Lara Giselle Guardiano Transdisciplinaridade em A Fazenda dos Animais, de George Orwell: diálogos entre literatura, política e direito São José do Rio Preto 2021 Câmpus de São José do Rio Preto Lara Giselle Guardiano Transdisciplinaridade em A Fazenda dos Animais, de George Orwell: diálogos entre literatura, política e direito Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Orientador: Prof. Dr. Gentil Luiz de Faria São José do Rio Preto 2021 G914t Guardiano, Lara Giselle Transdisciplinaridade em A Fazenda dos Animais, de George Orwell : diálogos entre literatura, política e direito / Lara Giselle Guardiano. -- São José do Rio Preto, 2021 112 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto Orientador: Gentil Luiz de Faria 1. Literatura comparada. 2. Direito e literatura. 3. Política na literatura. 4. Literatura inglesa Séc. XX. 5. Literatura inglesa Traduções. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Lara Giselle Guardiano Transdisciplinaridade em A Fazenda dos Animais, de George Orwell: diálogos entre literatura, política e direito Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Comissão Examinadora Prof. Dr. Gentil Luiz de Faria UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Orientador Prof. Dr. Álvaro Luiz Hattnher UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Prof. Dr. Marcelo Lapuente Mahl Universidade Federal de Uberlândia – Instituto de História São José do Rio Preto 21 de maio de 2021 Aos meus amados pais, a quem devo tudo. AGRADECIMENTOS A Deus, que me proporcionou saúde física e mental para realizar este trabalho em um momento marcado pela crise sanitária, política, social e econômica intensificada pela Pandemia de Covid- 19; Aos meus pais Emerenciana de Oliveira Guardiano e Sebastião Guardiano, que sempre acreditaram em mim; Ao meu orientador, Prof. Dr. Gentil Luiz de Faria, que me inspirou e me direcionou durante esta jornada; Aos meus professores, que me ensinaram muito sobre a técnica e sobre a vida; Aos meus amigos e colegas, que foram fundamentais para que eu seguisse firme em meu propósito; A todo o corpo técnico e docente do Ibilce, que sempre esteve à disposição para sanar dúvidas e solucionar problemas. À Universidade Pública, que, a despeito do desmantelamento sofrido, resiste e continua colaborando com a sociedade por meio da produção contínua de conhecimento científico. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. RESUMO Este trabalho traz como proposta a investigação das relações transdisciplinares entre literatura, política, direito e demais áreas correlatas, a partir da perspectiva ficcional oferecida por George Orwell em seu livro A Fazenda dos Animais. A narrativa, publicada pela primeira vez em 1945, na Inglaterra, traça uma série de críticas aos regimes totalitários, em especial ao executado por Josef Stálin (1878-1953) na União Soviética. No texto, características relevantes do totalitarismo, como o processo de usurpação do poder e a expressiva violação a direitos fundamentais, são literariamente explorados por Orwell. Diante desse cenário, toma-se como ponto de partida para o presente estudo as relações estabelecidas entre as áreas do conhecimento citadas, trabalhando-as como fonte e método da compreensão pluralista da legalidade e dos fatos sociais dentro da obra, de modo a revelar as possíveis articulações entre Literatura, Justiça e Sociedade. Assim, a realização desta pesquisa corresponde a um interesse geral, sendo especialmente voltada àqueles que pretendem descortinar seus horizontes enquanto operadores sociais abertos a encontrar soluções humanas para o problema universal do conflito. A metodologia aplicada neste trabalho preconiza estudos teóricos de documentos e textos pertencentes a diferentes disciplinas, incluindo filosofia, sociologia e história. Os resultados obtidos corroboram a hipótese inicial de que a obra de Orwell, ao tratar literariamente sobre assuntos de ordem política, jurídica e social, estabelece ligação estreita com tais áreas, mostrando-se uma peça relevante para a construção de um debate político participativo e de um ordenamento jurídico mais articulado aos valores inerentes à humanização do conflito. Palavras–chave: Literatura comparada. Direito e literatura. Política na literatura. Literatura inglesa do século XX. Literatura inglesa e traduções. ABSTRACT This work proposes an investigation of transdisciplinary relations between literature, politics, law and other related areas, from the fictional perspective offered by George Orwell in his book Animal Farm. The allegory, first published in 1945, in England, draws serious criticisms of totalitarian regimes, especially that one carried out by Josef Stálin (1878-1953), in the Soviet Union. In the text, relevant features of the totalitarianism, such as the process of usurpation of power and the expressive violation of fundamental rights, are literarily explored by Orwell. In view of this scenario, the relations established between the aforementioned areas of knowledge are taken as a starting point for this study, working as a source and method of pluralist understanding of legality and social facts within the work, in order to reveal the possible articulations between Literature, Justice and Society. Thus, the realization of this research corresponds to a general interest, being especially aimed at those who intend to unveil their horizons as social operators open to finding human solutions to the universal problem of conflict. The methodology applied in this work recommends theoretical studies of documents and texts belonging to different disciplines, including philosophy, sociology and history. The results obtained corroborate the initial hypothesis that Orwell's work, when dealing literarily about political, legal and social issues, establishes a close connection with all these areas, proving to be a relevant piece for the construction of a participatory political discussion and a legal system more articulated to the values inherent to the humanization of the conflict. Keywords: Comparative literature. Law and literature. Politics in literature. 20th century english literature. English literature and translations. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8 2 DE BICHOS A ANIMAIS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MUDANÇA DO TÍTULO BRASILEIRO DE ANIMAL FARM ..................................................................................... 12 2.1 A Revolução dos Bichos: contexto e problemática da primeira tradução brasileira da obra .......................................................................................................................................... 12 2.2 Os prefácios de Orwell como escudo à subversão da obra ........................................... 17 3 ASPECTOS NARRATIVOS DE A FAZENDA DOS ANIMAIS ..................................... 22 3.1 Do concreto para o abstrato: a universalização do tema .............................................. 23 3.2 Orwell e a construção do narrador ................................................................................. 25 3.3 Espaço e tempo ................................................................................................................. 33 3.4 Personagens ....................................................................................................................... 37 3.4.1 Porcos: Velho Major, Bola de Neve, Napoleão e Guincho ............................................. 37 3.4.2 Guerreiro: o cavalo de tração........................................................................................... 46 3.4.3 Os cães ............................................................................................................................. 48 3.4.4 As ovelhas ....................................................................................................................... 49 3.4.5 Moisés, o corvo ............................................................................................................... 50 3.4.6 Benjamim, o burro cínico ................................................................................................ 52 3.4.7 Jones, o bêbado decadente ............................................................................................... 52 4 ENTRE O TERROR E O FANATISMO: UMA ANÁLISE DO ESTADO TOTALITÁRIO IMPLEMENTADO NA FAZENDA DOS ANIMAIS ........................... 55 4.1 O papel da crise e da massificação social para a eclosão do totalitarismo .................. 55 4.2 O inimigo comum ............................................................................................................. 59 4.3 O Líder acima de tudo e de todos .................................................................................... 66 4.4 Propaganda e manipulação.............................................................................................. 70 4.5 Fanatismo .......................................................................................................................... 76 5 DIREITO DE VIOLAR DIREITOS: AS FACES JURÍDICAS DE A FAZENDA DOS ANIMAIS ................................................................................................................................. 79 5.1 A violência fundadora da lei ............................................................................................ 79 5.2 Os Sete Mandamentos do Animalismo sob o aspecto constitucional ........................... 84 5.3 Democracia em Animal Farm .......................................................................................... 86 5.4 Alteração dos mandamentos e construção de um Estado de Exceção Permanente ... 91 5.5 Os direitos fundamentais e suas violações ...................................................................... 95 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 106 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 108 8 1 INTRODUÇÃO Os estudos transdisciplinares têm apresentado considerável relevância não apenas para o ambiente acadêmico, como também – e principalmente – para fora dele. Isso porque a sociedade, em sua condição plural, exige uma visão igualmente diversificada sobre os assuntos que a cercam. Nesse contexto, a relação entre direito e literatura, bem como com outras áreas correlatas, surge como uma resposta àqueles conflitos humanos que a juridicidade, por si só, é incapaz de solucionar. A manifestação literária pode operar como fonte de compreensão do indivíduo, da coletividade e do meio que em vivem. O direito, por sua vez, é o sistema que organiza esses mesmos elementos. A pergunta que se faz é: seria possível organizar algo – de forma verdadeiramente justa – sem, antes, compreendê-lo? É buscando uma resposta para tal questionamento que os estudos jurídico-literários, associados a um fazer político, encontram sua via de contribuição para o aperfeiçoamento das relações sociais. A literatura, seja ela ficcional ou não, permite ao sujeito o desenvolvimento de cognições politemáticas fundamentais para a compreensão dos eventos que cercam a natureza humana, tornando-o mais sensível a questões que dizem respeito a si próprio e ao outro. Possuir tal aptidão é fundamental para quem trabalha, diariamente, com vidas e com histórias reais. Dessa forma, a matéria literária não só pode, como deve, construir uma atuação mais humanística dentro do próprio universo jurídico, proporcionando ao jurista um contato maior com a linguagem, além de funcionar como meio de compreensão daquilo que transcende determinadas causas. Outrossim, o estudo transdisciplinar tem o potencial de abrir caminhos para que a parcela leiga da sociedade, isto é, o conjunto de pessoas que não têm acesso ao conhecimento técnico-científico, possa compreender situações sociais complexas de maneira mais acessível e – por que não? – mais prazerosa. Nesse sentido, a discussão de questões jurídicas a partir da literatura democratiza o acesso a tais temáticas, impactando positivamente no incentivo à participação social em debates políticos relevantes. Todavia, é preciso ter cautela no manejo do estudo jurídico-literário, uma vez que ele não se deve prestar ao uso da literatura meramente para explicar ou para exemplificar o direito; ao contrário: deve servir, sobretudo, como um exercício para enxergar a legalidade sob uma perspectiva literária e, consequentemente, política, filosófica, histórica, sociológica e, sobretudo, humana. 9 O próprio direito, em determinado momento histórico, reconheceu a importância de se fazer em consonância com outras esferas do conhecimento, incluindo a literária. Contudo, esse é um reconhecimento relativamente recente. É interessante, nesse sentido, compreender, ainda que brevemente, o percurso jusfilosófico que culminou na necessidade de transdisciplinarizar a prática jurídica. Para isso, deve-se considerar três das grandes correntes que buscaram orientar o funcionamento do direito ao longo do tempo: o jusnaturalismo, o juspositivismo e o pós- positivismo jurídico. Em sentido amplo, o jusnaturalismo enxergava no direito a possível concretização de um valor metafísico da justiça, ou seja, o ordenamento era idealizado como um conjunto de leis universais e imutáveis impostas pela natureza, por Deus e/ou pela razão humana e indissociáveis, a seu modo, desses mesmos elementos. Historicamente, essa concepção deixou hiatos significativos, uma vez que a submissão do direito a uma vontade muitas vezes abstrata o ignorava como objeto cultural e mutável, além de tornar questionáveis os valores atrelados à justiça. Com a Modernidade, uma nova corrente jusfilosófica tomou conta do pensar e do fazer jurídico, adequando o direito às novas necessidades sociais da época: o juspositivismo, ou positivismo jurídico, que, em total contraposição ao jusnaturalismo, passou a considerar o direito em sentido próprio, isto é, um meio que passaria a justificar os fins. O ordenamento, a partir desse instante, forma-se em razão de uma escolha de codificação dos homens e não mais se identifica como um sistema embasado no natural ou divino. Dentre as vertentes desse movimento, recebe destaque a teoria desenvolvida pelo austríaco Hans Kelsen (1881-1973), que procurou relevar a imposição formal positivista, defendendo que não caberia ao direito decidir aquilo que é justo ou não, mas apenas codificar o que de fato é valorado como justo, sem identificar a si com algum juízo de valor. Todavia, o positivismo, em suas mais diversas manifestações, priorizou os rigorosos critérios de validez formal em prejuízo da justiça. A doutrina positivista, essencialmente monista, sustentou a primazia do direito positivo em face do natural, afirmando que a justiça só se reconheceria em um sistema normativo codificado, independentemente de sua legitimidade e efetividade. Ao longo da história do ocidente, isto propiciou experiências sociais muitas vezes trágicas, a exemplo dos arbítrios cometidos pelos regimes totalitários do século 20, que estruturaram suas barbáries sob o manto da legalidade (SOARES, 2008). Evidentemente, esse modo de pensar o direito entrou em decadência juntamente com a Modernidade. Então, a partir da segunda metade do século 20, ganhou espaço o pós-positivismo jurídico, responsável por impor limites morais e valorativos ao aplicador do direito, 10 fortalecendo a relevância dos princípios e das garantias fundamentais na criação, na interpretação e na aplicação das leis, de forma a associar o fazer jurídico com as demais áreas do conhecimento. A partir desse momento, a literatura começou a ser compreendida como fonte principiológica para a interpretação do direito e para a prática jurídica. Com base nesse panorama, o direito passa a ser visto de maneira sistêmica - não apenas dentro de seu próprio funcionamento interno, mas também em suas relações transdisciplinares. Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo evidenciar a importância da conexão pós-positivista estabelecida entre os estudos literários e o direito, além de reafirmar a pertinência de um fazer jurídico atrelado às demais áreas do conhecimento. Para tanto, utilizar- se-á como objeto de estudo A Fazenda dos Animais, de George Orwell (1903-1950). A obra inglesa, originalmente intitulada Animal Farm e popularizada no Brasil sob o título A Revolução dos Bichos, apresenta, de maneira alegórica, a história de um grupo de animais que, motivados pelos desmandos de seu dono humano, resolvem fazer uma rebelião e tomar o controle da fazenda onde vivem. No decorrer da narrativa, porém, aqueles que lideraram a revolta – os porcos – acabam por usurpar o poder conquistado, instituindo no local um verdadeiro regime totalitário. A ferrenha crítica direcionada ao totalitarismo é o escopo da obra de Orwell, que, após ter vivenciado situações particularmente desilusórias na Birmânia e na Espanha, decide travar uma batalha contra a subversão daquilo que entendia como socialismo democrático, especialmente no que diz respeito ao modelo de governo implementado por Josef Stálin (1878- 1953) na União Soviética. A narrativa retrata, dessa forma, as principais características de regimes totalitários, possibilitando a compreensão literária das especificidades que os cercam. Além disso, a trama traz situações passíveis de serem analisadas sob a ótica jurídica, principalmente no que diz respeito ao uso da legalidade como justificativa para o abuso de poder. Dessa maneira, o estudo de A Fazenda dos Animais envolve questões de ordens diversas, sendo necessário atravessar conceitos políticos, históricos, filosóficos, jurídicos, sociológicos e, claro, literários, para que se compreenda, da maneira mais completa possível, suas mais relevantes mensagens. Dividido em quatro capítulos, este trabalho é iniciado com considerações a respeito da recente mudança no título brasileiro da obra, trazendo para o debate as circunstâncias históricas em que a primeira tradução foi feita, além de confrontar determinados usos do livro com as intencionalidades do escritor. 11 No segundo capítulo, o texto de Orwell é investigado em seus aspectos narrativos, na intenção de verificar a influência das escolhas textuais nos possíveis sentidos extraídos da obra. São estudadas, nesse ponto, suas referências concretas, o uso da linguagem figurativa, a ambientação, a criação das personagens e assim por diante. O terceiro capítulo, por sua vez, analisa a trama sob uma perspectiva essencialmente política, filosófica e histórica, traçando paralelos com o contexto social da primeira metade do século 20 e apontando as características totalitárias sob as quais ambos os cenários – ficcional e real – se constituíram. Por fim, o último capítulo promove o exame jurídico do texto literário, extraindo da narrativa orwelliana os vieses legais responsáveis por impulsionar uma revolução, os que contribuem para que ela se fixe e os que convergem para a sua subversão. A análise procura investigar, ainda, o uso do direito para fins perversos, além de questionar as consequências do abuso jurídico do poder em face da sociedade. Dessa maneira, a pesquisa avança sobre questões sociais relevantes, que, materializadas na narrativa de Orwell, permitem o conhecimento do passado, uma possível compreensão do presente e uma valiosa lição para o futuro. 12 2 DE BICHOS A ANIMAIS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MUDANÇA DO TÍTULO BRASILEIRO DE ANIMAL FARM A entrada em domínio público da obra integral de George Orwell (1903-1950), em janeiro de 2021, provocou considerável efervescência nos mercados editoriais ao redor do mundo. No Brasil, onde o livro Animal Farm consagrou-se sob o título A Revolução dos Bichos, algumas editoras aproveitaram o momento para recuperar o nome dado originalmente à história, reaproximando-o de seu significado em inglês – algo que havia sido perdido com a primeira tradução para o português brasileiro. A Companhia das Letras, que até então detinha os direitos autorais da obra no país, foi a primeira a anunciar, em 2020, a renomeação da narrativa para o inédito A Fazenda dos Animais, com tradução de Paulo Henriques Britto. Seguindo o modelo, outras editoras, como L&PM, Melhoramentos e a própria Companhia das Letras, sob o selo Penguin Companhia, decidiram adotar o mesmo título. Por sua vez, editoras como Nova Fronteira, Biblioteca Azul, Via Leitura, Troia, Novo Século, Aleph, entre outras, optaram por manter o comercial A Revolução dos Bichos em suas prateleiras, embora algumas, como a Antofágica, tenham optado por apresentar, na folha de rosto, ambos os nomes intermediados pela conjunção alternativa “ou”: A Revolução dos Bichos ou Fazenda dos Animais. Um outro caminho, por fim, é verificado na proposta da Martin Claret, que também tentou se aproximar do nome inglês da obra, lançando-a como A Fazenda dos Bichos. Além da diversidade de títulos, as novas edições apresentam diferentes traduções1, o que implica em desencontros pontuais como, por exemplo, aqueles relacionados a nomes de determinados personagens. Em virtude desse fato, não seria razoável desenvolver, em um único trabalho, uma análise que englobasse todas as versões comercializadas em território nacional. Por isso, optou-se por analisar tão somente a edição lançada pela Companhia das Letras, que, durante anos, foi a maior responsável por veicular as obras de Orwell no país. 2.1 A Revolução dos Bichos: contexto e problemática da primeira tradução brasileira da obra É necessário considerar que a alteração do título da narrativa em análise para A Fazenda dos Animais não foi um mero capricho editorial. A decisão, justificada pelos paratextos que 1 Os tradutores das edições mencionadas são: Denise Bottmann (L&PM); Sandra Pina (Melhoramentos); Adalgisa Campos da Silva (Nova Fronteira); Petê Rissatti (Biblioteca Azul); Alexandre Barbosa de Souza (Via Leitura); Claudio Blanc (Troia); Luisa Geisler (Novo Século); Daniel Lühmann (Aleph); Rogerio Galindo (Antofágica) e Leonardo Castilhone (Martin Claret). Todas as edições foram lançadas no ano de 2021. 13 acompanham os novos exemplares, foi pautada em critérios semânticos e, sobretudo, políticos. Isso porque a primeira tradução da obra para o português brasileiro, feita por Heitor Aquino Ferreira, apesar de seus grandes méritos enquanto trabalho técnico, sustentou, por muito tempo, um polêmico fardo histórico. Nesse sentido, é válido trazer à discussão o posfácio do professor Marcelo Pen (2020) à nova edição, que destrincha o contexto de produção da primeira versão brasileira do livro, esclarecendo os motivos para a mudança de seu nome. De acordo com Pen, Animal Farm chegou em território nacional na década de sessenta. O livro, que já vinha sendo promovido pela CIA no Ocidente “para combater o comunismo” (p. 137), foi impresso pela primeira vez no Brasil sob o título A Revolução dos Bichos, no ano de 1964. Nas palavras do professor, apesar de nenhum documento comprovar que a CIA estivesse por trás da tradução especificamente brasileira, seu lançamento, feito sob patrocínio do Instituto de Pesquisa Social, foi impulsionado “menos por um critério comercial ou mesmo literário do que por sua aura de arma psicológica anticomunista” (p. 138). Também conhecido como IPES, o referido instituto era formado por civis e militares e utilizado para divulgar notícias, promover os apoiadores de direita e propagar ideias anticomunistas, tendo sido “uma das mais bem-sucedidas e organizadas máquinas de propaganda ideológica da história do Brasil” (PEN, 2020, p. 138). René Armand Dreifuss (1981 citado por PEN, 2020, p. 139) afirma que a atuação do instituto entre os anos de 1962 e 1964 denotou uma movimentação conjuntural para o golpe que instituiu o Regime Militar no país, uma vez que a estratégia do grupo se tornou política e as atividades político-partidárias converteram-se, mais tarde, em ação militar.2 Dentro dessa perspectiva, os orquestradores do regime teriam recorrido a estratégias culturais e comerciais para obter apoio e rechaçar opositores, alimentando as livrarias com obras que pudessem reforçar suas aspirações ideológicas. Segundo Christian Carvalho, Animal Farm teria sido vista pelo IPES como uma potente arma anticomunista, uma vez que, na perspectiva dos militares, seu enredo “acabava por ridicularizar todos aqueles que diziam lutar por uma sociedade igualitária” (2002, p. 10). Dessa forma, o objetivo do instituto era implementar, por 2 É importante mencionar que a afirmação de Dreifuss sobre a participação do IPES na instauração do Regime de 1964 é relativizada por determinados historiadores. Carlos Fico (2004) faz, nesse sentido, um estudo apontando controvérsias sobre a ditadura militar, no qual compara diferentes posicionamentos teóricos sobre o período. Nele, Fico observa, com base nos dados coletados, que a ação ideológica do Instituto não foi a única responsável por ocasionar a troca de regime, uma vez que a iniciativa estritamente militar teve papel decisivo no desenrolar dos acontecimentos. Contudo, sua atuação desempenhou uma importante função de desestabilização (propaganda, mobilização da classe média etc.) que, diferentemente da ação militar, foi bastante articulada, colaborando significativamente para a concretização do golpe. 14 meio da divulgação da obra, o temor e a rancidez em relação à corrente política de esquerda movida pelos ideais revolucionários. Sob essa ótica, a encomenda da tradução teria sido pensada para servir ao propósito de seus financiadores. Heitor Aquino Ferreira, então tenente do Exército, assumiu a tarefa. Marcelo Pen (2020) aponta que, em outubro de 1962, o tradutor teria redigido uma carta para Sônia Seganfredo, sua correligionária, com o seguinte teor: Nosso grupo no exército - que a esquerda insiste sempre em chamar de golpista [...] temos imprimido nós mesmos e encaminhado para editores amigos várias obras de grande valor como propaganda democrática anticomunista. A maioria sairá brevemente. (p. 142). Na oportunidade, Ferreira teria citado Animal Farm entre os títulos enviados à colega. Dentro desse cenário, Pen ressalta o adendo feito por Dreifuss (1981) de que, na época, o general Heitor Herrera teria se comunicado “com Henrique Bertaso em Porto Alegre para obter 1000 cópias a 200 cruzeiros cada da Livraria O Globo, as quais seriam distribuídas gratuitamente" (p. 143), fato que reforçaria os intuitos políticos por trás da publicação da obra. Diante de tais informações, a possível influência político-financeira exercida sobre a reprodução do livro e o cenário sob o qual a referida tradução foi feita passaram a ser um ponto bastante discutido nos meios acadêmico e editorial, culminando na iniciativa, igualmente política, de promover uma nova tradução da obra 56 anos após seu primeiro lançamento. O debate acerca das possíveis intervenções ideológicas que teriam ocorrido no processo tradutório de 1964 inicia-se pelo título do livro – Animal Farm –, que teria, em português, uma maior proximidade semântica com o nome A Fazenda dos Animais ou similares. Todavia, Ferreira optou por incluir nele o termo “revolução”– que não aparece grafado na versão original (tanto no título como ao longo do texto) –, convertendo o foco da ação para o ato revolucionário em si. Evidentemente, essa percepção foi útil às aspirações do regime militar, pois o termo, sob esse ponto de vista, ganhou um peso semântico direcionado, um endereço certo, com a provável intenção de ironizar os ideais de esquerda. Ocorre que a narrativa, como se defenderá mais adiante, não critica precisamente o ato revolucionário, mas sim os desdobramentos dele. Por essa razão, a inclusão da palavra “revolução” no título da obra teria deslocado o foco “do fruto do ato para o ato em si, do espaço para ação” (PEN,2020, p. 146), gerando impactos na recepção pelo público. Por sua vez, a escolha da palavra “bichos” em vez de “animais” também pode ser colocada em perspectiva. Sobre o termo, Carvalho (2002) rememora o uso que “bicho” possuía 15 na década de 60, que consistia em uma gíria comumente empregada entre jovens estudantes. Para ele, uma hipótese possível é a de que a escolha do vocábulo teria sido feita de maneira premeditada para que os bichos de Orwell fossem associados à figura dos universitários revolucionários – considerados, à época, uma ameaça ao sistema vigente –, colaborando para a construção de uma imagem negativa daqueles que simpatizavam com os ideais de esquerda. Além do título, aspectos do texto narrativo também teriam sofrido influência ideológica durante o processo de tradução. Sobre o assunto, Feitosa e Freitas (2017) afirmam que o hino entoado pelos animais da Fazenda (Bichos da Inglaterra) teve modificações semânticas consideráveis ao ser traduzido pela primeira vez para o português, de forma a “disfarçar”, na passagem, a perversidade advinda da domesticação dos animais antes da rebelião: Ao longo de todo o poema em português, a significação foi um tanto vaga em comparação com o texto original, como por exemplo, quando o hino descreve que haverá o fim dos objetos de tortura usados para domesticar os animais, o texto original expressa diretamente que “Cruel whips no more shall crack” (os cruéis chicotes não vão mais estralar), enquanto o tradutor tenta expressar tal ideia fazendo uso de uma metáfora, obtendo o seguinte resultado: “E o relho em cantos alheios” (p. 6). Marcelo Pen (2020) também aponta trechos da história em que as alterações semânticas tornam prováveis os objetivos políticos da tradução. Uma delas se dá no momento em que o personagem Velho Major comenta sobre o seu sonho com os outros animais. Na redação original, Orwell utiliza a frase “I cannot describe that dream to you”, no sentido de “eu não conseguiria descrever aquele sonho para vocês”. A tradução de Ferreira, contudo, emprega a frase: “não sei o que significa”. Para Pen, o sonho de Major, que tratava de um lugar sem humanos, alude a um mundo sem o capitalismo e, portanto, não seria plausível “conceber que a personagem que remete ao autor de O Capital não apreende seu significado, mas sim que, diante da dificuldade em relatá-lo, prefira em vez disso contar um episódio da infância” (p. 147). Esse fato, sob a ótica pela qual se analisa o livro, poderia ser interpretado como uma forma de dirimir a credibilidade do discurso revolucionário da personagem ou mesmo de subjugá-lo. Ocorrências como essas – discretas, mas significativas – repetem-se ao longo da obra. Dessa forma, ganha respaldo a suposição de que o primeiro processo de tradução de Animal Farm, apesar de toda a sua competência técnica, esteve intimamente relacionado aos interesses ideológicos da época, ultrapassando, em determinados momentos, os limites do próprio texto literário. A ideia sustentada é a de que seria, de toda forma, útil ao regime militar aproveitar-se da crítica ao stalinismo, feita pela narrativa, para enfatizar os argumentos da direita, propagados 16 país afora. Para tanto, alguns aspectos tradutórios, a exemplo do título, teriam sido convenientemente modulados. Nesse ponto, é válido ressaltar a interessante observação que Marcelo Pen (2020) faz sobre a ideia de revolução empregada na obra, que teria um caráter positivo sob o olhar de Orwell: O leitor atento perceberá que, no final, Napoleão rejeita a posição “revolucionária”. Assim, na única menção indireta à revolução, por meio de termo derivado, ela é repudiada justamente por quem a traiu, em nome das “relações comerciais normais com os vizinhos” [...]. Para Orwell, a revolução tem teor positivo, embora o trecho o apresente na chave irônica, fazendo com que lhe reconheçamos o valor por meio de sua negação (p. 146). Esse ponto elucida a hipótese de que tanto a tradução de Ferreira como a aura “anticomunista” atribuída ao livro extrapolam, em determinados momentos, os limites do texto e de suas possíveis interpretações. É preciso destacar que, apesar de a literatura permitir uma pluralidade de sentidos, ela não permite todos. O leitor, ao passar pelo processo de associação do que é lido, relacionando o conteúdo literário com suas próprias experiências, vivências e ideologias, deve ser cauteloso para não se desprender completamente da materialidade textual – e, com isso, acabar cometendo equívocos. É evidente que a forma como a narrativa é traduzida interfere substancialmente nesse processo: se o leitor não tem acesso ao texto original, a tendência é que ele se oriente pelo que foi traduzido. Se a própria tradução ultrapassa os limites de uma interferência natural, chegando ao ponto de desprender-se da materialidade textual e de romper com um compromisso de semelhança que deveria ter com o texto original, o leitor provavelmente será induzido a erro. Se essa indução for proposital – com o objetivo de passar uma mensagem que não está necessariamente presente na obra – tem-se um problema não apenas hermenêutico, mas também ético. Diante de todas as interferências suscitadas, há plausibilidade na hipótese de que teria havido uma distorção significativa de ideias dentro do contexto do livro, que foi amplamente favorecida pela tradução financiada pelo IPES, uma vez que o “discurso” construído em cima da narrativa, além de ir de encontro aos intentos de Orwell, ainda maculou o compromisso de semelhança com o texto original, gerando equívocos consideráveis. Quanto ao primeiro ponto, a análise dos prefácios autorais à primeira edição inglesa e à edição ucraniana do livro é relevante para compreender os objetivos do autor ao escrevê-lo, servindo como importante instrumento para os debates sobre a subversão da obra. 17 2.2 Os prefácios de Orwell como escudo à subversão da obra Embora o estudo das intencionalidades do autor, em termos benjaminianos, não seja essencial para compreender o que um texto literário tem de comunicável, por vezes surge a necessidade de investigar tais intencionalidades para verificar até que ponto a lógica interna de uma obra teria sido deturpada. No caso de Orwell, seus escritos ficcionais foram e ainda são alvo de intenso uso ideológico, fato que possibilita o seu aproveitamento, muitas vezes, para fins totalmente opostos à mensagem que o texto propaga. O viés essencialmente político por trás da escrita orwelliana foi, em diversas ocasiões, expressamente declarado pelo próprio autor, que, munido da acidez que lhe era característica, nunca fez questão de esconder a insatisfação que sentia em relação à configuração geopolítica de sua época. As pistas mais evidentes desse intento moram, literalmente, ao lado de suas narrativas: nos prefácios autorais, que, no caso de Orwell, possuem, em sua maioria, caráter autobiográfico. Por serem “escritas de si”, eles registram os acontecimentos individuais e sociais que motivaram o autor em sua produção literária, além de demonstrar sua perspectiva política e de esclarecer suas intenções com a escrita. É interessante analisar tais textos com base na teoria desenvolvida por Gérard Genette (2009) sobre as instâncias prefaciais. Segundo o teórico, “[o prefácio] é toda espécie de texto liminar (preliminar ou pós-liminar), autoral ou alógrafo, que consiste num discurso produzido a propósito do texto que segue ou que antecede” (p. 145). Dessa maneira, é plausível discutir os meandros de Animal Farm com base nos prefácios escritos por Orwell, absorvendo, deles, pistas que nos levem a uma interpretação mais atrelada à materialidade da obra. Para uma primeira discussão, dispensa-se a ordem cronológica dos escritos a fim de privilegiar seu conteúdo. Assim, analisar-se-á, por ora, o prefácio do autor à edição ucraniana, datada de 1947, isto é, dois anos após a primeira publicação da obra e três antes da morte de Orwell. Uma nota de rodapé, disposta na edição utilizada para a presente análise (ORWELL, 2007), esclarece que tal versão de Animal Farm foi especialmente destinada a ucranianos alojados em campos de refugiados da Alemanha, depois da Segunda Guerra Mundial. O prefácio, por sua vez, foi feito a pedido de Ihor Sevcenko, organizador da tradução e responsável por distribuir a obra a esses leitores. Orwell, com a intenção de se apresentar a seus interlocutores, começa o texto prefacial dissertando sobre suas experiências de vida e sobre sua visão política acerca da União Soviética, construindo o que Genette chama de Gênese, isto é, o uso do prefácio para informar o leitor sobre a origem da obra e as circunstâncias de sua redação, sendo essa uma de suas principais 18 funções – na medida em que há um genuíno propósito de informar o leitor sobre dados que o autor julga imprescindíveis à boa leitura do texto. Os aspectos biográficos trazidos a esse texto inicial são, nesse sentido, interessantes para a compreensão das chaves narrativas da obra, uma vez que as situações vivenciadas por ele embasaram, significativamente, a formulação de posicionamentos políticos e sociais na construção de situações e de personagens dentro da trama. Ao narrar, por exemplo, sua experiência nas caçadas humanas ocorridas na Guerra Espanhola, da qual participou ativamente, Orwell afirma que aprendeu “como é fácil para a propaganda totalitária controlar a opinião de pessoas educadas em países democráticos” (2007, p. 143), o que o teria feito compreender a influência negativa do mito soviético sobre o movimento socialista ocidental. Quando retornou do combate, direcionou seus esforços para contar o que havia testemunhado, em especial aquilo que entendia ter sido uma traição dos stalinistas ao socialismo. Para ele, os comunistas soviéticos e seus aliados tinham destruído uma revolução popular genuína; e o maior erro da esquerda, diante disso, foi ter sido antifascista sem ser antitotalitária (RODDEN; ROSSI, 2012). Nesse sentido, Orwell assume, no prefácio a A Fazenda dos Animais, que a sua intenção foi, de fato, denunciar a subversão dos ideais revolucionários: Era da maior importância para mim que as pessoas na Europa Ocidental pudessem ver o regime soviético como de fato era. Desde 1930, eu vira poucos indícios de que a URSS estivesse avançando na direção de algo que se pudesse chamar de socialismo [...]. Ao voltar da Espanha, pensei em denunciar o mito soviético numa história que fosse fácil de compreender por qualquer pessoa e fácil de traduzir para outras línguas (2007, p. 144-145). Há, nesse ponto, o que Genette chama de Declaração de Intenção. É por meio dela que o autor interpreta o próprio texto, demonstrando sua real intencionalidade. Existe um contraste, aqui, com a “vulgata” (nas palavras de Genette) implementada por Valéry, segundo a qual não seria possível ao autor exercer qualquer controle sobre o verdadeiro sentido de seu texto. Todavia, apesar de não controlar a forma como a obra será interpretada – uma vez que a literatura é plurissignificativa –, o autor pode esclarecer ao leitor qual foi a mensagem que pretendeu passar, estabelecendo, de certa forma, limites para as possibilidades de interpretação. Ainda no prefácio à edição ucraniana, Orwell, mais uma vez recorrendo à função de Gênese, conta aos leitores que a escolha de personagens animalizadas se deu a partir de uma cena observada por ele numa cidadezinha em que morou anos depois de seu retorno da Guerra. Na passagem, o escritor afirma que viu “um menino de uns dez anos guiando por um caminho 19 estreito um imenso cavalo de tiro que cobria de chicotadas cada vez que o animal tentava se desviar”. E continua: Percebi então que, se aqueles animais adquirissem consciência de sua força, não teríamos o menor poder sobre eles, e que os animais são explorados pelos homens de modo muito semelhante à maneira como o proletariado é explorado pelos ricos. A partir daí, decidi analisar a teoria de Marx do ponto de vista dos animais [...]. A partir desse ponto, não foi difícil elaborar o enredo. (ORWELL, 2007, p. 145-146, grifo meu). Diante da expressa declaração, não há terreno para negar a efetiva vinculação da obra à questão soviética. O que se defende, contudo, é que a narrativa, apesar de criticar abertamente o regime implementado na URSS, não deve ser interpretada sob um viés antissocialista, como ocorrido em alguns países, incluindo o Brasil. Isso porque o que ela critica é a subversão dos ideais revolucionários e não a revolução em si – genuína aos olhos de Orwell. Nesse ponto, entende-se que a subversão da obra teria ocorrido, essencialmente, por duas óticas distintas, mas intimamente relacionadas: i) pela associação do enredo à pura e simples propaganda anticomunista; ii) pelo entendimento de que Orwell, assumidamente socialista, teria se tornado um traidor ao fornecer “munição” para a frente opositora. A ideia de que o autor teria traído suas convicções socialistas ou que, de fato, estaria contribuindo para o fortalecimento do capitalismo ocidental não encontra fundamento, uma vez que, após a publicação do livro, ele assume, no prefácio à edição ucraniana, que se considerava pró-socialista, ainda que motivado por razões de ordem mais pragmática do que teórica: “Tornei-me pró-socialista mais por desgosto com a maneira como os setores mais pobres dos trabalhadores industriais eram oprimidos e negligenciados do que devido a qualquer admiração teórica por uma sociedade planificada” (2007, p. 142). A dificuldade, acredita-se, talvez esteja em diferenciar a postura crítica do escritor de suas escolhas ideológicas. A sátira feita em A Fazenda dos Animais, como já mencionado, critica o que Orwell considera como subversão do ideário socialista pela União Soviética - e não o socialismo em si. Essa era sua grande indignação. Tal percepção fica ainda mais nítida no prefácio original da obra, intitulado A liberdade de imprensa. Em nota, o editor da tiragem utilizada para este estudo (2007) informa que, na primeira edição de Animal Farm, havia um espaço destinado ao prefácio do próprio Orwell, que acabou não sendo preenchido. O escrito foi encontrado após a morte do autor, tendo sido publicado somente em 1972. 20 O texto, que mais parece um desabafo, sintetiza a opinião de Orwell acerca da censura velada que ocorria na Inglaterra quando o assunto era o regime de Stálin. Nele, o autor desaprova severamente a “admiração acrítica” que os ingleses faziam da União Soviética, utilizando-se dessa percepção para justificar a dificuldade que teve em publicar a obra. Nesse ponto, Orwell traz à tona o que Genette batiza de “temas do porquê”, na medida em que há um esforço autoral para mostrar ao leitor a importância do assunto tratado na narrativa, independentemente da forma como a crítica literária viria a recepcionar a obra. A acidez com que ele aborda essa temática demonstra seu desapontamento com a classe intelectual britânica da época: Mas voltando a este livro. A reação a ele por parte da maioria dos intelectuais ingleses será muito simples: “Não devia ter sido publicado”. Naturalmente, os autores de resenhas que entendem da arte de denegrir não irão atacá-lo com base na política, mas usarão argumentos literários. Dirão que é um livro tedioso e bobo [...]. [Na realidade] a intelligentsia britânica, em sua maioria, irá reclamar deste livro porque calunia seu Líder e (na opinião deles) prejudica a causa do progresso. Se fosse o contrário, nada teriam a dizer contra a obra, mesmo que seus defeitos literários fossem dez vezes mais flagrantes do que são. (ORWELL, 2007, p. 132-133). O que se nota, aqui, além da tentativa de valorização do assunto, é a diligência do autor para, de certa forma, prevenir possíveis críticas ou neutralizá-las. Genette batiza essa função prefacial de “para-raios”, afirmando que é possível utilizá-la para impedir possíveis julgamentos negativos – o que é materializado quando o autor toma a dianteira daquilo que acredita que será dito sobre seu texto (GENETTE, 2009, p. 185). É justamente esse o caso do prefácio analisado. Orwell, sabendo que sua obra seria duramente reprovada, antecipa os motivos pelos quais as críticas literárias não deveriam ser validadas pelos leitores ordinários do livro, justificando, de certa forma, o incômodo que sua temática causaria na intelligentsia britânica. Não obstante, o autor finaliza seu prefácio original sem qualquer tentativa de esconder o descontentamento que nutria pela subversão dos ideais socialistas que a União Soviética estaria, no seu ponto de vista, promovendo, e que a camada intelectual britânica estaria acobertando de maneira velada: Já faz praticamente uma década que acredito que o regime russo é basicamente maligno, e reivindico o direito de dizê-lo, apesar da nossa aliança com a URSS numa guerra que desejo que vençamos. [...] Aceitaram o princípio de que um livro deva ser publicado ou suprimido, louvado ou condenado, não com base em seus méritos, mas de acordo com sua conveniência política. [...]. Neste nosso país [...] são os liberais que temem a liberdade e os intelectuais que querem jogar lama no intelecto: foi para chamar atenção para esse fato que escrevi este prefácio. (ORWELL, 2007, p. 137- 139). 21 Tanto no prefácio original de Animal Farm, quanto no prefácio à edição ucraniana, o autor não entra propriamente no mérito da narrativa, mas apenas situa seus leitores acerca do seu contexto de produção e possível recepção, fazendo com que a instância prefacial cumpra um dos propósitos elencados por Genette, qual seja, a justificativa da obra pela importância de seu assunto. Ademais, a pluralidade de interpretações relativas a Orwell culmina na impossibilidade de análise de sua obra em dissociação com o contexto histórico, ideológico e social que amparou sua escrita. É certo que o escritor se posicionava genuinamente contra quaisquer espécies de totalitarismo, mas esse fato não torna A Fazenda dos Animais uma obra apartidária, apesar de atemporal. Em conclusão, o prefácio à edição ucraniana da obra sinaliza a intenção do autor em denunciar o mito soviético, além de apontar os caminhos biográficos e ideológicos que o levaram a formular a narrativa. Nesse ponto, é relevante considerar que a crítica ao regime de Stálin não representa, necessariamente, uma aversão do escritor ao socialismo em si, como fez crer alguns aspectos da tradução financiada pelo IPES. Assumidamente antitotalitário, Orwell decide, com base em suas experiências de vida, revelar a manipulação e a usurpação que habitualmente ocorrem dentro de um regime ditatorial. Inevitavelmente, o stalinismo era o que mais estava em voga nas experiências vivenciadas pelo autor, motivo pelo qual provavelmente foi escolhido para estrelar a sátira. Dessa forma, ambos os prefácios amparam a interpretação que se pode fazer da narrativa, cumprindo determinados objetivos da instância paratextual. Além disso, apontam para o fato de que a primeira tradução da obra teria subvertido alguns aspectos do texto original, indo de encontro aos propósitos do autor, além de evidenciar uma tentativa de manipulação da população na época. Por tal razão, a mudança de título – de A Revolução dos Bichos para A Fazenda dos Animais – encontrou respaldo suficiente para acontecer, promovendo uma “reparação histórica” que, de toda forma, não deixa de também estar atrelada aos interesses políticos do presente. 22 3 ASPECTOS NARRATIVOS DE A FAZENDA DOS ANIMAIS O impacto literário e social que Animal Farm causou ao redor do mundo está atrelado a uma série de motivos. O mais imediato deles é o caráter político inerente à obra, que gerou, à sua época, importantes discussões acerca de conceitos ligados à instituição e manutenção do poder. Deve-se ressaltar, nesse sentido, que o momento de sua primeira publicação, na Inglaterra, coincidiu com o fim da Segunda Guerra Mundial, germinando com os prelúdios da Guerra Fria. Esse fato, associado à intensificação dos embates ideológicos do período, foi decisivo para o rápido e potente alcance tomado pela narrativa em escala global. Contudo, mesmo após a representativa queda do Muro de Berlim, o livro de Orwell permaneceu em alta. Na década de 2010, em especial, a intensificação de movimentos conservadores e de discursos antidemocráticos ao redor do mundo contribuiu para a manutenção da popularidade do autor entre leitores de diversas nacionalidades. No Brasil, A Fazenda dos Animais (ainda veiculada sob o título A Revolução dos Bichos) ocupou, em 2019, a sétima posição na lista de obras ficcionais mais vendidas no país, sendo a única do século passado entre as vinte mais procuradas pelos brasileiros (MATOS, 2019). O aparente anacronismo desse sucesso pode ser desvelado por diversos fatores, dentre os quais se destaca a universalidade do tema proposto pela obra: a ampla mensagem sociopolítica dos animais da Fazenda do Solar ultrapassa as barreiras históricas da época em que a trama foi escrita, conseguindo abordar temas permanentes na humanidade que se repetem sob circunstâncias diversas. É preciso ressaltar, entretanto, a existência de outra grande razão para a constante popularidade da narrativa: a habilidade com que foi escrita. Em dez capítulos curtos, Orwell conseguiu sintetizar não só o conturbado contexto soviético da época, como também estender suas lições para circunstâncias similares, aplicáveis à maioria das relações de poder. A complexidade do tema é imperceptivelmente dissolvida pela narração fluida e pelo uso de uma linguagem simples, compreensível até mesmo por crianças – dentro, é claro, de suas percepções de mundo. Todavia, alerta-se para o fato de que, apesar de simples, a construção da obra não é simplória. Os elementos narrativos empregados por Orwell são sofisticados e dotados de uma profundidade ímpar, que não se perde em meio a um cenário ficcional quase infantil. Todas as peças que estruturam a obra, desde a caracterização dos personagens até a forma como a história é narrada, alinham-se numa engrenagem harmônica, carimbando sua magnitude enquanto manifestação literária. 23 A partir de tais considerações, é necessário analisar, de maneira crítico-reflexiva, os cálculos narrativos implementados na construção de Animal Farm, a fim de evidenciar o papel comunicacional da literatura e o poder exercido por ela sobre aqueles que a acessam. É o que propõe este capítulo. 3.1 Do concreto para o abstrato: a universalização do tema De acordo com John Rodden (1999), A Fazenda dos Animais possui, para além do literal, outros três níveis simbólicos de operação. O primeiro, certamente, é a sátira direcionada à Revolução Russa (1917-1923) e à subsequente ditadura de Josef Stálin (1927-1953). Em segundo lugar, tem-se uma espécie de tratado político universal, responsável por fornecer grandes lições sobre poder, tirania e revoluções a toda a humanidade. No terceiro nível, a narrativa opera numa perspectiva puramente moral, com o objetivo de evidenciar a animalidade da natureza humana – no sentido de não haver um esforço mental racionalizado para compreender determinadas situações. Coadunando os três níveis, a obra tem como principais temas: a corrosão causada pelo poder; a possibilidade de uma revolução ser subvertida; e a vulnerabilidade das pessoas diante de um Líder (RODDEN, 1999). Dessa maneira, ao tratar de um fato histórico, localizado no plano do real, Orwell, por meio de recursos narrativos, transporta sua história para um plano universal, transformando-a num tetris literário passível de ser encaixado em múltiplos contextos políticos e sociais. Ao longo do presente trabalho, algumas referências da obra ao contexto totalitário soviético serão exploradas com mais atenção. Contudo, é importante que se faça, neste momento, um panorama com as principais correspondências históricas, a fim de compreender, de maneira geral, o pano de fundo da narrativa. James Arnt Aune (1999) sintetiza a relação dos eventos da obra com a questão soviética sob a seguinte perspectiva: 24 Quadro 1 - Eventos narrativos e sua correspondência histórica Eventos na obra Correspondência histórica A Rebelião Revolução de Outubro de 1917 Batalha do Estábulo Guerra Civil (1918-1919) Liderança de Bola de Neve na Batalha do Estábulo Liderança de Trótski frente ao Exército Vermelho Rebeliões nas fazendas vizinhas Rebeliões comunistas na Hungria (1919) e na Alemanha (1923) Revolta das Galinhas Rebelião de Kronstadt (1921) Acordos de Napoleão com Whymper/Willington Acordo de Rapallo (1922) Expulsão de Bola de Neve da Fazenda Exílio de Trótski (1927) Moinho de vento de Bola de Neve Ênfase de Trótski na indústria pesada Oposição de Napoleão ao moinho Ênfase de Stálin na agricultura Desejo de Bola de Neve de mandar pombos para as fazendas vizinhas Ideia de revolução permanente de Trótski Oposição de Napoleão aos pombos Socialismo de um só país (Stálin) Demolição do moinho Fracasso dos planos quinquenais Fome Fome na Ucrânia (1933) Confissão dos animais sobre aliança com Bola de Neve Grandes Expurgos (1936-1938) Acordo com Frederick Pacto nazisoviético (1939) Batalha contra Frederick Invasão Germânica (1941) Cena final (banquete com humanos) Conferência de Teerã (1943) Fonte: AUNE, 1999, p. 5-7. Como se nota, o livro abrange, com algumas alterações de ordem cronológica, os acontecimentos mais importantes da história russa entre os anos de 1917 e 1943. De acordo com o próprio Orwell (2007b, p. 145), seu objetivo imediato ao escrever Animal Farm era o de “denunciar o mito soviético numa história que fosse fácil de compreender por qualquer pessoa e fácil de traduzir para outras línguas”. Todavia, ao fazê-lo, o escritor abordou o processo 25 ditatorial com uma precisão tão cirúrgica, que passou a ser inevitável associar a narrativa a outros contextos históricos e políticos para além do soviético. Esse é, sem dúvidas, um de seus grandes méritos. Evidentemente, o que marca o rompimento dos limites temporais e espaciais dentro dos quais o livro foi escrito é a universalização de sua temática. Relações de poder fazem parte da natureza humana e, como tal, permanecem presentes nas mais diversas épocas, sob circunstâncias diferentes - mas com dinâmicas semelhantes. Esse é um dos principais fatores que possibilita o passeio de Orwell pelo tempo, embora seus esforços, na obra em comento, tenham sido direcionados à situação da URSS. Existe, como observado, um tema central focado nas relações de poder e nas injustiças decorrentes delas. Esse tema é explorado a partir do desenvolvimento de duas intrigas preponderantes no texto, isto é, de dois conflitos dramáticos que norteiam toda a obra: igualdade versus desigualdade, e liberdade versus exploração. O primeiro capítulo do livro, marcado pelo icônico discurso do Velho Major, avança vigorosamente sobre tais matérias: a Rebelião idealizada pelo porco ancião é pautada pelo desejo dos animais de serem livres e iguais entre si. Esse é o interesse impulsionador dos acontecimentos do começo da obra, mas também é sobre ele que recaem, mais tarde, as piores consequências do regime dizimador do personagem Napoleão. Ambas as intrigas são amparadas por uma série de motivos, ou seja, há diversos eventos narrativos que sustentam o grande eixo temático do texto. As lutas corporais, como a Batalha do Estábulo, a Revolta das Galinhas, a Batalha do Moinho de Vento e a própria Rebelião, tratam com muita evidência a dualidade entre o desejo dos animais de serem/permanecerem livres e a ameaça constante de exploração. Por sua vez, as diretrizes políticas tomadas na Fazenda, desde a instituição dos Sete Mandamentos até a sua alteração, incluindo as grandes decisões monocráticas de Napoleão e a intensa manipulação propagandística, reforçam a oposição entre igualdade e desigualdade dentro do contexto narrativo. É por meio desse jogo antagônico que a trama se desenvolve em seus encalços literários e, sobretudo, políticos. 3.2 Orwell e a construção do narrador A constante manobra entre o justo e o injusto traz à tona a motivação do texto. É dizer: o conjunto de motivos, articulado ao tema central, evidencia o modo como este último é trabalhado ao longo da narrativa, possibilitando a avaliação do posicionamento estético e 26 ideológico do autor em relação aos assuntos abordados em sua obra (FRANCO JÚNIOR, 2009, p. 44). Como visto, o objetivo primeiro de Orwell ao escrever Animal Farm era retratar uma revolução traída, tendo como base a experiência soviética. Na trama, a antítese criada entre os atos revolucionários dos animais e os acontecimentos que se sucedem após a ascensão de Napoleão ao poder contribui para que a ideia de traição seja afirmada. Isso porque as expectativas dos bichos em relação ao mundo “pós-rebelião” são terminantemente frustradas pelo governo implementado pelos porcos – classe animal que, ironicamente, havia encabeçado a luta. Dentro dessa construção narrativa, o papel do narrador é decisivo, uma vez que a forma como a história é contada interfere substancialmente na mensagem transmitida. Nesse sentido, é válido dizer que o narrador é uma categoria específica de personagem dentro do texto. Por tal razão, é preciso ter cuidado para não confundi-lo com o autor, por mais próximo que pareça estar deste (FRANCO JÚNIOR, 2009, p. 40). No caso da obra orwelliana em geral, esse cuidado deve ser redobrado, uma vez que a proximidade entre autor e narrador é especialmente notada. Isso porque Orwell assume a intenção de fundir, em sua escrita, o propósito político com o propósito artístico, sendo A Fazenda dos Animais o primeiro livro em que ele conscientemente coloca essa ideia em prática (ORWELL, 1946). Nesse sentido, é válido elucidar que o desígnio político do autor era, como ele mesmo escreve (1946), manifestar-se contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático - da forma como o entendia. Buscou, assim, expor seus posicionamentos por meio da arte literária, com a qual já era familiarizado. Suas experiências biográficas, especialmente aquelas em que teve contato direto com o fervor ideológico do século 20, não devem ser desconsideradas na efetivação desse propósito; ao contrário, são importantes para que se compreenda, contextualmente, a mensagem de sua obra – essencialmente política. Nas palavras do próprio escritor, o desígnio político da escrita está no fato de haver, por parte do autor de um texto, “um desejo de puxar o mundo numa dada direção, alterar as ideias das outras pessoas para o gênero de sociedade por que devem afinal lutar”, afirmação à qual acrescenta: “nenhum livro é genuinamente livre de inclinação política”. (ORWELL, 1946, tradução livre). Partindo desse ponto, é preciso levar em consideração que a vida de George Orwell foi repleta de boas intenções frustradas. Christopher Hitchens observa que a revolta do escritor 27 contra o comunismo soviético não surgiu apenas de seus instintos jornalísticos, mas foi, também, corroborada por suas vivências: “na Espanha, [Orwell] esteve muito próximo das maquinações incriminatórias e falsas denúncias stalinistas e em toda a sua vida nunca chegara tão perto de ser uma vítima delas” (2010, p. 68). É certo que o conjunto de escritos orwellianos, tanto os ficcionais quanto os de não-ficção, comprova a desilusão pessoal que o autor sofreu a partir de episódios como esse. Nesse sentido: [...] a maioria dos cronistas e historiadores hoje concorda: em Lutando na Espanha, Orwell disse a verdade a respeito da subversão deliberada da República Espanhola pelos agentes de Stálin e sobre o modo especialmente impiedoso como eles tentaram destruir a esquerda independente da Catalunha. Acontece que Orwell foi testemunha ocular da tentativa de golpe comunista em Barcelona no começo de maio de 1937, e documentos disponibilizados recentemente pelo Arquivo Militar Soviético em Moscou deixam claro que, de fato, a intenção era dar um golpe de Estado total. (HITCHENS, 2010, p. 73). Sua experiência colonial na Birmânia, como pontua Hitchens, foi fundamental para que ele adquirisse sensibilidade à hipocrisia intelectual, deixando-o “bem sintonizado para captar os ruídos arrepiantes que ela emite” (2010, p. 17). Ainda, ao se voluntariar como soldado na Guerra Espanhola (1936-1939), a intenção de Orwell era lutar contra a ameaça fascista de Franco; entretanto, “foi enquanto estava ocupado nessa frente que ele adquiriu sua compreensão do comunismo e iniciou sua década de combate com seus partidários” (2010, p. 17). O desapontamento sofrido pelo autor em relação aos caminhos que os ideais de esquerda tomaram nas mãos de Stálin, e a percepção da hipocrisia presente nos grandes núcleos intelectuais e governamentais de sua época foram profusamente registrados em sua produção literária. Não só as grandes obras ficcionais, como Animal Farm e 1984, denotam seu repúdio ao totalitarismo e aos simpatizantes dele, como também grande parte de seus ensaios, artigos jornalísticos e escritos autobiográficos o fazem incisivamente, evidenciando o impacto da decepção experimentada pelo escritor – que se sentia profundamente traído. Partindo desse contexto, é possível considerar a hipótese de que a linha que separa o autor empírico – George Orwell – do autor textual – narrador da história – é extremamente tênue, motivo pelo qual o cuidado para não confundi-los deve ser redobrado. Nesse ponto, a narração de A Fazenda dos Animais é estrategicamente pensada para mostrar ao leitor a armadilha por trás do sublime discurso de igualdade e liberdade proferido pelos porcos. Do início ao fim, a história é contada com uma ironia mordaz e com uma acidez inexorável, programadas para escancarar a hipocrisia dos regimes totalitários e, principalmente, a subversão dos ideais socialistas. A maior prova desse propósito é o fato de, ao fim do livro, 28 os símbolos da luta animal (chifre e casco) serem suprimidos da bandeira do Animalismo e a caveira do Velho Major ser enterrada, representando a incompatibilidade entre a ideologia animalista e a ditadura promovida por Napoleão. Dessa maneira, todo o esforço do narrador consiste em desvelar a traição sofrida pelos revolucionários de esquerda, utilizando, para tanto, o mesmo sarcasmo provocativo com que um cônjuge revelaria o adultério do outro, por exemplo. Nesses momentos, o tom que a narração assume muito se assemelha aos ácidos e irônicos textos não-literários de Orwell. Numa paráfrase à cena final da obra, a olhos embaçados fica difícil saber se quem conta a história, afinal, é o narrador textual ou se é o próprio autor na digestão de seus ideais feridos. Embora essa linha-limite seja frágil, é necessário considerá-la em sua extrema delicadeza, não com o objetivo de interpretar a obra seguindo os rastros das intencionalidades do autor, mas para compreender até que ponto essas intencionalidades podem ser úteis para evitar um mau uso da narrativa, a exemplo da discussão já feita sobre os financiamentos editoriais do livro e de suas traduções. Todavia, é preciso compreender também que o narrador de A Fazenda dos Animais, independentemente das proximidades com o autor empírico, deve ser estudado, no âmbito da crítica literária, como entidade autônoma. Nesse aspecto, é preciso ter em conta que o autor textual existe, no âmbito de um determinado texto literário, como uma entidade ficcional que tem a função de enunciador do texto e que só é cognoscível e caracterizável pelos leitores deste mesmo texto. [...] é o emissor que assume imediata e especificamente a responsabilidade da enunciação de um dado texto literário e que se manifesta sob a forma e a função de um eu oculto ou explicitamente presente e actuante no enunciado, isto é, no próprio texto literário (AGUIAR E SILVA, 1988, p. 227-228 citado por FRANCO JÚNIOR, 2009, p. 40). Na obra em análise, o narrador (em 3ª pessoa) não participa da história, sendo, portanto, heterodiegético3. Para enquadrar os fatos dentro do ponto de vista pretendido, o foco narrativo utilizado por ele é marcado pela onisciência4 - ora intrusa, ora seletiva múltipla. Isso significa 3 Aguiar e Silva (1988), com base na teoria de Genette (1979), classifica como heterodiegético o narrador que não é co-referencial com nenhuma das personagens da narrativa, não participando, dessa forma, da história narrada. Ele pode manifestar-se, nesse sentido, como um “eu” explícito ou como um narrador apagado, de “grau zero”. Difere-se do narrador homodiegético, que participa da história. 4 De acordo com Franco Junior (2009), o narrador utiliza-se do chamado foco narrativo para enquadrar a história narrada dentro de determinado ponto de vista. Tal recurso apresenta uma série de classificações, sendo a onisciência uma delas. Quando intrusa, a onisciência apresenta um narrador que tece comentários e opiniões, geralmente manifestados por meio de digressões, sobre os personagens e os caminhos que a história vai tomando. No caso da onisciência seletiva múltipla, essas impressões passam a remeter à mente dos próprios personagens, o que é feito predominantemente por meio do discurso indireto livre, substituindo, de certa forma, a figura do narrador e criando uma multiplicidade de ângulos de visão. 29 que ele sabe os rumos que a história irá tomar e tem ciência dos pensamentos das personagens, mas não narra de forma neutra. Ele é intruso – porém não do modo tradicional, isto é, não há pausas nem digressões na narração para que possa apresentar sua opinião. O que denota sua imparcialidade é a ironia com que descreve os acontecimentos, constituindo no texto uma espécie de intrusão “disfarçada”. Em determinados momentos, essa onisciência é diluída nas impressões, falas e pensamentos das personagens, gerando uma multiplicidade de pontos de vista, de forma a evidenciar a seletividade múltipla. Os recursos figurativos são, dessa maneira, essenciais para que os posicionamentos do narrador se revelem. Por meio de um texto carregado de ironias, metáforas, simbolismos, eufemismos propositais e outras figuras de linguagem, as opiniões por trás da construção narrativa adquirem forma. Dentro desse tópico, é válido elucidar que o subtítulo do livro, por si só, sinaliza a ironia que está por vir: “um conto de fadas”. O que se sabe, entretanto, é que os acontecimentos relatados na história levam os animais a um final muito distante do costumeiro “felizes para sempre”, característico do gênero. Nesse sentido, talvez a maior proximidade entre um conto de fadas e A Fazenda dos Animais seja o fato de ambos apresentarem personagens que acreditem em um mundo perfeito e, portanto, irreal. Esse ideal de perfeição vai sendo quebrado ao longo do texto, por meio das atitudes dos porcos. Todavia, desde o início, o narrador já encontra meios para sinalizar a frustração que está por vir. Logo no primeiro capítulo, a descrição do Velho Major enfatiza que, por trás do “ar benevolente” do porco, há “presas nunca cortadas”. Trata-se de uma forma sutil utilizada pelo narrador para indicar a natureza perigosa e traiçoeira da espécie, estendida a um discurso que, apesar de aparentemente nobre, pode esconder armadilhas dentro de si, a depender de quem o maneje. Mais adiante, após a Rebelião e antes de os porcos revelarem sua verdadeira face, o narrador sinaliza, de forma irônica, a atitude militar desenvolvida pelos suínos em suas atividades, bem como sua aproximação com costumes tipicamente humanos: Os porcos haviam reservado a sala dos arreios para servir de quartel-general5 deles. Ali, aprendiam à noite os ofícios necessários, como os do ferreiro e do carpinteiro, 5 Na primeira tradução para o português, feita pelo tenente Heitor Aquino Ferreira, a palavra headquarters (utilizada por Orwell na versão inglesa da obra) foi traduzida como “a sede da direção” (que também é uma tradução possível) e não como “quartel-general”. Uma hipótese que se levanta é a de que a escolha pode ter se dado por questões ideológicas relativas ao momento histórico que o Brasil vivia na época da tradução (1964), na provável intenção de desvincular a imagem dos porcos – vilões – de termos relacionados ao militarismo. 30 com base em livros que haviam retirado da casa do fazendeiro (ORWELL, 2020, p. 54)6. Conforme a história avança, as colocações irônicas do narrador vão se tornando cada vez mais frequentes e claras. A passagem em que o mistério do desaparecimento do leite e das maçãs é solucionado materializa, por meio do discurso de Guincho, a ironia da narração: “Camaradas!”, exclamou ele. “Vocês não estão pensando, eu espero, que nós, os porcos, estejamos fazendo isso movidos pelo egoísmo e pelo privilégio. Na verdade, muitos de nós nem gostamos de leite e de maçãs - eu, por exemplo, não gosto. Nosso único objetivo, ao consumir tais substâncias, é preservar nossa saúde. O leite e as maçãs (isso foi comprovado pela ciência, camaradas) contêm substâncias absolutamente fundamentais para o bem-estar dos porcos. Nós, os porcos, trabalhamos com o cérebro. Toda a administração e organização desta fazenda dependem de nós. Dia e noite, cuidamos do bem-estar de vocês. É em prol de vocês que bebemos esse leite e comemos essas maçãs (ORWELL, 2020, p. 56-57). A comicidade inerente à ironia evidencia, no texto, os absurdos desmedidos das falas e das atitudes dos porcos, que aumentam com o passar do tempo. Um outro efeito da narração irônica é a impressão que ela causa sobre a postura dos animais: eles são completamente ingênuos – em contraponto ao cinismo dos suínos. Nesse sentido, alguns exemplos podem ser extraídos do texto, como a passagem em que há intimidação dos bichos pelos cães que acompanhavam Guincho “por acaso”: Os animais não sabiam muito bem o significado da palavra, mas a fala de Guincho era tão persuasiva, e os três cachorros que por acaso o acompanhavam na ocasião rosnavam de modo tão ameaçador, que eles aceitaram aquela explicação sem fazer mais perguntas (ORWELL, 2020, p. 73). Em outro momento, quando o trabalho na fazenda passa a ser feito durante as tardes de domingo – que anteriormente serviam para descanso dos animais –, há menção à ausência de obrigatoriedade da tarefa; entretanto, aqueles que não a fizessem seriam punidos com redução de ração, evidenciando, na chave irônica, a impossibilidade de escolha dos bichos em executá- la ou não: Ao longo da primavera e do verão, trabalharam num regime de sessenta horas por semana, e em agosto Napoleão anunciou que passariam a trabalhar também nas tardes de domingo. Esse trabalho seria estritamente voluntário, mas qualquer animal que não participasse teria sua ração reduzida à metade (p. 75). 6 No presente estudo, todas as vezes que as citações de A Fazenda dos Animais (2020) apresentarem trechos em negrito, significa que o destaque foi feito por esta autora e não consta na obra original. 31 No episódio da destruição do moinho de vento por uma suposta “tempestade”, a ironia volta a aparecer. O narrador, ao contar que todas as galinhas “tiveram o mesmo sonho” com um barulho de tiro, pretende demonstrar que, na realidade, o tiro aconteceu, uma vez que é praticamente impossível vários indivíduos sonharem a mesma coisa simultaneamente. Além disso, fica implícito no discurso o fato de que as galinhas, manipuladas pela narrativa dos porcos, realmente acreditavam que haviam sonhado com aquilo: Por fim, houve uma noite em que a ventania foi tão forte que os galpões ficaram a balançar, e várias telhas foram arrancadas do telhado do celeiro. As galinhas acordaram cacarejando apavoradas, porque todas tiveram o mesmo sonho em que uma arma era disparada ao longe (p. 81). Ainda nessa passagem, a narração sutilmente delata Napoleão ao dizer que o Líder, diante das ruínas, fez um discurso “trovejando”7. Dessa forma, ao comparar a voz do porco ao estrondo de um trovão, o narrador deixa claro qual espécie de tempestade foi, de fato, responsável pela demolição do empreendimento. Mais adiante, após os expurgos cometidos por Napoleão, o texto traz novamente à tona a ingenuidade dos animais, que acreditam na fragilidade de sua memória e na possibilidade de haver um “bom motivo” para a morte de seus companheiros, evidenciando os efeitos da manipulação feita pelos porcos: Tulipa pediu a Benjamim que lesse para ela o Sexto Mandamento, e quando ele respondeu, como de praxe, que se recusava a entrar nessas questões, ela chamou Mabel. Mabel leu para ela o Mandamento: “Nenhum animal matará outro animal sem motivo”. De algum modo, as duas últimas palavras não haviam ficado gravadas na memória dos bichos. Mas agora eles compreenderam que o Mandamento não fora violado; pois certamente havia um bom motivo para matar os traidores que estavam mancomunados com Bola de Neve. (p. 96). No penúltimo capítulo, quando Frederick decide invadir a Fazenda e destruir definitivamente o moinho de vento, o narrador, utilizando-se mais uma vez da ironia, aponta para um fato que os animais não conseguem enxergar: os porcos não só sabem das estratégias que serão usadas no ataque, como também estão em conluio com os humanos. Isso não é dito expressamente no texto, mas pistas são inseridas nele: 7 Para esta autora, nessa passagem específica, a tradução de Heitor Aquino Ferreira é mais sensível à ironia do texto original do que a de Paulo Henriques Britto. Orwell utiliza a expressão “roared in a voice of thunder”, que é traduzida por Ferreira como “rugiu violento, com voz de trovão”, ao passo que Britto a traduz como “trovejou de repente”. Entende-se que, na tradução de Britto, a ironia está presente, porém não com a mesma intensidade discursiva alcançada pela primeira tradução. 32 Aterrorizados, os bichos esperavam. Agora era impossível sair dos galpões em que estavam abrigados. Ouviu-se uma explosão ensurdecedora. Os pombos bateram em revoada, e todos os animais, exceto Napoleão, jogaram-se no chão e esconderam o rosto. [...] Quando se aproximaram da fazenda, Guincho, que inexplicavelmente desaparecera durante o conflito, veio saltitando em direção a eles, balançando o rabo e sorrindo de satisfação (ORWELL, 2020, p. 102-103). Dessa maneira, os recursos irônicos presentes na narração mostram ao leitor a ardileza e a hipocrisia dos porcos, ao mesmo tempo em que revelam a ingenuidade dos animais diante dos acontecimentos e do discurso dos suínos. O fato de o narrador apontar esses detalhes nas entrelinhas do texto, e não de maneira direta, pode ser associado à construção da propaganda totalitária, que opera no mesmo sentido: há sempre uma maquiagem que reveste o discurso e que, apesar de óbvia, é difícil de reconhecer. Com grande engenhosidade, Orwell consegue transpor essa característica para a própria construção da narrativa. É válido ressaltar que, além do uso abundante da ironia, vários outros recursos linguísticos e até mesmo semióticos são empregados no texto. Um exemplo interessante é a passagem em que Bola de Neve cria a bandeira do Animalismo: Bola de Neve encontrara na sala dos arreios uma velha toalha de mesa verde e nela pintara com tinta branca um casco de quadrúpede e um chifre. Todas as manhãs de domingo essa bandeira era hasteada no mastro que havia no jardim da casa. Era verde, explicava Bola de Neve, para representar os verdejantes campos da Inglaterra, e o casco e o chifre apontavam para a futura República dos Animais, que surgiria quando a espécie humana fosse finalmente derrubada. (ORWELL, 2020, p. 53). A cena, evidentemente, faz alusão a símbolos como a foice e o martelo, utilizados, no contexto soviético, para representar a luta e a força do operariado. É possível, contudo, interpretar as escolhas descritivas de maneira mais complexa: a toalha de mesa escolhida por Bola de Neve é verde, ao contrário da figura clássica da toalha de mesa quadriculada vermelha, cor intimamente relacionada aos movimentos de esquerda. O verde, no círculo cromático8, é complementar ao vermelho, ou seja, está na posição oposta àquele. Uma interpretação possível é a de que as cores escolhidas pelos porcos para simbolizar o Animalismo representariam, na verdade, o oposto daquilo que é defendido. Esse recurso expressaria, mais uma vez, a discrepância entre o discurso e a prática, foco central da crítica orwelliana. Do ponto de vista 8 De acordo com Camila R. R. Kops (2019), o círculo cromático de Goethe é um indicador de interações polares existentes nas cores, a partir do qual lhes são atribuídas uma dimensão fisiológica, psíquica e espiritual. Ele foi organizado de modo que as cores ficassem opostas às suas complementares, a exemplo do vermelho em relação ao verde. 33 dos animais, entretanto, o verde da bandeira poderia estar atrelado à esperança que sentiam acerca de um futuro melhor e mais justo. A simbologia das cores volta a aparecer no capítulo sete da obra, logo após o terrível expurgo promovido por Napoleão. Ainda atordoados com as cenas aterrorizantes que haviam acabado de presenciar, os animais deitam-se no outeiro da Fazenda e contemplam a vista: Dali dava para ver a maior parte da Fazenda dos Animais - o pasto grande que ia até a estrada principal, o campo de feno, o arvoredo, o bebedouro, os campos arados onde o trigo já brotava abundante e verde, e os telhados vermelhos das construções da fazenda, com fumaça saindo das chaminés. Era uma bela tarde de primavera. A grama e as sebes verdejantes estavam douradas pelos raios de sol já em declínio. Jamais a fazenda - e foi com certo espanto que se deram conta de que a fazenda era deles, toda ela pertencia a eles - lhes parecera um lugar tão desejável. Tulipa olhava do alto do outeiro e seus olhos se enchiam de lágrimas. Se ela pudesse exprimir o que estava pensando, diria que não era aquilo que eles tinham como objetivo quando, anos atrás, se empenharam no esforço de destruir a espécie humana (ORWELL, 2020, p. 91). A cena é uma metáfora do ideal socialista subvertido: o contraste dos telhados vermelhos com as sebes douradas pelo sol alude às cores oficiais do movimento operário, recuperando o sentido original da luta e causando nos animais uma melancolia pelo o que deveria ter sido, mas não foi. O verde aparece novamente, dessa vez iluminado pela luz solar, assumindo uma tonalidade dourada. Simbolicamente, a esperança nutrida pelos bichos é a de que um dia suas aspirações alcancem o objetivo inicial e que a revolução se complete. Contudo, no final da história, o que se tem é a cor verde ocupando todo o espaço da bandeira, confirmando a subversão do ideal animalista: Alguns dos visitantes teriam observado a bandeira verde no alto do mastro. Talvez tivessem percebido que haviam sido removidos o casco e o chifre brancos que antes havia nela. De agora em diante, a bandeira seria toda verde. (ORWELL, 2020, p. 125). Com essa construção essencialmente figurativa ao longo de todo o texto, o narrador consegue atingir seu propósito: transmitir o sentimento de traição, deslealdade, frustração, desgosto e desilusão experimentado pelos animais da Fazenda e pelos revolucionários como um todo. 3.3 Espaço e tempo O conjunto de referências ao espaço geográfico em que se passa a história de A Fazenda dos Animais aponta para um local preponderantemente rural. A “fazenda” é o palco da maior 34 parte dos acontecimentos que se sucedem no decorrer da trama, embora haja referências a um espaço urbano – Willingdon – que é o centro de trocas comerciais entre seres humanos. Além da Fazenda do Solar – posteriormente renomeada para Fazenda dos Animais – mais duas propriedades rurais são citadas na obra: Foxwood e Pinchfield, pertencentes, respectivamente, aos humanos Pilkington e Frederick, inimigos entre si. A escolha de um espaço majoritariamente campestre é motivada. Primeiro pela coerência de colocar os personagens – animais domesticados para fins pecuários – em seu habitat costumeiro. Em segundo lugar, pela necessidade de construir um cenário que remetesse à Rússia do início do século 20, isto é, um império agrário industrialmente atrasado em comparação com os principais países da Europa. Inserido nesse espaço, o camponês russo da época era o custódio fundamental das tradições russas e o maior interessado numa mudança radical. Suas condições materiais, jurídicas e morais, eram incomparáveis mesmo às dos mais pobres trabalhadores rurais europeus, preso como ainda era a uma servidão medieval, podendo ser vendido junto com a terra que cultivava. Faminto na maior parte do ano, compensava a falta de nutrimento sólido com abundantes libações de vodca e sonhava a olhos abertos com um Czar que vivia num palácio distante e viria, um dia, para resgatar os miseráveis. Coletivista por imposição, se figurava numa pequena propriedade onde sofria junto com seus filhos para cultivar grão e tirar tubérculos de baixo do gelo. Quando, em vez, o sol dos verões continentais lhes queimava a cabeça, estes camponeses deviam se perguntar, olhando para o horizonte infinito, o porquê de tanta injustiça (BENEDINI, 2015, p. 5). Dessa maneira, a inserção das personagens num cenário rural repleto de trabalhos árduos, agravados pelas condições climáticas, não só pretendeu fazer alusão ao espaço físico da Rússia em si, mas também à atmosfera estafante que levou os camponeses a se engajarem na luta por mudanças, assim como os animais da Fazenda do Solar. Em contrapartida, a casa dos seres humanos, que posteriormente passa a ser dos porcos, é descrita como um lugar suntuoso e confortável, evidenciando a comodidade com que Jones e sua família – e, depois, Napoleão – passavam seus dias, enquanto os animais sofriam nos pastos e celeiros. Nesse ponto, é clara a referência à luxuosa vida que a realeza levava, em oposição à terrível condição de parte dos camponeses russos. Essa disparidade de ambientes estabelece, entre as personagens, um conflito dramático bem acentuado. Embora a casa esteja inserida dentro da propriedade e, portanto, muito próxima dos celeiros, poleiros e estábulos, a distância simbólica entre esses espaços é gigantesca. A inibição que os animais sentem ao entrar na casa pela primeira vez comprova esse ponto: 35 Então, caminhando em fila, voltaram às construções da fazenda e pararam em silêncio à porta da casa. Também a casa era deles agora, porém tinham medo de entrar. Depois de alguns momentos, no entanto, Bola de Neve e Napoleão arrombaram a porta e os animais entraram um por um, caminhando com todo o cuidado, para não desarrumar coisa alguma. Pé ante pé, penetraram em cada cômodo, com medo de falar senão em cochichos, e contemplando como uma espécie de admiração todo aquele luxo inacreditável, as camas com colchões de penas, os espelhos, o sofá de crina, o tapete de Bruxelas, a litografia da rainha Vitória9 sobre o console da sala de estar. (ORWELL, 2020, p. 48). O espaço, que ironicamente é repleto de itens feitos com matéria-prima animal, gera, na maior parte dos bichos, uma sensação de não-pertencimento. Por essa razão, eles decidem transformá-lo numa espécie de museu, no qual nenhum deles jamais deve morar. O quarto mandamento do Animalismo (“nenhum animal dormirá em cama”) concretiza esse posicionamento. Posteriormente, entretanto, os porcos mudam-se para residência, violando a regra estabelecida. Ainda nesse primeiro contato com a casa, há uma pista muito sutil sobre o futuro comportamento dos porcos: ao saírem do local, os suínos arrancam os presuntos pendurados na cozinha – feitos com carne de porco – e, com exceção do barril de cerveja, deixam todos os outros itens intactos, incluindo aqueles feitos com penas, crinas e outros insumos de origem animal. Pode ser uma forma de sinalizar que, desde o início, os porcos só se importavam com sua própria incolumidade, fazendo pouco caso da integridade dos demais bichos. Outro fato importante ocorre do meio para o final da narrativa, quando os porcos e os humanos, antes ocupando espaços específicos, começam a frequentar e compartilhar os mesmos locais. Nesse sentido, Willingdon – o centro comercial dos homens – passa a ser frequentado pelos suínos para a compra e venda de materiais. Além disso, Napoleão e seus capangas mudam-se para a casa de Jones e, com o passar tempo, Whymper, Pilkington e outros fazendeiros são convidados a visitar a Fazenda. Essa mescla espacial, que acontece progressivamente, tem a função de mostrar a (im)provável igualdade entre porcos e humanos. Da mesma maneira, a forma como a questão temporal é desenvolvida no texto contribui para sinalizar ao leitor o processo de subversão dos ideais do Animalismo ao longo dos anos. É 9 A Rainha Vitória esteve no comando do Reino Unido entre os anos de 1837 e 1901. O seu reinado, que ficou conhecido como “Era Vitoriana”, foi marcado por um rígido moralismo, pela expansão do Império Britânico em territórios africanos e asiáticos, e pela consolidação da Revolução Industrial. O fato de a casa de Jones possuir a litografia (espécie de retrato) da Rainha pode ser interpretado como uma explícita referência histórica acerca da situação da Inglaterra naquele momento, principalmente no que concerne às consequências da industrialização para os burgueses, que enriqueceram exponencialmente, e para os operários, que permaneceram na miséria. É necessário compreender que a crítica de Orwell à desigualdade entre a nobreza russa e os camponeses (seres humanos e animais) pode e deve ser estendida à exploração da classe trabalhadora pela burguesia na Europa. Essa talvez seja a principal razão pela qual, na narrativa, a Fazenda do Solar, apesar de aludir à Rússia, esteja localizada na Inglaterra. 36 válido ressaltar, nesse ponto, que as alterações de ordem política e social não ocorrem do dia para a noite na Fazenda. A transição de um regime para outro acontece aos poucos e de maneira progressiva, fato que colabora para que os animais não percebam instantaneamente o plano de totalitarização colocado em prática pelos porcos. São pequenos golpes pontuais que, diluídos no tempo, culminam, ao final da trama, na consolidação de um regime mais opressor do que o inicial. Cronologicamente, a passagem do tempo é marcada, em sua maior parte, pela mudança das estações do ano e pelo decorrer dos meses, semanas e dias. Ao longo de toda a narrativa, cada estação se repete, ao menos, quatro vezes. No capítulo final, entretanto, há menção à passagem de muitos anos, suficientes para que a maioria dos animais morra e para que quase ninguém se lembre mais da Rebelião. No que tange às estações do ano, é possível considerar a existência de uma atmosfera psicológica dentro de cada uma delas no texto. Nesse sentido, na maior parte das vezes em que os meses de verão são mencionados (junho a agosto – no hemisfério Norte), há um ímpeto de mudança nas ações e pensamentos das personagens. É quando acontecem transformações importantes para a trama. A própria Rebelião ocorre nesse período, bem como os “tempos de paz” que a sucedem. Por outro lado, é também no verão que ocorrem as mudanças negativas: a morte de Guerreiro; a mudança do lema “quatro pernas, bom; duas pernas, mau!” para “quatro pernas, bom; duas pernas, melhor!”; e a realização do grande banquete para porcos e humanos na fazenda, que fortalece a união entre eles, em prejuízo dos outros animais. Na chave irônica do texto, a estação que marca a Rebelião é a mesma que consolida o regime totalitário. Já os meses de outono englobam situações intermediárias, representando períodos de transição entre condições boas e ruins, além de evidenciar superações de dificuldades. É nessa estação que os bichos começam a enfrentar suas primeiras tribulações após a expulsão de Jones, incluindo a Batalha do Estábulo. Também é no outono que o moinho-de-vento é construído pela primeira vez, com muito esforço e, em seguida, destruído por um “temporal”. O inverno, por sua vez, carrega em si uma atmosfera de sofrimento. Nesse ponto, o frio e a fome são as principais causas dos infortúnios suportados pelos animais. Durante essa estação, contrariando as condições de colheita e clima, as rações são reduzidas - embora os porcos continuem a comer e a beber do bom e do melhor. Ainda, é nessa época que acontecem as primeiras trocas comerciais entre bichos e humanos; e, em consequência desse fato, ocorre também a revolta das galinhas, que acabam mortas por manifestarem-se contra a venda de ovos. Por fim, os meses de primavera consolidam as expectativas frustradas dos animais em relação ao mundo pós-rebelião. São os períodos marcados pela desilusão em diferentes 37 aspectos. Nessa estação, os bichos são informados de que Bola de Neve, até então querido por todos, estaria aliado a Jones desde o início; é nela que acontece o grande expurgo promovido por Napoleão, em que vários animais são assassinados; também é o momento em que a República é proclamada, embora Napoleão seja o único candidato à presidência. Ainda, é na primavera que os animais se sentem tristes ao perceber que os efeitos da Rebelião não foram exatamente aqueles que o Velho Major havia prometido. O efeito causado pelas atmosferas que circundam cada estação do ano representa, portanto, a vinculação do tempo cronológico ao tempo psicológico na construção narrativa. À medida em que os acontecimentos vão se sucedendo, o narrador vai inserindo a subjetividade das personagens por meio de seus sentimentos e de suas percepções, evidenciando, sobretudo, a forma como essa subjetividade é recorrentemente calada pelas falas e atitudes dos porcos. 3.4 Personagens A construção das personagens de A Fazenda dos Animais opera, significativamente, no âmbito do simbólico. Nesse sentido, o caráter emblemático que cada espécie de animal possui reflete em suas posturas dentro do texto, contribuindo para o reforço das intrigas dramáticas. Não à toa, após o sucesso da obra, referências a porcos em contextos políticos, por exemplo, popularizaram-se nas mais variadas manifestações artísticas e culturais ao redor do mundo, evidenciando o caráter permanente da narrativa em questão. Dessa maneira, a análise dos aspectos históricos, simbólicos e alegóricos – preponderantemente ocidentais – que permeiam a criação das personagens, bem como de suas condutas, é importante para a interpretação da obra. Evidentemente, certas personagens desempenham papéis mais decisivos na narrativa e é sobre elas que o estudo deve ser aprofundado. 3.4.1 Porcos: Velho Major, Bola de Neve, Napoleão e Guincho O destaque dado aos porcos faz com que a espécie assuma certo protagonismo na história. Sobre a noção de protagonista, é necessário observar que a personagem é classificada como principal quando suas ações são fundamentais para a constituição e o desenvolvimento do conflito dramático. Geralmente, desempenha a função de herói na narrativa, reivindicando para si a atenção e o interesse do leitor. Não é incomum que um mesmo texto apresente mais de uma personagem principal. (FRANCO JUNIOR, 2009, p. 39). 38 Importa ressaltar, nesse sentido, que são os porcos os responsáveis pelo evento-chave que impulsiona o desenrolar da trama: a rebelião. A ideia do levante surge de um sonho de Major, o mais velho e respeitado suíno reprodutor da fazenda. O ato revolucionário, por sua vez, é liderado pelos porcos Bola de Neve e Napoleão, sendo este último o responsável por instaurar e manter o regime totalitário no local. O papel de porta-voz do governo é, também, desempenhado por um porco - Guincho -, conhecido por sua distinta habilidade de persuasão. Dessa forma, os nós narrativos são, em sua maioria, amarrados pelas ações dos porcos, fato que evidencia seu protagonismo na história. Entretanto, a função heroica esperada de uma personagem principal é questionável na obra de Orwell. Isso porque, muito embora a impressão inicial seja a de que os suínos pautem suas atitudes em prol do bem comum, há, no decorrer da narrativa, uma inversão moral no comportamento dessas personagens. Os salvadores, de repente, tornam-se tiranos. O heroísmo, nesse ponto, é posto em xeque. Haveria de se falar, então, em anti-heroísmo? Para refletir sobre essa questão, é preciso compreender determinados aspectos da conceitualização do anti-herói. Arantes (2008) explica que o sentido do termo [anti-herói], em si mesmo, poderia dar a falsa impressão de que se refere à personagem que, numa ficção, funciona paralelamente ao herói como sua contrapartida, o que seria equivalente a chamá-lo de antagonista. No entanto, quando o anti-herói se instala claramente como eixo estrutural de um texto ficcional, seu sentido anti-heróico não lhe advém de ser a contrapartida de nenhuma outra personagem desse texto. Ele é, na verdade, anti-heróico à luz dos heróis clássicos modelares vigentes. (ARANTES, 2008, p. 25). A partir desse raciocínio, pode-se identificar, principalmente na figura de Napoleão, a presença de um certo anti-heroísmo na obra. Isso porque, embora haja um antagonismo da personagem em relação a outras figuras da trama, ela ainda permanece sendo o eixo estrutural do texto, uma vez que os acontecimentos da narrativa giram em torno de suas ações. Os desvios de moralidade do Líder colaboram para sua concepção anti-heroica. Nesse ponto, é interessante pensar nas escolhas autorais para a representação dos tiranos: por quais razões Orwell elegeu o porco para retratar a figura do déspota? Qual a carga simbólica carregada por esse animal? Sobre o estudo da simbologia, Juan-Eduardo Cirlot (2005) esclarece que as conjecturas que permitem o dinamismo do símbolo são: a) Nada é indiferente. Tudo expressa algo e tudo é significativo. b) Nenhuma forma de realidade é independente: tudo se relaciona de algum modo. c) O quantitativo se transforma em qualitativo em certos pontos essenciais que constituem precisamente a significação da quantidade. d) Tudo é serial. e) Existem correlações de situação entre 39 as diversas séries, e de sentido entre as referidas séries e os elementos que as integram. (CIRLOT, 2005, p. 32-33). Dessa ótica, considerando a hipótese de que as escolhas do autor não se deram ao acaso, faz-se necessário estabelecer uma relação entre os animais retratados na narrativa e a bagagem simbólica que eles carregam. A figura do porco simboliza, quase universalmente, a voracidade, a gula, sendo ele um animal que devora tudo o que lhe é apresentado (CHEVALIER, 2006). Além disso, o porco é geralmente o símbolo das tendências obscuras, sob todas as suas formas, da ignorância, da gula, da luxúria e do egoísmo. Pois, escreve São Clemente de Alexandria citando Heráclito, o porco tira o seu prazer da lama e do esterco (Estrômato, 2). É a razão de ordem espiritual da interdição da carne de porco, especialmente no Islã. [...]. O porco representado no centro da Roda da Existência tibetana tem a mesma significação; ele evoca mais particularmente a ignorância. Não seria possível esquecer, a esse propósito, a parábola evangélica das pérolas lançadas aos porcos, imagens das verdades espirituais reveladas de maneira desconsiderada àqueles que não são nem dignos de recebê-las nem capazes de apreendê-las. [...] Para os quirguizes, ele é um símbolo, não somente da perversidade e da sujeira, mas também da maldade. (CHEVALIER, 2006, p. 734). Dessa forma, embora h