BIBLIOTECA DIGITAL DE TESES E DISSERTAÇÕES UNESP RESSALVA Alertamos para ausência de Figuras 11, 12, 19, 20 e 29 não incluídas pelo autor no arquivo original. UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro Kátia Cristina Ribeiro Costa O CENTRO DE RECIFE E SUAS FORMAS COMERCIAIS: transformações e persistências Orientadora: Profª. Dr.ª Silvana Maria Pintaudi Tese elaborada junto ao Curso de Pós-Graduação em Geografia - Área de Concentração em Organização do Espaço, para obtenção do Título de Doutor em Geografia. Rio Claro (SP) - 2003 910h.381 Costa, Kátia Cristina Ribeiro C837c O centro de Recife e suas formas comerciais : transformações e persistências / Kátia Cristina Ribeiro Costa. – Rio Claro : [210], 2003 210 f. : il., figs., tabs., fots., mapas Tese (Doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Silvana Maria Pintaudi 1. Geografia urbana - Brasil. 2. Geografia econômica. 3. Comércio. 4. Consumo. 5. Centro urbano. 6. Espaço urbano. I. Título. Ficha catalográfica elaborada pela STATI – Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP BANCA EXAMINADORA _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ - aluno(a) Rio Claro, ______de_______________ de 2003. Resultado:_______________________________________________ Dedico com amor: Ao meu companheiro Francisco Hernandez, E com muita gratidão, aos de sempre, À minha mãe e ao meu pai, Aos meus irmãos e sobrinhos. À minha tia Mêves, in memorian. À minha Recife. AGRADECIMENTOS: Agradeço a meu companheiro Francisco Hernandez, com quem dividi os prazeres e as angústias de um doutoramento. Sem dúvida, sem seu estímulo, amor e amizade, essa etapa chegaria ao final com um doçura a menos. Obrigada, por você existir. Logo que conheci minha orientadora, senti uma imensa paixão por tudo que ela faz, com sua força, preparação e maturidade. Foi tentando seguir suas orientações que conheci um mundo acadêmico muito mais rico do que conhecia até então. O conhecimento que obtive, foi conquistado a duras penas. Estou certa que ele ficará por muito tempo. Obrigada, Professora Dr.a. Silvana Maria Pintaudi. Ao longo de meu Mestrado o Professor Jan Bitoun me fez acreditar em possibilidades de investigação até então não vistas. No Doutorado, tornou-se meu eterno conselheiro, a quem eu recorri para leituras de rascunhos, idéias afloradas em reflexões iniciais. A tudo isso, sempre esteve pronto a atender. Meu respeito e estima em forma de agradecimento a você, Jan, como carinhosamente seus ex- eternos orientandos lhe chamam. Amigos são cada vez mais raros. Mas em Recife, tenho a felicidade de contar com uma amizade que vem desde a graduação: meu amigo, Genovan. Dedicou-se a ler com atenção meus escritos iniciais, trazendo o rigor e as reflexões das mais profundas. Fomos juntos ao centro da cidade, com máquina fotográfica em mãos, sob chuva e sol, para refletir sobre a delimitação do centro tradicional de comércio . Obrigada, amigo, por tudo. Ao longo do Doutorado, os alunos envolvem-se nos núcleos. O Núcleo de Comércio e Consumo possibilitou minha aproximação com duas pessoas maravilhosas. Aos meus amigos distantes: a Professora Silvia Ortigoza, (Departamento de Geografia da UNESP/Rio Claro) e o Professor Sidney Gonçalves Vieira (UFRS- Pelotas), meus agradecimentos pelos conselhos e apoios, de toda ordem. Ainda no NECC, sinceros agradecimentos ao Henrique, a Fabiane e a Susi. Aos amigos da graduação e de sempre, ainda que distantes, geógrafos, estimuladores de minha carreira profissional: Ana Maria, Alzenir, Iraquitan, Cristina e Domingos. Agradeço a Cida, amiga com quem dividi as angústias do processo de seleção do doutorado, como os primeiros meses de curso em Rio Claro. Aos Professores do Departamento de Geografia da UFPB- JoãoPessoa, especialmente a Sinval Almeida Passos e Fátima Rodrigues, pelo apoio sempre. Ao Sr. Petrônio, Diretor da CESURB, meu sincero agradecimento pelos depoimentos de uma História de vida do Plano de Revalorização do Centro de Recife, sem a qual seria impossível entender tal problemática. Aos funcionários da FIDEM, especialmente a Manoel Feliciano, aos da URB e da Secretaria de Planejamento da Prefeitura de Recife, que disponibilizaram mapas, plantas e projetos, além de fornecer dados e informações em suas entrevistas, sem as quais não seria possível a realização dessa pesquisa. A todos aqueles que se prestaram às entrevistas, como aos Presidentes da ACRIA, Sr. Marcos Galo, e do CDL, meu muito obrigada. Às bibliotecárias da UNESP- Rio Claro, que carinhosamente se dedicavam a nos ajudar, mesmo a 3.000 Km de distância. Aos bibliotecários do Arquivo Público Estadual, da Biblioteca Estadual de Pernambuco e da Biblioteca da URB e da Prefeitura da Cidade de Recife. Ao desenhista Cláudio Martins, pela dedicação aos desenhos dos mapas, bem como a todo pessoal do Observatório de Políticas Públicas da UFPE/ FASE em Recife, por terem disponibilizado o acervo do banco de dados. Ao programador visual, Agnaldo Cardoso, por sua dedicação na formatação das fotos e, ao desenhista Gilvan da Silva, pelas ilustrações das capas introdutórias dos capítulos e pelo desenho do mapa 06. À Professora Josefa Elionita de Almeida Sá, pela atenção na leitura e crítica da redação deste documento. E ao Professor Francisco Sousa Alves, pela contribuição na revisão do Abstract. Aos professores do Departamento de Geografia da UFPE, em especial ao Professor Dr. Nilson Crócia pelas orientações e ensinamentos ao longo de meus trabalhos em Recife, bem como na viabilização do trabalho de campo, conjuntamente com a Professora-orientadora, realizado nessa cidade. Ao Professor Dr. Cláudio de Moura Castilho, pois sua contribuição intelectual, presente na leituras preliminares da tese, muito nos honra e nos estimula a compartilharmos futuros projetos. Aos Professores do Departamento de Ciências Sociais de Cajazeiras, pela liberação de meu afastamento para qualificação. Em especial, ao Diretor do Centro de Formação de Professores da UFCG/ Cajazeiras, Prof. José Maria Gurgel, pelo apoio irrestrito à conclusão do meu Doutorado. Ao Programa de Capacitação Docente, PICDT/UFPB -CAPES, pelo apoio financeiro, sem os quais essa pesquisa se tornaria inviável. Agradeço ainda à minha mãe, meu pai, irmãos e sobrinhos, pelo eterno apoio e compreensão. Agradeço ainda, às minhas doces cachorra-filhas, pelo apoio em forma de carinho e afeto: Chiquinha Gonzaga (in memorian), Tieta e Karol. Enfim, a todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho, o meu muito obrigado. Esse lugar é uma maravilha. Mas como é que faz pra sair da ilha? Pela ponte, pela ponte. A ponte não é de concreto. Não é de ferro, não é de cimento. A ponte é até onde vai o meu pensamento. Lenine e Lula Queiroga SUMÁRIO Páginas ÍNDICE....................................................................................................................II ÍNDICE DE MAPAS................................................................................................III ÍNDICE DE FOTOS................................................................................................IV ÍNDICE DE TABELAS............................................................................................V ÍNDICE DE QUADROS..........................................................................................VI RESUMO...............................................................................................................VII ABSTRATC..........................................................................................................VIII INTRODUÇÃO........................................................................................................1 CAPÍTULO I: CENTRO TRADICIONAL DE COMÉRCIO: CONFLITOS E CONTRADIÇÕES...........................................................................10 CAPÍTULO II:A REPRODUÇÃO DAS FORMAS COMERCIAIS NO CENTRO DE RECIFE...........................................................................................77 CAPÍTULO III: A GENERALIZAÇÃO DA MERCADORIA: ARTICULAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO ESPACIAL..................................................133 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................174 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................182 II ÍNDICE Páginas INTRODUÇÃO..........................................................................................................1 CAPÍTULO I: O CENTRO TRADICIONAL DE COMÉRCIO: Conflitos e Contradições................................................................................10 1.1 A paisagem do centro através de suas ruas...........................................16 1.2 O contexto histórico do comércio.............................................................36 1.3 O centro e suas intervenções...................................................................62 1.3.1 Histórico das intervenções e o Plano de 1992....................................62 CAPÍTULO II: A REPRODUÇÃO DAS FORMAS COMERCIAIS NO CENTRO DE RECIFE.......................................................................................77 2.1 As ruas-shopping: transformações e persistências..................................84 2.1.1 A rua versas a rua-shopping ............................................................88 2.2 As mercadorias do centro da metrópole.................................................102 2.3 O vestuário do centro.............................................................................108 2.3.1 O consumidor e seu depoimento....................................................125 CAPÍTULO III: A GENERALIZAÇÃO DA MERCADORIA: Articulação e Fragmentação Espacial....................................................133 3.1 Os Camelódromos: contradições e possibilidades...................................134 3.2 Em busca da padronização do comércio informal - os quiosques de Camelôs...................................................................................................154 3.2.1 Novas formas do comércio de rua: o camelô faz a novidade.............160 3.3 A Fragmentação sócio - espacial: A pulverização de centros no Centro..............................................................................................................162 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................174 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................182 III ÍNDICE DE MAPAS Páginas MAPA 1: Centro Tradicional de Comércio de Recife - delimitação.....................15 MAPA 2: Percorrendo as ruas do centro de Recife............................................20 MAPA 3: As ruas-shopping e os Camelódromos................................................35 MAPA 4: O Centro Tradicional de Comércio e os subcentros de Recife............40 MAPA 5: Os shopping centers e supermercados de Recife................................50 MAPA 6: Cidade de Recife: localização de centros de comércio e respectivo rendimento médio nominal das pessoas responsáveis.........................53 MAPA 7: O Camelódromo da Avenida Dantas Barreto e o sistema viário.......142 IV ÍNDICE DE FIGURAS Páginas FIGURA 1: Quiosques fechados no Camelódromo do Cais de Santa Rita...........22 FIGURA 2: Os becos e os camelôs.......................................................................24 FIGURA 3: O Mercado de São José.....................................................................26 FIGURA 4: Rua da Praia.......................................................................................27 FIGURA 5: Pátio do Livramento............................................................................28 FIGURA 6: Rua D. Henrique.................................................................................29 FIGURA 7: Praça da Independência.....................................................................30 FIGURA 8: Lojas Brasileiras..................................................................................31 FIGURA 9: Ponto de encontro em frente ao Teatro do Parque.............................32 FIGURA 10: Shopping Boa Vista e Loja Mesbla....................................................33 FIGURA 11: Camelôs saem amanhã. É ver para crer - matéria jornalística..........69 FIGURA 12: "Ruas fechadas: é a batalha contra sujeira e camelô" - matéria jornalística...............................................................................................................71 FIGURA 13: Policiais e fiscais do comércio do centro...........................................72 FIGURA 14: Camelôs da Av. Dantas Barreto, entrada da Rua-shopping Nova - Fotos A,B, C e D...............................................................................................73-74 FIGURA 15: A Rua-shopping Nova........................................................................80 FIGURA 16: A Rua-shopping Duque de Caxias.....................................................80 FIGURA 17: A Rua-shopping Imperatriz................................................................81 FIGURA 18: Pólo Imperatriz - painel......................................................................81 FIGURA 19: O Calçadão dos Pedestres- Rua da Imperatriz.................................95 FIGURA 20: O Calçadão dos Pedestres- Rua Nova.............................................96 FIGURA 21: Loja de vestuário da Rua-shopping Duque de Caxias.....................124 V FIGURA 22: Camelódromo de Santa Rita - Recife..............................................135 FIGURA 23: Quiosques abertos do Camelódromo do Cais de Santa Rita..........135 FIGURA 24: Camelódromo da Dantas Barreto - módulo 02................................136 FIGURA 25: O vazio do espaço interno do camelódromo...................................137 FIGURA 26: Praça da Alimentação - Camelódromo do Cais de Santa Rita........143 FIGURA 27: Jogos e conversas: os consumidores não aparecem .....................143 FIGURA 28: Vendedores do Camelódromo e suas mercadorias.........................144 FIGURA 29: O Calçadão dos Mascates...............................................................152 FIGURA 30: Os camelôs na Rua Tobias Barreto - Recife...................................154 FIGURA 31: Quiosques padronizados para os camelôs......................................155 FIGURA 32: Os camelôs voltam às ruas .............................................................155 FIGURA 33: Quiosques de flores da Rua das Flores...........................................156 FIGURA 34: Grades da Praça da Independência................................................160 FIGURA 35: Guardas de Apoio Lojista a rua sob vigília......................................161 FIGURA 36: Portões de entrada e saída das ruas-shopping - foto A e B............165 FIGURA 37: Loja de vestuário da rua-shopping Nova.........................................170 VI ÍNDICE DE TABELAS Páginas TABELA 1: Região Metropolitana de Recife - População 1960-2000..................48 TABELA 2: Cidade de Recife e subcentros comerciais - população e rendimentos.......................................................................................51 TABELA 3: Lojas da Rua-shopping Duque de Caxias........................................104 TABELA 4: Lojas da Rua-shopping Imperatriz...................................................105 TABELA 5: Lojas da Rua-shopping Nova...........................................................107 TABELA 6: Ruas-shopping Duque de Caxias, Imperatriz e Nova - lojas de vestuário e sub-ramos comerciais, segundo participação absoluta e relativa..........................................................................................109-111 TABELA 7: Rua-shopping Nova - elementos atrativos .......................................128 TABELA 8: Rua-shopping Imperatriz - elementos atrativos................................130 TABELA 9: Rua-shopping Duque de Caxias - elementos atrativos.....................132 VII ÍNDICE DE QUADROS Páginas QUADRO 1:Lojas de tecidos no centro de Recife em 1977...................................64 QUADRO 2:Associações de Ruas do CTR- setembro/1999..................................85 QUADRO 3:Mercadorias comercializadas segundo comerciantes da Rua-shopping Imperatriz...........................................................................................112 QUADRO 4: Mercadorias comercializadas segundo comerciantes da Rua- shopping Nova...................................................................................113 QUADRO 5: Mercadorias comercializadas segundo comerciantes da Rua- shopping Duque de Caxias................................................................115 QUADRO 6: Mercadorias comercializadas segundo comerciantes do Camelódromo da Dantas Barreto, setembro/2001............................123 QUADRO 7: Rua-shopping Imperatriz - mercadorias comercializadas segundo consumidores....................................................................................126 QUADRO 8: Mercadorias comercializadas, segundo comerciantes do Camelódromo da Dantas Barreto, setembro/2001............................145 QUADRO 9: Camelódromo da Dantas Barreto: depoimento dos comerciantes, setembro/2001...................................................................................147 QUADRO 10: O Pólo Imperatriz e o comércio informal no centro - suas ruas e estabelecimentos - Recife, abril de 2000.........................................159 VIII RESUMO Este trabalho objetiva analisar o processo de produção e reprodução de um centro tradicional de comércio em Recife. Parte-se de um estudo de caso, para atingir a elaboração de um arcabouço teórico-metodológico que possa contribuir para o entendimento de outras localidades. Associando-se, assim, aos estudos de produção e reprodução dos espaços internos das cidades, a partir das intervenções de um Plano de Gestão, procura-se identificar como, através e a partir dele, pode ser percebido o processo de (re) produção espacial. O Plano de Intervenção será analisado através do nível de transformação e de persistência de novas e velhas formas comerciais. O procedimento de nossa análise será a decomposição da paisagem geográfica, tendo sido eleitas as ruas Nova, Imperatriz e Duque de Caxias como nosso lugar de análise, onde seus elementos serão articulados ao processo de reprodução do espaço metropolitano. A análise, desenvolvida a partir de levantamento bibliográfico, pesquisa de campo e trabalho de laboratório, envolve aspectos de ordem: a) conceitual: entendimento das características do Centro Tradicional de Comércio, espaço que de longa data abriga casas comerciais tradicionais e, no passado, era o principal espaço de compras e lazer da cidade; b) descritiva: apresentação dos Planos de Intervenção que buscavam uma programação para o uso daquele espaço; c) avaliativa: identificação do grau de atuação do Plano de Intervenção no processo de reprodução espacial do Centro, a partir da análise das estratégias de sobrevivência do comércio formal e informal frente a generalização da mercadoria. IX ABSTRACT The purpose of this paper is to analyze the process of production and reproduction of a traditional tradecenter. From the city of Recife a specific case has been studied in order to reach the making of a theoretical-methodological framework that may contribute in the understanding of other places. Associating then with the studies of production and reproduction of inner spaces in the cities from the interventions of a Management Plan, we have tried to identify how, through and from it the process of spatial (re)production can be seen. The Intervening Plan will be analyzed through the level of change and persistence of new and old trading ways. The proceedings of our analysis will be the decomposition of the geographical landscape; so we have chosen the Nova, Imperatriz and Duque de Caxias, streets as our places of analysis, and where their elements will be joined to the metropolitan reproduction process. The analysis, which has been developed from bibliographical data, and field and laboratory research, involves the following aspects: a) conceptual: to understand the characteristics of the Traditional Tradecenter, which has held traditional shops for a long time, and where it had formerly been an attractive area of shopping and leisure; b) descriptive: to present the Intervening Plans, which searched for programs for using that place; c) evaluative: to identify the acting level of the Intervening Plan in the process of the Center’s spatial reproduction from the analysis of survival strategies of formal and informal trade before the generalization of the goods. Key-Words: trade, consumption, routine, space, traditional center of the city. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistências Introdução 1 INTRODUÇÃO Neste trabalho enfocaremos o espaço urbano como lugar da produção e reprodução das relações sociais que geram novos conflitos e novas contradições, tendo como categoria de análise o consumo do e no espaço, que se renova e apresenta novas formas de comércio e de sociabilidades. O processo de produção e reprodução espacial será analisado no Centro de Recife, lugar tradicional do comércio varejista, exemplo da reprodução de um espaço à semelhança dos shopping centers: ruas com nome de shopping center, abrigando “praças de alimentação”, com gerenciamento a cargo do Poder Público e privado, que vão compondo uma paisagem diferente das áreas não contempladas pelo Plano de Revalorização1; galerias e promoters shopping, que surgem ao longo das ruas comerciais, abrigando-se em lugares de antigas lojas e magazines; e “camelódromos”, os shoppings de camelôs, espaços destinados aos vendedores ambulantes, com quiosques padronizados, criados e afixados em locais previamente estudados; enfim, formas espaciais e comerciais, para as quais as pessoas se dirigem e onde passam a acreditar que estão protegidas da violência, em local asséptico, belo e confortável, o lugar do espetáculo, como analisa Debord 2: "O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade e como instrumento de unificação (...). O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens". Nesse sentido, a especificidade dessa pesquisa está em analisar em que medida a imagem de shopping centers e a programação do lugar de consumo do centro recifense, e em particular das ruas-shopping atrai antigos consumidores para suas ruas. As estratégias criadas para sua produção, os escapes e resíduos do cotidiano das pessoas que usam esse espaço serão sistematicamente analisados. 1 O Plano de Revalorização do Centro de Recife foi criado em 1992, pela Prefeitura de Recife em parceria com o Clube de Diretores Lojistas. 2 DEBORD, Guy. A sociedade do Espetáculo. p.14. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistências Introdução 2 Neste trabalho, utilizaremos a análise regressiva-progressiva que caracteriza o método de abordagem da transduction de LEFÈBVRE3 segundo o qual se deve partir de um grau de verdade histórica, para o nível do subjetivo, individual, desenvolvendo uma análise crítica da sociedade, através de suas representações ideológicas e dos conceitos cotidianos. A transduction constrói um objeto virtual a partir de informações, atingindo as soluções com base em seus fundamentos, ou seja, vai do real para o possível. Surgem os tranducteurs sociologiques (teóricos) para designar a operação acoplada aos grupos sociais e aos indivíduos (tranducteurs effectifs) desses grupos. A análise dos sociólogos parte do presente ao virtual e do real ao possível, numa incessante prospecção, que não se esgota no ritmo das noções psicológicas habituais, fora de alcances e previsões. A vida cotidiana é designada por Lefèbvre como o nível da práxis e da sociedade global. Esse nível é designado por um aspecto da realidade, mas não se reduz a uma tomada de vida dessa realidade e não se dissocia de outros conceitos (palavras, degraus e planos, suas conjunturas e quadros de referências, suas perspectivas e aspectos). Os níveis não coincidem entre si, mas contribuem para exprimir uma complexidade diferencial e estrutural de um todo, de uma "totalidade". A noção de nível envolve a noção de desnivelação, quando se procede à crítica das determinações dos diferentes níveis da vida cotidiana. A análise da sociedade, através do nível de sua vida cotidiana, permite uma perspectiva, assegura um conteúdo objetivo. Em uma realidade onde se discernem suas implicações sucessivas, o nível da vida cotidiana representa um degrau ou uma palavra, mas com mais consistência da "realidade" que, por exemplo, os símbolos, os modelos. Entretanto, mesmo que as realidades afloradas e emergentes se 3 LEFÈBVRE, Henri. Le Instruments Formels - Transduction et tranducteurs In: Critique de La Vie Quotidienné II. Fondements d'une sociologie de la quotidienneté. p. 121. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistências Introdução 3 consolidem momentaneamente em um certo nível, o conceito de vida cotidiana implica uma situação relativamente estável. Assim, o nível do cotidiano e o nível da história possuem interferências. Os lugares considerados neste trabalho (as ruas-shopping, os camelódromos e os quiosques de camelôs) serão analisados como níveis de análise "encaixados", o que para Lefèbvre4 refere-se às escalas espaciais que interferem, ora percebidas isoladas, ora "encaixadas", com seus efeitos de reencontros e conjunturas. Assim, "Qualquer nível resulta de uma análise que resgata e que explicita o conteúdo dos outros níveis. Cada um deles, segundo uma fórmula desde já empregada, é pois à sua vez, resíduo e produto". Portanto, para analisar o Centro de Recife, que se reproduz de forma fragmentária e complexa, e as ruas-shopping especificamente, é importante levar em consideração os vários níveis espaciais de análise, visto que eles interagem entre si, resultante de um processo de intervenções isoladas, em áreas específicas do comércio, criando novas formas comerciais que invadem as ruas, substituindo lugares públicos por privados, e estabelecendo novos hábitos de consumo do lugar e no lugar. Este trabalho procurará ainda discutir as transformações e as persistências das formas comerciais do Centro Tradicional de Recife (CTR) decorrentes das intervenções urbanísticas desse espaço. O desencadeamento das intervenções urbanas, resultante do Plano de Revalorização gerou conflitos e contradições cujos efeitos são identificados no cotidiano do lugar, através da análise das estratégias de apropriação do espaço. Assim, seu entendimento deve se situar entre a descrição e a imaginação, entre a compreensão e a análise. Deve-se desenvolver um estudo analítico e crítico da vida cotidiana, onde se juntem os fatos aos conceitos5. 4 LEFÈBVRE, Henri. Critique de La Vie Quotidienné II: fondements d'une sociologie de la quotidienneté. op. cit.. p.124. 5 Idem. p. 11. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistências Introdução 4 Entre as hipóteses que nortearam o trabalho, uma delas relaciona-se ao fato de a programação do espaço de consumo não atingir o objetivo de seus planejadores, não atraindo os consumidores dos centros comerciais planejados, os shopping centers, para suas ruas. Essa hipótese revela que "A estratégia que visa à programação do cotidiano é global; é uma estratégia de classe. Desse plano, da sua realização, alguns se beneficiam; os outros, a maioria, o suportam mais ou menos"6. Ao contrário disso, há o fortalecimento de um comércio popular e diversificado, principalmente no ramo de vestuário, que compete com outras formas comerciais especializadas nesse tipo de mercadoria, a saber: os camelódromos e o comércio de rua. Sem dúvida, essa transformação foi desencadeada pelo Plano de Revalorização do Centro, criado pela Prefeitura da Cidade em 1992, na medida em que fez convergir para o Centro de Recife e, em particular, para as ruas-shopping, as principais ações para elas solicitadas. No que se refere às ruas-shopping, destaca-se a intenção do Clube de Diretores Lojistas (CDL) de torná-las semelhantes aos SC, para isso, adotou a rua- shopping Imperatriz para iniciar o processo. Além disso, há cada vez maior número de ruas cujos comerciantes se agrupam em Associações de Ruas, passando a programar o uso desses espaços, tomando como principal medida para o resgate de antigos consumidores, a proibição do comércio de rua, dos camelôs e ambulantes. É importante, portanto, identificar os níveis de coesão de cada uma das ruas- shopping analisadas, a saber: as ruas-shopping Nova, Imperatriz e Duque de Caxias e a partir de então, distinguir as necessidades dos comerciantes de cada rua, bem como, dos consumidores. Para tanto, deve-se identificar as necessidades dos homens que vivem nesse cotidiano procurando distinguir o desejo social do individual, tal qual se manifesta na vida cotidiana. 6 LEFFBVRE, Henri. A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. p.203. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistências Introdução 5 De fato, a administração das ruas-shopping procura otimizar sua função, viabilizando as lojas comerciais dessas ruas. Tem-se como efeito o aumento do ramo de vestuário, com mercadorias populares que se assemelham àquelas comercializadas nos camelódromos, impedindo que os camelôs permaneçam nesses estabelecimentos, restando-lhes a alternativa de voltar às ruas, à exemplo do que ocorre com a Avenida Dantas Barreto, na Bairro de Santo Antônio e as ruas Sete de Setembro e do Hospício, no bairro da Boa Vista. Percebe-se, portanto, que as transformações das formas comerciais não estão ocorrendo como o planejado, ou seja, os consumidores que se dirigem para os SC não retornaram para o Centro. Como alternativa aos comerciantes das ruas do Centro restou a possibilidade de comercializar produtos populares. Acredita-se que o ramo de vestuário foi adotado pelos lojistas das ruas-shopping pelas particularidades de mercado regional, representado pelas cidades de Santa Cruz do Capibaribe, Caruauru e Toritama, e do mercado global, pelos países dos tigres asiáticos. Nesse sentido, os conflitos decorrentes da retirada dos camelôs das principais ruas da cidade, destinando-os aos camelódromos, persistem com o retorno do comércio de rua, uma vez que nas ruas-shopping se comercializa a mesma mercadoria dos camelódromos. Essa contradição resulta em um centro fragmentado e conflituoso. A fragmentação do espaço é, ao mesmo tempo prática, pois o espaço torna-se mercadoria e por isso a disputa pelo lugar se acentua no jogo de compra e venda do solo, e teórica, pois os estudiosos recortam o espaço para analisá-lo. O conflito entre os espaços mais ou menos centrais reside na relação entre a fragmentação do espaço e a gerência científica, ou seja, a capacidade que as empresas possuem em produzir espaços7. Em nosso espaço de análise, o Centro Tradicional da cidade de Recife - CTR, por um lado, os lugares programados são orientados pela não permanência do comércio de rua. Os Planos Urbanísticos criam espaços à imagem de shopping 7 LEFÈBVRE, Henri. A Re - Produção das Relações de Produção. p19. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistências Introdução 6 center - SC, tentando, assim, capturar a espontaneidade do ato de comprar e vender sem, contudo, oferecer os atrativos dos SC, cada vez mais procurados por pessoas interessadas em lazer, conforto, encontros e compras. De outro lado, camelódromos ficam abarrotados de mercadorias que os ambulantes tentam vender, criando modalidades e resgatando outras formas antigas de comércio de rua. Assim, é questionável a preocupação apresentada por programas eleitorais de Prefeituras em adotar o camelódromo como solução para o comércio de rua, a exemplo de João Pessoa e Campina Grande, na Paraíba, onde os camelôs deixam os boxs dos camelódromos por não conseguirem continuar pagando as parcelas do financiamento do imóvel. Enfim, a fragmentação do Centro de Recife é hoje bastante expressiva e sua (re)produção espacial cria formas comerciais que se transformam e convivem junto a outras que persistem, no constante conflito da disputa pelo lugar. Por tratar-se de um tema novo na Geografia e face ao crescente dinamismo do espaço de análise, procurou-se obter um quadro conceitual para a construção de uma abordagem sob a ótica do espaço urbano, entendido como expressão da contradição entre usos de diversos grupos sociais. Como adiantamos atrás, procura-se desenvolver essa pesquisa a partir do método da transducção, conforme Henri Lefèbvre8, segundo o qual deve-se partir de um grau de verdade histórica, para o nível subjetivo, individual, desenvolvendo uma análise crítica da sociedade, através de suas representações ideológicas e dos conceitos cotidianos. Como método de investigação utilizamos a) Documentação indireta: etapa que compreendeu levantamento bibliográfico, teórico e relativo ao tema. Para tanto, a descrição contribuiu na delimitação dos níveis de análise, ou seja, das escalas espaciais que interferem, ora percebidas isoladas, ora “encaixadas”, com seus efeitos de reencontros e conjunturas. Assim, nesse primeiro momento de análise, O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistências Introdução 7 veremos no nível da história, como as realidades afloradas, emergentes, consolidam- se em um certo nível espacial; b) Documentação direta: consistiu em observações, coletas de dados e informações empíricas, através de entrevistas com os produtores do espaço. Nessa etapa pretendeu-se captar uma parte do vivido “um aspecto do drama escondido, a situação dessa cotidianidade 9”. A técnica da entrevista será aqui utilizada procurando uma relação do entrevistador e do entrevistado, onde possam aflorar os fatos mais simples da cotidianidade. A produção e reprodução do espaço resulta em formas espaciais. Essas formas, por sua vez, criam e recriam necessidades de consumo do e no espaço, renovando- as com novas imagens. Os Centros Tradicionais de Comércio das cidades se reproduzem a partir de uma nova imagem, criada pelas novas formas de comércio para sociedade urbana atual. Nesse sentido, a análise do cotidiano dos indivíduos envolvidos na teia de relações sociais dessas novas formas de comércio, investigados através da categoria de análise mercadoria, possibilitou compreender que novas formas do comércio surgiram em solicitação a essas necessidades de consumo do e no espaço, no atual contexto histórico-espacial. Procuramos, portanto, analisar as novas formas de comércio e de consumo do espaço surgidas do confronto das ações do Projeto de Revalorização do Centro Tradicional de Comércio com as realizações do cotidiano, do concebido com o vivido. A cidade real e virtual é o espaço delimitado. As ruas-shopping: Nova, Imperatriz e Duque de Caxias, passam a ser um lugar da cidade “transfuncional, durável, obra conseguida e não conseguida, mas obra de um grupo social e de uma sociedade global10. Procuramos ainda desenvolver o método das variações imaginárias, proposto por Henri Lefèbvre11 “Essas variantes podem ser mais ou menos audaciosas, seguindo a qualidade da imaginação que lhes constrói (...) Nós operamos sobre um objeto virtual, à realizar. Como o atingir sem usar as imagens?” 8 LEFÈBVRE, Henri. Critique de La Vie Quotidienné II: fondements d’une sociologie de la quotidienneté.p.105. 9 Ibidem, p.106. 10 Idem.Ibidem, p.208. 11 Idem, Ibidem,p.118. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistências Introdução 8 Essa pesquisa se apoiou também em instrumentos como a pesquisa bibliográfica, a coleta de dados estatísticos, entrevistas e cartográfica. Dessa forma, procuramos mostrar a fundamentação teórica, os conceitos que dão embasamento à análise e os métodos utilizados para o desenvolvimento da pesquisa. Inseridos na produção do pensamento geográfico, está colocado o momento de encontro da geografia brasileira com os conceitos de reprodução das relações sociais, onde as formas comerciais possibilitam o entendimento das transformações sociais no espaço urbano. Acompanhando a idéia de que o comércio traduz as estratégias de sobrevivência do capitalismo, apresentamos o método de orientação do trabalho, com as etapas de operacionalização da pesquisa e as variáveis a serem investigadas, dando suporte à análise dos fatos. No primeiro capítulo é apresentado o Centro Tradicional de Recife privilegiando a descrição, primeira etapa do método regressivo-progressivo, quando o pesquisador deve reconhecer a complexidade horizontal, ou seja, a diversidade das relações sociais através da reconstituição, identificando e descrevendo o que vê. Nesse momento, "o tempo de cada relação social ainda não está identificado".12 Há, nesse capítulo, a reconstituição dos momentos históricos que criaram as intervenções nas ruas comerciais do Centro de Recife. Busca-se nesse capítulo, entender a identidade do Centro Tradicional da cidade, criada pelo conjunto de intervenções urbanas e arquitetônicas, como também pelas relações sociais calcadas no lento tempo da metrópole. Há nesse capítulo, um quadro cronológico com as principais políticas públicas, organizadas pelos comerciantes e executadas pelas empresas públicas de urbanização municipal. O segundo capítulo contempla a etapa seguinte do método analítico - regressivo, quando nos aprofundamos na complexidade vertical, ou seja, quando nos aprofundamos na vida cotidiana das ruas-shopping, reconhecida como resultante de relações sociais desiguais. Nesse momento procuramos datar as relações sociais 12 MARTINS, José de Sousa. As Temporalidades da História na dialética de Lefèbvre In: Henri Lefèbvre e o retorno à dialética. p.21. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistências Introdução 9 para desvendar as aparentes contemporaneidades e simultaneidades, descobrindo as épocas específicas de cada relação social presente nessa ruas, produzidas com suas velhas formas comerciais e suas novas estratégias de sobrevivência do comércio. Elaborado a partir das entrevistas dos comerciantes e consumidores das ruas-shopping, os depoimentos possibilitaram averiguar as transformações e persistências do comércio do Centro, onde destacamos: a) a popularização do ramo de comércio de vestuário, em específico, e do comércio em geral; b) a reprodução ampliada da concentração do capital, como indicador de um amplo processo de revalorização espacial e c) a segregação social do Centro. Foram analisadas suas estratégias, instrumentos e repercussões à luz de documentos oficiais, técnicos e políticos que participaram de sua concretização. Procurou-se confrontar o discurso oficial com a prática. No terceiro e último capítulo, procura-se analisar as contradições não resolvidas e os conflitos latentes, ou seja, a terceira etapa do método histórico- genético, possibilita o reencontro do presente, porém se elucida o percebido pelo concebido teoricamente, definindo, assim, as condições e possibilidades do vivido. A generalização da mercadoria no Centro Tradicional de Comércio cria conflitos com o comércio de rua. A programação é destinada a todos os lugares, públicos e privados, criando uma centro fragmentado, onde afloram contradições. Analisaremos nesse capítulo, dois lugares que representam o desencontro de tempos e de possibilidades: o Camelódromo da Dantas Barreto e o Pólo Imperatriz, apontando as virtualidades e as possibilidades futuras de um e de outro. Descobre-se, através desse método regressivo-progressivo que na origem contraditória de relações e concepções, persistem contradições não resolvidas, alternativas não consumadas, necessidades insuficientemente atendidas, virtualidades não realizadas. Aponta-se, enfim, para um caminho de possibilidades criadas no seio dessa contradição. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 11 CAPÍTULO I: CENTRO TRADICIONAL DE COMÉRCIO: CONFLITOS E CONTRADIÇÕES Para muitos moradores da cidade do Recife e sua Região Metropolitana (RMR), a remoção dos camelôs do Centro representa uma melhoria do comércio do centro da cidade, traduz o retorno de ruas tradicionais de comércio aos consumidores que outrora se dirigiam para suas lojas e foram absorvidos por outro modo de consumo, aquele difundido pelas novas formas comerciais no interior da cidade. A implantação de hipermercados e shopping centers, mais que uma inovação da atividade comercial, marcou um novo conceito e uma nova modalidade no comércio recifense. Estes empreendimentos surgidos a partir da década de 80 nessa cidade, desencadeiam efeitos que, entre outros, produziram uma fase de mudanças na centralidade comercial da RMR, quando a proximidade do centro tradicional do Recife, o fluxo de consumidores em determinadas ruas e a oferta de produtos especializados nas galerias dos bairros de classe média têm parte de seu valor apreendido pelo novo centro de consumo. Essas mudanças de dinâmica espacial que ocorrem geralmente com o surgimento de shopping centers (SC) e hipermercados são decorrentes da formação estrutural desse tipo de empreendimento que abriga, além de um considerável número de lojistas tradicionalmente conhecidos no local, os lojistas de outros mercados regionais, que se concentram em um mesmo espaço e são regidos por uma mesma política administrativa. Frente a esses fatos, surgem várias indagações: em que contexto sócio-econômico local, se coloca a expansão dos SC e hipermercados no interior de uma metrópole? Quais as transformações e persistências podem ser detectadas em movimento no Centro Tradicional de Recife (CTR)? Para dar início à análise das estratégias e particularidades do CTR, reformado com o objetivo de resgatar antigos consumidores, apoiado em um dos planos de O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 12 intervenção que criaria as ruas-shopping, consistindo, entre outros pontos, na retirada dos camelôs das principais ruas de comércio do CTR, na tentativa de tornar o Centro da cidade semelhante ao que era no passado, desenvolveremos a primeira etapa do método de análise, onde se faz necessário descrever o visível para nele encontrar a aparente simultaneidade e contemporaneidade das relações sociais no presente. A primeira questão a ser realçada é o caráter fragmentado que os Planos tem em relação ao centro. Ou seja, o mesmo é pensado pelos planejadores aos pedaços e não por uma totalidade dentro da cidade. Isto nos coloca um problema metodológico: delimitar o que estamos chamando o CTR. Mesmo tomando como ponto de partida as delimitações oficiais, situamos nelas a localização das intervenções, das ruas-shopping propriamente ditas, dando luz às reais contradições não resolvidas. As ruas-shopping são ruas comerciais tradicionais cujas intervenções a elas se dirigiram a partir de 1992, seja em aspectos de infra-estrutura (restauração de seus calçamentos, fechamento de suas entradas e saídas com portões), seja nos aspectos da dinâmica do comércio (retirada dos camelôs, fiscalização e manutenção das ruas "livres" dos camelôs sob a responsabilidade de uma guarda municipal). O gerenciamento das ruas-shopping ficou a cargo de uma Associação de Rua, que através da formação de um sistema de condomínio, desenvolve campanhas de divulgação de suas promoções e liquidações, renovação de letreiros e fachadas. Cada rua fechada teve seu nome antecedido da denominação de "shopping centro", a exemplo de Shopping Centro Imperatriz, Shopping Centro Nova, Shopping Centro Duque de Caxias. A escolha desse tema foi motivada pela necessidade de estudos que analisem o Centro Tradicional de Comércio das metrópoles13, não só a partir de novas centralidades, surgidas com a criação de centros comerciais (shoppings, O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 13 galerias, hipermercados) bem como de centros empresariais (especializados em negócios), em quase todos os bairros de classe média das cidades, dos planos de revalorização do espaço. Para isso, entendendo que nem sempre as delimitações oficiais dos Centros Tradicionais das cidades contribuem para o esclarecimento dos fatos, as que apresentadas neste trabalho são múltiplas e complementares. Buscou-se extrair delas uma delimitação onde a realidade descrita apresentasse o afloramento das formas comerciais, surgidas a partir das contradições não resolvidas que, por sua vez, refletem os conflitos desencadeados pelas transformações e persistências do comércio da cidade. Portanto, esse tema parte da investigação das ruas-shopping como resultantes de uma ampla dinâmica espacial do CTR e do comércio da cidade. Para enfocar essa dinâmica, são apresentados os principais Planos de Intervenção do Centro e reflexões acerca do processo de sua revalorização, do consumo do centro e no centro. A metrópole recifense escolhida para análise, entretanto, foi contemplada com escassos trabalhos que investigaram seu CTR, o que nos apresentaria um primeiro desafio: a delimitação de seu centro, como já foi referido (MAPA 01). Desde 1961, o Centro vem sofrendo alterações de delimitação pelos órgãos públicos. A Lei 7427/61 definia uma Zona Portuária (ZP1) e uma Zona Comercial Central (ZC1), respectivamente formadas pelos bairros de Recife e Santo Antônio. Em 1995, o Plano Setorial de Uso e Ocupação do Solo14 propõe a Zona Centro Principal, composta de 04 unidades, formadas por vários bairros centrais. Entre os aspectos da Zona Centro Principal, destacam-se aqueles ligados aos 13 O termo “centro tradicional de comércio” aqui é designado por “um território que se sobressai pela concentração, desde longa data, de casas comerciais tradicionais” In FREIRE, Ana Lucy Oliveira. O Comércio Tradicional na cidade que se produz: o centro de Belo Horizonte. p. 63 -77. 14 PREFEITURA DA CIDADE DO RECIFE - Secretaria de Planejamento Urbano e Ambiental. Plano Setorial de Uso e Ocupação do Solo. Recife, 1995. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 14 aspectos ambientais e sócio- econômicos, pois constituem-se em um conjunto de estreitas ilhas e camboas, resultantes das ações de depósitos, trazidos pelos rios e pelas correntes marítimas e do aterro de manguezais, em diversos momentos históricos e abriga o Porto Marítimo da cidade15. Esse zoneamento subsidiaria a criação das Regiões Político- Administrativas - RPAs, o que insere o Centro na RPA 1, envolvendo os bairros de Recife, Santo Amaro, São José, Boa Vista, Santo Antônio, Cabanga, Ilha do Leite, Paissandu, Soledade, Coelhos e Ilha Joana Bezerra16. O fato desse estudo enfocar as formas comerciais do centro tradicional de comércio, exigiu esforço em apresentar uma delimitação que possibilitasse uma melhor compreensão das transformações das formas comerciais e de sua dinâmica no movimento de apropriação do espaço a partir da decomposição da paisagem real. Partimos, então, do entendimento das formas comerciais como formas sociais 17, criadas a partir das relações sociais que, segundo Pintaudi, "Analisar as formas comerciais, que são formas comerciais históricas, permite-nos a verificação das diferenças presentes no conjunto urbano, o entendimento das distinções entre espaços sociais. As formas comerciais dão ensejo à análise das diferenças". Recorremos ao Trabalho de Campo para descrever a paisagem do centro, delimitando nossa área de interesse. Portanto, ao analisar o Centro Tradicional de uma metrópole, que se reproduz de forma fragmentária e complexa é importante levar em consideração os vários níveis espaciais, visto que eles interagem entre si, e, uma vez resultantes de um processo de intervenções isoladas, em áreas específicas do comércio, criam novas formas comerciais que invadem as ruas, substituindo lugares públicos por privados, e estabelecem novos hábitos de consumo do lugar e no lugar. 15 Idem, p. 11. 16 Prefeitura Municipal de Recife. Recife em números. Recife, 1997. 17 PINTAUDI, Silvana Maria. A Cidade e as Formas do Comércio. In: CARLOS, Ana Fani A. Novos Caminhos da Geografia. p.145. Fonte: FIDEM, PCR, Recife/2002. Organizadores: Jan Bitoun e Kátia Ribeiro Desenho: Cláudio Martins N 0 1km Limite do Setor Urbano Limite do Setor Suburbano Centro de Comércio Zonas Industriais Zonas Portuárias Zona Universitária Centro Tradicional de Comércio Espaço de Análise Olinda Porto Centro Encruzilhada Casa Amarela Várzea Areias Afogados Pina Ibura Aeroporto Boa Viagem Madalena Mapa 01 CENTRO TRADICIONAL DE COMÉRCIO DE RECIFE - BASEADO NA LEI 7427 DE 1961 DELIMITAÇÃO Limite Municipal Jaboatão dos Guararapes O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 16 O método lefèbvriano prevê três momentos de investigação: o descritivo, o analítico-regressivo e o histórico-genético. No primeiro momento - o descritivo - parte de observações sistemáticas do objeto de estudo. Em nosso estudo temos as ruas comerciais do centro da metrópole, que veremos agora. 1.1 A Paisagem do Centro através de suas ruas comerciais Nosso trabalho teria início no bairro do Recife, lugar que guarda como principal traço histórico o início do povoamento do Recife, produzido com a função de intermediação entre portos além-mar. Seu uso atual está voltado para o consumo do lazer turístico, onde o Plano de Revalorização “Recife Antigo” estimulou a abertura de restaurantes, bares e boates em suas ruas. Nesse bairro, não há um comércio representativo como aquele do passado. Convivem apenas algumas agências de bancos (Banco do Brasil, BANDEPE), o Teatro Apolo, o Museu Militar no Forte do Brum, construído em 1631, agência dos Correios e prédios residenciais, algumas lojas, bares e boates. Diferentemente do passado, quando o bairro do Recife era o segundo em importância entre os anos de 1875-1881, pois reunia o grande comércio atacadista exportador e importador, perdendo para o bairro de Santo Antônio, com uma quantidade de casas comerciais duas vezes menor. "Nesse bairro o comércio varejista não era muito importante18". Foram desenvolvidos vários estudos sobre o bairro do Recife, lugar atualmente conhecido como espaço “da diversidade de bares, restaurantes, boates e pensões e a concentração de atividades públicas e privadas19". Ao trabalhar o tema 18 ZANCHETI, Silvio Mendes. Distribuição da Atividades Econômicas no Espaço: 1850-1881.p.45. 19 MADUREIRA, Sevy. Bairro do Recife- porto seguro da boemia.p.21. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 17 boemia, a Autora apresentou o espaço “que do ponto de vista urbanístico carrega as marcas históricas da sua ocupação e expansão, guardando as marcas do Recife Antigo”. Ao longo do trabalho podem ser vistas as imagens (fotos) do Recife Antigo de outrora, recurso utilizado para se conhecer o aspecto do bairro que abrigou a boemia do passado; a boemia do presente foi registrada nos testemunhos orais. Para nossa análise, esse trabalho contribuirá na delimitação espacial do tema, pois enquanto nesse espaço busca-se um retorno ao passado, no CTR (espaço de nossa análise) será a imagem do presente (dos shopping centers) aquela idealizada. Tal constatação fez-nos deixar de inserir esse bairro em nossa investigação. Além disso, o Bairro de Recife vem sendo alvo de planos de Revalorização que aliam a imagem do passado, representada pelo seu casario, a imagem de centros modernos, criando um dos principais pólos de animação noturna da cidade. Entre as várias intervenções encontram-se aquelas obras que substituem usos existentes no Porto, tais como: vários armazéns de açúcar desativados foram sendo utilizados como casa de shows , espetáculos teatrais, Terminal Marítimo de Passageiros; no molhe foi implantado o Parque das Esculturas, do artista plástico Francisco Brennand; a Praça Rio Branco (ou do Marco Zero, como é popularmente conhecida) foi criada com o painel "A Rosa dos Ventos", pintado no piso pelo pernambucano Cícero Dias, fazendo referência ao Plano "Eu Vi O Mundo e Ele Começava Aqui"; O Espaço Cultural BANDEPE, instalado em um prédio do início do século XX; o Observatório Cultural Malakoff, situado na Torre Malakoff, onde funcionam uma biblioteca virtual, sistema de informações culturais e observatório astronômico; a Rua do Bom Jesus, antiga Rua dos Judeus, onde estavam sediados estabelecimentos comerciais judaicos e a Sinagoga Kahal Zur Israel, a primeira das Américas, hoje objeto de estudos arqueológicos e de restauração. Uma parte do Bairro do Recife vai sendo amplamente valorizado e, apesar de semelhante ao que acontece nos outros bairros do centro, onde há a programação do uso e consumo do espaço. Nesse bairro o Plano de Intervenção substituiu ou ocupou espaços existentes, alguns deles que estavam ociosos, destinando-os a O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 18 usos pré-definidos, criando um valor para o espaço. Nos bairros à oeste, também componentes do Centro, o Plano de Intervenção não encontrando espaços livres, ou seja, as ruas comerciais estavam ocupadas por usos definidos, criará estratégias de eliminar usos e impor um novo uso, a partir da programação do comércio tradicional da cidade. Se no bairro do Recife a dinâmica sumariamente descrita é essa, nos bairros de Santo Antônio, São José e Boa Vista, a dinâmica é outra, bastante diferente. Alvo de várias intervenções isoladas, as ruas comerciais tradicionais desses bairros passam por transformações criadas pelos Planos de Revalorização, cujo objetivo é a criação de um novo uso para um espaço comercial antigo, cujo mix de lojas apresenta uma complexa estrutura de relações sociais. O Plano que partiu da utilização da imagem de shopping centers para resgatar antigos consumidores, proibindo o comércio de rua, a partir da criação de um sistema de segurança que permitiria a viabilização da comercialização das mercadorias, apresentando-se como uma estratégia de revalorização do espaço. As intervenções nas ruas comerciais, as ruas-shopping conseguem apenas dinamizar um comércio predominantemente popular. O cotidiano das ruas comerciais não seguiria a suposta programação destinada ao espaço. Como resultado das intervenções, há uma fragmentação do centro gerada pela criação das Associações das Ruas, onde cada rua possui um gerenciamento específico, desencadeando conflitos entre o comércio formal e informal. Procuraremos analisar o CTR que, embora inserido no Centro da Metrópole, apresenta como traço característico, a predominância de casas comerciais cujas estratégias de apropriação do espaço, diferentemente daquelas do bairro do Recife, são ditadas pelos comerciantes, através de Associações de Ruas e do Clube de Diretores Lojistas - CDL. Sendo assim, a delimitação de nossa área de estudo não obedece às delimitações oficiais do CTR, nem se refuta a restringir vários bairros distintos e heterogêneos a um uso específico, aquele do comércio e serviços. Há O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 19 portanto, uma delimitação dentro do CTR pois o alvo de nossa análise são algumas das ruas comerciais desse centro. Consideramos que os estereótipos e imagens difundidos pelos centros comerciais regionais (shopping centers) foram influentes na gestão do espaço comercial recifense. Essa hipótese se consubstancia na constatação em trabalho de campo, de grande quantidade de formas comerciais que seguem os padrões funcionais dos shopping centers ou apenas a sua imagem, para exercer atração aos consumidores. São novas formas comerciais surgidas no CTR ao longo dos últimos 20 anos, num contexto de novas centralidades urbanas, quando os planos de intervenção e os comerciantes tentaram cooptar a imagem dos shopping centers para seus empreendimentos. Convivem lado a lado, novas e velhas formas do comércio. Diante dessa constatação perguntamos: Onde predominam as novas formas? Quais foram as relações sociais de associações entre agentes e produtores do espaço (poder público, comércio e o CDL)? Onde restam as velhas formas do comércio? O que motiva a sua resistência frente a esse novo contexto? Com todas essas inquietações, dirigimo-nos para uma análise da paisagem do CTR. Através de suas ruas comerciais, iniciamos o percurso pelo bairro de Santo Antônio, tradicional em comércio desde o final do século XVIII, quando abrigava mais de 50% das lojas da cidade, sendo considerado o bairro nobre para o comércio de luxo e especializado20. Seu dinamismo se iniciou com a construção da ponte Maurício de Nassau, quando o então Bairro do Recife estaria interligado à ilha homônima, construída em 1634 e reinaugurada em 1917. Um testemunho do comércio tradicional da cidade é a Livraria Ramiro Costa, localizada à rua 1º de Março existente desde 1889. (MAPA 02) 20 Idem, p. 46. R. João Lira R. Princ.IsabelR. doRiachuelo R. do PríncipeAv. Oliveira Lima R . G er va si o Pi re s Av. Manoel BOrba R. Dr. José Mariano R. Barão de S. Borja R. J oa qu im Brit o R. Franc Alves R. do s Co el ho s Av. Rio Branco R .d o S o l A v. M ar qu es de O lin da B ar ro s Av. N. S. do Carmo Av . D an ta s Ba rre to R . d a C on có rd ia R . F lo ria no Pe ixo to R. São João R. do MunizMetr ô RFFSA R .M ad re de D eu s Mapa 02 RECIFE / PE PERCORRENDO AS RUAS DO CENTRO Trajeto percorrido na pesquisa Camelódromos Prédios e monumentos histórico-culturais Limite de Bairro 0 8 20 m Escala Gráfica Organizador: Kátia Ribeiro. Desenho: Cláudio Martins Fonte: UNIBASE, FIDEM, Recife/2000. São José Sto. Antônio Bairro do Recife Boa Vista Sto. Amaro Soledade Coelhos Ilha do Leite R d o H sp íc io . o Av. Conde da Boa Vista . a Imp r triz R d e a R. Nova R . D . e xia s d C a o I r d R . d m p e a o r Teatro S. Izabel Palácio das Princesas Palácio da Justiça Capela Dourada Casa da Cultura Museu do Trem Teatro do Parque Inst. Histórico Geográfico Shopping Boa Vista Mercado de São José Pça da Independência O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 21 Dirigindo-se a oeste, entramos no bairro de Santo Antônio (que juntamente com os bairros São José e Boa Vista, fazem parte de nossa área de estudo) e localizamos a Rua do Imperador, onde os serviços públicos (Jornal do Comércio, Arquivo Público, Palácio da Justiça), igrejas e escritórios predominam desde longa data e atraem novos serviços públicos, como a Secretaria de Assuntos Jurídicos e o Ministério Público que se alojaram ao longo da rua D. Pedro II, dividindo espaço com lojas, bancos, cartórios e praças, formando uma área especializada em serviços jurídicos. Vários monumentos históricos localizam-se nesse bairro: o teatro Santa Isabel (século XIX), o Palácio do Campo das Princesas (1841) e o Palácio da Justiça. A Capela da Ordem Terceira de São Francisco (1696-1724), juntamente com o Convento e a Igreja de Santo Antônio, o prédio do antigo Hospital e a casa da Oração da Ordem Terceira, compõem o Conjunto Franciscano do Recife, marco inicial da ocupação da Ilha de Antônio Vaz, no início do século XVII, formando um importante conjunto arquitetônico. Outros prédios de grande valor cultural estão também nesse bairro : a Casa da Cultura, instalada no prédio onde funcionou até 1973 a Casa de Dentenção e que hoje funciona como espaço comercial e cultural, com lojas de artesanato, banco (câmbio), galerias de arte e área para apresentações folclóricas. Em suas proximidades, vê-se a antiga estação Central do Recife (1880), onde estão instalados o Museu do Trem e a Estação Terminal do Metrô. Seguindo em direção ao sul, chegamos às ruas comerciais do bairro de São José, o bairro dos camelódromos. No Recife, tem-se dois shoppings de camelôs, sendo um deles, o Shopping Santa Rita, localizado na avenida Martins de Barros no Cais de Santa Rita. Segundo Rocha21, essa avenida foi conquistada ao leito maior do rio Capibaribe: "era o cais de Santa Rita ou a praia de Santa Rita, até que as obras do porto, na ilha de Santo Antônio determinaram o seu aterro e urbanização". Segundo o autor, "o local teria sido escolhido para abrigar um mercadinho sui generis constituído de compartimentos dos pequenos negociantes ambulantes, que obstruíam as ruas centrais desta capital (mas foram substituídos por outros...)". Esse teria sido o primeiro camelódromo da cidade e se mostrou ineficaz para a questão do O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 22 comércio de ambulantes. Percebe-se que o (re)surgimento dos camelódromos na década de 90, vem sob uma forte influência da imagem dos shopping centers: áreas destinadas aos quiosques padronizados que comercializam mercadorias de ramos comerciais similares (roupas, sapatos, bolsas, cintos, brinquedos), não dividem lugar com outros quiosques que comercializam comida, destinados a uma "Praça da Alimentação", a exemplo dos shopping centers. Os quiosques não são vendidos, sendo a concessão de uso dada a antigos ambulantes das ruas centrais, mediante sua permanência no camelódromo. Apesar de não existir um sistema de condomínio, a Prefeitura atua como síndico e locatária, recolhendo taxas de água e luz. Embora, em visita ao local, tenhamos constatado seu completo abandono, seja por parte dos camelôs, que não pagam taxas e poucos sobrevivem do que vendem, seja por parte da Prefeitura que não recolhe taxas e não destina verbas para benfeitorias e manutenção da obra. Localizado em torno do Terminal Integrado de Passageiros do Cais de Santa Rita, o lugar apresenta obras inacabadas, com barracas improvisadas. No interior do Camelódromo, vários quiosques fechados, abandonados pelos ambulantes. Figura 1: Quiosques fechados do Camelódromo do Cais de Santa Rita. 21 ROCHA, Tadeu. Roteiros de Recife (Olinda e Guararapes). p. 57. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 23 A escolha desse espaço apresenta problemas. Trata-se de uma via de circulação rápida, com uma Terminal de ônibus que servem aos municípios da zona da mata sul, cuja população de poder aquisitivo baixo, tem uma pequena e insignificante circulação em seus arredores. O Camelódromo da Avenida Dantas Barreto apresenta um maior dinamismo que o Camelódromo do Cais de Santa Rita. A longa Avenida Dantas Barreto que "cortando a Praça da Independência, de norte a sul e perpendicular à Avenida Guararapes, começou a ser aberta em 1943, segundo o Plano urbanístico do engenheiro Ulhôa Cintra"22 receberia o Camelódromo ou Calçadão dos Mascates em 1995, para abrigar os ambulantes. A Prefeitura Municipal do Recife reconhece como comércio ambulante aquele "exercido de forma correta, legalizado e sindicalizado; o que compõe um parcela significativa da PEA desta cidade. É um micro-empresário que segundo o Sindicato de Ambulantes do Recife, Olinda e Jaboatão possuía cerca de 14.000 associados, em 1989. O camelô é aquele que trabalha nas ruas centrais da cidade e constitui parte da economia informal, não sendo legalizado e nem sindicalizado".23 Para o Camelódromo da Dantas Barreto foram os ambulantes localizados nas principais ruas comerciais. De um conjunto de 5 módulos, porém, o dinamismo do comércio limita-se apenas aos dois primeiros módulos, onde há uma concentração de mercadorias e pessoas, o que não é visto nos últimos módulos, com presença de poucos quiosques abertos. Percorremos grande parte do Camelódromo com a sensação de que houve um dinamismo, mas apenas do comércio tradicional situado em seu entorno, com presença de lojas de ferragem, eletro-eletrônico, entre outros. A circulação dos ônibus trouxe mais benefícios aos lojistas tradicionais que aos antigos ambulantes. Cabe analisar, em que medida essa é uma tendência do centro como um todo. No Camelódromo, o espaço entre um módulo e outro é disputado 22 ROCHA, op. cit.p.40. 23 SOUTO MAIOR, José. Comércio Ambulante. p.4 O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 24 com arranjos de proteção às chuvas. A placa do Sindicato dos Ambulantes, ofertando serviços diversos, e o endereço da sede está presente na paisagem, enfatizando a origem profissional daqueles comerciantes. Os camelódromos e os camelôs do bairro de São José, bairro que desde longa data apresenta grande concentração de casas comerciais e de ambulantes, vem passando por grandes transformações o que exige uma pesquisa específica e detalhada de seu comércio. Em suas ruas e becos comerciais, sai o camelô e surge um quiosque de camelô: o ambulofixo24, a exemplo da intervenção da CSURB ao longo do ano de 2000 no Beco do Viado, tradicional em comércio de carnes e seus derivados, como também de serviços de amolar alicates, facas e tesouras. Figura 2: Os Becos e os camelôs. Esse é o Beco do Viado, atualmente " limpo" de camelôs, mantendo-se apenas dois quiosques em seu lugar, afixados nas laterais dos imóveis. Foto: Kátia Ribeiro, 1999. 24 Denominação dada pelo Diretor da CSUB àqueles ambulantes fixados em locais previamente estabelecidos pela Prefeitura. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 25 Vários comerciantes tradicionais também saem das ruas comerciais, a exemplo da rua do Livramento onde se abrigavam as lojas Fortunato Russo e as Casas José Araújo, que vendiam tecido e confecção em geral, abrindo lugar para novos comerciantes, quase sempre os Lojões de Cabeleireiro, Atacadão dos Presentes, entre outras. Em trabalho de campo com um grupo de especialistas portugueses25, foi constatado que essa área abriga um representativo número de estabelecimentos comerciais com grande extensão de áreas, lojas com duas fachadas, com frente para duas ruas, o que facilitava a concentração do capital26. Apesar de sua proximidade com o Bairro de Santo Antônio (4 Km·²) e Boa Vista (3 Km²) , o Bairro de São José é conhecido como um dos bairros do centro que possui maior população residente e de baixa renda e reduto de pequena produção mercantil, apresentando um comércio diversificado no varejo e no atacado. Em suas ruas localizam-se desde um dos mais antigos mercados públicos da cidade até um especializado comércio de decoração e utensílios para casa, com lojas de artigos "faça você mesmo" . Referimo-nos ao Mercado de São José, inaugurado aos 7 de setembro de 1875, uma construção de ferro do engenheiro Victor Lieutier, com seus 363 compartimentos e 46 pavilhões, sendo um ponto de atração turística, entre outros por seu tradicional comércio de ervas (em barracas e lojas do entorno do Mercado de São José). 25 Em Trabalho de Campo desenvolvido em março de 2000, com os professores portugueses: Profª. Dr.ª Teresa Barata Salgueiro, Prof. Dr. Alan Fernandes e o Prof. Dr. Herculano Cachinho, a Professora Teresa Barata Salgueiro, teria chamado a atenção para o fato de existir uma grande quantidade de ambulantes no Recife, o que exigiria maior dedicação à questão do comércio dessa cidade. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 26 Figura 3: O Mercado de São José, em constante reforma. Kátia Ribeiro, 1999. Até 1999, os ambulantes comercializavam desde frutas a utensílios em geral, como praticavam serviços de amolador de faca e tesoura. Dividiam espaço com ruas especializadas, como a Rua da Praia, com seu comércio de material de construção, cujo dinamismo se mantém até hoje, constatado pelo grande fluxo de veículos e consumidores que para ela se dirigem. Entre a Rua da Praia e a do Rangel surgiu a galeria Shopping Praia Moda – Pronta Entrega, constituída por várias lojas de vestuário popular. O comércio ambulante que se espremia pelas estreitas ruas de traçado português, a exemplo da Rua da Praia e do Rangel, Rua das Calçadas e Rua Direta, foi lentamente sendo transferido para o Camelódromo da Dantas Barreto. Em seu lugar, um ou outro camelô surge com tabuleiros de fácil deslocamento, em frente às lojas de comércio popular. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 27 Figura 4: Há no centro da metrópole recifense, inúmeras placas e prédios com nomes de shopping, a exemplo do Shopping Praia, na Rua da Praia, sem nenhuma característica que o denomine como tal. Foto: Kátia Ribeiro, 1999. Há no centro de Recife um mercado de comércio misto: o Mercado de São José, com seus produtos pitorescos e tradicionais para o povo da cidade e turistas em geral. Para ele convergem várias pessoas que transitam pelas ruas: do Rangel, da Praia, da Direita e das Calçadas, atualmente sem qualquer camelô. Todas elas possuem um comércio diversificado mas com predomínio de lojas de tecido e vestuário, eletrodoméstico, decoração e presentes. Em meio a essa paisagem, cinemas de filmes pornô, presentes em várias ruas do centro, indicam a popularização dos serviços e comércio predominante nessa área. No prolongamento da Rua Direita em direção ao Forte das Cinco Pontas, vêem-se algumas lojas atacadistas, a exemplo do Atacadão dos Presentes, cuja filial foi recentemente aberta no município de Jaboatão, Bairro do Curado. Seguimos em direção ao Pátio do Livramento, inserido no projeto de Revalorização, através da Avenida Nossa Senhora do Carmo, uma das principais vias de circulação de veículos dessa área, a Camboa do Carmo limita-se com os O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 28 bairros Santo Antônio e São José e representa um dos principais corredores de circulação de transportes coletivos, ônibus e vãns, que conduzem pessoas das várias partes da cidade, com destaque para a porção sul. Como grandes representantes do comércio, podem ser citados os Magazines Jurandi Pires, Insinuante, Casa Costa e Silva, Lojas Tebas, entre outros. O dinamismo desse comércio esteve ligado à via de tráfego. Figura 5: O Pátio do Livramento, atualmente sem camelôs, já foi uma das áreas do Centro com maior concentração de vendedores de roupas íntimas e para bebês. Foto: Kátia Ribeiro, 1999. Agora estamos na Rua Camboa do Carmo (denominação dada em alusão a um braço de rio ali existente no passado) cuja presença de óticas e relojoarias, conferem a esse lugar uma especialização desse ramo comercial, inserindo-a no Polígono do Carmo27. Passando pelo Pátio de São Pedro, cujo espaço foi revitalizado, com reformas de fachadas de prédios e da Igreja de São Pedro, tornando-se um ponto de encontro da classe média da cidade, com bares e restaurantes ocupando os prédios antigos voltados para o palco de shows, 27 O Polígono do Carmo é um Plano de Intervenções que se destina a várias ruas especializadas em relojoaria, óticas e ourivesaria, a serem administradas por uma Associação. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 29 percebemos que o lugar especializado em serviços informais, prestados por camelôs durante anos no "Beco do Viado", foi alvo do Plano de Revalorização. Atualmente, vê-se o "Viado", estátua sobre um dos prédios da esquina, até então escondido pelo dinamismo do comércio informal. Sobrevivem poucos ambulantes, com seus tablados encostados nas paredes das lojas, afixados em pontos previamente planejados. Um mesmo tipo de intervenção foi encontrado na rua Infante D. Henrique, com seus quiosques padronizados comercializando CDs, livros, revistas, cdroom, etc. Figura 6: Os Quiosques da Rua D. Henrique, vendem CDs piratas, revistas e livros usados, o demonstra apresentar um certo dinamismo no comércio do centro. Foto: Kátia Ribeiro, 1999. Chegamos à rua-shopping Duque de Caxias, com seu comércio diversificado em vestuário, decoração, tecidos, cine-foto, entre outros. Destacam-se nessa rua, as lojas de artigos ao preço de R$ 1,99 se sinalizando a popularização dos artigos comercializados pelos lojistas. A infra-estrutura criada com a intervenção do Plano de Intervenção de 1992 (central de som, cadeiras e quiosques), quase não mais aparecem na paisagem. Essa rua apresenta sinais de pouca coesão entre os lojistas, fato investigado adiante. Entre as casas de maior tradição, as Casas José Araújo é a O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 30 mais representativa, com filiais nos shopping centers da cidade. Saindo dessa rua, chega-se à Praça da Independência que abriga vários quiosques padronizados, os quais dividem o espaço com o comércio ambulante tradicional. Figura 7: Na Praça da Independência, as mercadorias transbordam e os consumidores passam, alheios. Foto: Kátia Ribeiro, 1999. Passamos em seguida para a Rua das Flores que abriga quiosques de venda de flores e outros de serviços de relojoeiros e amoladores de facas. Na esquina dessa rua com a Rua da Palma, a antiga Loja de Departamento Viana Leal, hoje, apresenta uma placa: Viana Leal Centro Shopping. Deve-se salientar que a rua chama-se rua-shopping Palma. Em direção à rua-shopping Nova, percebemos lojas de ramos comerciais diversos, onde predomina o vestuário. Em sua extensão, apenas duas lojas são testemunhos do comércio de luxo, existente no passado: as Lojas Marconi e a Casas das Rendas. Com um comércio diversificado em artigos que vão do luxo ao mais popular, essas lojas se integram ao contexto atual de popularização do comércio, com presença de diversificado comércio, predominando os ramos de calçado e de O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 31 vestuário, acompanhados das lanchonetes e eletrodoméstico. Vários bancos se deslocaram dessa rua para outros lugares. As ruas Duque de Caxias e Nova foram transformadas em Calçadões em 1978. Mais tarde, nos anos 80, o comércio ambulante se apropriaria das vias de circulação o que traria um dos grandes conflitos existentes na cidade: a retirada dos camelôs das principais ruas comerciais da cidade. Esse assunto será melhor tratado adiante. Cabe aqui, precisar mais uma vez que essas ruas serão nosso espaço de análise. Em direção a oeste, chega-se no bairro da Boa Vista pela rua-shopping Imperatriz que apresenta nas prateleiras artigos por R$ 1,99 ( Lojas Cattan). Entre as lojas dessa rua destacava-se a "Lojas Brasileiras", fechada em novembro de 1999, e a Padaria Imperatriz, com mais de 100 anos de existência. Figura 8: A antiga Lojas Brasileiras da rua-shopping Imperatriz, meses antes de seu fechamento.Foto: Kátia Ribeiro, 1999. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 32 Passamos pela Rua do Hospício, lugar com tentativas bem sucedidas de recriação do ponto de encontro em frente ao Teatro do Parque. Também abrigando comércio diversificado, essa rua vai-se dirigir para a Avenida Conde da Boa Vista, com lojas de vestuário, calçados, Lojas Americanas, prédios públicos, Arquivo Histórico Geográfico, IBGE e várias galerias de escritórios e apartamentos residenciais. Figura 9: Um dos melhores pontos de encontro do centro: depois do café expresso na Padaria Imperatriz, sentar-se em frente ao Teatro do Parque aguardando um bom espetáculo, na Rua do Hospício. Foto: Kátia Ribeiro, 1999. Concluímos o percurso com a imagem do Shopping Boa Vista, único no centro da cidade e localizado ao lado da antiga Loja de Departamentos Mesbla, fechada em outubro de 1999, situada na Av. Conde da Boa Vista, recentemente substituída pelas Lojas Riachuelo, inaugurada em 2000. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 33 Figura 10: O Shopping center Boa Vista e a antiga Loja Mesbla, meses antes de seu fechamento. Foto: Kátia Ribeiro, 1999. Apesar de ser identificado como “lugar dos pobres” 28, o CTR ainda apresenta grande dinamismo, guardando consigo parte da memória da cidade, atraindo consumidores e transeuntes para suas ruas. Alvo de intervenções urbanísticas, esse centro passa a se reproduzir a partir de uma corrente de idealizadores urbanistas, caracterizada pela “busca do passado” tendo como principais projetos “o Recife Antigo”, destinado ao Bairro do Recife, lugar onde a cidade se originou; e os Calçadões de pedestres, as atuais ruas-shopping, que se utilizam da imagem dos shopping centers, para atrair antigos consumidores. Portanto, o CTR está inserido nos bairros de Santo Antônio, São José e Boa Vista, onde se encontram diversas lojas do comércio varejista e de atacado, com forte presença do comércio informal e de vários serviços. Em suas ruas, diversas ações indica a perspectiva fragmentada de intervenção. Somando-se a isso, a falta de dados especializados e séries históricas sobre as estatísticas do comércio 28 FUNDAJ /PCR. Centro do Recife: Atores, Conflitos e Gestão. Recife, abril/1992. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 34 tradicional dessa cidade 29, exigiu que adotássemos uma metodologia de investigação onde a rua é privilegiada. (MAPA 03) Inseridas nos bairros centrais, essas ruas apresentam testemunhos, entre prédios públicos, que reforçam a antiga função comercial e de serviços dessa área: um comércio diversificado e predominantemente popular, com lojas, agências bancárias, livrarias, restaurantes e lanchonetes. Portanto, a análise das transformações e persistências das formas comerciais dessas ruas permitirá uma avaliação da produção do espaço e das estratégias de reprodução das relações sociais que, mesmo com seu encadeamento em níveis espaciais mais distantes, seguramente é no nível local que seus desdobramentos tornam-se mais evidentes. 29 VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra - Urbano no Brasil..p.285. R. João Lira R. Princ.IsabelR. doRiachuelo R. do PríncipeAv. Oliveira Lima R . G er va si o Pi re s Av. Manoel Borba R. Dr. José Mariano R. Barão de S. Borja R. J oa qu im Brit o R. Franc Alves R. do s Co el ho s Av. Rio Branco R. do So l A v. M ar qu es de O lin da B ar ro s Av. N. S. do Carmo Av . D an ta s Ba rre to R . d a C on có rd ia R . F lo ria no Pe ixo to R. São João R. do MunizMetr ô RFFSA R .M ad re de D eu s 1 2 Mapa 03 RUAS-SHOPPING E CAMELÓDROMOS RECIFE / PE Rua-shopping Imperatriz Rua-shopping Nova Rua-shopping Duque de Caxias Camelódromos 0 8 20 m Escala Gráfica Organizador: Kátia Ribeiro. Desenho: Cláudio Martins Fonte: UNIBASE, FIDEM, Recife/2000. São José Sto. Antônio Bairro do RecifeBoa Vista Sto. Amaro Soledade Coelhos Ilha do Leite Limites dos Bairros O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 36 1.2 Contexto Histórico do Comércio em Recife: uma análise regressiva Do ponto de vista histórico, a produção do espaço do CTR se deu a partir da área onde a cidade se originou, o Bairro de Recife, para os bairros de Santo Antônio, São José, Boa Vista e Santo Amaro. O Bairro do Recife tem como principal traço histórico a função de intermediação comercial, representada pelo porto marítimo. Após os mascates, vendedores de ruas e bairros, o comércio fixo surgiu no Bairro de Recife. Era um comércio misto "sabão e chita, carne-do-ceará e chapéu, manteiga e xale". Um comércio que se localizava no térreo, sendo nos andares superiores a morada do comerciante. Quando os holandeses dominaram a cidade, passaram a construir vários aterros e pontes, interligando - o às ilhas vizinhas. O Bairro de Santo Antônio surgiu a partir da construção da Ponte Maurício de Nassau, a primeira ponte do Brasil, em 1641.30 Surgiu desses aterros, a Rua Nova, com várias lojas e casas de negócios 31. No contexto do século XIX, por volta de 1830, o Recife assistia a uma especialização das casas comerciais32 "aventuravam-se as casas de moda, em geral estrangeiras, notadamente francesas(...) ". O cenário político econômico era de independência brasileira, cujos ideais franceses ancoraram no porto recifense com ares constitucionalistas e românticos. O comércio atraía as mulheres que até então não visitavam as lojas das ruas, adquirindo quase tudo em domicílio, fazendo suas compras aos mascates. A partir de então, as senhoras passaram a ver no comércio das boticas, das lojas, o encontro: "Alegrava-se a vista, topavam-se conhecidas, discutia-se por trás dos leques, padrões e figurinos"33 30 CAVALCANTI, Vanildo Bezerra. O Recife e a origem de seus bairros Centrais. In PEREIRA, Nilo ett alli. Um Tempo do Recife. p.238. 31 SETTE, Mário. ARRUAR - História Pitoresca do Recife Antigo .p.260. 32 SETTE, Mário. op. cit. p. 262.. 33 Idem, p. 256. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 37 A influência francesa no comércio recifense contribuiu para o comércio de vestuário, pois surgiram vários alfaiates ofertando serviços de costura nas ruas comerciais, criando o ambiente de elegância do Recife da época. Chegavam os estilistas franceses, que não se limitavam a coser e cortar. Logo abriam suas casas de nouveautés. Eram feitos vestidos de gorgozão, seda, gros de Naples e popeline, de cambraia ou gaze, de lã, de chita e vestido de noiva. Os homens procuravam casacas debruadas, pretas ou de cores, sobrecasacas, jaquetas de pano, calças e colete de veludo. No Bairro de Santo Antônio, surgem os cabeleireiros do centro, sendo o primeiro na Rua Duque de Caxiais, o Delsuc, especializado em fazer penteados com tranças e cachos bem armados, à moda de Paris. As sapatarias cresciam em número, ofertando salas reservadas, onde as damas experimentariam os calçados com a "decência desejada". Nessa época, surgiram os consultórios de dentistas no centro, servindo de pretexto de muitos passeios às ruas. Um outro fato marcante da cidade foi a implantação da Casa de Banhos do Pátio do Carmo: "Tratava-se de um grande estabelecimento, com 18 quartos, 10 para homens, 4 para senhoras, 2 chuviscos e 2 de duchas. Cadeiras à vapor para banhos mornos. Respeito e boa ordem, absoluta separação dos sexos e ...aguardente." 34 Várias lojas de jóias surgiram na Rua do Cabugá (atualmente Avenida Cruz Cabugá). Surgiram também: o gás, a água encanada, o bonde de burros, as carruagens a vapor. O comércio passa, a partir de então, a incorporar novos costumes e artigos, como as festas de Momo no carnaval. "Os bailes, os teatros, os prados, as partidas e as festas das igrejas"35 . Chegaríamos ao início do século XX, quando o comércio apresentava grande dinamismo, principalmente na Rua da Imperatriz, ofertando tinturas para os cabelos e para as barbas no salão do cabeleireiro Odilon36. 34 Ib. Ibidem. p. 257. 35 Ibidem, p. 258. 36 Idem, ibid. p.260. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 38 No final dos anos 20 do século passado, a indústria nacional direcionou sua produção para dois setores: setor tradicional, que atendia ao mercado popular e o setor moderno, com a produção de bens sofisticados37. Surgiram as primeiras Lojas de Departamento, que se dedicavam à importação e exportação de mercadorias. No Recife, as Lojas Pernambucanas foram uma das poucas de capital nacional, cujos donos embora de origem alemã, a família Lundregn, possuíam indústrias têxteis e de pólvora no Nordeste brasileiro com sede de seus escritórios em Pernambuco. Infelizmente, não dispusemos de dados históricos sobre as Lojas Departamentais de Recife. Sabendo que existiram posteriormente, as Lojas Mesbla, as Lojas Viana Leal, as Lojas Sloper e as Lojas Americanas. Atualmente, existem apenas as Lojas Americanas, sendo uma no centro e outras localizadas em shopping centers da cidade. Nos anos 30, essas lojas se organizavam, concentrando financeira e espacialmente uma grande quantidade de produtos. "Essas lojas tornavam o fluxo de mercadorias mais rápido e se localizavam no centro da cidade, juntamente com lojas que vendiam produtos nacionais e outros pequenos, de caráter mais artesanal. As Lojas Americanas também surgem nesse período, introduzindo a técnica do auto-serviço, comercializando produtos mais populares."38. Nos anos 50, os bairros do Recife, de Santo Antônio, São José e Boa Vista abrigavam parte significativa das empresas industriais, do comércio de mercadorias e dos serviços da cidade, tornando-se o centro tradicional de comércio da cidade. Mas este centro já havia se expandido para os terrenos do Bairro da Boa Vista desde 1737, quando foi criada a segunda ponte da Boa Vista (1737- 1746). Até então, as lojas comerciais se localizavam na Rua da Imperatriz, criada com os serviços de aterragem, denominando essa rua de Aterro da Boa Vista. "Embora, à princípio com muitas casas residenciais em prédios de um só andar, a Rua do Aterro foi ganhando 37 Pintaudi, Silvana Maria. A Cidade e as Formas do Comércio In CARLOS, Ana Fani Alessandri. Novos Caminhos da Geografia. São Paulo: Contexto, 1999. p148. 38 Idem, p. 147. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 39 sobrados e conhecendo lojas"39. Na rua da Imperatriz Teresa Cristina, a conhecida Rua da Imperatriz, mesmo com um comércio retalhista que dominou o "aterro", ainda no século XIX as famílias continuaram habitando os pavimentos superiores dos seus sobrados. No de número 147, nasceu o abolicionista Joaquim Nabuco"40. Por vários anos, no bairro da Boa Vista se localizaria, predominantemente, as classes média alta e alta 41. O Bairro de São José, apresentava características predominantemente residenciais, com exceção de ruas nas quais se localizavam estabelecimentos comerciais no Cais de Santa Rita. A proximidade com o bairro de Santo Antônio pode ser uma das explicações para a existência de um lento crescimento do número de lojas nesse bairro; um outro fato pode ser o poder aquisitivo da população residente, pois a diferenciação entre os bairros se notava considerando o segmento social que os habitava. O Bairro de São José era habitado por famílias da classe média e média baixa. Atualmente, o Bairro do Recife, tem ruas revitalizadas, onde surgiram os serviços de lazer e entretenimento. São bares, boates, restaurantes, teatros e palcos para shows, lugares do encontro da classe média. Entres outros usos, destacam-se as sedes de bancos públicos, órgãos públicos e privados. Entretanto, as casas comerciais são quase inexistentes, exigindo o deslocamento dos consumidores para os bairros à oeste. Além do CTR podia-se consumir nos subcentros comerciais da Encruzilhada, Casa Amarela, Afogados, Areias e Tejipió. Este último, posteriormente, perdeu parte de sua área de atuação com a emergência do Centro de Cavaleiro. Mercados Públicos e centros comerciais situados em alguns bairros da cidade, que surgiram por volta dos anos 60. Nesse período, os subcentros comerciais não colocam o centro em questão. (MAPA 04) 39SETTE, Mário. Op. Cit. p. 262. 40 ROCHA, Tadeu. Roteiros do Recife (Olinda e Guararapes).Através do Centro Urbano. Recife, 1981.p.67. 41ANDRADE, Manoel Correia de. Recife : Problemática de uma Metrópole de Região Subdesenvolvida. p. 101- 200. N Centro Comercial Expandido Subcentros comerciais e Eixos de atividades múltiplas (1983) Eixos de atividades múltiplas acrescentados de 1983 a 1996 Olinda Porto Encruzilhada Casa Amarela Várzea Areias Afogados Pina Ibura Aeroporto Boa Viagem 0 1km Madalena Mapa 04 O CENTRO TRADICIONAL DE COMÉRCIO E OS SUBCENTROS DE RECIFE BASEADO NA LEI 17.01.1983 Fonte: FIDEM, PCR, Recife/2002. Organizadores: Jan Bitoun e Kátia Ribeiro Desenho: Cláudio Martins IPSEP Tejipió Cavaleiro Derby Cordeiro Torre Centro Expandido Comercial Campo Grande Espinheiro Iputinga Água Fria Beberibe Casa Forte Parnamirim Graças Centro Tradicional de Comércio Centro Tradicional de Comércio Limite Municipal Jaboatão dos Guararapes O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 41 Nas décadas de 1960 e 1970 se faz notar o crescimento do Centro Comercial do bairro de Boa Viagem e a expansão do Centro Tradicional de Comércio por novas ruas do bairro da Boa Vista, tais como a Conde da Boa Vista, Sete de Setembro, União e Aurora, assim como o surgimento de novos centros comerciais de bairro: Pina, Boa Viagem (partindo da praça do terminal e estendendo-se pela Avenida Barão de Souza Leão), Madalena e Torre. Outros subcentros comerciais destacavam-se no Recife. Localizados em bairros com população de renda média e alta, que dispõe dos melhores serviços e equipamentos urbanos da cidade, encontravam-se os bairros de Boa Viagem, Campo Grande, Casa Amarela, Afogados, Encruzilhada, Graças, Madalena, Pina, Poço, Casa Forte e Parnamirim. O subcentro de Casa Amarela possui um Mercado Público desde a década de 30, quando houve o deslocamento do Mercado da Avenida Caxangá para o largo da feira de Casa Amarela na gestão do Prefeito Francisco da Costa Maia (1928-1930), fato que viria a fortalecer seu comércio42. Na gestão do Perfeito Jarbas Vasconcelos, foram construídos na mesma rua, mais dois locais para a feira livre, com a finalidade de retirar das ruas o comércio ambulante. São espaços delimitados, onde em suas entradas e saídas foram construídos portais com o nome "Feira Livre", exemplo da contraditória inversão dos espaços livres e confinados que tanto tem caracterizado as intervenções públicas dessa cidade. No subcentro da Madalena temos um Mercado Público construído desde 192543, na gestão do Governador Sérgio Loreto e do Prefeito Antônio de Góes Cavalcanti. Naquela época o mercado funcionava no horário noturno, com uma feira livre e uma feira de passarinhos. Na década de 80, o Supermercado Bompreço viria se instalar em suas proximidades, contribuindo para o desaparecimento da feira livre. Em torno de 1991, o Supermercado foi fechado, em seus bairros vizinhos, Torre e Casa Forte, viriam se instalar os Hipermercados Carrefour e Bompreço Casa Forte, respectivamente, levando o Mercado da Madalena a mudar de função tornando-se 42 BRAGA, João. Trilhas do Recife - guia Turístico, Histórico e Cultural. p. 148. 43 Idem, p. 136. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 42 um espaço de lazer, mantendo a tradicional Feira de Passarinhos em meio a bares e exposição de artes, tendo em seu espaço interno, apenas um comércio de secos e molhados. Outro importante Mercado Público de Recife é o Mercado da Encruzilhada, construído em 195044, na gestão do Prefeito Moraes Rego, no local onde funcionava uma velha estação ferroviária. Em suas proximidades via-se o cinema Encruzilhada, no atual Banco Bradesco, e na rua Salvador, transversal da Avenida Beberibe, o Clube Carnavalesco Madeira do Rosarinho. O subcentro de Boa Viagem apresenta um diversificado comércio espalhado em torno das avenidas Domingos Ferreira, Conselheiro Aguiar e Beira Mar, abrigando o primeiro shopping center da cidade, o Shopping center Recife, que além de passar a ser um dos principais centros de compras e de serviços, é um forte promotor imobiliário dessa área45. Sua implantação contribuiu para que o centro comercial de Boa Viagem extrapolasse o mercado local, atingindo os limites dos outros municípios da Região Metropolitana. Os subcentros de bairros, por fim, são aqueles cuja atuação atinge a população habitante, predominantemente, de baixa renda e próximos aos limites do município, mais distantes do Centro Tradicional e de reduzida infra-estrutura, representados por Água Fria, Beberibe, Monteiro, Engenho do Meio, Ibura, Imbiribeira, Mustardinha, Nova Descoberta, Tejipió, Areia, Várzea e Cordeiro. Nos subcentros de Água Fria, Beberibe, Tejipió e Areia, existem também importantes Mercados Públicos. Inaugurado em 195446, o Mercado de Água Fria foi construído na gestão do Governador Etelvino Luis, próximo a um feira livre, que teria passado por processo de confinamento semelhante a feira de Casa Amarela. O Largo de Água Fria se mantém como um subcentro comercial, diversificado em ramos comerciais. No final 44 Idem, Ibidem, pág. 180. 45COSTA, Kátia Cristina Ribeiro. Shopping center Recife: Conflitos e Valorização do Espaço. p.143. 46 BRAGA, op. cit. p. 182. O Centro de Recife e suas formas comerciais: transformações e persistênciasCap II - A reprodução das formas comerciais... 43 da década de 70 , o Supermercado Balaio viriam se instalar no Cinema Água Fria, importante centro de lazer da porção norte da cidade. Na década de 70, a expansão comercial favoreceu a implantação de empresas de capital estrangeiro, com a concentração e centralização do capital o que favoreceu a expansão dos supermercados. Outros fatores fundamentais para essa expansão foi a difusão da geladeira e do automóvel. Assim, os primeiros supermercados do Brasil surgiriam a partir de 1953 e os hipermercados passariam a surgir a partir de 1974, em São Pa