Cristina Gomes Machado ZIMBO TRIO E O FINO DA BOSSA: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA E SUA REPERCUSSÃO NA MODERNA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA São Paulo / SP 2008 CRISTINA GOMES MACHADO ZIMBO TRIO E O FINO DA BOSSA: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA E SUA REPERCUSSÃO NA MODERNA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Música. ORIENTADOR: Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda São Paulo / SP 2008 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP Machado, Cristina Gomes M149z Zimbo Trio e o Fino da Bossa: uma perspectiva histórica e sua repercussão na moderna música popular brasileira / Cristina Gomes Machado. - São Paulo : [s.n.], 2008. 410 f.; + 02 CDs Bibliografia Orientador: Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. 1. Música popular brasileira - Brasil. 2. Música popular – História - Brasil. I. Zimbo Trio. II. Ikeda, Alberto Tsuyoshi. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD - 780.981 CRISTINA GOMES MACHADO ZIMBO TRIO E O FINO DA BOSSA: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA E SUA REPERCUSSÃO NA MODERNA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Música. Área de concentração: Musicologia/ Etnomusicologia Banca Examinadora ______________________________________________ Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda Departamento de Música - Instituto de Artes da UNESP ________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Castagna Departamento de Música - Instituto de Artes da UNESP _________________________________________________ Prof. Dr. José Geraldo Vinci de Moraes Departamento de História – FFLCH/ USP Para minha mãe AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda, pela confiança em mim depositada; pelo apoio em momentos difíceis, incentivando e auxiliando na concretização deste. À Profa. Dra. Dorotéa Machado Kerr que desde o princípio nos aconselhou, acompanhando, qualificando e nos incentivando positivamente. Às queridas Marisa I. Alves e Thaís Magalhães, supervisora e secretária da pós- graduação, que, sempre dispostas a ajudar, foram exemplo de profissionalismo e amabilidade, mesmo diante de ocasiões nem sempre favoráveis. À minha irmã Aida Machado, pelas fundamentais revisões e incentivo. À amiga Eliete Murari, pelo suporte em todos os sentidos, força nas horas boas e ruins, e pela sua constante disponibilidade, paciência e incentivo. Aos queridos, Regina Célia C. Dellias e Júlio César Figueiredo, que de várias formas, contribuíram nesta pesquisa, além do incentivo, palavras de ânimo e incrível paciência durante esse processo. A Joana Crescibene e maestro Edison Ferreira pela compreensão e incondicional apoio, segurando “todas” no trabalho, apostando em mim. Ao Bob Wyatt, que além de todo suporte de retaguarda, deu-me a honra de me substituir. Ao Theóphilo A. Pinto, por ter sido um pouco responsável por isso tudo, pelas sugestões bibliográficas, revisões e algumas horas dispensadas em função deste. À querida Zoica A. Caldeira, pequena menina notável, que com muita sabedoria e inteligência, soube nos aconselhar num melhor direcionamento de idéias e composição da narrativa. Às queridas Maria Helena Uliani pelos primeiros passos e torcida e Cris Mendes pela sempre presente retaguarda. Aos meus alunos, pela compreensão e palavras de incentivo. A Marli Moraes, pelo trabalho impecável de revisão, paciência e generosidade impar. A Thaís Carmona Dellias pela iconografia e a todos os depoentes. À minha mãe, por tudo, e que sem suas orações, este não teria acontecido. Acima de tudo, a Deus. RESUMO O principal objeto de estudo desta pesquisa é o grupo musical brasileiro Zimbo Trio, formado na década de 1960 e em plena atividade até os dias de hoje. O objetivo fundamental da dissertação é enfocar o grupo Zimbo Trio no programa O Fino e analisar, primeiramente, sua importância no desenvolvimento da Música Popular Brasileira como grupo de curadoria, divulgação e criação musical, além de sua presença positiva na construção e permanência de uma nova maneira de fazer música, mostrando seu legado por meio das concepções de arranjo, linguagem musical e pioneirismo na forma de tocar. Como as atuações e contribuições deste trio tiveram uma maior divulgação no Brasil em suas participações no programa O Fino, veiculado na televisão no período de 1965 a 1967, busca-se contextualizar este programa historicamente. Valendo-se de abordagens histórico- sócio-culturais e estético-musicais, a pesquisa é qualitativa e documental, utilizando, como material de pesquisa, críticas de jornais e revistas, capas e contracapas de LPs da época, tanto no Brasil como no exterior. Também, são levados em consideração depoimentos de músicos e artistas que vivenciaram direta ou indiretamente esse momento, bem como, bibliografia, artigos e trabalhos científicos que abordam a MMPB nos quais o trio é mencionado. Recorreu-se, ainda, à história oral - através de entrevistas com músicos, críticos e produtores que, de alguma maneira, tiveram um grau de representatividade no período estudado - como estratégia para melhor compreensão dos códigos e práticas desse universo musical. PALAVRAS-CHAVE: Zimbo Trio; MMPB; O Fino da Bossa; O Fino; MPB ABSTRACT The main subject of this research is the Brazilian music ensemble Zimbo Trio, which was set out to perform on 60’s and has been involved in musical activities so far. First of all, it is intended not only to analyze its significant influence on development of the Brazilian Pop Music, launching out into promotion and musical creation but also its positive participation structuring and keeping alive a new way of making music, showing its legacy on new conception of arrangements, musical language and pioneer on that style of playing. The concerts e artistic contribution of this Trio stood out in Brazil because of its performance on a TV show called “O Fino”, broadcasted from 1965 up to 1967 and, it is going to be put in an historical context. Taking advantage of the historical, social, cultural and musical aesthetic approaching, this is a qualitative and documentary research based on newspaper and magazine criticism, LPs cover and counter-cover from those days even in Brazil as well abroad. Testimonials of musicians and artists who, direct or indirectly, experienced those moments as well bibliography, articles and scientific works approaching the MMPB mentioning Zimbo Trio are also considered. It was still resourced the oral history - through interview with musicians, critics and show managers who, at any extent, had a representative degree on the studied period – as an strategy, in order to get a better understanding of the codes and practice of this musical universe. KEYWORD: Zimbo Trio; MMPB; O Fino da Bossa; O Fino; MPB SUMÁRIO DAS IMAGENS 1966 - Programa Jovem Guarda / Foto: Entre outros, Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Erasmo e Roberto Carlos, Wanderléia .................................................................................................................... 37 Revista intervalo nº 171, 17 a 23/04/1966 ................................................................................................. 39 Estréia do "Pick Up do Pica-Pau" (1 de Dezembro de 1958) .................................................................... 51 Walter Silva, rádio Bandeirantes(1959) O "Pick Up do Pica-Pau" vivia recebendo troféus pela audiência do programa ............................................................................................................................ 51 Alaíde Costa ............................................................................................................................................... 52 Teatro Paramount, Templo da Bossa ......................................................................................................... 53 Encarte do show “O Fino da Bossa” (25/05/1964) .................................................................................... 54 Cartaz do show “Boa Bossa” (31/08/1964)................................................................................................ 55 Walter Silva recebe homenagem de Najat e Marçal, pela contribuição dada ao show “Boa Bossa” ........ 55 Cartaz do show “O Remédio é Bossa” (26/10/1964) ................................................................................. 56 Cartaz do show “Mens Sana in Corpore Samba” (16/11/1964) ............................................................... 57 Cartaz do show “Primeira Denti-Samba” (23/11/1964) ........................................................................... 58 Cartaz do show “BO65” (29/03/1965) ...................................................................................................... 59 Fachada do Teatro no dia do Show Wilson Simonal e Alaíde Costa ......................................................... 60 Wilson Simonal e Alaíde Costa ................................................................................................................. 60 Cartaz do show “Dois na Bossa” (8-9-12/04/1965) .................................................................................. 61 Fachada do Teatro no dia do Show ............................................................................................................ 61 Jongo Trio .................................................................................................................................................. 62 Elis Regina no palco do Teatro Paramount: Dálias (pot-pourri escrito a giz no chão) .............................. 63 Elis, Cido, Jair, Sabá e Toninho Pinheiro no show Dois na Bossa ............................................................ 64 Elis Regina / Jair Rodrigues ....................................................................................................................... 65 Cartaz do show “Nara, Edu e Tamba” (26/04/1965) ................................................................................ 65 Cartaz do show “Samba Novo” (24/08/1964) ............................................................................................ 66 Cartola, Nara, Zé Kéti ................................................................................................................................ 66 Nelson Cavaquinho Os Cariocas ................................................................................................................ 66 Cartaz do Show do Dia 7 – TV Record ...................................................................................................... 76 Célio Forones, Roberto Bandeira / Luiz Loy Luiz Loy ............................................................................. 90 Maestro Cyro Pereira ................................................................................................................................. 95 Luiz Loy Quinteto ................................................................................................................................... 107 Elis Regina e Jair Rodrigues .................................................................................................................... 113 Encarte do Cd Projeção- Luiz Chaves e Seu e seu conjunto da série Prestígio nº. 10, RGE ................... 118 Da esquerda para a direita: Luiz Chaves, Rubes Barsotti e Amilton Godoy - Primeira foto. Tirada em 17/03/1964, dia da estréia do Trio nas escadarias da boate Oásis em São Paulo .......................... 119 Tamba Trio ............................................................................................................................................... 129 Zimbo Trio ............................................................................................................................................... 129 Jongo Trio – 1ª formação - Jongo Trio (Toninho Pinheiro, bateria - Cido, piano - Sabá, contrabaixo) ........................................................................................................................................... 131 Som Três .................................................................................................................................................. 131 LP do Sambalanço Trio – 1965 ................................................................................................................ 132 Bossa Três – 1ª Formação ........................................................................................................................ 133 Walter Wanderley Trio ............................................................................................................................ 135 Pedrinho Mattar, João Soto e Toninho Pinheiro ...................................................................................... 135 Sarsano, Jurandir e Amilson .................................................................................................................... 136 Capa do LP “Alma Brasileira” - Manfredo Fest Trio .............................................................................. 137 Capa do LP “Milton Banana Trio” ........................................................................................................... 137 LP que consagrou Sérgio Mendes no exterior – Philips/1964 ................................................................. 139 Tenório Jr. (piano), Tião Neto (contrabaixo), Edison Machado (bateria) no Bottles Bar ........................ 139 Capa do único LP de Tenório Junior – “Embalo” – 1964 ........................................................................ 141 “Salvador Trio” – Mocambo/ LP-40.320 “Rio 65 Trio – Philips/ P632.749 ........................................... 141 Único LP do Sambrasa Trio - Som Maior/1966 / Único LP do grupo Quarteto Novo – Odeon /1967 ................... 143 LP “Coisas” – Forma/1965 ...................................................................................................................... 144 LP “O Som” – Copa 5 – 1964 .................................................................................................................. 145 Jequibau - Desenho rítmico do contrabaixo, guitarra e bateria ................................................................ 152 Jequibau - Desenho rítmico levemente diferente do exemplo 1 .............................................................. 153 Jequibau - Opção de estrutura de acordes para mão esquerda do pianista ............................................... 153 Cyro Pereira e Mario Albanese, anos de 1960 ......................................................................................... 154 Primeiro LP .............................................................................................................................................. 154 Cash Box – April 10, 1965 – International Section.................................................................................. 165 Ficha Técnica do álbum contendo três CDs: “Elis Regina no Fino da Bossa. ......................................... 191 O Fino do Fino. ........................................................................................................................................ 193 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 13 1. UMA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA .......................................................................... 19 1.1. A Música Popular Brasileira na década de 1960 ......................................................................... 19 1.2. A moderna música popular brasileira .......................................................................................... 27 1.2.1 O vínculo entre a MPB e a Televisão ................................................................................ 44 2. A CRIAÇÃO DE ‘O FINO’ ............................................................................................................ 50 2.1. Os shows no Teatro Paramount ................................................................................................... 50 2.2. O Programa O Fino ..................................................................................................................... 70 2.3 Os Músicos de O Fino .................................................................................................................. 85 3. ZIMBO TRIO .................................................................................................................................. 117 3.1. Compartilhando dos mesmos ideais .......................................................................................... 117 3.1.1. Outros Trios: piano-baixo-bateria nos anos de 1960 ...................................................... 127 3.1.2. Um Som Pra Frente ........................................................................................................ 160 3.1.3. Zimbo e o Samba-Jazz .................................................................................................... 178 3.2. Zimbo Trio em O Fino .............................................................................................................. 185 3.2.1. “O Fino do Fino” ............................................................................................................ 191 3.3. Discografia do Zimbo Trio (1964 a 1967) ................................................................................ 194 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................... 200 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................... 205 Referências Citadas .......................................................................................................................... 205 Artigos e matérias em Jornais e Revistas ......................................................................................... 208 Sites e Documentos Eletrônicos ....................................................................................................... 211 Encarte .............................................................................................................................................. 216 Contracapa ........................................................................................................................................ 216 Fontes Fotos ..................................................................................................................................... 216 Fontes Sonoras - LPs e CDs ............................................................................................................. 217 Entrevistas ........................................................................................................................................ 218 Bibliografia Consultada .................................................................................................................... 219 APÊNDICES ........................................................................................................................................ 221 Apêndice I ....................................................................................................................................... 222 Entrevistas ............................................................................................................................ 222 Entrevista com Amilton Godoy – n. 1 ...................................................................................... 223 Entrevista com Amilton Godoy – n. 2 ...................................................................................... 225 Entrevista com Luiz Loy ......................................................................................................... 237 Entrevista com Rubens Barsotti ............................................................................................... 246 Entrevista com Cyro Pereira .................................................................................................... 261 Entrevista com Walter Silva .................................................................................................... 272 Entrevista com Geraldo e Maria Lucia Suzigan ......................................................................... 295 Depoimentos ......................................................................................................................... 333 Geraldo de Oliveira Suzigan ................................................................................................. 334 Maria Lucia Cruz Suzigan .................................................................................................... 334 Lis de Carvalho ................................................................................................................... 334 Júlio César Figueiredo .......................................................................................................... 335 Christiano Rocha ................................................................................................................. 335 Edmundo Cassis .................................................................................................................. 335 Regina Célia Carmona Dellias .............................................................................................. 336 Lilian Carmona .................................................................................................................... 336 Roberto Sion ....................................................................................................................... 337 Izaias Amorim (Zazá Amorim) ............................................................................................. 337 Itamar Collaço ..................................................................................................................... 337 Apêndice II - Documentos iconográficos ......................................................................................... 339 Anexos - 2 CDs................................................................................................................................ 409 Exemplos Musicais CD 1 ........................................................................................... 410 Garota de Ipanema (T. Jobim/ V. Moraes) 1: Zimbo Trio 2: Tamba Trio Consolação (B. Powell/ V. Moraes) 3: Zimbo Trio 4: Tamba Trio Reza (E. Lobo/ R. Guerra) 5: Zimbo Trio 6: Tamba Trio 7: Manfredo Fest Trio Água de Beber (T. Jobim/ V. Moraes) 8: Zimbo Trio 9: Tamba Trio Amanhã (W. Santos/ T. Souza) 10: Zimbo Trio 11: Manfredo Fest Trio Barquinho Diferente (Sérgio Augusto) 12: Zimbo Trio 13: Milton Banana Trio Arrastão (E. Lobo/ V. Moraes) 14: Zimbo Trio 15: Sambrasa Trio Samba Novo (D. Ferreira/ N. Mendonça) 16: Zimbo Trio 17: Sambrasa Trio Zimbo Trio tocando Samba-Jazz 19: O Norte (Luiz Chaves) 20: Samba Meu (Adilson Godoy) 21: Expresso Sete (R. Barsotti) 22: Insolação (Adilson Godoy) 23: Samba 40° (Adilson Godoy) Zimbo Trio Tocando Jequibau 24: No Balanço do Jequibau (M. Albanese/ C. Pereira) 13 � INTRODUÇÃO Dentro das motivações que nos impulsionaram na escolha do grupo Zimbo Trio como principal objeto dessa pesquisa, sublinhamos quatro relevâncias. A primeira delas se relaciona ao papel fundamental que o Trio desempenhou, sendo integrante fixo do programa de televisão O Fino1, na função de acompanhante de artistas convidados e na execução de números instrumentais em que mostrava seu trabalho elaborado e inédito. Um trabalho que, antes da veiculação pela televisão, só poderia ser apreciado pelo público das casas de música ao vivo, dos bares e nos shows. Por meio da televisão, o trabalho do Zimbo Trio foi levado a um público mais abrangente e a partir dali, foram desencadeados fatos importantes em sua história e carreira que contribuíram não só na construção, mas na divulgação da denominada Moderna Música Popular Brasileira (MMPB) bem como da música popular brasileira instrumental. A segunda relevância é que podemos afirmar ser o Zimbo o único trio, dos muitos formados na época, que permanece em plena atividade desde sua formação em 1964 até os dias de hoje, podendo, desta forma, contribuir com maior proximidade2 na construção da memória (VILARINO, 2002, p. 70-71)3 e história da MPB no período e tema a que nos prepusemos desenvolver. A terceira está na proposta inicial do trio, por eles caracterizada como fazer “Um Som Pra Frente”. O Zimbo Trio foi considerado modelo de como tocar e fazer música instrumental brasileira com esta formação4, influenciando instrumentistas e grupos musicais desde então. Isto não só ocorreu na época, como tem sido referência para novas propostas musicais que envolvem o ‘Samba-Jazz’5, estilo em que o Zimbo Trio foi um dos 1O programa foi lançado como O Fino da Bossa que, por problemas de direitos autorais, passou a se chamar oficialmente de O Fino, apesar de ser lembrado por muitos pelo nome de seu lançamento. Neste trabalho será mencionado sempre como O Fino. 2Através de entrevistas e depoimentos. Cf. Anexo 1. 3Ramon Casas Vilarino escreve que a memória é construída ao longo de um processo histórico e de vida, não se completa nem finaliza, pois a alteração, a incorporação, a seleção e o esquecimento são características desse fenômeno. Vê que na MPB, a memória pode ser entendida como busca de uma identidade com a qual se recupera um passado que tem o significado de uma trajetória. 4Nos anos de 1960 existiam vários trios com a formação piano-baixo-bateria e os que mais se destacavam, como o Tamba Trio, tocavam e cantavam. O Zimbo foi o primeiro a fazer somente música instrumental. 5A abordagem deste tópico no trabalho tem por objetivo demonstrar a contribuição e influência do Zimbo Trio no Samba-Jazz. Serão apontados temas musicais caracterizando o estilo sob o ponto de vista de arranjo e concepção musical do trio. 14 � pioneiros a criar, executar e divulgar em todo o Brasil e exterior6. Como comprovação desses fatos, valemo-nos de críticas de jornais e revistas, capas e contracapas de LPs da época, tanto no Brasil como no exterior, depoimentos de músicos e artistas que vivenciaram direta ou indiretamente esse momento, bem como a bibliografia, artigos e trabalhos científicos que abordam a MMPB e nos quais o Zimbo Trio é mencionado. A quarta relevância está em que o Zimbo Trio se destaca por sua significativa participação e contribuição no segmento pedagógico. Segundo os integrantes do grupo, o intuito em fazer música popular brasileira não estava somente em tocar e se apresentarem como artistas, mas havia ainda a preocupação de deixar um legado de tudo o que tinham vivenciado. Em 1973 fundaram o CLAM – Centro Livre de Aprendizagem Musical, onde podiam ensinar e, principalmente, preparar o estudante para a profissão. Pode-se dizer que em São Paulo, o CLAM foi a primeira escola de música popular a criar um material didático em português, apropriado para a compreensão e execução desse gênero, formando muitos profissionais na área de ensino e desta forma, estender e difundir uma metodologia e didática do ensino da música popular. A vertente pedagógica do Zimbo Trio não será abordada nesta pesquisa, no entanto consideramos tal atividade como parte da concretização das metas do trio desde sua formação. A dissertação tem como objetivo, estudar a atuação do grupo Zimbo Trio dentro do programa O Fino, disposto em três capítulos e três anexos. O primeiro capítulo constitui uma contextualização histórica do período estudado e está dividido em duas seções. Na primeira seção abordamos a década de 1960, período que revela um momento histórico de grandes transformações e reestruturações no Brasil, em todos os sentidos, seja no campo político, industrial como social e cultural. Para se compreender e analisar o tema proposto fez-se necessário o conhecimento de tais mudanças apontando dados imprescindíveis para um melhor entendimento do contexto. As metas desta abordagem histórica são de contextualização, sem a pretensão de levantamentos similares realizados em campos de estudos como história ou ciências sociais, pois o propósito está em situar nosso objeto de estudo no momento histórico-político-social pelo qual o Brasil passava nos anos de 1960, dando destaque à área cultural, buscando ver as influências que afetaram o modo de pensar e fazer música popular brasileira a partir de então. 6Amilton Godoy e Rubinho Barsotti declaram que o primeiro disco do Zimbo, ‘Zimbo Trio’, gravado em 1965, obteve quatro estrelas e meia como disco de jazz pelo crítico Belo Yulanov na ‘Revista Down Beat’. 15 � A segunda seção foi dividida em duas subseções. Para melhor entendimento do que é a Música Popular Brasileira (MPB) ou Moderna Música Popular Brasileira (MMPB), na primeira subseção foi feito um levantamento bibliográfico a respeito do termo, suas propostas, impasses e implicações. Historiadores, críticos e literatos já abordaram o assunto, de forma polêmica até. Coube-nos trazer tal discussão por meio de revisão bibliográfica mais apurada e atualizada, servindo de suporte para a construção do objeto pesquisado. A segunda subseção aborda o vínculo entre MPB e a Televisão (TV). Para se compreender a iniciativa e tudo que envolvia o lançamento de um programa televisivo, como o abordado na pesquisa, fez-se necessário conhecer um pouco do momento e contexto da TV brasileira na década de 1960, tanto do ponto de vista de quem fazia a TV, como do receptor, do mecanismo de estudos, estratégias, estabelecimento de alvos e metas em direção aos objetivos daquela determinada programação ou programa. O segundo capítulo situa o programa televisivo O Fino, lugar eleito pela crítica e autores, como palco da consagração da MMPB como um fenômeno ‘de massa’, atingindo um público eclético, amplo e variado, assim como avalia seu impacto e importância no cenário artístico-musical e suas reverberações até os dias de hoje. Como veículo principal, o programa serviu de suporte na construção do objeto da pesquisa, na definição de critérios para delimitação e descrição da população base pesquisada, vinculada à necessidade de compreender o referencial simbólico, códigos e práticas da MPB nos anos de 1965 a 1967. O capítulo foi dividido em três seções. Na primeira, é abordado o ciclo de shows universitários do Teatro Paramount, eleitos com unanimidade por todos os autores que abordam o tema, como responsável pela entrega da Bossa Nova a grandes platéias, criando um público interessado em acompanhar de perto sua evolução, provocando grandes mudanças na música popular brasileira. Um desses shows, O Fino da Bossa, serviu como idéia-chave para o programa televisivo, que a princípio levava o mesmo nome e depois passou a chamar apenas O Fino7. A segunda seção situa a trajetória do programa da TV Record chamado O Fino, desde sua criação em maio de 1965 até seu término em 1967, palco de estréia e consagração de muitos artistas que por lá passaram, e de consolidação da moderna música popular brasileira, conhecida entre os músicos da época como música popular moderna. Nesta parte procuramos registrar questões concernentes à influência do programa no processo histórico da MPB por meio de bibliografia, revistas, artigos etc, pois devido aos quatro incêndios que a TV Record sofreu na época, perderam-se todos os 7Todas as vezes que nos referirmos a esse programa, como já dito anteriormente, o faremos sempre como O Fino, exceto nas citações diretas em que procuramos respeitar o autor, mantendo o texto original. 16 � registros de vídeo - tape e fontes originais do programa. Na terceira seção, compondo o universo de investigação e valendo-nos principalmente de entrevistas, depoimentos e material a nós concedidos, descrevemos a participação de alguns músicos e produtores presentes e atuantes no programa e que, direta ou indiretamente, contribuem para a credibilidade das fontes e documentação recolhidas nessa pesquisa. Para tal, foi feita previamente uma seleção de personalidades com importante grau de representatividade, que tornaram possível a construção da análise e compreensão mais ampla do problema delineado. O terceiro capítulo aborda o tema central, o Zimbo Trio. Este capítulo foi dividido em três seções. A primeira seção foi dividida em quatro subseções, sendo a primeira um pequeno histórico do trio, desde sua formação até os dias de hoje, fundamentando uma trajetória de quarenta e cinco anos de resistência positiva na construção e permanência de uma maneira de fazer música e propagar sua existência no desenvolvimento da MPB, na intenção de mostrar seu legado através das concepções de arranjo, linguagem musical e pioneirismo na forma de tocar. Por anos de experiência como professora de piano popular e prática de conjunto em entidades particulares e públicas, pudemos perceber o quase total desconhecimento dos trios equivalentes à formação do Zimbo (piano-baixo-bateria) e outras formações instrumentais, bem como de importantes músicos que contribuíram como agentes diretos na concepção da MMPB. Os alunos podem ter noção de alguns deles como autores “daquele estilo ou jeito de tocar que querem fazer e não sabem o nome”, ou seja, sabem que se trata de música instrumental brasileira mas não conhecem os artistas8 que a criaram, não ouvem, provavelmente por falta de acesso, material perdido e não reeditado e, principalmente, por pouca abordagem sobre o assunto. Diante disso, sentimos a necessidade de, na segunda subseção, ter um breve levantamento sobre os principais trios e músicos que se destacaram na época fazendo música instrumental brasileira e usá-los como certo tipo de comparação com o Zimbo Trio, a fim de fundamentar as hipóteses e questões levantadas. Dentre elas, destacamos que, além de estar ativo e tocando por quarenta e cinco anos, o Zimbo permaneceu no Brasil desde sua fundação e com a mesma formação de músicos9 até 2001, pois ao fazer tal 8LPs ou relançamentos desses em CDs não tem referência de ficha técnica, pois na época não era relevante colocar o nome dos instrumentistas na capa ou contracapa. Estaremos abordando esse fato mais adiante. 9Luiz Chaves foi substituído por Itamar Collaço em 2001, ao sair do trio por motivo doença que o levou posteriormente à morte. 17 � levantamento observamos que muitos músicos considerados “os especialistas” da época, desolados com falta de incentivo financeiro, impotência diante da “mídia”, situação política em que o Brasil se encontrava, falta de patrocínio, investimento e apoio de gravadoras, foram para os Estados Unidos e Europa estabelecendo residência, onde se tornaram muito mais conhecidos e valorizados. Tal dado justificaria também a falta de conhecimento, por parte de estudantes de música popular, a respeito desses músicos, principalmente das décadas de 1970, 1980, 1990 quando a informática, meios eletrônicos e de acessos via internet não eram disponíveis como nos dias atuais. Na terceira subseção descrevemos e analisamos o que o Zimbo Trio quer dizer ao afirmar ser “Um Som Pra Frente” o seu pioneirismo e legado. A música instrumental e os músicos que a produziam são aqui pesquisados e apresentam-se como referência substancial de sua existência, pois esta pouco foi mencionada e descrita, especificamente na década de 1960 onde o foco e atenção maiores estavam nas canções e nos artistas e intelectuais envolvidos com o texto politicamente engajado. A quarta subseção trata do Zimbo Trio e o Samba-Jazz, em que procuramos apontar as características que justificam a afirmativa do Trio de ser este um de seus estilos. A segunda seção está dividida em duas subseções. A primeira trata do Zimbo Trio no programa O Fino, sua participação, influência (tanto no programa, como fora dele), projeção e contribuição na história da MPB. Na segunda seção apresentamos um LP - modelo do que seria o programa televisivo O Fino. O LP “O Fino do Fino” foi gravado ao vivo, com base na gravação do programa da TV, onde se aproveitou o público presente registrando em vinil o que lá acontecia. Uma das razões que nos levou a esse tópico foi ressaltar um item de fundamental importância para este trabalho – a presença da música instrumental no programa e não somente da música cantada – considerando a lacuna existente nas abordagens feitas sobre o assunto, constatada na reincidente omissão da existência da música instrumental no programa. Buscamos mostrar e confirmar, por meio de documentos iconográficos e entrevistas, a existência a e a importante presença da música instrumental no programa O Fino. A terceira seção contém a discografia e ficha técnica da produção do Zimbo Trio no período entre 1964 e 1967, período proposto na presente pesquisa. Valendo-se de abordagens histórico-sócio-culturais e estético-musicais, a pesquisa é qualitativa e documental. O trabalho apresenta três Anexos, sendo dois destes, documentos sonoros que embasam a discussão dos objetivos da presente pesquisa – 18 � contextualização histórica do período, o programa O Fino e a importância do Zimbo Trio na música instrumental brasileira ao estabelecer paradigmas próprios na concepção de arranjo, execução e elementos de inovação pós-Bossa Nova. Apêndice I: transcrição na íntegra das entrevistas a nós concedidas. Recorreu-se à história oral – através de entrevistas com músicos, críticos e produtores que, de alguma maneira, tiveram um grau de representatividade no período estudado – como estratégia para melhor compreensão dos códigos e práticas desse universo musical específico. Apêndice II: documentos iconográficos. Anexos: dois CDs. No primeiro CD selecionamos 24 músicas que traduzem a “assinatura musical” do Zimbo Trio. Temas executados pelo trio (gravação original da época) que representaram os pólos norteadores de sua conduta musical em concepção, em arranjos, na maneira de tocar e que apresentam sua principal característica e diferencial: “um som pra frente”, o “botar pra fora”. Para constatar tais especificidades são apresentadas versões diferentes dos mesmos temas com quatro trios de mesma formação instrumental e mesmo período onde pudemos por meio de comparação, fundamentar nossas considerações finais e possibilitar ao ouvinte estabelecer seu próprio parecer. O segundo CD contém a gravação das entrevistas a nós concedidas e transcritas no Anexo I. Acreditamos ser este um material riquíssimo que poderá servir a várias linhas de pesquisa, não somente na música, mas também nas ciências humanas, comunicação, letras, lingüística, artes em geral e em contexto multidisciplinar. Por conta disso, entendemos que apenas a transcrição das entrevistas e relatos não seria suficiente para passar ao leitor o ambiente psicológico que envolveu cada um dos depoentes durante as entrevistas – narração que revolve a vida, os feitos, a memória, as saudades, as dores, mágoas, alegrias, raivas e toda a emoção resultante da lembrança. 19 � 1. UMA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA 1.1. A Música Popular Brasileira na década de 1960 O florescimento cultural e político internacional da década de 1960 estava ligado a uma série de condições materiais comuns a diversas sociedades, especialmente na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, mas que também era compartilhada por países com crescente urbanização e consolidação de modos de vida e cultura das metrópoles, como o Brasil. A socialização da cultura brasileira nessa década foi construída sobre coordenadas históricas que podem ser observadas nas sociedades que se inserem na modernidade urbana capitalista, pela resistência ao academicismo nas artes, emergência de invenções industriais de impacto na vida cotidiana, e, conforme Ridenti (2001, p. 14) pela “proximidade imaginativa da revolução social”. Em termos musicais, no Brasil do século XX, a década de 1960 é considerada a mais efervescente e produtiva artisticamente, como atesta o crítico e produtor musical Homem de Mello que, estudando o período compreendido entre 1901 a 1985, avaliou que 1968 foi o ano de maior número de êxitos da música popular brasileira junto ao público, justamente no ano em que a ditadura militar radicalizou suas ações através da promulgação do Ato Institucional n° 5. O que aconteceu no Brasil, entretanto, não foi um fato isolado, pelo contrário, o movimento cultural brasileiro repercutiu uma onda mundial de transformações que floresceu em todo o mundo, após a Segunda Guerra Mundial. Durante os anos de guerra os países se viram obrigados a desenvolver novas tecnologias de comunicação – como o embrião do que viria a ser a rede mundial de computadores, por exemplo - e nas décadas posteriores ao fim da guerra, pouco a pouco essas tecnologias foram disponibilizadas para uso não militar. Em decorrência desta liberalização tecnológica, a década de 1960 foi marcada por transformações que mudaram alguns paradigmas da ciência e da cultura de massas, dando a sensação de que o mundo havia ficado “menor”10. A informação ganhou uma velocidade nunca antes imaginada, fazendo com que as notícias transmitidas muito próximas do “tempo real” provocassem mudanças simultâneas de comportamento coletivo, e não seria nenhum exagero afirmar que – não apenas pela simples divulgação dos fatos - houve 10Um autor importante dessa idéia é Marshall McLuhan, que cunhou o termo ‘Aldeia Global’ se tornando o pai intelectual de muita gente que pensa igualmente. 20 � relação entre a Primavera de Praga (PRIMAVERA...)11, o Maio de 1968 (MAIO...)12, em Paris (HISTORIANET)13, e a Passeata dos 100 mil, no Brasil (DOMENICO, 2003)14. É importante notar que desde 1950 o Brasil vinha implementando uma política desenvolvimentista, idealizada e bancada politicamente pelo presidente Juscelino Kubitschek através de seu ambicioso Plano de Metas (“50 Anos em 5”), e as inovações tecnológicas que se desenvolviam mundo afora, davam ao país a sensação de estar sintonizado com o Primeiro Mundo, como lembra o cantor e compositor Chico Buarque, em depoimento: Nos anos 50 havia mesmo um projeto coletivo, ainda que difuso, de um Brasil possível, antes mesmo de haver a radicalização da esquerda dos anos 60. O Juscelino, que de esquerda não tinha nada, chamou o Oscar Niemeyer, que por acaso era comunista, e continua sendo, para construir Brasília. Isso é uma coisa fenomenal. [...] Ela foi construída sustentada numa idéia daquele Brasil que era visível para todos nós, que estávamos fazendo música, teatro, etc. Aquele Brasil foi cortado evidentemente em 64. Além da tortura, de todos os horrores de que eu poderia falar, houve um emburrecimento do país. A perspectiva do país foi dissipada pelo golpe. (BUARQUE, 1999, p. 8) Após a instalação do regime militar, em 31 de março de 1964, seguiu-se um período de repressão, onde os artistas e intelectuais de esquerda que se identificavam com as propostas do avanço histórico em direção à revolução burguesa capitalista foram obrigados a ”repensar seu papel frente à questão da consciência política na luta pela transformação social”. (PEPPE, 2006, p. 1) Para melhor compreender a situação político-social do Brasil na década de 1960, e como os intelectuais e artistas de esquerda se relacionavam com ela, vamos resgatar uma reflexão que Willians (1979, p. 134, in RIDENTI, 2005, p. 81-82) classificou de “estruturas do sentimento”, que seria a possibilidade de aproximação teórica para tratar do surgimento de um imaginário crítico compartilhado por amplos setores de artistas e 11Movimento realizado em 1968 na Tchecoslováquia, liderado por intelectuais reformistas do Partido Comunista Tcheco interessados em promover grandes mudanças na estrutura política, econômica e social do país. 12Greve geral acontecida na França em maio de 1968 adquirindo significado e proporções revolucionárias, mobilizando uma insurreição popular que superou barreiras étnicas, culturais, de idade e de classe. 13Em 26/06/1968, cerca de cem mil pessoas ocuparam as ruas do centro do Rio de Janeiro e realizaram o mais importante protesto contra a ditadura militar até então. A manifestação pretendia cobrar uma postura do governo frente aos problemas estudantis, dela participaram trabalhadores, intelectuais, artistas, padres e mães. 14Guca Domenico diz que os satélites e as televisões faziam com que as notícias se espalhassem rapidamente mundo afora, e fatos acontecidos na Europa eram “respondidos” no Brasil, como se fosse um movimento concatenado, ainda que estas repercussões fossem um tanto caóticas. 21 � intelectuais brasileiros, a partir de 1950. Estas “estruturas do sentimento” representam uma hipótese cultural relevante para a arte e para a literatura, pois procuram inter-relacionar pensamento e sentimento – “o pensamento tal como sentido e o sentimento tal como pensado” (RIDENTI, 2005, p. 81-82) – gerando a consciência prática de um tipo presente. Naquele momento em que este sentimento era vivido, não se podia decodificá-lo com clareza, mas com o passar do tempo e certo distanciamento crítico, tornou-se possível avaliar que boa parte das obras de arte a partir do fim da década de 1950 trazia embutida a “estrutura de sentimento” de uma brasilidade romântica e revolucionária. O modelo de identidade nacional idealizado pelos intelectuais brasileiros, paradoxalmente, era composto de um autêntico homem do povo brasileiro recolocado numa posição de recuperação de suas raízes na contramão da modernidade, sem dissociá-las das utopias de construção do futuro vislumbrando no horizonte o socialismo. Naquele contexto brasileiro, a valorização do povo não significava criar utopias anticapitalistas passadistas, mas progressistas; implicava o paradoxo de buscar no passado (as raízes populares nacionais) as bases para construir o futuro de uma revolução nacional modernizante que, ao final do processo, poderia romper as fronteiras do capitalismo. (Ibid., p. 84) Expressões desta estrutura de sentimento romântica e revolucionaria desenvolvida no Brasil na década de 1960 são os filmes do Cinema Novo, rodados em 1963, como Deus e o Diabo na Terra do Sol (de Glauber Rocha), Os fuzis (de Ruy Guerra) e Vidas Secas (de Nelson Pereira dos Santos); a dramaturgia do Teatro de Arena de São Paulo, onde se destacavam Oduvaldo Viana Filho (o Vianinha), Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e Francisco de Assis; a canção engajada de Carlos Lyra e Sérgio Ricardo; e os agitprop dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, através de manifestações de teatro, música, cinema e literatura15. De início, o novo governo militar perseguiu parlamentares, líderes políticos e sindicalistas, dissolveu organizações populares, mas permitiu uma relativa liberdade criadora entre artistas e intelectuais, por isso este sentimento de brasilidade romântica e revolucionária ainda podia ser encontrado em canções engajadas, entre os anos de 1964 e 1968, pois era possível alguma liberdade de expressão através das artes, especialmente para os setores mais privilegiados da sociedade, as classes alta e media. 15Sobre a produção do CPC da UNE, ver Berlinck, 1984. Sobre a produção do Teatro de Arena, ver Arruda, 2001. 22 � Artistas e intelectuais, isolados politicamente das classes populares, tiveram suas vozes ouvidas apenas entre a classe média consumidora de cultura, o que, por um lado, deixou de oferecer perigo maior e, por outro, acabou por criar certa autonomia que permitiu um grande debate intelectual na busca de novas perspectivas culturais e políticas para entender a recente conjuntura nacional, inserindo nesse contexto, o problema da criação artística engajada. A nova conjuntura transformava a consciência social em prioridade na luta contra o regime, tornando a cultura um dos únicos espaços de atuação da esquerda, agora como instrumento de resistência. (PEPPE, 2005, p. 1) As músicas daquele período primavam pela solidariedade dos compositores com o sofrimento do próximo, denúncia das péssimas condições de vida nas grandes cidades e no campo - com enfoque principal no retirante nordestino -, transparecendo certa evocação da liberdade enquanto utopia romântica do povo-nação redentor e salvador da humanidade. Na música popular a resistência ao regime militar se confundiu com a própria música comercial, e o nome Música Popular Brasileira (MPB) aglutinou um público fiel e massivo que garantia independência ao artista, pelo menos em relação ao mecenato do Estado, ao contrário do cinema e do teatro que precisavam do apoio oficial. Nesta sintonia, os cantores e compositores engajados oriundos da classe média urbana, aparentemente identificavam-se com os desvalidos migrantes nas cidades e os deserdados da terra, propondo uma arte nacional e popular como personificação do caráter do povo brasileiro, a quem esses artistas julgavam ser preciso ensinar a lutar politicamente. Depois do golpe militar de 1964, instalou-se no país uma ditadura que fez com que se criasse uma nova conjuntura, portanto, era necessário transformar a consciência social em prioridade para lutar contra o regime, e por esta razão a cultura tornou-se um dos únicos espaços possíveis de atuação e resistência da esquerda brasileira, com destaque para compositores, atores e cineastas. Compartilhava-se certo mal-estar pela suposta perda da humanidade, acompanhado da nostalgia melancólica de uma comunidade mítica já não existente, mas esse sentimento não se dissociava da empolgação com a busca do que estava perdido, por intermédio da revolução brasileira. Pode-se mesmo dizer que predominava a empolgação com o “novo”, com a possibilidade de construir naquele momento o “país do futuro”, mesmo remetendo a tradições do passado. (RIDENTI, 2005, p. 87) A estrutura de sentimento que refletia a brasilidade voluntarista dos anos de 1960, de certa forma estava associada ao cenário internacional, uma vez que no cenário da Guerra Fria surgiam esforços de países não alinhados com o Primeiro Mundo (associados 23 � aos Estados Unidos, principalmente) e nem com o Segundo Mundo (associados à União Soviética), e todo o globo vivia um clima de “terceiro-mundismo”, de solidariedade internacional com os povos subdesenvolvidos e da libertação nacional diante do imperialismo. A experiência viva da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária foi o reflexo de um fenômeno que se espalhou mundo afora, ligando uma série de condições, como o aumento significativo da classe média, acesso crescente ao ensino superior, peso significativo dos jovens na composição etária da população, “sem contar a incapacidade do poder constituído para representar sociedades que se renovavam e avançavam também em termos tecnológicos.” (RIDENTI, 2005, p. 90) Com o acesso cada vez maior a um padrão de vida que incorporava bens de consumo cotidiano de eletrodomésticos – especialmente a televisão -, ainda que estas condições materiais não explicassem por si as ondas de rebeldia e tampouco as estruturas de sentimento que as acompanhavam, elas deram, em parte, uma resposta às mudanças na organização social na época. Tânia Garcia (2006) escreve que a modernidade representada pelo desenvolvimento tecnológico, progresso urbano e um processo de massificação do consumo, projetou-se no campo político na emancipação das formas arcaicas de poder, e a nova ordem ocasionou mudanças, provocando desestabilização das elites dominantes. Estas mudanças, de maneira concreta, refletiram-se no cotidiano da sociedade brasileira através da descaracterização dos costumes locais, substituídos por um modo de vida desterritorializado e estandardizado, imposto pelo mercado e propagado pelos meios de comunicação. Estas mudanças provocaram atitudes reativas da sociedade, especialmente nos setores ligados ao campo das artes de espetáculo - música, teatro e cinema – que buscaram maneiras de se contrapor à onda asfixiante de aculturação, realçando a identidade nacional. Em vista disto, Ridenti (2001, p. 14) avalia que, com a derrota da esquerda brasileira para a ditadura militar e os rumos dos eventos políticos internacionais, a proximidade imaginativa da revolução social foi perdida. Paralelamente à modernização conservadora da sociedade brasileira e a constatação de que o progresso tecnológico não correspondeu às esperanças libertárias do processo em si, o mesmo autor afirma que ficou claro que o “modernismo temporão não bebia na fonte da eterna juventude, e o ensaio geral da socialização da cultura frustrou-se antes da realização da esperada revolução brasileira”. Deste modo, a sociedade brasileira foi ganhando novos contornos, e a intelectualidade de esquerda adaptou-se à nova ordem, 24 � criando um nicho de mercado para produtos culturais críticos. Ao mesmo tempo universidades, rádios, televisões, agências de publicidade, empresas públicas e privadas tornaram-se ótimas oportunidades para profissionais qualificados, sobretudo para aqueles que se consideravam sobreviventes de esquerda, e haviam se transformado em expoentes da cultura viva do momento imediatamente anterior. No que refere à música popular dos anos de 1960, consolidou-se um sistema musical-popular que articulava “autor-obra-público-crítica” e inaugurou-se uma nova maneira de pensar e viver música no Brasil, concorrendo para sua transformação numa linguagem mais literária – assim como o que ocorreu com o cinema e o teatro. Esta mudança estrutural da linguagem do fazer musical acabou por gerar uma nova estrutura de recepção, agregando um público jovem, universitário, sintonizado com os códigos e comportamentos de esquerda. Esse segmento de público, mais tarde ampliado (no caso da música popular), constituiu uma primeira camada na renovação da recepção das artes de espetáculo no Brasil, sob a vigência de uma cultura nacional- popular de esquerda. Não apenas os novos dramaturgos, cancionistas e cineastas migravam de classes e espaços sociais, nos quais as “letras” (literatura, meio acadêmico, crítica literária, jornalismo) tinham um papel central, altamente valorizado, como definidoras do conceito de “cultura”, mas um novo público se formava, a partir de um espaço público onde o “espírito letrado” era predominante. (NAPOLITANO, 2001, p. 1) A música popular brasileira engajada, paradoxalmente, nasceu como uma das vertentes da Bossa Nova, que passou a ser considerada alienada na década de 1960 por explorar temas prosaicos como barquinho, amor, sorriso e flor, etc. Com o segundo nascimento da Bossa Nova, a partir de 1963 (BARROS, 1963, p. 15)16, alguns de seus principais expoentes, como Vinícius de Moraes, Carlos Lyra, Nara Leão e Sérgio Ricardo, buscaram estabelecer uma relação com o samba tradicional de Nelson Cavaquinho, Cartola e Zé Kéti17, proporcionando um segundo nascimento para o movimento num formato mais moderno, atuante e, sobretudo, inteiramente participativo. 16Segundo Lins e Barros a Bossa Nova teve um duplo nascimento: o primeiro em 1959 correspondendo ao “nascimento” propriamente dito do “gênero”, com o lançamento da música “Desafinado” e do álbum “Chega de Saudade”, de João Gilberto, sendo visto como uma síntese dos novos procedimentos criativos e expressivos de um grupo de jovens músicos; o segundo em 1963, marcando a reelaboração da bossa original pela indústria cultural norte-americana, com a “jazzificação” dos seus componentes musicais, sendo então e exportada para o mercado brasileiro e mundial. 17Compositores que moravam nos morros do Rio de Janeiro, considerados representantes populares. 25 � A ponte entre a Bossa Nova e o samba tradicional - legitimado perante os novos critérios de formação e hierarquização do gosto musical que se anunciavam - foi estabelecida pelo show “Noite da Música Popular Brasileira” realizado em dezembro de 1962, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, produzido pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), abrindo um espaço fundamental para a renovação do gosto dos estratos mais jovens da classe média, proporcionando desta maneira, encontros sociais e culturais com o “morro” (NAPOLITANO, 2001, p. 16). Esta iniciativa buscava agregar duas tradições, mas, sobretudo uniu dois públicos: o jovem de classe média e o “povo”, e ao longo dos anos este público romperia os limites do Rio de Janeiro e seria a base na expansão do leque de ouvintes da música popular. Compositores da primeira fase da Bossa Nova, como Vinícius de Moraes, Carlos Lyra e Sérgio Ricardo buscavam uma Bossa Nova nacionalista, afirmando a música popular como meio de problematizar as questões nacionais ao mesmo tempo em que imaginavam elevar o nível musical do público, construindo uma ponte entre dois mundos divididos, tanto cultural quanto socialmente. Ainda que esta utopia defendida pela vanguarda artística não tenha logrado sucesso, especialmente por se mostrar paternalista e pretender “elevar” o gosto musical do povo, ampliou o conhecimento do público de classe média inserido no mercado fonográfico acerca da música popular brasileira de outros estilos, chanceladas por músicos sofisticados, fazendo nascer um público da moderna música popular que incorporou grande parte da tradição. Depois do golpe militar de 1964, esse público cresceu substancialmente, pois a música e o teatro tornaram-se espaços de sociabilidade da juventude de esquerda, cada vez mais carente de espaços públicos para se expressar. Há que se notar que, diferentemente do teatro, após a tomada do poder pelos militares, a música popular brasileira passou a ocupar espaço na mídia e viu seu público crescer vertiginosamente, atingindo franjas de um segmento bastante popular, seja pela atuação de entidades civis, estudantis e sindicais ligadas à militância de esquerda, seja pela penetração da televisão e da indústria fonográfica, ampliando o leque de consumidores. Ao contrário do que ainda se afirma, sobretudo no plano da memória dos protagonistas, não foram a música estrangeira ou os segmentos mais populares da música brasileira (como a jovem guarda) que mais concorreram para consolidar o mercado fonográfico em nosso país, criando um novo “sistema” de produção/consumo de canções. Foi a chamada “Música Popular Brasileira” (MPB) que sintetizou a tradição da grande música da “era do rádio”, nos anos 30, com a renovação proposta pela bossa nova, no início dos anos 60. (Ibid., p. 17) 26 � De acordo com o mesmo autor, a “abertura” do público original de música popular, de raiz nacionalista e engajada, se deu via mercado, com todas as contradições que este processo acarretou na assimilação da experiência do ouvinte, ou seja, a tensão entre “diversão” e “conscientização”. Esta suposta divisão sobre função da música popular brasileira (conscientizar as massas ou diverti-las) era a grande questão para alguns artistas ditos “engajados”. Estes artistas viviam sob constantes questionamentos, como aconteceu com Nara Leão, a jovem cantora de classe média que despontou com a Bossa Nova. No espetáculo Opinião, onde se apresentava ao lado de um representante da camada popular urbana, Zé Kéti, e um nordestino cantor de temas rurais, João do Vale18, a cantora se expunha sua preocupação ao público dizendo: Ando muito confusa sobre as coisas que devem ser feitas na música. Mas tenho uma certeza: a de que a canção pode dar às pessoas algo mais que distração e deleite. A canção popular pode ajudá-las a compreender melhor o mundo onde vivem e a se identificar num nível mais alto de compreensão. (Apud TINHORÃO, 1991, p. 242) Além das dúvidas dos artistas envolvidos, segundo Tinhorão (1991), naquela altura verificou-se ser impraticável a conquista da aliança popular para fins de protesto contra as injustiças sociais por meio de canções, uma vez que um dos atores que supostamente deveria estar interessado – o povo – não aceitou a comunhão cultural a partir da autoritária aceitação do estilo da Bossa Nova. Assim, e para atender a certa necessidade de grandiloqüência, uma vez que esse tipo de canção exigia um tom épico, os compositores e letristas de música de protesto, todos formados na época da vigência da bossa nova intimista (Edu Lobo, Vandré, Gilberto Gil, Capinam, Ruy Guerra, Torquato Neto, entre outros), rompem afinal com o estilo Carnegie Hall, e passam a cantar as belezas do futuro, com dezenas de versos dedicados ao dia que virá. (Ibid., p. 243) Mesmo assim, as canções contemporâneas oriundas do meio universitário de São Paulo e Rio de Janeiro para fins de protesto, lançadas em shows de faculdades, despertaram o interesse comercial das redes de televisão e estas vieram ao encontro do protesto particular da classe média alta contra os rigores do regime militar instalado no país a partir de 31 de março de 1964. 18Compositor de um dos grandes sucessos do show, a música “Carcará”. 27 � Retomando o inicio do capitulo, Ridente (2005) escreve que o florescimento cultural e político vivido na década de 1960, ligados a uma série de condições materiais que marcaram a cultura brasileira, traziam uma aspiração pela mudança. Não uma simples mudança, mas almejava-se a transformação do homem e suas inter-relações político- sociais, e para isto, a aproximação entre arte e política deveria representar um papel fundamental no processo de transformação. Paradoxalmente, a transformação da sociedade para se criar o homem novo estava calcada em velhos paradigmas do passado, na idealização de um homem do povo com raízes rurais, que supostamente não havia se contaminado pela modernidade urbana capitalista. Vislumbrava-se uma alternativa de modernização que não implicasse a submissão ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro, gerador da desumanização. A questão da identidade nacional e política do povo brasileiro estava recolocada, buscava-se ao mesmo tempo buscar suas raízes e romper com o subdesenvolvimento, o que não deixa de ser um desdobramento à esquerda da chamada era Vargas, propositora do desenvolvimento nacional com base na intervenção do Estado. (Ibid., p. 84) Dentro desse quadro político e social, desenvolveu-se uma nova maneira de fazer música que os historiadores passaram a chamar de Moderna Música Popular Brasileira. 1.2. A moderna música popular brasileira A expressão “música popular” antes do surgimento da sigla MPB caracterizava sua situação de oposição à “música erudita” ou “clássica”, e somente a partir de 1960 esta expressão passou a ser substituída para designar não mais uma música produzida e/ou consumida pelas classes populares, mas para designar uma construção poético-musical vinculada à resistência ao regime militar por parte dos cantores e compositores de origem universitária. Passou a haver uma distinção clara entre “música popular brasileira” e “MPB”, pois a segunda deixou de expressar a música popular urbana como um todo para tornar-se a expressão de um grupo de classe média universitária, concentrada no eixo Rio - São Paulo, tendo a crítica ao regime militar como seu foco principal de manifestação. (SILVA, Alberto, 1994, p. 145-148) 28 � Segundo Vilarino (2002), depois do golpe militar de 1964, período em que a participação política caracterizava as artes, e em particular a música, do ponto de vista político, apenas a Jovem Guarda destoou no ambiente musical brasileiro, e foi um contraponto à chamada MPB, pois politicamente representava uma filosofia conformista e consumista, e em nível de costumes, era menos transgressor do que a MPB. É essencial buscar o significado da expressão “MPB”, ou historicizá-la, pois numa leitura menos atenta, qualquer música consumida e/ou produzida pelas camadas populares e em nosso idioma se encaixa em tal conceito. Lapidar a palavra, retirar as várias camadas de significados que lhe foram incorporadas com o tempo, uma vez que o termo também é construído historicamente, contribui para se chegar às suas especificidades. (Ibid., p. 18) Conforme o autor, a sigla MPB representa um movimento dentro da música brasileira, e seu caminho de sucesso teve início no momento em que a ditadura militar se instaurou no país. A exemplo da Jovem Guarda, nos primeiros anos a MMPB manteve um vínculo com a televisão e isto foi fundamental para a constituição de um público mais amplo para esta música. Não foi o único espaço de constituição desse público, mas o alcance da televisão em comparação com os outros meios de divulgação nos dá uma idéia de sua importância. Com o recrudescimento da censura e a conseqüente derrocada dos festivais, a MPB perderia espaço gradativamente. Várias foram as definições para a MPB: música de protesto, música dos festivais, música politicamente engajada. Moderna Música Popular Brasileira, ou MMPB, também era uma expressão utilizada por alguns críticos, como Augusto de Campos e Walnice Nogueira Galvão. (Ibid., p. 19) A Moderna Música Popular Brasileira (MMPB) pode ser considerada uma continuidade da Bossa Nova, na medida em que se apropriava de seus elementos musicais (harmonia, melodia e arranjos) e incorporava a temática engajada na luta contra o autoritarismo do regime militar pós-1964, através de canções bem urdidas com mensagens direcionadas, mesmo que veiculadas de maneira sutil, em decorrência da censura do Estado. Um dos maiores representantes da música urbana dos anos de 1960, o cantor e compositor Chico Buarque declarou em entrevista ao repórter Narciso Kalili, da revista Realidade, que acreditava que o compositor deveria estar situado em sua época, ou seja, ser participante: 29 � A música popular brasileira volta hoje às suas raízes, como se os primeiros que fizeram bossa nova tivessem esquecido alguma coisa que cabe a nós ir buscar. Não sou compositor de música de protesto intencional. Isso porque quando alguém se decide a fazer alguma coisa estraga a espontaneidade. É preciso sentir os problemas de hoje e traduzir esse sentir em música. (HOJE: vida e amor do povo brasileiro, 1966, p. 124) Para Galvão (1976), na MMPB estava presente a elaboração musical mais sofisticada da bossa nova, e a proposta política da MMPB de resistência ao regime militar esbarrou na ausência de qualquer proposta efetiva de ação, limitando-se a cantar, e, quando censurada, reclamando o direito de cantar, “apesar de você” - como escreveria Chico Buarque numa referência velada ao regime militar, na música que se tornou emblemática e se transformou em “hino da resistência”, mesmo com sua execução pública proibida pela censura (WERNECK, 1989)19. Galvão afirma que proposta da MMPB era assumir um compromisso para com a realidade cotidiana presente em duas frentes: no plano musical, consistia em voltar às velhas formas de canção urbana (sambão, sambinha, marcha, marcha rancho, cantiga de roda, ciranda, frevo, etc.) e da canção rural (moda de viola, samba de roda, desafio, etc.); no plano literário, o compromisso era com a interpretação do mundo que nos cercava, especialmente as concepções brasileiras com a inserção de personagens idealizados como o boiadeiro, o marinheiro, o retirante nordestino, o homem do campo, o mascate, o operário da construção, etc. Sendo a MMPB uma proposta nova dentro da tradição, como derrubadora de mitos20. A proposta nova da MMPB reside nesse compromisso com uma realidade quotidiana e presente, com o “aqui e agora”. Esse compromisso leva-se a adotar a desmistificação militante, derrubando velhos mitos que se encarnavam em lugares comuns da canção popular, como a louvação da 19“No início de 1970 Chico volta ao Brasil em meio a um estardalhaço (organizado por recomendação de Vinícius), que incluía especial para a Globo, show no Sucata e o lançamento do LP Chico Buarque Vol. 4 mas o Brasil não era aquele descrito nas cartas de André Midani. A tortura e desaparecimento de pessoas contrárias ao regime do general Médici eram uma constante. O ufanismo do ditador ("Ninguém segura este país") aderia aos carros ("Brasil, ame-o ou deixe-o", quando não "Ame-o, ou morra!"), e a algumas canções populares ("Ninguém segura a juventude do Brasil"), tudo isso no ano que a seleção canarinho conquistaria o tricampeonato mundial. Chico fez "com os nervos mesmo" Apesar de Você e enviou para a censura, certo de que não passaria. Passou. O compacto com Desalento e Apesar de Você atingia a marca de 100 mil cópias quando um jornal insinuou que a música era uma homenagem ao presidente Médici. A gravadora foi invadida, as cópias destruídas. Num interrogatório quiseram saber de Chico quem era o “você”. "É uma mulher muito mandona, muito autoritária", respondeu. A canção só foi regravada no LP Chico Buarque 1978”. 20Faz uma comparação entre Ave Maria do Morro, de Herivelto Martins onde há a idealização da vida no morro, Feio não é bonito de C. Lyra, G. Guarnieri e Catulo da P. Cearense e Disparada, de Vandré e Théo. 30 � beleza do morro e do sertão, da vida simples, mas plena do favelado e do sertanejo. (GALVÃO, 1976, p. 93) De acordo com a autora, a MMPB tinha como característica fundamental sua intencionalidade informativa e participante do momento político-social vivido pelo Brasil, o que justificava seu teor tanto mais épico do que lírico, onde o próprio objeto da narração se colocava ao ouvinte de forma direta, ou entre o objeto da narração e o ouvinte se interpunha a dor do narrador ante o objeto narrado. Para Galvão, ao contrário de outro estilo de música que se produziu na época, o ié-ié-ié21 (NAPOLITANO, 2001, p. 95) nacional, de um escapismo óbvio e de letras sem muita poesia, as canções da MMPB eram de melhor qualidade e mais sofisticada e graças a isso tinham maior força de convicção e mensagens sutis. As diferenças entre as tendências musicais da época eram tão evidentes que os artistas se atacavam via imprensa, especialmente os “alienados” e os “engajados”, como na revista Intervalo (SUBVERSIVOS, n. 167, p. 8-9, mar. 1966), onde o cantor e compositor Jorge Ben (hoje Jorge Benjor) se referiu aos “subversivos do samba”, sem procurar meias- palavras para expressar como se sentia atingido: Recebo gelo, piadinhas, indiretas e críticas dos subversivos do samba, a turma do samba social. Não tenho nada contra eles, mas deixem que eu cante minhas composições para o público que quiser e acompanhado pelo instrumento que me for mais conveniente... Outra coisa: a música minha e de cantores da Jovem Guarda, como Roberto e Erasmo Carlos – por sinal também podados pelos subversivos do samba – é simples, acessível, fácil de guardar. Por isso, sem o pernóstico do jazz importado e de letras sociais ela é cantada por todo mundo, por crianças que mal sabem falar, por jovens e por adultos, O que quer dizer: é sucesso, mesmo sofrendo esnobação e pichação dos subversivos do samba. Estas posições antagônicas se manifestaram quando em entrevista concedida à mesma revista Intervalo (ELIS Regina, Intervalo, n. 168, p. 10-11, 1966) Elis Regina também não usou de meias-palavras para se referir aos adeptos da Jovem Guarda, em contraponto aos adeptos das músicas “engajadas”, respondendo à crítica de Jorge Ben no mesmo diapasão: Esse tal de ié-ié-ié é uma droga: deforma a mente da juventude. Veja as músicas que eles cantam: a maioria tem pouquíssimas notas e isso as torna fácil de cantar e de guardar. As letras não contêm qualquer 21Iê-iê-iê: Corruptela do ornamento vocal Beatles. 31 � mensagem: falam de bailes, palavras bonitinhas para o ouvido, coisas fúteis. Qualquer pessoa que se disponha pode fazer música assim, comentando a última briguinha com o namorado. Isso não é sério, nem é bom. Então, por que manter essa aberração? (ELIS Regina, Intervalo, n. 168, p. 10-11, 1966) Conforme Vilarino (2002), não chega a surpreender que por suas virtudes, a MMPB mobilizasse o ouvinte através de palavras-de-ordem que ofereciam voz aos oprimidos ao mesmo tempo em que criticavam e/ou ironizavam os alienados, numa flagrante dicotomia entre direita e esquerda – ou seja, os apoiadores (ou que simplesmente aceitavam), e os críticos (ou os adversários) do regime militar vigente. Galvão (1976) afirma que faixa de público que consumia a MMPB era de gosto mais refinado, distante da alienação dos auditórios histéricos do ié-ié-ié, e como o teor das letras era um tanto “incômodo”, também não servia para boates ou casas noturnas que naquele momento eram mais condizentes com a linha intimista da bossa nova, e desta maneira o público consumidor da MMPB tinha um perfil bem delineado: O público da MMPB, de gosto mais refinado, tem sua massa constituída por universitários e seus adjacentes, como intelectuais em geral, artistas, publicitários, jornalistas, etc. É um público mais ou menos cultivado, que se acha familiarizado ao nível da informação com as preocupações sociais, econômicas e políticas de nosso tempo, e que responde bem a alusões à injustiça e à desigualdade. (Ibid., p. 94) De acordo com a autora, o projeto informativo e participante de denúncia de uma “realidade feia” era direcionado a um público qualificado, pois eram retratados os cenários em que viviam os desvalidos de maneira crua para, intencionalmente, derrubar alguns dos mitos tradicionais da canção popular brasileira que raramente expunha a realidade do país, optando por mascará-la através de imagens poéticas – como o glamour da favela retratada numa canção de grande sucesso “Ave Maria no Morro”22, de Herivelto Martins, onde se cantava que quem mora no morro “vive perto do céu.” O público consumidor da MMPB, predominantemente de instrução universitária, exigia que mesmo de maneira sutil ou nas entrelinhas as canções ventilassem problemas sociais, políticos e econômicos, ainda que esta proposta de canção “participante” e 22Música que descrevia a favela como um lugar idealizado, sem as maldades da cidade, apesar da miséria de seus moradores. Foi um dos grandes sucessos com o Trio de Ouro, nos anos 50, cujo destaque era a cantora Dalva de Oliveira. 32 � “informativa” fosse tão escapista e consoladora para um público intelectualmente sofisticado como acontecia com as canções alienadas da jovem guarda, que serviam para pessoas sem preocupações políticas em busca do divertimento puro e simples na música popular. Assim, Galvão (1976, p. 95) constata que o dia que virá era uma constante no imaginário que compunha a mitologia da MMPB, numa referência explícita ao almejado final da ditadura militar, onde, finalmente, o “povo” e seus representantes (isto é, os cantores “engajados”) seriam os grandes vencedores. Vilarino (2002) declara que cantando o dia que virá os artistas, compositores e intérpretes se colocavam como agentes de seu tempo, posicionando-se criticamente e situando uma discussão entre dois referenciais: o sonho e a realidade. Neste contexto, tanto a roda de samba quanto o ponteio se apresentavam como manifestações populares onde os compositores propunham como resistência da cultura popular – que passava a ser um espaço de criação autônoma em busca de caminhos próprios: Se o sonho está no futuro, a luta pela sua concretização está no presente. Se tomarmos as três temporalidades (passado, presente e futuro), o presente é a mais importante, pois só nele estão as possibilidades de construção e mudança, é no presente que levamos avante nossos projetos, materializamos nossos anseios e constituímos nossa memória, fruto de nossas experiências e trajetória de vida. (Ibid., p. 69-70) Ridenti (2005, p. 94) assevera que depois do golpe de 1964, consolidou-se a indústria cultural no Brasil e surgiu uma fatia de mercado ávida por produtos culturais que representassem uma contestação à ditadura através de livros, filmes, discos, revistas, jornais e peças teatrais. Parecia contraditório – e não deixava de ser – que a estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária presente nos atores da MMPB que mitificava a postura anti-mercantilista e questionava sua transformação em objeto de consumo, encontrasse grande aceitação no mercado consumidor, especialmente nas classes média e alta. Exemplos disto eram dados pela tiragem de mais de 20 mil exemplares da Revista Civilização Brasileira, entre 1965 e 1968, com direcionamento eminentemente esquerdista, alem do sucesso de canções engajadas nos festivais da canção popular promovido e veiculado pelas televisões (NAPOLITANO, 2001). Porém, esta postura revolucionária estava longe de ser unanimidade entre os atores participantes do processo. O autor cita Cevasco: 33 � O fato de vários artistas do período terem compartilhado da estrutura do sentimento da brasilidade revolucionária não significa que havia total identidade entre eles, que por vezes eram mesmo rivais, nem que suas obras deixassem de ser diferenciadas, ainda que de algum modo expressassem essa estrutura de sentimento no sentido de articulação de uma resposta a mudanças determinadas na organização social. (in NAPOLITANO, 2001) Napolitano (1998) lembra que na MMPB havia duas correntes mais ou menos delineadas, entre os “engajados” que buscavam produzir uma música sofisticada e ao mesmo tempo popular, e os “alienados”, adeptos de sonoridades musicais e posturas políticas mais conservadoras. Entre os ”engajados” figuravam nomes como Edu Lobo, Geraldo Vandré, Chico Buarque e Sidney Miller, ao passo que entre os “alienados” destacavam-se Roberto Carlos, Erasmo Carlos e a turma da jovem guarda. E uma vertente dos “alienados” (ainda que não se pudesse considerá-los desarticulados politicamente) era encabeçada por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, Capinan e Torquato Neto, que num momento seguinte, no final da década de 1960, apoiados por estratégias de publicidade e marketing, assumiriam posições estéticas contrárias às consumidas pela juventude politizada, deflagrando o movimento tropicalista. Entre os “alienados”, destacava a turma da jovem guarda, mas sua atuação estético-política era tão incipiente e beirando a inocência que diante de acusações diretas ou indiretas, disparadas por críticos e artistas de esquerda, por incapacidade de articulação, eles pouco argumentavam, por isso quem saiu em sua defesa foram Augusto de Campos, Gilberto Gil e Caetano Veloso, entre outros. Um impasse estético-ideológico foi colocado em debate por Caetano Veloso, numa entrevista concedida, em maio de 1966 à Revista Civilização Brasileira (NAPOLITANO 1998, p. 305)23 – que voltaremos a tratar adiante - onde o cantor e compositor utilizou o termo “linha evolutiva” (NAPOLITANO, 2001; WISNIK, 1997, p. 60)24 para expressar a necessidade de reorganizar as bases de expressão e circulação social da música popular, contestando a postura dos defensores da música que eles imaginavam ser a “voz do povo”. 23Segundo Napolitano, [...] a Revista de Civilização Brasileira, editada entre 1965 a 1968 por Ênio da Silveira, foi um dos mais importantes espaços do debate intelectual, cultural e político da esquerda brasileira e daqueles que se posicionavam contra o regime militar, como um todo. 24Menos do que um conceito, a “linha evolutiva” tornou-se uma “idéia força” que vem orientando a vontade de “atualização” da música popular, sem, no entanto, negar a presença da tradição, expressa, sobretudo pelo samba urbano que emergiu nos anos 30. Na definição de José Miguel Wisnik “Linha evolutiva significa que a Música Popular no Brasil desenvolve um grau de autoconsciência que caracteriza os momentos de maturidade de certas expressões artísticas [...] a consciência de que elas não são apenas entretenimento, mas fazem parte da constituição de linguagem”. 34 � Não por acaso, uma composição do sambista carioca Zé Ketti, “adotado” pelo CPC da União Nacional dos Estudantes, proclamava que seu samba era “a voz do povo”. Caetano Veloso parecia não concordar com esta posição um tanto quanto ideológica dos seus contemporâneos e, na entrevista supracitada, partiu para o ataque, provocando uma grande polêmica no meio artístico, sobretudo entre os chamados “esquerdistas”. Conforme Napolitano, deste debate provocado por Caetano Veloso surgiram quatro instâncias básicas: a) o impasse na fundamentação de uma atuação político-cultural afirmativa; b) o impasse como redefinição do papel da arte e do artista numa sociedade de classes cada vez mais orientada para o mercado; c) o impasse como necessidade de equacionar a relação forma/conteúdo tendo em vista a obra como portadora de uma mensagem; e, d) o impasse como necessidade de organizar o debate no contexto político- ideológico que, após o golpe de 1964, obrigava o artista-intelectual a se posicionar frente o problema do autoritarismo militar. Porém, tanto a idéia de impasse quanto a de linha evolutiva da MMPB complementam a reorganização do campo musical-popular que naquele momento estava pressionado entre duas vertentes: a expressão da consciência nacional e a inserção ativa no mercado musical. Nesse contexto, a música popular funcionou como um importante veículo de discussão ideológica ao mesmo tempo em que experimentava uma grande explosão criativa, estimulada inclusive pelas mutações no seio da indústria cultural. Os festivais da canção, por exemplo, formam o conjunto de eventos mais dramáticos dessa peculiar convergência de problemas e possibilidades. (NAPOLITANO, 1998, p. 292) A situação privilegiada da música popular brasileira nos anos de 1960 a colocava numa luxuosa posição de poder debater sobre qual tradição deveria ser seguida, já que ao longo das primeiras décadas do século XX ela se renovou sem desprezar o material sonoro, os parâmetros e os estilos convencionais, ao mesmo tempo em que consolidou uma forte presença estrutural no emergente mercado de bens culturais – ponto de ligação com a escuta popular. (Ibid., p. 293) Napolitano (1998) relata que por esta época, o mercado musical sofreu uma alteração significativa em função da consolidação da televisão e do Long Playing de rotação 33-1/3 como suporte do mercado de música. Além disto, nota-se a ampliação do público consumidor musical agregado após o advento da bossa nova, ou seja, a classe média alta, mais abastada, mais informada e circulando predominantemente no meio universitário, que viu esse estilo como um respeitável campo e criação e expressão. 35 � Depois, a partir da metade da década de 1960, com a entrada da televisão como meio propagador da música através dos festivais da canção, somou-se uma nova parcela de consumidores da música popular, uma classe média menos abastada, porém, com algum poder aquisitivo para consumir os bens culturais oferecidos pela emergente indústria musical. Esse processo culminou, já em meados dos anos 1960, numa nova institucionalização da idéia de Música Popular Brasileira, cuja noção de impasse e evolução não são acidentes de percurso, mas elementos instituintes, permanentemente tencionados pelas demandas da indústria cultural e pelas expectativas do público ouvinte. (NAPOLITANO, 1998, p. 294) Para este mesmo autor, a MMPB tem suas raízes na Bossa Nova participante que trabalhava com elementos do samba tradicional e tinha a preocupação de ser portadora de uma mensagem “conscientizadora”. Além do conteúdo das letras que buscavam delimitar uma atitude mais condizente com o momento político-social do país, também em termos musicais havia mudanças – ainda que sutis – como um violão menos contido do que aquele consagrado por João Gilberto, marcando uma divisão rítmica mais próxima ao afro (termo utilizado na época) e alguns instrumentos do samba tradicional, com o trombone que sempre fora identificado com a gafieira. Já por volta de 1962, a Bossa Nova havia sido reprocessada na forma de um samba moderno participante, resolvendo o impasse na questão Bossa Nova versus samba tradicional, encontrando uma formulação estética paradigmática, embora fique evidente que esse impasse era tanto maior quanto fosse a identificação com a crença nas reformas sociais mobilizadoras de grande parte da sociedade brasileira identificada com a ideologia nacionalista. Outra questão importante a se observar é que a Bossa Nova era considerada um subgênero do samba e potencialmente poderia crescer bastante junto ao público jovem universitário que começava a ter despertado seu interesse pela música popular brasileira. E esta possibilidade acabou se transformando numa “tarefa político-cultural, potencializada pela ameaça de imperialismo cultural que o rock representava”. (Ibid., p. 296) Este impasse onde se vislumbrava o jovem artista intelectual, nacionalista de esquerda, apto a produzir uma arte cosmopolita e ao mesmo tempo nacionalista, politizada e comunicativa, sofreu um revés significativo a partir do golpe militar de 1964, pois num primeiro momento, os militares se preocuparam em dissolver as organizações populares, perseguir seus líderes, parlamentares, ativistas políticos e sindicalistas, sem dar tanta 36 � atenção aos intelectuais de esquerda e criadores. Porém, esta situação só perdurou entre 1964 e 1968, e neste ano, quando foi promulgado o Ato Institucional n° 5 a situação política recrudesceu, com a perseguição e prisão de líderes políticos e estudantis, e até mesmo os artistas passaram a ser vistos como ameaça ao poder constituído. (RIDENTI, 2005) No período compreendido entre 1964 e 1968 houve uma inversão de prioridades para os artistas da música popular brasileira que, antes de 1964 defendiam a proposta de que a consciência social deveria estar a reboque do ser social. Após o golpe militar, a música transformou-se em prioridade para lutar contra o regime, na medida em que as posições tradicionais de esquerda eram colocadas em cheque pelo autoritarismo institucional do regime, e este autoritarismo incorporava mudanças na esfera econômica que começaram a dar os primeiros sinais na área da cultura, entre 1965 e 1966, especialmente com a concentração da criação musical popular em torno da televisão e sua popularização entre todas as classes sociais. A supervalorização dos programas musicais de TV, que acabariam por gerar novos impasses, foi ela mesma vista como uma resposta válida ao avanço da música estrangeira nos meios de comunicação. Num primeiro momento, a massificação do consumo de música brasileira parecia ser o caminho mais coerente para disseminar uma mensagem ideológica. Mas o caminho da bossa nova, das boates até a televisão não foi linear, planejado. (NAPOLITANO, 1998, p. 298) Em maio de 1965, estreou um programa televisivo de grande impacto, “O Fino da Bossa”, (depois, apenas “O Fino”) na TV Record, tendo como protagonistas os cantores Elis Regina, Jair Rodrigues e o grupo instrumental Zimbo Trio, ao lado de um elenco de artistas convidados que procurava unir novos talentos emergentes, como Chico Buarque e Gilberto Gil, e nomes consagrados como Dorival Caymmi, Vinícius de Moraes, Adoniran Barbosa e Ataulfo Alves. Também na TV Record, em setembro de 1965, estreou o programa “Jovem Guarda”, comandado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, aproveitando-se de uma sub-cultura advinda do rock, com canções que tratavam de temas românticos pasteurizados e comportamento de “rebeldes sem causa”, com o culto ao carro, roupas, cabelos compridos, namoro, etc. (AMORIN, 2001) 37 � Programa O Fino da Bossa, 1966 - Programa Jovem Guarda Foto: Jair Rodrigues, Elizete Cardoso e Elis Regina Acervo: AMM/CCSP 1966 - Foto: Entre outros, Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Erasmo e Roberto Carlos, Wanderléia Acervo: TV Record Fonte: Revista D’Art nº. 8 dez. 2001. Disponível em: . Galvão (1976, p. 94) refere-se ao movimento Jovem Guarda como “grosseria e titilação do ié-ié-ié nacional” e questiona sua qualidade e intenção, em virtude da pobreza de forma e conteúdo, além da alienação diante dos problemas nacionais “enfrentados” pela MMPB. Para Napolitano (1998, p. 304), o movimento liderado por Roberto Carlos, ao incorporar timbres eletrônicos nos arranjos, à base de guitarras e teclados, constituiu-se numa autêntica anti-fórmula da MMPB, e a disputa ideológica entre “O Fino” e “Jovem Guarda” criou um fato de mídia que aumentou ainda mais a propaganda em torno dos programas, especialmente sobre o “Jovem Guarda” que tinha articulações com os ramos industriais ligados ao mundo da moda e do comportamento jovem. No artigo “A MPB era o Fino na década de 60” do Diário Popular de 18 de novembro de 1988, Fabian DC comenta que o O Fino (dedicado à MPB mais sofisticada) e o Jovem Guarda (adaptação brasileira do rock popularizado dos Beatles e Rollings Stones por Roberto Carlos e o iê-iê-iê), eram dois programas que dividiam boa parte do público, existindo um forte antagonismo entre os dois movimentos, em especial dos mais conservadores que não admitiam a utilização da guitarra na MPB. Aponta que a grande “heresia” na evolução da Bossa Nova, ficou por conta de Gilberto Gil e Caetano Veloso que participavam do O Fino usando a guitarra como parte fundamental em suas composições e arranjos, com isso, propondo uma síntese MPB/Jovem Guarda, que mais tarde desencadearia na Tropicália. 38 � Sobre a Jovem Guarda, em artigo publicado no Jornal do Brasil em 28/10/67, menciona-se que o iê-iê-iê surgiu como uma autêntica mina de dinheiro para uma série de cantores e instrumentistas de talento menor, pois a grande maioria de cantores da Jovem Guarda cantava mal e boa parte dos guitarristas não conseguia sair do ritmo que se repetia, resultando no movimento que se fez contra eles. O caso de Roberto Carlos, indiscutível em relação à comunicação com o público, se situava à parte. E Carlos Imperial se defendia com a seguinte frase: “[...] Música deve ser dirigida ao povo, e nós fazemos isso. Pouco importa que ritmo tenha, de onde venha, quem cante. Se o povo não gosta, esta música não presta. Do iê-iê-iê todos gostam”. A revista Intervalo publicou em fevereiro de 1966, uma entrevista feita com Erasmo Carlos, questionando sua reação e posicionamento diante do tratamento que recebia por parte de críticos, ignorando sua existência25, de cantores e disc-jockeys adeptos da Bossa Nova, se referindo a ele, como os demais integrantes da Jovem Guarda, como “debilóides e sub-músicos”. “[...] O fato é que o ié-ié-íé contagia moços e velhos. E tem o toque mágico de ingenuidade, na Festa do Bolinha, Festa de Arromba, Pescaria, tem lirismo em Emoção, A Volta, tem a espontânea explosão do Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”. Erasmo encerra com essa frase após comparar a Bossa Nova com a Jovem Guarda, partindo do princípio de que por ser esnobe e afastada do povo, a Bossa Nova estava fadada a seu fim, com “muita lesminha sem voz que se agarrava nessa bendita Bossa”, começando a se julgar superior, acabava sumindo. Sugere que ao invés de ficarem sistematicamente contra a turma do iê-iê-iê, só tendo a perder com isso, a Bossa Nova deveria “atiçar o fogo de sua panelinha que já estava esfriando”. Como é que tem coragem de nos acusar de cantar versões e músicas estrangeiras, se eles enfiaram o jazz na sua musiquinha nacional? Os cantores da Bossa Nova se recusam a convidar a turma da juventude para os seus shows: querem ficar de lado, num pedestal que não existe, você logo vai ver que não existe. Mas eu lhe digo: samba que é bom é o de Zé Keti, é o de Noel, é o do povo. Pergunte ao Jorge Ben: entrou para nossa turma com armas e bagagens e ganhou uma popularidade nunca vista. Chegou a chorar em Belo Horizonte, quando um auditório de 10.000 pessoas começou a cantar em coro o Ninguém Chora Mais. Bossa-nova faz isto? Bossa Nova tem essa intimidade com o público? Era um auditório da Jovem Guarda, morou? Era o povo e o povo que nos entende, nem que a gente cante em chinês. Porque a música mexe com 25Segundo eles, Erasmo já tinha vendido 50 mil discos como cantor e como compositor 700 mil. Ganhou os Troféus “Roquete Pinto e “Chico Viola”, entrou para o negócio de moda fashion ao lançar sua “logomarca” e estava se preparando para fazer um filme. Conhecido e considerado por muitos como uma bomba, uma brasa, um estouro. 39 � todo mundo e o iê-iê-iê vai continuar sendo uma brasa por muito tempo ainda. (O SAMBA que é bom..., n. 160, 1966) *Revista intervalo nº 171, 17 a 23/04/1966 Elis Regina revidou a provocação e ofensa da Jovem Guarda feita por Erasmo Carlos, em matéria intitulada “Esse tal de iê-iê-iê é uma droga”, publicada na Revista Intervalo nº 168, na semana de 27 de março a 02 de abril de 1966, onde declara sua opinião em relação à Jovem Guarda, com tamanha contundência e veemência jamais assumida até então. Não só por uma questão de revide, alguns fatos preocupantes induziram essa declaração como: por perceber que a área de influência do iê-iê-iê vinha se espalhando não só entre os adolescentes, mas em boa parte de jovens e adultos, ao retornar de sua viagem à Europa, deparou-se com a queda de cotação da MPB, ante a tomada dos primeiros lugares das paradas de sucesso pela turma da Jovem Guarda, ameaçando o programa O Fino, “quartel-general da Bossa Nova”. Elis afirma que sua missão e compromisso como cantora e representante da MPB, estava em melhorar o gosto do público entregando-lhe o que há de melhor na criação artística, principalmente com o público jovem e que ninguém tem o direito de deformar nada como o iê-iê-iê estava fazendo. De volta ao Brasil, eu esperava encontrar o samba mais forte do que nunca. O que vi foi essa submúsica, essa barulhera que chamam de ié, ié, ié, arrastando milhares de adolescentes que começam a se interessar pela linguagem musical e são assim desencaminhados. Esse tal de ié, ié, ié, é uma droga: deforma a mente da juventude. (ELIS Regina, Intervalo, n. 168, 1966) 40 � Analisa as músicas, como uma aberração, na maioria com pouquíssimas notas, tornando-as fácil de cantar e guardar, com letras de conteúdo fútil e banal, falando de bailes e palavras bonitinhas para o ouvido, e que qualquer pessoa que se dispusesse poderia compor, demonstrando falta de qualidade e seriedade, na verdade. Nós, brasileiros, encontramos uma fórmula de fazer algo bem cuidado para a juventude, sem apelar para rocks, twists, baladas, as usando o próprio balanço do nosso samba. Será que vamos ser obrigados a pegar esses alucinantes e ultrapassados, para fazer deles a nossa música popular? Isso é ridiculo. ( ) Cada um tem sua consciência. Cuidado, gente! Mais tarde ela vai pesar demais. (ELIS Regina, Intervalo, n. 168, p. 10-11, 1966) Um artigo da Folha de S. Paulo em 13 de dezembro de 1980 intitulado “Uma grande paixão que fez crescer a MPB”, traz a questão da influência dos Beatles na música brasileira que não só exerceu sobre a turma da Jovem Guarda, como influenciou na maneira de outros jovens compositores da época como Milton Nascimento, Beto Guedes, Lô Borges, elaborarem suas músicas, envolvendo-as com arranjos fantásticos dando a elas uma nova dimensão e propondo uma nova MPB. Segundo o editorial, naqueles anos havia um vazio na música popular brasileira, pois após o samba-canção ceder lugar para a Bossa Nova a partir de 1958/59, durou pouco tempo, esgotando-se em si mesma, por não ter chegado ser eminentemente popular, naufragando nos barquinhos e morrendo de amor e dor, deixando algumas seqüelas que surgiam em forma canções de protesto. Defende a idéia que essas músicas por terem um conteúdo pesado e para a maioria dos jovens “comuns”, não universitários, uma realidade que não era a deles, logo se apaixonaram pelos Beatles. Com tamanho vazio na nossa música (ela só viria a se refazer a partir dos festivais da Record, de 1966 em diante, ano da "A Banda" de Chico e "Disparada" de Vandré), qualquer pessoa poderia imaginar o aparecimento no Brasil de ídolos jovens, falando a linguagem jovem: e foi aí que surgiu Roberto Carlos. Se os Beatles já significavam na época uma revolução de comportamento (muitíssimo acentuada nos anos seguintes) Roberto, dentro do possível, também procurou ser renovador: seu grito de que "tudo o mais vá pro inferno", talvez sem a intenção de ir tão longe, fez com que ele passasse a ser ouvido também pelos maiores de 15 anos o até pelos adultos. A guitarra elétrica foi odiada pelos radicais da MPB (foram multo mais para elas do que para os com- positores e intérpretes as valas dadas a "Domingo no Parque", de Gil, e "Alegria Alegria'' do Caetano, no festival de 67), mas o certo é que aos poucos ela se incorporou a instrumentação normal da MPB. (UMA grande paixão..., p. 25) 41 � Este artigo nos pareceu com uma visão um pouco unilateral e simplista ao analisar os acontecimentos e influênc