esses temas são caracterizados por personagens grotescos e sem escrúpulos que vivem uma vida falsa, vazia, fundamentada nas mentiras sociais, como todos os seres humanos, sendo bem demarcados por um léxico constante que remete a esse grotesco, como, por exemplo, as palavras: grito, nódoa, corroer, obscuridade, morte, falsidade, máscaras, fraqueza e mesquinhez, estando sempre associados às pessoas ou situações cotidianas. No entanto, em Os Pescadores, essa manifestação da dor e do grotesco não aparece explicitamente como em Húmus, mas é notável na dor do pescador ao vivenciar situações de exploração comercial em algumas regiões como em Sesimbra e em Olhão, por exemplo, por parte de pessoas preocupadas somente com o próprio lucro. O sofrimento e a angústia aumentam porque os pescadores sabem que não haverá nenhuma preocupação desses comerciantes em conservar despoluídas as águas que lhes fornecem lucros ou mesmo em serem sensatos nas pescarias deixando os peixes 8 Segundo Agripina E. Ferreira (1994, vol. II) acerca dos termos mais utilizados nas obras bachelardianas, “o devaneio é o produto do cogito de um sonhador e tem como ponto de partida alguma coisa do presente ou do passado. [...]. Os devaneios do escritor não são fugas da realidade. São instantes verticalizantes de inefável significação, transpostos numa obra escrita”. (FERREIRA, 1994,Vol.II, p. 81) 9 O termo grotesco na obra brandoniana exerce, segundo Vítor Viçoso (1999), o sentido de nível máximo dos problemas sociais e morais nos quais as pessoas estão inseridas, num jogo de máscaras constante que leva à degradação humana total. 33 pequenos nas águas: “É aos montes que a sardinha é apanhada por essa costa para enriquecer meia dúzia de felizes. Daqui a meio século não há uma escama nas nossas águas fertilíssimas.” (BRANDÃO, 1985, p. 95). Esse tema também pode ser observado na solidão do narrador-protagonista e angústia de sua eterna busca interior, figurativizada, entre outros elementos, no itinerário mítico percorrido, representando as buscas de todos os seres humanos. O tema do espanto diante da vila e da vida é notável em Húmus como o espanto comum diante de todos os dramas existenciais a que as pessoas estão sujeitas desde o momento do nascimento, chegando à conclusão de que o melhor é morrer fisicamente do que viver e morrer em vida: “O maior drama é o das consciências. O maior drama é arredar todos os trapos da vida, para poder olhar a vida cara a cara. O maior drama é ficar só com o vácuo e em frente ao espanto” (BRANDÃO, [19-?], p. 73). Em Os Pescadores, o autor também trata do tema do espanto diante dos problemas existenciais como as buscas interiores e o sentido da vida e da morte. Porém, utiliza-se de outros caminhos para chegar a esse tema, o caminho dos itinerários míticos e do espanto em três dimensões: o espanto diante da beleza da paisagem da costa lusitana como ênfase ao nacionalismo, o espanto diante da lembrança dos paraísos perdidos como a própria infância, por exemplo, e o espanto diante de uma única certeza, a de que a vida é composta por eternas buscas interiores e por problemas semelhantes a todos os seres humanos. Ambas as obras trazem elementos das mesmas estéticas literárias em sua composição, o Simbolismo e o Modernismo. Em Húmus, as características simbolistas encontradas são as já citadas aqui, como a utilização freqüente de figuras de linguagem, de símbolos e imagens poéticas e a modernidade se manifestam principalmente pela ruptura e fragmentação da linguagem que prenuncia o nouveau roman, fundamentando- se na filosofia existencialista. Os Pescadores foi escrito basicamente fundamentado nos valores e ideais do Simbolismo, como será mostrado no decorrer do trabalho. Porém, a obra foi publicada em 1923, em pleno movimento da Primeira Geração Modernista. Dessa estética, apresenta características como a sutil ironia do narrador diante da paisagem da exploração dos comerciantes sem a preocupação com a natureza, como já foi mostrado anteriormente e a conciliação entre gêneros tradicionais como a narrativa de viagens e a narrativa poética, por exemplo. 34 Com freqüência são identificadas características da pintura expressionista e impressionista nas obras brandonianas, conforme afirma Vitor Viçoso ao falar das características da obras mencionadas: [...] a sua ficção revela um autor que parece permanentemente sob um vulcão prestes a entrar em erupção – [...], cujo trânsito se faz entre [...] o tédio e a apetência ambivalente pelo abismo; o espaço rural, ora idílico ora trágico, e a verdade ignóbil do espaço urbano; os microcosmos fantasmáticos e os convulsos do interior, impregnados de um expressionismo monocromático, e impressionismo pictórico do mar. (VIÇOSO, 1999, p. 13, grifo nosso) A presença do expressionismo e do impressionismo é notável na construção de uma linguagem com marcas dos ideais dessas estéticas, como é o caso do emprego de vocábulos específicos dessas respectivas representações pictóricas e nesse aspecto, Húmus e Os Pescadores divergem, pois, enquanto Húmus mostra o espanto pessimista e o grotesco da vida de seus personagens, aproximando-se dos valores expressionistas, de pintores como E. Munch e do quadro O Grito (1895), Os Pescadores identifica-se com o impressionismo e com quadros de Turner e Monet como em Impressão, sol nascente (1872), por exemplo. Porém, como se pode observar e com base na opinião da crítica, a presença do pictórico, seja de caráter expressionista ou impressionista, apresenta-se na maioria das obras de Raul Brandão independente da classificação em uma ou outra “face”. Assim, em algumas obras o Simbolismo se articula com o expressionismo grotesco, e em outras, com o impressionismo. Três características referentes à utilização da linguagem estão presentes em ambas as obras comentadas, são elas o emprego do lirismo e da linguagem poética, a construção da obra baseada em antíteses como: morte/vida, efêmero/eterno, bem/mal, finito/infinito, permanência/mudança, ou seja, na confirmação das contradições e oposições que compõem a vida e o próprio ser humano. Por último, a utilização dos “planos ontológico, sociológico e mitológico” (VIÇOSO, 1999, p. 341), tratando de aspectos biográficos, sociais e dos dramas universais. Outra questão a ser levantada quando se trata dos temas brandonianos é o fato de Os Pescadores ter sido planejado para ser o primeiro volume de uma série de obras que se intitularia A vida humilde do povo português, cuja possível seqüência seria Os Lavradores, Os Pastores e Os Operários. No entanto, somente o livro em análise foi publicado pelo autor em vida. Os Lavradores e Os Pastores não passaram de rascunhos esparsos e de difícil leitura. Túlio Ramires Ferro, estudioso e crítico da obra brandoniana, comentou no Prefácio de Os Operários (1984) que esteve durante a década de 50 na Casa do Alto, conversou com Maria Angelina sobre Raul Brandão 35 obtendo informações importantes além de materiais pessoais e do espólio do autor. Entre esses materiais, encontravam-se os cadernos de rascunhos e anotações, os “numerosos pequenos cadernos de capa preta de oleado, os famosos cadernos que Raul Brandão sempre trazia consigo, e em que tomava apontamentos destinados às obras que pretendia escrever [...]”. (FERRO, 1984, p. 10), em que o escritor esboçava as anotações sobre suas posteriores obras. Nesses cadernos Túlio Ramires Ferro encontrou várias folhas de anotações destinadas a Os Operários que inclusive constavam o título. Assim, realizou um trabalho de transcrição das anotações, a fim de evitar a deterioração do tempo, organizou-os em capítulos conforme considerou conveniente e guardou-os por trinta anos, já que a obra tratava de maneira crítica do mundo operário no início da década de 20 e seria inviável publicá-la na década de 50 devido à censura. Em 1984, Túlio realizou a publicação inédita de Os Operários juntamente com um ensaio introdutório acerca da presença da questão social nas obras de Raul Brandão. Com base no título da suposta coleção, a questão da prevalência do cunho temático social da obra em análise, assim como Os Pobres (1906) e O Pobre de pedir (1931) e Os Operários (1984), por exemplo, poderia ser levantada e questionada, já que Túlio Ramires Ferro (1984) afirma que “ a vasta reportagem , publicada em 1923, sobre Os Pescadores, a qual abrange toda a costa portuguesa, foi precedida de trabalhos de menor amplitude mas valiosos, pela sobriedade e pelo vigor do estilo[...]”. (FERRO, 1984, p. 226), em oposição ou em menor grau que a linguagem poética e mítica defendida nesse trabalho. Não se pode negar que a obra em análise tinha sido planejada para compor uma série que trataria dos problemas sociais enfrentados pelo humilde povo português, visto que isso foi encontrado por Túlio em um dos cadernos de anotações pertencentes ao autor e está documentado10. No entanto, poderá ser notado no decorrer desse estudo que em momento algum se desconsidera o fato de Os Pescadores também tratar dos problemas sociais figurativizados na classe social predominante apresentada, no caso, a dos pescadores. Isso acontece, por exemplo, nos momentos em que se mostram as condições de vida, os hábitos, costumes e crenças desse povo, as divisões de tarefa entre homem e mulher nas várias regiões por onde passa o narrador, como se observa em: 10A referência ao plano de composição das quatro obras que comporiam “A vida humilde do povo português” encontra-se em FERRO, 1984, p. 220 e 221. 36 Tudo aqui é pobre e humilde, mas não grosseiro. Os homens trigueiros, secos e fortes e as mulheres bem lançadas. Mesmo as feias têm um ar de distinção. A família é sagrada. O contacto com a terra obriga o homem a olhar para o chão, o convívio com o mar obriga-o a levantar a cabeça. Quando saem do barco e o encalham, os pescadores não fazem mais nada – deitam-se na areia. O resto compete à mulher: é ela que lava as redes e o peixe, que o salga e carrega e que faz a lavoura da barrinha. [...]BRANDÃO, 1985, p. 50. Entre as características gerais dessa classe social, alguns nomes ou apelidos de pescadores e suas mulheres também aparecem com freqüência, geralmente quando se preparam para a pesca. Todos esses personagens podem ser reduzidos a tipos por apresentarem características semelhantes, as mulheres da Cantareira como sendo “briguentas”, as de Mira como “trabalhadeiras” e as de Murtosa como as mais belas, por exemplo. A atividade da pesca, única forma de trabalho e sobrevivência dos pescadores, é mostrada no decorrer da obra repetidas vezes, desde a rotina diária ou a da época das safras, da preparação das redes, dos barcos e dos demais artifícios levados. As orações e despedidas antes da saída pelo mar, os diálogos entre os pescadores nos barcos, as expectativas que, às vezes, são bem sucedidas e outras frustradas devido ao mau tempo ou a algum acidente no mar. Quando as viagens são bem sucedidas, mostram-se a recepção calorosa das mulheres e o trabalho de cuidado com o peixe, como se pode observar: “Só tendo a morte quase certa é que o Poveiro não vai ao mar. Aqui o homem é acima de tudo pescador. Depende do mar e vive do mar: cria-se no barco e entranha-se de salitre” (BRANDÃO, 1985, p. 23). As regiões em que a pesca é abundante e as em que a pesca é escassa também são identificadas. O peixe e sua diversidade de espécies são apresentados como fonte de sobrevivência, quanto à variedade conforme as regiões e quanto à época apropriada para sua pesca. Dessa forma, os pescadores e todos os aspectos sociais que os envolvem são apresentados na obra com base em dados verídicos, já que, por exemplo, o crítico e historiador Antônio Sérgio utilizou trechos de Os Pescadores em sua obra de caráter histórico e geográfico11 a fim de apresentar dados estatísticos, afirmando: “Sobre nossas praias em que se exerce a pesca, deu-nos Raul Brandão um delicioso livro, de que iremos aproveitar-nos em mui larga escala [...] dos dados concretos sobre a condição das gentes” (SÉRGIO, 1982, p. 155). 11SÉRGIO, Antônio. Introdução Geográfico-Sociológica à História de Portugal. 5ª edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1982. 37 No entanto, os pescadores, além de terem sido uma classe predominante na costa portuguesa, também representam um grupo de pessoas que exercem a atividade da pesca que existe desde a origem do mundo, diferentemente dos operários, por exemplo, e esse é um dos fatores que possibilita uma leitura mítica da obra enfatizando-se a construção da linguagem poética. Os próprios trechos em que o narrador apresenta os pescadores, suas mulheres, a pesca e os peixes oferecem elementos para uma análise pautada nesse viés mítico e poético, como a caracterização da ambientação primitiva da obra mostrada pelas descrições dos costumes desses povos, situações vivenciadas desde os primórdios. Dois tipos humanos em especial, um masculino e um feminino, podem ser considerados os respectivos protótipos da figura do “pescador mítico” e de sua companheira: De todas estas figuras ficou-me uma figura para sempre: um tipo sem nome, maior que a realidade, de músculos como cordas. Sua missão no mundo é remar. De trilhar o remo ficou curvo, e tem as palmas tão encortiçadas que nelas afia a navalha como numa pedra de amolar. O mar denegriu-o e engrandeceu-o. Não sabe exprimir-se e mal nos conseguimos entender. Mas não me mete medo como outras figuras trágicas da vida: olha para mim – e só lhe leio nos olhos ingenuidade e ternura... (BRANDÃO, 1985, p. 71 e 72) A velha que tenho diante de mim é o tipo que esta vida foi transformando, amolgando, rugas por onde têm caído as lágrimas, mãos deformadas e negras, que ganham o pão de cada dia, cheiro a salmoura, e uma beleza extraordinária, a beleza da verdade e da vida trágica, dos que cumprem a existência e só caem esfarrapados e exaustos: __O estipor da vida que eu levo, sempre molhada até os ossos! (BRANDÃO, 1985, p. 86). A repetição de vezes em que se menciona de forma semelhante a rotina dos pescadores também remete a obra ao Mito do Eterno Retorno apresentado por Mircea Eliade (1988), que será tratado posteriormente. Dessa forma, pode-se afirmar que Os Pescadores trata dos problemas sociais, das angústias e sofrimentos enfrentados pelos pescadores. Porém, não se podem negar todas as outras influências de gêneros como presença da autobiografia, do impressionismo, da poesia simbolista e da narrativa poética e mítica, a utilização da linguagem poética na base da composição da obra, enfatizados a todo momento. Assim, uma leitura da obra em análise pautada somente nos aspectos de cunho social é possível, porém, seria incompleta por omitir todo o processo de construção da mesma. Portanto, não se diminui uma determinada característica da obra, já que a mesma faria parte de uma possível coleção intitulada A vida humilde do povo português. Pelo contrário, preserva-lhe em sua devida importância. Porém, busca-se enfatizar nesse estudo o que a obra traz de mais característico que é a utilização da linguagem de maneira peculiar, 38 conseguindo transmitir além de traços pessoais do autor e da vida humilde do povo português, os questionamentos feitos por todo ser humano num âmbito universal. E é a junção de todos esses elementos, proporcionando a visualização da obra como um todo que colaborará para a devida valorização literária de Os Pescadores. Por último, como explicar o fato de duas obras do mesmo autor serem publicadas no mesmo ano, o de 1923, Teatro e Os Pescadores e apresentarem temáticas aparentemente tão diferenciadas? Embasando essa reflexão serão utilizadas principalmente as obras de Emil Staiger (1997) e Jorge Cury (1978). Primeiramente, é preciso lembrar que se trata de obras de gêneros diferentes. Teatro (1923) é um conjunto de peças reunidas enquanto Os Pescadores (1923) é uma obra marcada pelo hibridismo de gêneros, mas que se aproxima da estrutura da narrativa enquanto forma. Assim, é preciso lembrar brevemente as peculiaridades e objetivos centrais de cada um desses gêneros mesmo sabendo que nenhuma obra pode ser considerada como pertencente a um único gênero. Segundo Emil Staiger (1997), há um conjunto de características predominantes de um determinado gênero que a determina como pertencente ao mesmo. Começando pelas especificidades do drama, a peça de teatro é escrita com o propósito de ser encenada, de tornar-se espetáculo, de ser representada por personagens vivos em um palco com público espectador. Caso a mesma não seja encenada, seguirá os padrões formais dos textos teatrais, enquanto a obra em estrutura narrativa é feita para ser lida e refletida pelo leitor que realiza esse trabalho geralmente sozinho. Um texto literário feito para ser encenado deve levar em consideração todas as formas de transmissão da mensagem desejada no ato da encenação, ou seja, precisa de efeitos e estratégias que levem a mensagem ao público no tempo estipulado e, para isso, serão utilizados recursos cênicos além dos lingüísticos. Já o texto narrativo estará sempre em mãos para uma nova leitura e reflexão de um trecho ou outro que passou despercebido. Assim, vários estudiosos da obra dramática brandoniana e entre eles, Jorge Cury, ressaltaram a importância do Raul Brandão dramaturgo e, em especial, a obra Teatro (1923) como sendo fundamental na evolução temática do teatro português na transição do teatro simbolista para o teatro moderno, como se observa na citação: E no teatro? Também é ele um precursor, e em que sentido? Ora por ser um teatro despojado, isto é um paradoxo que não deixa de ser uma constante na obra brandoniana, por, artisticamente, empregar situações coletivas que denotam a justeza do conflito com as indagações do homem. É preciso levar em conta que um conflito entre convicções de realidade é dramaticamente mais empolgante que um simples conflito de interesse, de paixões, de 39 posições ideológicas. [...] A mensagem de que se serve o teatro de Raul Brandão é a própria confrontação da vida do homem com sua realidade existencial. É o despojamento da “máscara”, é o desnudamento da hipocrisia, que provoca nos seus leitores (ou assistentes) o impacto da mesquinhez do homem.(CURY, 1978, p. 148.) O público português, acostumado com as peças convencionais, não foi favorável à representação de O Gebo e a Sombra em 1927 no Teatro Nacional, porque ela lhe causou impacto diante do novo e um “repúdio à inovação temática do autor, que coloca sua sintaxe teatral como o iniciador do moderno teatro português” (CURY, 1978, p. 146). A questão das dificuldades encontradas nas relações humanas principalmente de âmbito social também foi representada entre os personagens. Com o passar dos anos, o público, com o apoio da crítica, atentou para as inovações e para a importância dessa obra no teatro português, reconhecendo-o como um dos maiores dramaturgos nacionais. Em contrapartida, Os Pescadores (1923) obteve êxito de publicação na época, garantindo ao seu autor um sucesso imediato. Possivelmente esse sucesso ocorreu por causa de a obra retratar as viagens do narrador feitas ao longo da costa portuguesa utilizando-se de reminiscências da infância e mostrando as belezas paisagísticas e marítimas como verdadeiros quadros impressionistas. Algumas dessas características são pertencentes a gêneros tradicionais na história da literatura portuguesa, como é o caso da narrativa de viagem, por exemplo. Porém, por muito tempo a crítica literária (em suas fases iniciais) considerou-a como uma obra menor, como se observa em Antônio Sérgio (1980) ao dizer que a obra prioriza o espetáculo paisagístico e se esquece de discutir a situação do ser humano, do povo português: Os quadros são, na verdade, uma maravilha. Para nós, porém, a pintura por palavra é fatigante. Magnífica como pano de fundo, para acompanhar; mas, se fica no primeiro plano, - passadas uma ou duas horas, o nosso espírito, asfixiado, reclama idéias e pede acção. [...]. Nas Letras, a descrição material é acessória, e um acidente o gesto exterior. Discordamos, por isso mesmo, de quem eleve à primeira grandeza um escritor crítico cujas obras-primas são meras páginas de descrição... [...]. Cumpre mergulharmos na alma humana com todo o coração, mas também com o cérebro, para irmos arrancar ao seu fundo abismo a exuberância de formas que ali contém.(SÉRGIO, 1980, p. 86 e 87). Ao fazer tais afirmações, Antônio Sérgio desconsiderou a complexidade do trabalho que se encontra oculto na composição de Os Pescadores, pois é justamente por meio da estrutura repetitiva de descrições que o crítico comenta que é possível notar o fio mítico perpassando toda a obra e tratando de temas como a existência humana e o sentido da vida, de maneira sutil e baseada numa linguagem aparentemente simples, 40 mas calcada nos fundamentos da estética simbolista. Além disso, é preciso atentar para o conjunto da obra de Raul Brandão que mostra que o autor não é meramente “um escritor crítico cujas obras-primas são meras páginas de descrição”. Atualmente, estudiosos como Pedro Eiras e Xosé Lois García, entre outros, defendem a proposta de valorização literária de Os Pescadores. Voltando para a questão lançada anteriormente referente às temáticas de Teatro e Os Pescadores, ambas publicadas em 1923, e aproximando-as somente quanto a esse aspecto, pode-se afirmar que, em suma, ambas apresentam a temática dos questionamentos em torno da existência e da condição humana diante da vida e da morte. Porém, em Teatro essa temática apresenta-se numa atmosfera pessimista e direta em que as mazelas do homem e seus conflitos interiores assemelham-se à maneira temática apresentada em Húmus, além de chegar até o leitor/espectador por meios diferentes como a brevidade, a objetividade e o impacto, características próprias dos textos teatrais. Já em Os Pescadores essa mesma temática é transmitida por meio da utilização de recursos poéticos, da síntese, dos símbolos e mitos, das reminiscências do narrador, valorizando a subjetividade e o trabalho com a linguagem. Assim, para fechar a questão da temática das principais obras brandonianas, tomamos a afirmação de José Carlos Seabra Pereira: Toda a obra de Raul Brandão vive em regime paroxístico e contrapolar ou ambivalente, quer vá do pitoresco ao dramático, quer vá do cômico ao patético, quer vá do grotesco ao trágico, quer vá do nojo ao encanto terno, quer vá da admiração pelo heróico à evidenciação da vileza, quer vá do verismo truculento à caricatura burlesca, do “sonho” ao “enxurro”, da idealização espiritual à “mixórdia” material.(PEREIRA, 1995, p. 278). Nessa afirmação, uma palavra apresenta-se como fundamental ao se tratar das obras brandonianas, a palavra “ambivalente / ambivalência”, já que as principais obras do autor em análise são ambivalentes ou apresentam elementos simbólicos dessa natureza. Citando as obras comentadas aqui, há as marcas da ambivalência em Teatro na apresentação das peças em que se mostra a “incomunicabilidade das relações humanas” (CURY, 1978, p. 147), por exemplo. Em Húmus a terra é apresentada como elemento simbólico e a constante oscilação entre terra/ húmus/ fonte de vida em oposição a terra / repouso dos mortos e dos mortos vivos, sendo assim, uma das ambivalências salientadas. Já em Os Pescadores, toda a construção espacial e temporal da obra mostra-se como ambivalente, principalmente a figura do mar como fonte de sobrevivência e espaço do mistério: “Todos eles vivem no mar e morrem no mar” (BRANDÃO, 1985, p. 25). 41 Assim, trazendo a ambivalência para dentro de suas obras, como pode-se observar, Raul Brandão discute a todo momento o caráter simultaneamente uno e duplo do ser humano que passa pela dor, pelo sofrimento, pela angústia pela reflexão existencial, ou seja, discute a mesma temática em todas as obras. Porém, em algumas são enfatizados certos questionamentos que em outras aparecem sutilmente. Também são utilizados recursos diferenciados de uma obra para outra, recursos que variam de gênero para gênero e de escolhas pessoais feitas pelo autor, ou seja, “o que” se transmite, os temas, no fundo não muda, o que muda é a maneira de se transmitir, o “como” se transmite. Assim, “A paisagem brandoniana, em suma, é sempre humana” (LOPES, 1987, p. 359). Dessa forma, as descrições das impressões, em Os Pescadores, diante das paisagens portuguesas nos espaços da terra e do mar, juntamente com os grupos sociais ali encontrados, não são apenas “descrições”, mas, revelações de estados de alma e questionamentos realizados pelo narrador em torno do sentido da vida e da morte e em torno da temática da existência humana. Os pescadores, os lugares e paisagens observados pelo narrador são figuras utilizadas pelo autor numa reflexão que envolve tanto o homem português como o homem universal. 42 2. A PROBLEMÁTICA DO GÊNERO LITERÁRIO EM OS PESCADORES Quando regresso do mar, venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa. Tomo então apontamentos rápidos – seis linhas – um tipo – uma paisagem. Foi assim que coligi este livro, juntando-lhe algumas páginas de memórias. Meia dúzia de esboços afinal, que, como certos quadrinhos do ar livre, são melhores quando ficam por acabar. Estas linhas de saudade aquecem-me e reanimam-me nos dias de Inverno friorento. Torno a ver o céu azul, e chega mais alto até mim o imenso eco prolongado... Basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar, Criou- se com ele e guardou-a para sempre. – Eu também nunca mais a esqueci...(BRANDÃO, 1985, p. 7, epígrafe) A classificação dos gêneros literários em lírico, épico e dramático é de origem grega e se estendeu por todos os tempos como forma de representação das diversas formas de manifestações da linguagem. Essa separação dos gêneros de maneira rígida foi feita pelas teorias clássicas que defendiam a idéia de que essas três categorias eram distintas entre si, possuindo cada um suas próprias e únicas características. Mas ao longo da história o conceito de gênero literário passou por várias transformações cujo ápice aconteceu no período do Pré-romantismo e Romantismo. Nessa época houve a defesa do hibridismo dos gêneros apoiado pelo Prefácio do Cromwell (1827) de Victor Hugo, entre outros textos que difundiam a arte como expressão das diversas facetas humanas, numa síntese entre os opostos que compõem o ser humano como o sublime e o grotesco, por exemplo. Portanto, é a partir do Pré-romantismo que a mistura dos gêneros acentuou-se de maneira sistematizada rompendo de vez com as fronteiras impostas pelas teorias clássicas. Porém, com o hibridismo literário não houve a negação das peculiaridades do lírico, épico e dramático instaurados desde a antiguidade, apenas valorizou-se a idéia de que vários gêneros podem compor a mesma obra havendo a predominância de um deles, conforme afirma Emil Staiger, importante crítico literário contemporâneo que, juntamente com Lukács, entre outros, refletiu sobre a conceituação de gênero literário Pós- Romantismo. Segundo Emil Staiger (1997), é importante a poética apoiar-se nos fundamentos da tradição histórica e literária da Humanidade na condução de reflexões contemporâneas sobre gêneros literários. Dessa forma, esse crítico caracteriza o lírico, o épico e o dramático como “estilos”, a fim de evitar a separação estanque entre eles apresentando-os de acordo com suas particularidades. Por exemplo, o lírico constitui-se basicamente do ponto de vista do sujeito, do homem e da realidade interior, havendo a preocupação na disposição dos elementos na composição da forma lírica e o trabalho com as possibilidades virtuais que a língua oferece com base na disposição desses 43 elementos no poema, a fim de suscitar significados apoiando-se na recordação do passado. No estilo épico ou narrativo, prioriza-se o homem e a sociedade que o rodeia, com base num ponto de vista objetivo, na observação e tudo gira em torno de sua caracterização e conceituação por meio de descrições ou narrações. Já o estilo dramático representa a vida por meio da densidade, concentração e observação de situações vivenciadas no cotidiano ou situações idealizadas destacando o homem como ser atuante no espetáculo, ou como espectador, valorizando a sensação da expectativa. Mas, apesar de apresentar as peculiaridades de cada gênero, Staiger ressalta: “não existe uma obra puramente lírica, épica ou dramática” (1997, p. 160, 161). A obra Os Pescadores foi publicada em 1923, no início do século XX, ou seja, num período em que grandes transformações sociais, científicas, tecnológicas e culturais aconteceram simultaneamente, resultando num novo modo de vida que caracterizou o mundo moderno, marcado pela busca incessante do lucro e pela aceleração do tempo. Raul Brandão vivenciou todo esse período de transição e compôs obras em gêneros variados, ressaltando principalmente os ideais e características da estética simbolista e impressionista nessa obra citada. A epígrafe escrita pelo autor a respeito da composição de Os Pescadores (1923) aponta indícios da problemática em torno do gênero literário ao qual pertence a obra, pois a mesma remete à autobiografia, à poesia e ao impressionismo, como poderá se observar na análise dos trechos da epígrafe citada. A primeira frase “Quando regresso do mar, volto sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa.”, observada num sentido geral ressalta uma tradição literária da cultura portuguesa: a de considerar a figura do mar como figura mítica e fonte central de inspiração poética com base histórica e também faz referência ao autor que passou a infância e adolescência à beira-mar, ficando sempre atento a todos os aspectos que envolviam a costa portuguesa como o mar, a condição dos pescadores, as cores e a luz. Porém, o início da epígrafe: “Quando regresso do mar” sugere circunstâncias diversificadas desse regresso do mar. Por exemplo, quando o autor “regressa” de uma viagem feita à beira-mar ou no mar e voltando cheio de inspiração. Pode remeter a uma característica biográfica do escritor, ao fato de ele também ter sido repórter de jornal e ter utilizado de alguma forma a ótica observadora dessa profissão em suas descrições no decorrer da obra. Também pode fazer referência a um passeio comum, a um “regresso do mar” como outro qualquer como tantas vezes em que voltou para a casa sentindo-se inspirado por essa figura mítica. 44 Em seguida, Raul Brandão apresenta, de modo geral, a maneira como compôs a obra: “Tomo então apontamentos rápidos – seis linhas – um tipo – uma paisagem. Foi assim que coligi este livro, juntando-lhe algumas páginas de memórias”. Nesse trecho evidencia-se a instauração da problemática do gênero, pois o autor afirma escolher cenas, como se estivesse com uma câmera, e as retrata sinteticamente, como ocorre na poesia. Ele escolhe dois grupos de “tipos” diferenciados que se integram constantemente, o grupo da natureza/tipo e o grupo dos personagens/tipo. No primeiro, são descritas as paisagens, o mar e os espetáculos naturais peculiares quando vistos da costa portuguesa, enquanto na apresentação dos personagens/tipo há a caracterização da figura mítica dos pescadores, de suas famílias, da ambientação em que vivem, dos hábitos e costumes a fim de construir o itinerário mítico que liga a obra, por meio da linguagem poética. Mas, junta-lhe “algumas páginas de memórias”, já que passou a infância e adolescência naquelas regiões, convivendo com os espetáculos naturais do mar diariamente e observando a situação de vida da população costeira, sendo na maioria deles, pescadores. Mistura essas lembranças com “apontamentos rápidos” do momento atual em que se situa, fazendo referência principalmente à autobiografia e à poesia. Assim, confirma-se essa escrita memorialística e simbólica reforçada neste trecho da epígrafe já mencionada: Estas linhas de saudade aquecem-me e reanimam-me nos dias de Inverno friorento. Torno a ver o céu azul, e chega mais alto até mim o imenso eco prolongado... Basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar, Cr