Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas - IGCE Programa de Pós-Graduação em Geografia A REPRESENTAÇÃO SOCIAL E A TERRITORIALIZAÇÃO DA REFORMA AGRÁRIA NO ESPAÇO URBANO A PARTIR DO PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS Martha Esthela dos Santos Silva Orientador: Prof. Dr. José Gilberto de Souza Rio Claro – SP Setembro de 2013 ii Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas - IGCE Programa de Pós-Graduação em Geografia A REPRESENTAÇÃO SOCIAL E A TERRITORIALIZAÇÃO DA REFORMA AGRÁRIA NO ESPAÇO URBANO A PARTIR DO PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS Martha Esthela dos Santos Silva Rio Claro – SP Setembro de 2013 Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências e Ciências Exatas IGCE da Faculdade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, vinculado a linha de concentração Organização do Espaço para obtenção do título de Mestre em Geografia. Orientador: Prof. Dr. José Gilberto de Souza iii iv v DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a todos que lutam pela Reforma Agrária e pela mudança de um mundo mais justo. Aos negros e negras que não chegaram até aqui e à juventude negra que foi tombada no caminho. A Pedro dos Santos (in memória). À Sabrina Melo (in memória). vi "Ou os estudantes se identificam com o destino do seu povo, com ele sofrendo a mesma luta, ou se dissociam do seu povo, e nesse caso, serão aliados daqueles que exploram o povo". Florestan Fernandes “É verdade que depois de derrubadas as cercas do latifúndio, outras se levantarão: as cercas do judiciário, as cercas da polícia (ou milícias privadas), as cercas dos meios de comunicação de massa... Mas é verdade também que cada vez mais caem as cercas e a sociedade é obrigada a olhar e discutir o tamanho das desigualdades, o tamanho da opulência e da miséria, o tamanho da fartura e da fome.” Pedro Tierra vii AGRADECIMENTOS Perguntas de um Operário Letrado Bertold Brecht "Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o nome dos reis, Mas foram os reis que transportaram as pedras? Babilónia, tantas vezes destruída, Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas Da Lima Dourada moravam seus obreiros? No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde Foram os seus pedreiros? A grande Roma Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? [...] Assim como tantas outras coisas essa dissertação também não foi feita sozinha. Agradeço a todas as pessoas que direta ou indiretamente contribuíram com este trabalho. Agradeço aos familiares, aos amigos, aos colegas, aos conhecidos e desconhecidos, as pessoas que contribuem com a minha formação humana e que juntos, tentamos não perder a humanidade e a crença na vida e na mudança. Agradeço imensamente a duas pessoas incríveis que tive a sorte de ter em minha vida e que, infelizmente, no fim dessa trajetória, não estão comigo, mas sempre estiveram. Agradeço ao meu querido avô “Pedrão” (Nhonho), pelos seus ensinamentos e valores que foram e estão sendo passados de geração em geração na luta pelo não esquecimento de nossas raízes. Agradeço à querida amiga Sabrina, que assim como na terra, no céu também virou estrela. Uma linda pessoa, imensa guerreira, que por onde passou, deixou sua marca de solidariedade, ética, amizade e companheirismo. Aos meus queridos pais pela força e apoio incondicional. Sem o carinho e a compreensão em que sou presenteada cotidianamente, seria impossível concluir mais essa trajetória. Aos meus irmãos Lizardo, Carla e Márcia. Ao professor Gilberto por me receber em Rio Claro e orientar este trabalho, em que me colocou desafios que nem eu mesma sabia que poderia tentar e juntos construímos este viii trabalho. Um grande geógrafo, mas antes uma pessoa humana. Agradeço a todos os colegas do TRAMAS pelas discussões e pelas contribuições que deram ao meu trabalho, em especial Thiago, Dorival, Iara, Bruna, Júlio. Ao professor Barone, pessoa que estimo muito, e fico feliz por me acompanhar em mais este trabalho. Uma importante pessoa na minha trajetória acadêmica. Juntos vivemos muitas “Tramas e Tensões”, mas sempre “Acomodando” as forças. À toda galera de Rio Claro que me recebeu e acolheu. Em especial, a duas amigas, Ízide e Bruna. Juntas construímos um pedacinho de Presidente Prudente em Rio Claro. À Ízide por toda força que me deu em Rio Claro, pelo companheirismo e amizade que foi aos poucos se consolidando ainda mais. A todas as meninas da “Morada”, essa república (Casa e Jardim, Forno e Fogão,) que me recebeu e me recebe calorosamente até hoje, meu muito obrigada! (Carol, Debi, Jhen, Salms, Telma, Marina). Foi um importante aprendizado conviver com todas vocês. À Carol (Lora) por toda força dada companheirismo e parceria, uma pessoal linda. Um agradecimento muito especial à Thaís, pelo apoio, pela revisão, pelas contribuições neste trabalho e pela amizade. Meu muito obrigado aos meus amigos que estiveram junto comigo e acompanharam as diversas partes deste trabalho, contribuindo intelectualmente e emocionalmente, ajudando com as dúvidas e consolando o choro: Sobreira, Gabriel, Gisele, Elenira, Cintia, Ju, Marcos. Meu agradecimento especial à Beth e a Dona Nair, que tão bem me acolheram em Presidente Venceslau. Aos meus queridos amigos de Presidente Prudente, Edivânia, Regina, Priscila, Gérson, Nati, Tauana, Lais e o pequeno Noé. Agradeço imensamente aos assentados, às famílias e às instituições de Presidente Venceslau, que me receberam e contribuíram para a realização deste trabalho, em especial à Família de Seu Roque Paulino e Dona Catarina, que sempre me recebem de braços abertos no assentamento. Obrigada ao Programa de Pós Graduação, ao Departamento de Geografia, a Capes e à equipe da biblioteca da Unesp de Rio Claro. E assim termino mais essa trajetória, feliz pelos laços construídos e outros fortalecidos. A todos, meu Muito Obrigado!!!! ix RESUMO A presente pesquisa objetiva analisar os processos de construção de representações sociais, particularmente aqueles elaborados pelos moradores da cidade de Presidente Venceslau acerca da Reforma Agrária, identificando a espacialização e a territorialização dos movimentos sociais de luta pela terra no espaço urbano a partir do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O PAA, por meio da modalidade de compra direta, tem estreitado as relações campo-cidade à medida que os produtos agropecuários oriundos dos assentamentos de Reforma Agrária são destinados às instituições de caráter social e a pessoas em situações de insegurança alimentar. Parte-se do pressuposto de que a Reforma Agrária espacializa-se no ambiente urbano a partir das manifestações políticas, e das ocupações de ambientes públicos nas diversas formas de luta e organização dos movimentos. Por sua vez, em caráter muito particular, este processo também se estabelece por meio do PAA, materializando a produção do campo na cidade, possibilitando reflexões acerca de sua territorialidade e o rompimento de estigmas e preconceitos sobre os “sem- terra”, sobre os ideais da Reforma Agrária e de defesa de outro projeto político de sociedade. Procura-se entender se o Programa rompe com representações sociais impostas pelos setores dominantes e que produzem a criminalização dos movimentos sociais, os conceitos de “invasão” e a “doação” de terras, descaracterizando a resistência e a luta dos movimentos sociais. Ao considerar que a representação social consolida-se nos processos de vida cotidiana, na mediação de conflitos e nas relações interpessoais, o Programa de Aquisição de Alimentos reúne desdobramentos favoráveis às classes populares urbanas na medida em que objetiva superar quadros de insegurança alimentar e coloca-se como elemento dialógico (movimento social – classes populares) e que atua na materialidade e na subjetividade destes sujeitos sociais. Palavras Chaves: Programa de Aquisição de Alimentos, Reforma Agrária, Territorialização, Representações Sociais e Segurança Alimentar x ABSTRACT This research aims to analyze the processes of construction of social representations , particularly those produced by city residents on land reform , the identification of social movements , spatial and territorial struggle for land in urban space program Food Acquisition ( PAA . ) the Food Acquisition program through direct purchase mode has narrowed the urban-rural relations , such as agricultural products from land reform are addressed to the institutions of social life and of people in food insecure . This is on the assumption that land reform is spatialized in the urban environment, from political demonstrations, occupations of public spaces in the various forms of struggle and organization of movements. In turn, on a very particular also establishes the process by PAA, materializing the production of the field in the city, offering reflections on territoriality and disruption of the stigmas and prejudices about the "landless" in the ideals of agrarian reform and the defense of another political project of society. It is about understanding the program jumps to the social representation imposed by the dominant sectors and produce the criminalization of social movements, the concepts of "invasion" and "donation" of the earth, descaracterizando resistance and struggle of social movements. Considering that social representation is consolidated on processes of everyday life, in conflict mediation and interpersonal relationships, the Food Acquisition Programme brings together the favorable evolution of the urban poor, as it aims to overcome the frames of food insecurity and the place as a dialog element (social movement - classes) and which operates in the materiality and subjectivity of these social subjects. Keywords: Food Acquisition Reform Program, Territorial, Representations and Social Food Safety xi LISTA DE ABREVIATURAS AVCC – Associação Venceslauense de Combate ao Câncer CONAB – Companhia Nacional de Abastecimento CDAF – Compra Direta da Agricultura Familiar CAAF – Compra Antecipada da Agricultura Familiar CAEAF – Compra Antecipada Especial da Agricultura Familiar CDLAF – Compra Direta Local da Agricultura Familiar CONSEA – Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ITESP – Instituto de Terras do Estado de São Paulo MDS – Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome MDA – Ministério de Desenvolvimento Agrário MAPA – Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra PAA – Programa de Aquisição de Alimentos PNAE - Programa Nacional de Alimentação Escolar PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PROUNI – Programa Universidade Para Todos PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária SASAD – Serviço de Assistência Social e Cultura da Igreja Assembleia de Deus SEAAMA – Secretaria de Agricultura, Abastecimento e Meio Ambiente STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais UNESP – Universidade Estadual Paulista xii LISTA DE TABELAS Tabela 01. Renda anual e mensal do PAA por produtor e Correção Inflacionária (2003-2013) 90 Tabela 02. População Total do Município de Presidente Venceslau 94 Tabela 03. Assentamentos Rurais de Presidente Venceslau, Nº. De lotes e Ano de Implementação 94 Tabela 04. Evolução em R$ do PAA (2010-2012) 95 Tabela 05. Participação dos Assentamentos do Município de Presidente 96 xiii LISTA DE QUADRO Quadro 01. Fluxograma PAA no Município do Presidente Venceslau 12 Quadro 02. Questionários do Círculo de Cooperação do PAA 13 Quadro 03. Preço dos produtos praticados pela CONAB ano de referência 2012 104 Quadro 04. Entidades Consumidoras Beneficiadas com o PAA no município de Presidente Venceslau 105 Quadro 05. Entidades Entrevistadas Consumidoras Beneficiadas com os produtos do PAA 108 Quadro 06. Entidades de Doação Entrevistadas os Produtos do PAA 110 Quadro 07. Análise dos Alimentos doados no dia 11/06/2012 e comparação com os preços locais (Beneficiário Direto) 133 Quadro 08. Análise dos Alimentos doados no dia 11/06/2012 e comparação com os preços do Ceasa de Presidente Prudente (Entidade Consumidora) 134 LISTA DE MAPAS Mapa 01. Distribuição da População dos Beneficiários Diretos do Programa de Aquisição de Alimentos 15 xiv LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 01. Evolução do montante de crédito do PRONAF (bilhões de reais) de 2000-20012 – Brasil 75 Gráfico 02. Evolução do montante de crédito do PRONAF (em reais), por região entre os anos 2004-2012 76 Gráfico 03. Distribuição do montante total do crédito do PRONAF por grupo de agricultores. Brasil, ano safras 2000, 2001 e 2009, 2010. 77 Gráfico 04. Percentual de domicílios particulares, por situação de Segurança Alimentar existente no domicilio e as Grandes Regiões 2004/2009 81 Gráfico 05. Distribuição dos domicílios particulares em situação de segurança alimentar e insegurança alimentar moderada ou grave, segundo as classes de rendimento mensal domiciliar per capita – Brasil – 2000 82 Gráfico 06. Evolução do Círculo de Cooperação do PAA (2010-2012) 97 Gráfico 07. Evolução de Produtores Rurais – PAA (2010-2012) 98 Gráfico 08. Entidades consumidoras do PAA (2010-2012) 99 Gráfico 09. Sexo dos Chefes de Família em (%) 120 Gráfico 10. Escolaridade dos Chefes de Família 121 Gráfico 11. Profissão do Chefe de Família 121 Gráfico 12. Ocupação dos Chefes de Família 123 Gráfico 13. Renda Mensal dos Chefes de Família 124 Gráfico 14. Benefício Social em nome do Chefe de Família 125 Gráfico 15. Sexo por membros da Família 126 Gráfico 16. Escolaridade dos Membros da Família que Pararam os Estudos 127 Gráfico 17. Escolaridade dos Membros da Família que frequentam a escola 128 Gráfico 18. Ocupação dos Membros da Família 129 Gráfico 19. Profissão dos Membros das Famílias Beneficiadas pelo PAA 130 xv Gráfico 20. Renda Total em R$ e Per Capita das Famílias (Beneficios Salários) 131 Gráfico 21. Frequência de Compras de Verduras, Frutas e Legumes 132 Gráfico 22. Conhecimento das famílias sobre a origem dos Alimentos do PAA – Igreja Brasil Para Cristo 173 Gráfico 23. Conhecimento das famílias sobre a origem dos Alimentos do PAA – Resgate Para Vida 173 LISTA DE FIGURAS Figura 01. Localização de Presidente Venceslau 92 Figura 02. Chegada dos Alimentos na SEAAMA 100 Figura 03. Distribuição entre As Entidades de Consumo e Entidades Doadoras 101 Figura 04. Distribuição dos Alimentos na Igreja Assembleia de Deus (Entidade de Repasse) 102 Figura 05. Fila para entrega de Alimentos na Igreja Resgate Para Vida 112 Figura 06. Entrega dos Alimentos na Igreja Resgate Para Vida 113 Figura 07. “Culto da Feirinha” 115 Figura 08. Fila para a feirinha. Pastor junto às beneficiarias do PAA, após culto 116 Figura 09. Pastor auxiliar entregando as verduras do PAA 116 Figura 10. Assentamento Tupanciretan. Entrevistada (à esquerda) e Entrevistadora (à direita) 181 Figura 11. Assentamento Primavera. Assentada e presidente da Associação Campos Verde no seu lote. 182 Figura 12. Assentamento São Camilo. Assentada e Vice Presidenta da Associação São Camilo em seu lote 183 xvi SUMÁRIO INTRODUÇÃO 01 Objetivos 06 Referencial teórico-metodológico 07 CAPÍTULO 1 - REPRESENTAÇÃO SOCIAL NA CONSTRUÇÃO TERRITORIALIDADE 18 1.1 Teoria das Representações Sociais 19 1.2 A Compreensão de Espaço e Território na Formação da Espacialidade e da Territorialidade 28 1.2.1 Espaço – Espacialidade 28 1.2.2 Território e Territorialidade 33 1.3 Representação social na construção da territorialidade 37 1.3.1 Espacialização e Territorialização da Reforma Agrária 44 CAPÍTULO 2 - POLÍTICAS PÚBLICAS NA REFORMA AGRÁRIA 48 2.1 Fome de Reforma Agrária 48 2.2 Segurança Alimentar 55 2.3 Soberania Alimentar 59 2.4 Políticas Públicas na Reforma Agrária e no Governo Lula-PT (Continuidade ou Ruptura) 61 2.5 Agricultura Familiar 71 2.6 Brasil: não há Segurança Alimentar sem Agricultura Camponesa 78 CAPÍTULO 03 - CONCEPÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS 84 3.1 Concepção e Implementação do PAA 85 3.2 Funcionamento do PAA 87 xvii 3.3 O PAA em Presidente Venceslau 92 3.4 Caracterização das Entidades Consumidoras do PAA 107 3.5 Caracterização das Entidades de Doação do PAA 108 3.6 Beneficiados Diretos pelo PAA 117 3.7 Perfil Socioeconômico dos Chefes de Famílias beneficiadas pelo PAA 119 3.7.1 Perfil Socioeconômico das Famílias beneficiadas pelo PAA 125 CAPÍTULO 04 – FRAGMENTAÇÃO E IMEDIATIALIDADE DAS RELAÇÕES SOCIAIS E DA VIDA COTIDIANA: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA REFORMA AGRÁRIA 136 4.1 Representações Sociais das Entidades Consumidoras 139 4.2 Representações Sociais das Entidades Doadoras 159 4.3 Representações Sociais dos Beneficiários Diretos 172 4.4 Representação Social dos Assentados 179 CONSIDERAÇÕES FINAIS 187 REFERÊNCIAS 192 ANEXOS 202 Anexo 1 – Questionário Entidade Consumidora 203 Anexo 2 – Questionário Entidade Doadora 205 Anexo 3 – Questionário Beneficiário Direto 209 Anexo 4 – Questionário Escolas 213 Anexo 5 – Questionário Assentado 216 Anexo 6 – Base de dados das famílias beneficiadas pelo PAA 218 Anexo 7 - Ofício encaminhado ao prefeito de Presidente Venceslau 225 Anexo 8 - Mapa Assentamento Primavera 228 Anexo 9 - Mapa Assentamento Tupanciretan 229 xviii Anexo 10 - Mapa Assentamento Radar 230 1 INTRODUÇÃO A luta pela Reforma Agrária é latente na vida de milhares de trabalhadores e trabalhadoras que sonham em ter um pedaço de terra e uma vida digna. O processo de luta, isto é, as ocupações de terras, os acampamentos, as manifestações públicas e as marchas, forjam sujeitos sociais conscientes da necessidade do embate direto e da formação de uma consciência crítica e coletiva. As contradições sociais emanam diante do enfrentamento direto entre as classes sociais. A disputa que se coloca na materialidade se estende para a ideologia e projetos opostos de sociedade são rebatidos. A estrutura social tem como base a divisão da sociedade em classes sociais, que expressa interesses antagônicos. Toda mudança social que a humanidade produziu foi por meio de lutas. Como já pontuou Marx e Engels (1848, p. 107), “até os nossos dias, a história de toda a sociedade não tem sido senão a história das lutas de classes”. A concretização dos assentamentos rurais é fruto da luta dos movimentos sociais que ousam construir uma sociedade mais justa. Dentro das novas condições de opressão, surgem novas formas de lutas e toda luta de classes é uma luta política (MARX; ENGELS, 1848). A vida na terra é uma luta cotidiana, uma revolução permanente, porém é uma luta imbricada de esperança e desejo por um viver melhor. O trabalho no campo e a produção de alimentos para quem precisa traz novos sentidos, contribuindo para humanizar o homem, libertá-lo do trabalho alienado no campo e para mostrar a necessidade da realização da Reforma Agrária. A luta pela Reforma Agrária é uma luta com dimensão política, social e econômica, que confronta a estrutural social do país. Essa luta vem sendo travada pelos movimentos sociais do campo, tendo como um dos principais protagonistas o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que constrói sua proposta de Reforma Agrária: Essa proposta de reforma agrária reflete parte dos anseios da classe trabalhadora brasileira para construir uma nova sociedade igualitária, solidária humanista e ecologicamente sustentável. Dessa forma as 2 propostas de medidas necessárias devem fazer parte de um amplo processo de mudanças na sociedade e, fundamentalmente, da alteração da atual estrutura de organização da produção e da relação do ser com a natureza, de modo que o processo de organização e desenvolvimento da produção no campo aponte para a superação da exploração, da dominação política, da alienação ideológica e da destruição da natureza (MST, 2012, p. 34). Os movimentos sociais, por sua vez, defendem um modelo de Reforma Agrária que está na contramão do que tem sido realizado pelo Estado. Os movimentos sociais defendem a mudança da estrutura da organização de produção, tocando no seio do atual modelo econômico vigente: a propriedade privada dos meios de produção. A Reforma Agrária no conjunto de seus elementos representa uma série de conquistas tais como: os assentamentos, a produção de alimentos, a geração de emprego no campo e a preservação do meio ambiente. Infelizmente, a visão fragmentada dos processos de luta pela terra, que geram os elementos acima pontuados, tende a criminalizar a atuação dos Movimentos Sociais, impedindo assim, a construção de novas representações sociais da Reforma Agrária junto ao conjunto maior da sociedade, as populações urbanas. Neste sentido, a discussão central desta dissertação de Mestrado, intitulada A Representação Social e a Territorialização da Reforma Agrária no Espaço Urbano a partir do Programa de Aquisição de Alimentos, objetiva analisar os processos de construção de representações sociais da Reforma Agrária; verificar como a dimensão de luta, de direitos e o sentido da Reforma Agrária espacializam-se e territorializam-se na cidade, particularmente junto aos sujeitos sociais que são beneficiados pelo Programa de Aquisição dos Alimentos (PAA). O PAA é um programa do governo federal que surgiu em 2002 com objetivo de fortalecer a agricultura familiar e combater à fome. O programa objetiva garantir a compra de produtos da pequena agricultura e o repasse dos mesmos a entidades sociais e a famílias em situação de vulnerabilidade social, cadastradas ou não nos programas de renda mínima, bem como o conjunto de agentes sociais que se integram ao círculo de cooperação do programa. (SANTOS, 2007) O campo empírico da pesquisa é o município de Presidente Venceslau, localizado em uma região de intensos conflitos fundiários, o Pontal do Paranapanema. O município 3 tem cinco assentamentos rurais que foram conquistados a partir 1996, a partir da intensa luta pela terra realizada pelos movimentos sociais. Os assentamentos rurais instalados são: Primavera, Tupanciretan, Radar, São Camilo e Santa Maria. Todos os assentamentos participam do PAA. Com a participação dos assentamentos nas políticas de segurança alimentar, a reforma agrária passa a ter maior importância, e desta forma, novos sentidos e outras representações sociais são construídos no cotidiano dos sujeitos que estão fora do campo, e que também estão sendo beneficiados pela Reforma Agrária via distribuição de alimentos. Pretendemos, assim, abordar quais representações sociais são construídas acerca da Reforma Agrária. A partir da Teoria das Representações Sociais, que consiste em analisar a formação do conhecimento a partir dos indivíduos, concebendo-os como sujeitos na construção de sua concepção de mundo, ou seja, de suas representações sociais, procuramos identificar como se consolidam as representações sociais no espaço urbano (MOSCOVICI, 2003). Neste caso, as formulações dos sujeitos sociais beneficiados pelo PAA (escolas, creches, abrigos, asilos, casa do menor, igrejas e famílias em situação de vulnerabilidade social), bem como as representações dos agentes (prefeitura, secretaria de abastecimento e meio ambiente) que operam políticas públicas voltadas ao campo, e desta forma, analisar o desdobramento da luta pela terra que atinge o espaço urbano por meio da territorialização de uma política pública que realiza a distribuição de alimentos produzidos, mas cuja centralidade se realiza na reprodução social, no trabalho dos assentados da reforma agrária. Parte-se do princípio de que esta concretude histórica (produção e distribuição de alimentos) atua e interfere diretamente no cotidiano destes sujeitos, mas implica reconhecer quais mediações se estabelecem e são portadoras de quais sentidos de Reforma Agrária junto aos mesmos. Marx e Engels (1845) enfatizam que o ponto de partida para compreender a história deve ser o concreto, o real e o objetivo. As representações sociais formam-se a partir da materialidade, sendo que, a prática humana e a formulação das representações sociais são as ações do sujeito no mundo. Sendo assim, 4 A produção de ideias, das representações, da consciência está em principio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparece aqui ainda como direta exsudação do seu comportamento material (MARX; ENGELS, 1845, p. 31). A formação do conhecimento desenvolvido na vida social dos indivíduos, emergido no seio das relações sociais, é mediada pelo cotidiano, embora não seja isento das relações de dominação e de produção. O indivíduo não é um ser isolado, ele vive em sociedade. O mesmo deve ser analisado tendo em consideração seu processo sócio-histórico e as relações sociais acopladas à reprodução da vida, pois As representações aceitas por estes indivíduos são ideias quer sobre as suas relações com a natureza, quer sobre as relações que estabelece entre si ou quer sobre a sua própria natureza. [...] Se a expressão consciente das condições de vida real destes indivíduos é imaginária, se nas suas representações consideram a realidade invertida, este fenômeno é ainda uma consequência do seu modo de atividade material limitado e das relações sociais deficientes que dele resultam (MARX; ENGELS, 1845, p. 64-65). A essência humana para Marx e Engels (1845) é a prática social. Essa prática que o sociabiliza com os outros homens, que transforma a natureza por meio do trabalho, que cria espaço e território. O ser humano formula suas concepções do mundo, isto é, é participante na formação das representações, embora encontre nas dimensões sociais, impedimentos para a formação de uma consciência em si e para si. As representações sociais emergem no saber prático da vida cotidiana: são as interpretações do sujeito sobre o mundo, intercedidas pela práxis humana e que podem também manifestar ideias dominantes. Nesta perspectiva, Moscovici (2003) desenvolve o conceito de Representações Sociais, que está no campo da Psicossociologia e que se estabelece no cotidiano dos 5 sujeitos sociais. As práticas comuns desenvolvidas cotidianamente são mediadas por uma concretude de existência e relações com o entorno mais imediato, consolidando as representações sociais. Neste sentido, a formação do conhecimento é realizada na perspectiva do indivíduo em sua espacialidade próxima. Essa perspectiva de construção dos elementos constitutivos das formas de compreensão e representação do real consolida a base teórica desta pesquisa. O processo de construção de análise das representações sociais busca reconhecer todos os elementos sociopolíticos que mediam a dimensão prática do entorno dos sujeitos sociais e, neste caso, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) acaba constituindo-se como uma política pública que interage diretamente na dinâmica de reprodução social dos mesmos (assentados e beneficiários). Ao focar questões de segurança alimentar, desdobram-se processos de alimentação, “renda”, interação social (por meio de entidades e novos sujeitos, os assentados e os beneficiários, por exemplo), entre outros e que perfazem o cotidiano dos sujeitos, restando saber: quais mediações práticas são estabelecidas e quais relações cognitivas são constituídas frente a esta política pública? O PAA consolida-se como uma política pública que integra a dimensão de segurança alimentar à reprodução social camponesa, realizada no âmbito de governança federal, estadual e municipal. O programa tem rebatimentos concretos sobre o campo e a cidade. A pesquisa procurou verificar se a partir da materialidade da reforma agrária no espaço urbano, ou seja, a partir da execução do PAA, como se estabelece a construção de representações sociais sobre a Reforma Agrária; em que medida o PAA legitima a atuação dos movimentos sociais de luta pela terra; e como se espacializa e/ou se territorializa a reforma agrária para além de seu território gênese: o assentamento rural. A presente dissertação está estruturada em três partes. Assim temos: a primeira parte é constituída pela Introdução e pelos Fundamentos Teóricos e Metodológicos; a segunda parte é formada por quatro capítulos e a terceira é composta pelas Considerações Finais do trabalho. No primeiro capítulo, trazemos a discussão do referencial teórico utilizado para a pesquisa. Trabalhamos com a Teoria das Representações Sociais e com os conceitos geográficos de Espaço, Espacialidade, Território e Territorialidade. Esses conceitos foram 6 utilizados na perspectiva de entender os processos de consolidação das representações sociais, que refletem no espaço e no território. O segundo capítulo retrata as políticas públicas da Reforma Agrária durante o período do governo federal de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e do governo de Luis Inácio Lula da Silva (PT). Neste capítulo, discutimos também o conceito de segurança alimentar, soberania alimentar e agricultura familiar. No terceiro capítulo, tratamos sobre o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), discutindo sobre a formação e consolidação do PAA e sua implementação no município de Presidente Venceslau, caracterizando o círculo de cooperação. No quarto capítulo, analisamos as representações sociais junto aos sujeitos beneficiários e agentes que atuam no processo de governança, ou que compõem o círculo de cooperação do programa segundo o referencial teórico adotado. Objetivos O objetivo principal desta pesquisa é elucidar quais são as Representações Sociais que as entidades consumidoras, que as entidades de repasse e que os moradores da cidade que são beneficiados diretamente com alimentos provindos de assentamentos rurais têm da Reforma Agrária mediada pelas ações do PAA. Além disso, verificar-se-á como se correlacionam às representações sociais e a territorialidade que os movimentos sociais de luta pela terra têm no espaço urbano. Objetivos Específicos 1- Verificar a construção da territorialidade da Reforma Agrária e dos Movimentos Sociais de luta pela terra no espaço urbano, a partir da implementação do PAA; 7 2- Analisar e levantar dados sobre implementação do PAA no município de Presidente Venceslau – SP; 3- Analisar o impacto socioeconômico para as entidades sociais e para os sujeitos receptores dos alimentos do PAA; 4- Compreender qual a representação social que a Reforma Agrária tem para os moradores da cidade e para as instituições sociais que estão sendo beneficiados com alimentos do PAA. Referencial teórico-metodológico Neste estudo, arriscamo-nos a fazer o inverso de trabalhos anteriores (SILVA, 2010): procuramos entender o particular para entender o todo, partimos das relações sociais para entender a superestrutura. Objetivamos compreender em que medida as representações sociais mediam a construção do espaço e do território. O sujeito é produtor de suas representações, que nascem a partir de uma materialidade acerca do ambiente sensível e mais imediato. Essas representações atuam sobre a realidade em um processo dialético. A observação empírica do cotidiano tende a mostrar a conexão da estrutura social e política com a produção (MARX; ENGELS, 1845). Estudos na perspectiva do cotidiano têm sido realizados por alguns intelectuais, como Henri Lefebvre (2006) e Agnes Heller (1992). No Brasil, reflexões sob essa perspectiva de estudo do cotidiano foram desenvolvidas por José de Souza Martins (1992), Marisa Feffermann (2006), entre outros. A compreensão da realidade parte de uma perspectiva crítica e histórica, por meio do método científico e do saber do senso comum, buscando desvendar a realidade. Para isso, parte-se do entendimento de que teoria e prática são inerentes na explicação dos fatos. 8 O método é um instrumento intelectual e racional que possibilita a apreensão da realidade objetivada pelo investigador quando esse pretende fazer uma leitura da realidade e estabelecer verdades científicas para sua interpretação (SPOSITO, 2003). O método científico é um conjunto de regras para observação e análise dos fenômenos que possibilite sua compreensão. A utilização do saber do senso comum, presente neste trabalho, não se relaciona com uma ruptura epistemológica. Fizemos o uso de metodologias que se unem para melhor compreender a realidade estudada, que se utiliza da ciência e do saber do senso comum, formando assim, uma nova racionalidade. Segundo Boaventura de Souza Santos (2006, p. 89), “o conhecimento do senso comum tende a ser mistificado e mistificador, mas apesar disso e apesar de ser conservador, tem uma dimensão utópica e libertadora que pode ser ampliada através do diálogo com o conhecimento cientifico”. A ciência é o meio pelo qual compreendemos o universo reificado e as representações sociais lidam com o universo consensual, que emerge o saber do senso comum. O universo reificado instala uma consciência dominante, na qual devemos agir de modo imparcial e submisso, em que a valorização do saber é dada somente pela intelectualidade científica. No universo consensual, as representações trazem a consciência coletiva, explicam-se os fatos de modo que sejam acessíveis por todos que se interessam. (MOSCOVICI, 2003). A pesquisa reúne diversas estratégias e atividades de investigação, objetivando perscrutar as relações concretas dos sujeitos e como as mesmas podem ser mediadas com o conhecimento científico, sem com isso, estabelecer planos hierárquicos acerca de suas construções. Para isso, foram realizadas entrevistas, trabalhos de campo, visitas, diário de campo, conversas informais, participação em eventos acadêmicos acerca do tema e ações que visaram o reconhecimento teórico e conceitual de teóricas e metodológicas, mas tendo o sentido histórico e a materialidade como pressupostos centrais para a compreensão do realidade pesquisada. Desta forma, ao voltarmo-nos para o campo empírico, a captura das representações sociais estabeleceu-se a partir de entrevistas realizadas com as entidades beneficiadas (abrigos, asilos, escolas creches) e os beneficiários diretos (famílias beneficiadas). As 9 entrevistas foram gravadas em áudio e em algumas ocasiões, quando não autorizadas, as falas foram fielmente anotadas. Nos trabalhos de campo, foram realizados questionários e entrevistas semi- estruturadas a instituições sociais e a famílias beneficiadas pelo PAA. Visitamos as instituições que distribuem alimentos às famílias, os órgãos municipais gestores do programa, os representantes dos movimentos sociais e os assentados produtores. Asseveramos que a pesquisa foi realizada no município de Presidente Venceslau, região oeste do estado de São Paulo, onde existem cinco assentamentos rurais que produzem alimentos destinados ao PAA: Assentamento Primavera, Tupanciretan, Radar, São Camilo e Santa Maria, que direcionam sua produção para as entidades consumidoras (escolas, abrigos, hospitais, orfanatos, casa do menor) e entidades doadoras (igrejas e associações), que transferem os alimentos para os beneficiários diretos (famílias beneficiadas). Todas as entidades que recebem as doações do PAA são cadastradas pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) como entidade consumidora. Para melhor análise de nossa pesquisa, criamos outra categoria de entidade. As entidades que fazem uso próprio dos alimentos, como escolas, creches, asilos e hospitais, classificamos como “Entidade Consumidora”. As entidades que recebem os produtos e repassam, como as igrejas e associações, classificamos como “Entidade Doadora”. As associações de produtores dos assentamentos rurais do município de Presidente Venceslau atendem a 24 instituições (escolas creches, hospitais, abrigos, asilos, casa do menor e igrejas) beneficiadas nos projetos do PAA referentes ao período de 2011-2012. Das 24 instituições cadastradas 20 são do município de Presidente Venceslau, 1 de Presidente Epitácio e 3 de Santo Anastácio. Por ser um programa de caráter federal, o PAA permite a transferência de alimentos de um município para outro. Embora o município tenha 24 entidades cadastradas no site da CONAB, em nossos trabalhos de campo, averiguamos que há um número superior de entidades que recebem os produtos e não são cadastradas no site da CONAB. Três entidades doadoras (igrejas), não possuíam cadastro no site da CONAB, porém recebiam os produtos do PAA e repassavam 10 para famílias em situação de vulnerabilidade social, entretanto, essas entidades doadoras possuíam cadastro na Secretária de Agricultura do município. Essas três entidades doadoras constam já cadastradas nos projetos 2012-2013 do PAA e já possuem cadastro no site da CONAB. Das 20 entidades cadastradas no município sede dos assentamentos, realizamos entrevistas com 11 entidades sociais. Além dessas, entrevistamos as 3 entidades que estão cadastradas apenas na Secretária de Agricultura, Abastecimento e Meio Ambiente (SEAAMA) do município de Presidente Venceslau. Na SEAAMA, obtivemos informações sobre o PAA referente à assistência técnica, à produção dos lotes e à distribuição dos alimentos com os gestores municipais do programa (Diretor, Agrônomo e o Técnico Agrícola), responsáveis pela execução do PAA. Visitamos a Prefeitura de Presidente Venceslau. Enviamos um ofício ao prefeito, no intento de ter acesso aos dados da Secretaria de Planejamento e da Secretaria de Assistência Social. Com o parecer favorável do prefeito e dos responsáveis pelas referidas secretarias, foi possível ter acesso ao banco de dados da assistência social e aos documentos do planejamento urbano, que tiveram importante contribuição na pesquisa. Posteriormente, fomos ao Centro de Solidariedade de Presidente Prudente, onde foi possível conversar com a diretora responsável do programa Bolsa Família, do Renda Cidadã, do Ação Jovem e outros programas sociais do município. Conseguimos dialogar com a enfermeira chefe e com a nutricionista, que representam o município na Rede de Segurança Alimentar e Nutricional (REDE SANS). Discutimos sobre a questão da segurança alimentar e da vulnerabilidade social do município. O PAA é uma política governamental que abrange diferentes agentes sociais para sua execução, formando um “círculo de cooperação”. Santos (2008) propõe a abordagem dos círculos de cooperação para compreender o funcionamento do território, sendo que, é preciso captar o movimento dos circuitos espaciais da produção. De acordo com Santos e Silveira, A repartição das atividades entre lugares e a divisão territorial do trabalho pode nos dar apenas uma visão mais ou menos estática do espaço de um país, um retrato onde cada porção do espaço revela especializações mais 11 ou menos nítidas, nascidas à luz de processos antigos e modernos. Mas para entender o funcionamento do território é preciso captar o movimento, daí a proposta de abordagem que leva em conta os circuitos espaciais da produção. Estes são definidos pela circulação de bens e produtos e, por isso, oferecem uma visão dinâmica, apontando a maneira como os fluxos perpassam o território (SANTOS; SILVEIRA, 2008, p. 143) O círculo de cooperação do PAA envolve diferentes agentes sociais de diversas esferas políticas. É um círculo de produção entre o governo federal, o governo municipal e a sociedade civil organizada. O Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) lança editais para as prefeituras que queiram participar do programa. As prefeituras, por sua vez, encaminham os projetos já elaborados pelas Associações de Produtores. No projeto, já consta o número de produtores, a especificação da produção a ser entregue e as entidades que serão beneficiadas com a entrega dos alimentos. Com a aprovação do projeto, os assentados passam a produzir. Esses alimentos são entregues ao poder municipal, isto é, à SEAAMA. Esta, por sua vez, faz a distribuição dos produtos para as entidades sociais. A SEAAMA também é responsável pelas notas fiscais dos produtores, que são destinadas a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) para posterior pagamento com recursos do MDS. 12 Quadro 01. Fluxograma PAA no Município do Presidente Venceslau. Fonte e Créditos: MDA Organização: Martha Esthela S. Silva (2013). Para a realização das entrevistas, foram construídos cinco questionários específicos, um para cada agente social (Entidade Consumidora, Entidade Doadora, Beneficiário Direto, Escolas e Assentado) do círculo de cooperação. Além da construção dos questionários, foram elaborados roteiros de entrevistas para agentes (Agrônomo, Técnico Agrícola, Lideranças Locais) envolvidos com o PAA. 13 Quadro 02 - Questionários do Círculo de Cooperação do PAA. N o Entidade Caracterização N o Quest. Aplicados 01 Entidade Consumidora Entidades que fazem uso dos alimentos na própria entidade. (Escolas, Asilos, Abrigo, Hospitais). 04 02 Entidade Doadora Entidades que repassam os alimentos ás famílias em vulnerabilidade social 07 03 Beneficiário Direto Famílias que recebem as doações das entidades de repasse 27 04 Escolas Escolas Municipais que recebem os produtos do PAA 03 05 Assentado Assentados que participam do PAA 06 Elaboração: Martha Esthela S. Silva (2013) Os questionários foram estruturados em duas partes: a primeira parte refere-se a aspectos sociais e econômicos; a segunda é composta sobre as representações sociais da Reforma Agrária. A representação social está corporificada no discurso do sujeito. Dessa forma, os trabalhos empíricos sobre representação social procuram caracterizá-las a partir das informações obtidas por meio de entrevistas e questionários. O trabalho de campo foi um dos mais importantes instrumentos de nossa pesquisa, em que foi possível estabelecer uma relação com os sujeitos envolvidos no PAA. Procuramos fazer um primeiro contato com os entrevistados para falar sobre a pesquisa e dialogar sobre a possível participação dessas pessoas nessa pesquisa. Foi importante essa primeira aproximação, e assim, para no segundo momento, realizarmos as entrevistas. As entrevistas com as entidades consumidoras foram realizadas com os gestores e/ou responsáveis. Conhecemos as entidades e o trabalho realizado por elas. A primeira parte do questionário refere-se às questões socioeconômicas que foram tranquilamente respondidas por todos. A segunda parte do questionário refere-se à Reforma Agrária. 14 Alguns entrevistados estranharam essa parte, mas com o diálogo sobre a ligação do PAA com a Reforma Agrária, foi possível continuar a entrevista. Todas avaliaram bem o PAA e a produção dos assentamentos rurais. Neste segmento, obtivemos boas entrevistas. Os entrevistados dialogaram sobre a vida no campo e alguns trouxeram suas histórias que são ligadas ao meio rural. Entrevistamos sete entidades doadoras, cinco igrejas e duas associações, pois as famílias em situação de vulnerabilidade social recebem os alimentos do PAA por essas entidades. Fomos recebidos pelos pastores das igrejas e essas entrevistas foram mais longas. Assuntos fora da pesquisa eram apontados pelos entrevistados, porém relevantes. Assistimos os cultos de algumas igrejas e participamos de reuniões, no intuito de estabelecer uma relação mais direta com os entrevistados. Em particular, as entidades doadoras pareciam mais abertas à pesquisa. A maioria dos entrevistados mostraram documentos de suas atividades de caridade, do PAA e de seus futuros projetos. Observamos que os mesmos sentem-se com um papel importante no círculo de cooperação do PAA por entregarem os alimentos às famílias necessitadas ou talvez por julgarem que a pesquisa evidenciaria o caráter de “caridade” da igreja. Os beneficiários diretos foram o único seguimento que não conseguimos estabelecer um contato anterior, mas mesmo assim, a maioria se dispôs a participar da pesquisa no intuito de ajudar alguém que precisava neste caso, nós pesquisadores. Elencamos dois grupos de beneficiários diretos para a efetivação da pesquisa. O primeiro grupo é composto pelas famílias atendidas pela igreja “O Brasil Para Cristo”, residentes do Bairro Vila Sumaré. O segundo grupo é constituído pelas famílias atendidas pela igreja “Resgate Para a Vida”, que atende aos Bairros Vila Alvorada, Parque Frutuoso Pires, Parque Augusto Pereira e Cecap. Fizemos um mapa a seguir dos bairros das famílias pesquisadas. 15 16 Pontuamos que essas duas entidades doadoras possuem forte representatividade junto ao programa no município. Com as famílias atendidas pela Igreja “Resgate Para a Vida”, o contato foi realizado na fila de entrega dos alimentos, onde dialogamos sobre a pesquisa e solicitamos a participação. As famílias que se dispuseram a participar da pesquisa, foi solicitado o endereço, onde fomos para fazer a entrevista. Somente com três famílias que não poderiam nos atender, a entrevista foi realizada em uma sala da igreja, cedida pelo pastor. A igreja tem um grupo de 32 famílias, conseguimos entrevistar 14 famílias. Com as famílias atendidas pela igreja “O Brasil para Cristo”, o primeiro contato foi realizado no culto da igreja, em que fizemos o mesmo procedimento anterior e pedimos o endereço e as entrevistamos em suas casas. A igreja possui 20 famílias cadastradas no Bairro Vila Sumaré, entrevistamos 13 famílias. Ir à casa das famílias ajudou a quebrar o desconhecimento de ambas as partes (pesquisador e pesquisado). O momento de acolhida na casa, conhecer os demais membros da família, tomar o café e falar sobre coisas cotidianas, deram alicerce para iniciar formalmente a entrevista. Neste grupo de entrevistados (beneficiários diretos), histórias de vida enriqueceram as entrevistas: histórias de luta e de uma vida sofrida na cidade faziam paralelo com as lutas pela terra no campo, em busca de melhores condições de vida. Há uma identificação de classe entre os entrevistados e os acampados e assentados. Essa identificação se dá pelo sofrimento de vida e a luta pela a reprodução social. Poucas famílias sabiam da origem dos alimentos e quando souberam, ficaram surpresas e felizes. O conceito de Reforma Agrária causou estranhamento para muitos, mas logo conseguiram identificar, falando sobre o assentamento, o assentado e a necessidade de distribuição das terras. Nas escolas, conversamos com a diretora, com a coordenadora pedagógica e/ou com as merendeiras. Neste segmento, algumas entrevistas foram comprometidas pela recusa de algumas entrevistadas em responder a determinadas perguntas tocante à Reforma Agrária. Uma das entrevistadas já havia sido professora no assentamento, o que nos proporcionou uma boa entrevista. Em outra entrevista, com a diretora da escola junto à coordenadora pedagógica, ao iniciarmos as perguntas sobre os assentamentos rurais, as 17 mesmas não quiseram seguir com a entrevista, pois julgaram serem questões políticas em que não caberia a escola responder. No trabalho de campo realizado no assentamento rural, visitamos alguns lotes, dialogamos com os assentados sobre o assentamento e a atuação do PAA. De acordo com os entrevistados, o programa passou a estimular no campo a “roça” e a produção de alimentos. Nas entrevistas, conseguimos captar o orgulho que os assentados têm de sua produção, que está sendo destinada a ajudar quem precisa. Os mesmos apontam alguns entraves do programa, como o limite de cota e falta de assistência técnica, porém, apontam muitos pontos positivos, como a volta do roçado para o assentamento, a renda sendo complementada e o trabalho para a mulher e para o jovem nas hortas. Observamos intensa atuação das mulheres gerindo o PAA no assentamento, desde a produção até a comercialização, atuando também na diretoria das associações. Realizamos entrevistas com as principais lideranças sociais da luta pela terra e pela permanência digna no campo. Com os líderes, foi possível um diálogo sobre o PAA. Apresentamos os resultados obtidos em nossa pesquisa, buscando a compreensão de como essa política de distribuição de alimentos tem rebatido sobre os movimentos sociais e o assentamento rural. Formulamos um roteiro e entrevistamos Rubens Germano, o Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Salomé, a Presidente da Associação Campos Verde do assentamento Primavera. O diálogo com esses líderes constitui-se na socialização desse conhecimento construído sobre o PAA no município de Presidente Venceslau, em que discutimos sobre a atuação do círculo de cooperação do programa, os rebatimentos políticos que a entrega de alimentos tem no espaço urbano e quais novas representações sociais que estão sendo construídas em torno da Reforma Agrária. 18 CAPÍTULO 01 REPRESENTAÇÃO SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DE TERRITORIALIDADE No presente capítulo, pretendemos refletir de que modo as representações sociais podem atuar na formação da territorialidade. Partimos da análise das representações sociais dos sujeitos beneficiados pelo PAA sobre a Reforma Agrária, buscando assim, compreender o espaço que os movimentos sociais de luta pela terra assumem no ambiente urbano. Este capítulo é o constructo teórico utilizado nesta pesquisa e tem como base a teoria das Representações Sociais e o processo de construção da Territorialidade dos movimentos sociais de luta pela terra. O objetivo deste primeiro capítulo é construir a base teórica da pesquisa. Isso dará alicerce para as demais discussões que traçaremos neste estudo. Discutiremos sobre a teoria das Representações Sociais desenvolvida por Moscovici (2003), os conceitos geográficos de Espaço e Espacialidade (SANTOS, 1978) e os conceitos de Território e Territorialidade (OLIVEIRA, 2006), pois estes conceitos são essenciais para o entendimento deste presente trabalho. Na primeira parte do capítulo, temos a discussão e a análise da Teoria das Representações Sociais. Na segunda parte, trabalhamos com os conceitos de Espaço- Espacialidade e Território-Territorialidade. A terceira parte une a teoria das representações sociais, os conceitos de “Espaço” e de “Território” a nossa pesquisa, abordando a “Espacialização” e a “Territorialização” da Reforma Agrária. Buscamos a compreensão de quais são os impedimentos e/ou impulsos que criam essas novas espacialidade e territorialidade a partir das representações sociais formuladas acerca da Reforma Agrária, tendo como mediação o PAA. Como asseveramos, a pesquisa tem como escopo central analisar a territorialidade da Reforma Agrária no espaço urbano a partir da materialidade do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Objetivamos refletir em que medida a concretude da produção alimentar e os processos de distribuição dos alimentos do campo para as áreas periféricas 19 urbanas, consolidando-se como mediações concretas no processo cotidiano de reprodução social de diversos sujeitos sociais em situação de risco alimentar, são mediadoras nas formas de representação social destes sujeitos acerca da Reforma Agrária e de seus principais elementos conceituais (assentamento rural, assentado, movimentos sociais de luta pela terra). Parte-se da Teoria das Representações Sociais desenvolvida no campo da Psicologia Social. Perspectivamos compreender os tipos de representações sociais que se estabelecem os conceitos e quais suas particularidades no âmbito da Reforma Agrária (assentamento rural, assentados, ocupações de terras, acampamento, produção de alimentos) no espaço urbano e como essas representações espacializam-se para além de seu território gênese: o assentamento rural. Analisamos a realidade social de modo crítico, entendendo o espaço como fruto das relações sociais históricas (SANTOS, 1978) e o território como produto da luta de classes (OLIVEIRA, 2006). Busca-se compreender as contradições sociais e as relações de espacialidade e territorialidade que a Reforma Agrária constrói no ambiente urbano. 1.1 Teoria das Representações Sociais A teoria das Representações Sociais é desenvolvida dentro do campo da Psicologia Social. A construção do conhecimento é realizada através da interação e da comunicação entre os indivíduos no âmbito do cotidiano. Segundo MOSCOVICI (1961: 36), “as representações sociais são uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e compartilhado, que tem um objetivo prático e concorre para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”. O conceito de Representação Social foi desenvolvido por Serge Moscovici (2003). O autor se sustenta ao conceito anteriormente desenvolvido por Durkheim (2003) que tratava de Representações Coletivas, conceito do campo da sociologia onde se prioriza uma visão global das representações. 20 O sociólogo Durkheim (1898) procurou explicar fenômenos como a religião, os mitos, as categorias de espaço e tempo, etc. O autor distinguiu o conceito de Representações Individuais do conceito de Representações Coletivas, sendo que, o primeiro conceito devia ser estudado pela psicologia e o segundo, pela sociologia (DURKHEIM, 1898). O autor advertia que não temos como explicar os fatos sociais somente pela percepção do indivíduo. Para exemplificar, a religião é uma representação coletiva, pois a mesma não pode ser tida como um fenômeno individual, visto que o indivíduo não funda uma religião sozinho, mas sim, da interação com outros indivíduos. O conceito de Representação Social foi influenciado pela vertente sociológica da psicologia moderna. Segundo Farr (1995), Moscovici formula a teoria das Representações Sociais: O autor não desenvolveu sua teoria num vazio cultural. Ele teve a capacidade de se apoiar nos fundadores das ciências sociais na França, especialmente em Durkheim, que foi um dos fundadores da sociologia moderna, a teoria de Moscovici é frequentemente classificada, com muita propriedade, como uma forma sociológica de Psicologia Social. (FARR, 1995, p. 44). Moscovici (2003) desenvolve o conceito de Representações Sociais apoiando-se em elementos da Psicologia Social e da sociologia, que é formulada a partir do cotidiano dos sujeitos sociais. As práticas comuns são mediadas por uma concretude de existência e relações com o entorno mais imediato. Parte-se de uma perspectiva que se debruça sobre a questão do conhecimento como um processo e não apenas como conteúdo, sendo que, a formação do conhecimento é realizada na perspectiva do indivíduo em sua espacialidade próxima. De acordo com a autora Jodelet (2004, p. 20), A Representação Social é o processo de assimilação da realidade pelo individuo, fruto de uma interação das suas experiências, de seus valores, das informações que circulam no seu meio sobre um objeto social bem como das relações que se estabelecem com os outros homens do seu meio. 21 A Psicologia Social tem suas sistematizações a partir da década de 1950 e foram criadas duas vertentes predominantes: a vertente Norte Americana parte da concepção de que o indivíduo é causa e efeito de sua individualidade; a vertente Europeia parte da concepção de que o homem é um produto histórico e social. Sob a ótica da Psicologia Social Francesa; “a psicologia social norte-americana é uma ciência ideológica, reprodutora da classe dominante” (LANE, 1984, p. 11). A psicologia americana trata o comportamento do sujeito como um processo individual, que não sofre interferência do meio social. Em contrapartida, a psicologia francesa busca compreender o sujeito na sua individualidade, atrelada ao seu meio social. O homem é fruto de seu processo histórico e deve ser compreendido dentro das dimensões sociais, política e econômica que o rodeia. Neste sentido, A estrutura social e o Estado decorrem constantemente do processo de vida de determinados indivíduos; mas, desses indivíduos, não como eles poderão parecer na sua própria representação ou na de outros, mas como eles são realmente, ou seja, como agem, como produzem material realmente, como atuam, portanto, em determinados limites premissas e condições materiais que não dependem da sua vontade (MARX; ENGELS, 1845, p. 30) Não podemos descartar as relações de produção que interferem na concepção de ideias do sujeito. O homem é o principal sujeito na transformação do espaço e das relações sociais, em que as representações possuem papel fundamental na compreensão da realidade (MOSCOVICI, 2003). A Teoria das Representações Sociais busca tanto dentro da Psicologia Social como fora dela as possibilidades de reconstrução teórica epistemológica. É uma metodologia que se propõe à entender as relações sociais (GUARESCHI; JOVCHELOVITCH, 1994). Em diálogo com a geografia, procuramos entender como as representações sociais configuram o espaço e o território. 22 A representação social pode ser entendida como significados que o indivíduo atribui à realidade através de seu discurso. A comunicação e a linguagem são elementos chaves para a construção das representações, sendo que, é por meio da comunicação que o sujeito estabelece sua relação com o mundo. Para os autores Marx e Engles (1845, p. 44), “[...] a linguagem é a consciência real prática que existem também para outros homens e que, portanto, só assim existe também para mim; e a linguagem só nasce como consciência da necessidade, da necessidade orgânica do intercâmbio com outros homens”. A interação entre os homens por meio da linguagem busca elementos para o entendimento do meio social. Moscovici (2003) criou o conceito das Representações Sociais para conseguir compreender a sociedade moderna, que é caracterizada pelo pluralismo e pela rapidez das mudanças sociais. Para o autor, o conceito de Representações Coletivas, desenvolvido por Durkheim, não conseguia explicar a complexidade da sociedade atual. Durkheim (1894) procurou explicar as representações em uma escala menor, priorizando mais a construção do saber entre os indivíduos nas relações cotidianas. O pensamento do indivíduo é mediado por sua espacialidade próxima e pela troca de conhecimentos com seus pares. Desse modo, a construção das representações sociais tem como alicerce o saber do sujeito, que é formulado a partir de suas relações sociais, sendo que, cada sujeito é protagonista na formulação do conhecimento coletivo. Moscovici (2003) argumenta que a utilização do conceito de representações coletivas cabia a sociedades mais antigas, criando o conceito de “representação social” para explicar elementos da sociedade atual: As representações em que estou interessado não são a das sociedades primitivas, nem as reminiscências, no subsolo de nossa cultura, de épocas remotas. São aquelas da nossa sociedade presente, do nosso solo político, cientifico e humano, que nem sempre tiveram tempo suficiente para permitir a sedimentação que as tornassem tradições imutáveis. (MOSCOVICI, 2003, p. 51). Com o estudo das representações sociais, Moscovici (2003) estuda o conhecimento que é produzido na escala da vida cotidiana por meio do senso comum compartilhado. Esse 23 saber é construído de forma social e a comunicação se direciona a compreender e pensar a realidade. É um conhecimento prático e simbólico. A comunicação dos indivíduos tem papel fundamental, pois é através do discurso e da troca de experiências que se formam e disseminam-se as representações sociais. Nas palavras de Moscovici (2003, p. 10), As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam se entrecruzam e se cristalizam continuamente, através duma palavra, dum gesto, ou duma reunião, em nosso mundo cotidiano. Elas impregnam a maioria de nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as comunicações que estabelecemos. As representações sociais são construídas socialmente. O saber do senso comum é apropriado pelos sujeitos na formação do conhecimento e o papel social do indivíduo é central na criação ou na reafirmação de ideias. O mesmo não pode ser refutado desse processo, não é apenas receptor e repassador de ideias prontas. A comunicação exerce um papel fundamental. O compartilhamento de experiências se objetiva na construção do saber e na estruturação do processo de conhecimento que se realiza na cotidianidade. As representações sociais são sistemas de interpretação da realidade. O sujeito busca uma compreensão do objeto e esse pode ser uma pessoa, uma coisa, um evento, um fenômeno social ou natural, uma ideia, etc. O desenvolvimento do processo de conhecimento, que perpassa pela assimilação, formação de conceito e valores, concretiza- se com a materialidade próxima. De acordo com Jodelet (1989, p. 05) “as representações sociais são abordadas simultaneamente como o produto e o processo de uma atividade de apropriação da realidade exterior ao pensamento e da elaboração psicológica e social da realidade”. Segundo Moscovici (2003), o processo de formação das representações sociais serve para tornar familiar o que antes não tinha familiaridade alguma. A familiarização é sempre um processo construtivo de ancoragem e objetivação, em que o que anteriormente não era familiar, passa a ser, ou seja, passa a ter uma representação social, sendo que, 24 As representações sociais emergem, não apenas de um modo de compreender um objeto particular, mas também como uma forma em que o sujeito (individuo ou grupo) adquire uma capacidade de definição, uma função de identidade, que é uma das maneiras como as representações expressam um valor simbólico. (MOSCOVICI, 2003, p. 21). Moscovici (2003) aponta que, embora a sociedade seja um sistema econômico e um sistema político, ela deve ser considerada também como um sistema de pensamento. Na perspectiva da Psicossociologia, o indivíduo não é somente um receptor de ideias da classe dominante, mas é também um pensador ativo, que irá formular suas representações quando o mesmo entra em um processo de formação de sua consciência. As representações sociais são formadas no cotidiano, no saber do senso comum. Essas são criadas a partir de ideologias, de modo que o indivíduo ou o coletivo formulam as representações de acordo com sua visão de mundo. Embora o indivíduo seja um ser pensante, as formulações de suas representações sociais não estão isentas de ideologias, mas as representações são e estão passíveis de mudanças. De acordo com o teórico das representações sociais, a sociedade pensante distingue-se em duas classes de universo de pensamentos: o universo consensual e o universo reificado. Segundo Moscovici, No universo consensual, a sociedade é uma criação visível, contínua, permeada com sentidos e finalidades, possuindo uma voz humana, de acordo com a existência humana e agindo tanto como reagindo, como um ser humano. Em outras palavras, o ser humano é, aqui, a medida de todas as coisas. No universo reificado, a sociedade é transformada em um sistema de entidades sólidas, básicas, invariáveis, que são indiferentes à individualidade e não possuem identidade. (MOSCOVICI, 2003, p. 50). No universo consensual, a sociedade é vista como homens livres e iguais. As atividades “intelectuais amadoras 1 ” da interação social cotidiana dão-se nesse universo, em 1 Formação de conhecimento fora da acadêmica. 25 que se produzem as representações sociais a partir da “arte da conversão”, do discurso, estabelecendo-se as relações sociais. As pessoas, por meio da comunicação verbal, compartilham suas ideias e as “teorias” do senso comum são elaboradas (MOSCOVICI, 2003). No universo reificado, a sociedade é vista como uma sociedade de classe desigual e meritocrática, em que o grau de participação na construção do conhecimento é determinado exclusivamente pelo nível de qualificação acadêmico (MOSCOVICI, 2003). O poder da ideologia apoia-se neste universo e a formulação do conhecimento é apropriada de forma indevida para a manutenção do status quo. “A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante” (MARX; ENGELS, 1845, p. 67). É no universo reificado que se formulam as falsas e pejorativas representações sociais da Reforma Agrária, que seguem os interesses da lógica do capital para a manutenção da concentração de terras da elite agrária. “As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes” (MARX; ENGELS, 1845, p. 67). Do universo consensual emergem as representações sociais. Neste universo, todos têm direito a voz e participação na formulação do conhecimento. É aí que mora o “perigo”. Mesmo no discurso impregnado de ideologias, as práticas sociais que se espacializam contestam “verdades prontas” e desmistificam as ideologias. “A ‘imaginação’, a ‘representação’, desses homens determinados sobre a práxis real é transformada no único poder determinante e ativo que domina e determina a práxis desses homens” (MARX; ENGELS, 1845, p. 60). A prática social interfere na ideologia, pois faz o enfrentamento do que é colocado no mundo das ideias ao que é posto no mundo concreto, sendo que, a concretude age diretamente na formação das representações sociais. Neste sentido, a práxis humana do assentamento rural, que produz um dos elementos de primeira necessidade do homem, isto é, os alimentos que são distribuídos no espaço urbano, invalidaria a ideologia de que os “sem-terras” são “baderneiros” e “vagabundos”? Neste caso, as práticas socioespaciais superam a ideologia, emergindo assim, novas representações sociais. Por sua vez, as novas representações necessitam de 26 uma mediação prática no cotidiano dos sujeitos para que elas possam ser consolidadas, espacializadas e/ou territorializadas. A criminalização dos movimentos sociais realizada pela classe dominante tem a grande mídia ao seu dispor, que deslegitima a luta política, desenraizando as lutas sociais de toda e qualquer conjuntura sócio-histórica, conforme Trouni e Romão (2004, p. 266), para quem “a formação do discurso dominante que circula na grande imprensa - grandes jornais e revistas ‘conceituadas’ – sempre promovendo a satanização dos sem-terra, expulsando e negando a sua condição reivindicatória”. A mídia brasileira é hostil com os movimentos sociais populares, pois os mesmo evidenciam a contradição de classe e o conflito entre oprimidos e opressores. As mazelas da sociedade capitalista são denunciadas por meio da ação desse sujeito coletivo - movimento social - que transforma sua miséria em protesto, pela recomposição de seus direitos, protagonizando a luta pela vida. A luta pela Reforma Agrária expressa o enfrentamento direto de classes sociais, de modo que, a classe dominante tenta a todo o momento deslegitimar a luta dos trabalhadores sem-terra, bloqueando, assim, a formação das reais representações sociais da Reforma Agrária. A classe dominante tenta, por sua vez, desatrelar a luta política da conquista dos assentamentos rurais e da produção de alimentos. A criminalização dos movimentos sociais recai sobre o senso comum, que reproduz, em parte, as concepções da classe dominante sobre as lutas sociais. Entretanto, as práticas sociais interpõem essa ideologia dominante e a produção de alimentos dos “sem-terra” traz possibilidades de formação de novas representações sociais. As representações sociais são formadas por dois processos: a ancoragem e a objetivação. A ancoragem é o processo que transforma algo totalmente estranho e perturbador em algo familiar. Ancorar é denominar e classificar, pois coisas que não são classificadas ou denominadas são estranhas e ao mesmo tempo, ameaçadoras. Classificar ou denominar alguma coisa ou pessoa significa tirar ela do anonimato (MOSCOVICI, 2003). A ancoragem efetiva-se quando somos capazes de colocar o objeto ou pessoa em uma determinada categoria, de rotulá-la com um nome conhecido. 27 A classificação consiste em colocar determinado elemento em um conjunto de valores por nós estipulados. Categorizar alguém ou alguma coisa é escolher um de nossos paradigmas e compará-lo de maneira positiva ou negativa. Segundo Moscovici (2003), Os sistemas de classificação e nomeação (classificar e dar nomes) não são, simplesmente, meio de graduar e de rotular pessoas ou objetos considerados como entidades discretas. Seu objetivo principal é facilitar a interpretação de características, a compreensão de intenções e motivos subjacentes às ações das pessoas, na realidade formar opiniões. (MOSCOVICI 2003, p. 70). A ancoragem torna familiar o que antes era estranho e ameaçador. É a formação da interpretação a partir das representações que já temos. Ancorar objetos, ideias e pessoas, é procurar identificá-las com algo já armazenado em nossa memória, algo que é próximo. A objetivação também é um mecanismo de construção de representações sociais. Esta, por sua vez, torna o que parecia abstrato em algo concreto, como no caso de teorias que, em gerações passadas eram totalmente improváveis e nas gerações presentes são teorias que são cientificamente comprovadas. De acordo com o físico Maxwell, “o que é incomum e imperceptível para uma geração, torna-se familiar e óbvio para a seguinte” (MAXWELL apud MOSCOVICI, 2003, p. 71). A aceitação de novos valores e a domesticação dos mesmos é resultado da objetivação, que é mais atuante que o processo de ancoragem. Segundo Moscovici (2003, p.71), “a objetivação une a ideia de não familiaridade com a de realidade, torna-se a verdadeira essência da realidade”. Objetivar é produzir conceitos, tornar tangível o conceito abstrato, materializá-lo. A ancoragem forma representação do que está no mundo real e a objetivação, no que está no mundo das ideias. A teoria das representações sociais toma como ponto de partida a visão do indivíduo e suas representações. A mesma coloca esse indivíduo como um ser pensante e sujeito na formação das representações sociais, sendo que, seu objetivo é identificar como os indivíduos ou grupos constroem as mesmas. Embora em meio à ideologia dominante na estrutura social, as representações sociais na dinâmica da socialização do conhecimento cotidiano permitem a atuação do 28 pensamento do sujeito, que pode ou não questionar a ideologia ou reformulá-las. Anular totalmente a ação pensadora do sujeito é anular a mudança. As mudanças que ocorrem no pensamento são devidas a atuação desse sujeito, que questiona ideologias e forma sua representação social do mundo. 1.2 A compreensão de espaço e de território na formação da espacialidade e da territorialidade 1.2.1 Espaço-espacialidade A geografia é uma ciência que estuda a sociedade e sua relação com o meio, ou seja, o espaço geográfico, sendo que, o Espaço é um dos principais conceitos dessa ciência. Trabalhamos com a perspectiva de espaço de Milton Santos (1978) e de Henri Lefebvre (2006). Os dois autores pensam o homem como protagonista na construção do espaço. Para Milton Santos (1978), principal intelectual na conceituação do espaço, o espaço é como um conjunto de relações realizadas através de funções e de formas, que são resultados tanto do passado como do presente. Segundo o autor, (...) o espaço se define como um conjunto de formas representativas e de relações sociais com do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que estão acontecendo diante dos nossos olhos e que se manifestam através de processos e funções. (SANTOS, 1978, p. 22). O espaço é o palco da vida material humana, em que se desenvolvem as práticas sociais, que criam e recriam o uso do espaço, sendo que, consequentemente, reinventam o mesmo, que está sujeito a constantes modificações, alicerçadas pela organização das relações sociais. 29 Santos (1985) expõe que, o espaço é acumulação desigual dos tempos. O espaço congrega diferentes tempos, que se mesclam e que o transformam, pois: A sociedade só pode ser definida através do espaço, já que o espaço é o resultado da produção, de uma decorrência de sua história – mais precisamente, da história dos processos produtivos impostos ao espaço pela sociedade. (SANTOS 1985, p. 49). O Espaço é a superfície concreta em que se desenvolve a sociedade e as relações sociais dão “vida” ao mesmo. O ser humano, por meio de sua prática, é o principal agente na transformação do espaço e essas práticas não estão isentas das contradições de classes, que se reproduzem nas relações sociais de produção. A realidade social reflete na organização do espaço. Se a mesma está apinhada de contradições, o espaço também se apresenta com as contradições, pois o espaço, de acordo com Santos, é a morada do homem, é o lugar de vida e de trabalho. Santos (2007) considera que, o espaço é como um conjunto de fixos e fluxos. Os elementos são fixados em um lugar e a práxis humana são os fluxos. Os fluxos transformam o espaço e, portanto, “fluxos novos ou renovados que recriam as condições ambientais e as condições sociais, e redefinem cada lugar.” (SANTOS, 2007, p. 38). Os fixos sofrem a interferência dos fluxos pela ação humana, sendo que, fluxos e fixos vão materializar a realidade geográfica. (SANTOS, 2007). O espaço possui elementos físicos e simbólicos. As definições do espaço são dadas pela prática social e é no espaço que se realizam as atividades da vida humana. O homem é responsável pelas transformações espaciais. As contradições da sociedade de classes materializam-se no espaço, sendo que, o mesmo é configurado de acordo com a correlação de forças estabelecidas. Na relação do homem com a natureza, o espaço material e o espaço simbólico formam o espaço geográfico, sendo este resultado da ação humana. Para Souza (2009, p. 105), 30 O espaço geográfico é campo, materialidade e representação da ação humana (trabalho). Trabalho no sentido mais amplo, não como simples ação mecânica sobre a matéria e sua reconfiguração como objeto (uso) e em determinado estágio da existência humana como mercadoria de troca, produtor e produto. O trabalho humano é o principal instrumento na transformação do espaço. O espaço, construído e alterado pelo homem, configura-se como palco das realizações humanas e toda modificação executada na transformação do espaço é proveniente do trabalho. O conjunto de atividades desempenhadas pela sociedade promove, de maneira continua, a modificação do espaço geográfico. Assim, o espaço geográfico é fruto do trabalho humano e somente pode ser modificado por meio do mesmo (SOUZA, 2009). O filósofo e sociólogo Henri Lefebvre (2006) entende o espaço como fruto das práticas sociais, sendo que, as mesmas são fundamentais para a produção e reprodução do espaço. O ser humano tem um papel principal na dinâmica espacial. Para o autor, o espaço é um produto social que não existe em si mesmo. Ele é produzido a partir de uma realidade social, na qual o espaço representa uma ordem que acontece ao mesmo tempo da realidade social. O espaço é a representação concreta da vida material humana (LEFEBVRE, 2006). O autor aponta que, o homem só produz espaço a partir do momento que esse sujeito pensa, atua e experimenta, ou seja, a produção do espaço é fruto das relações sociais. Utiliza-se do conceito de produção do espaço, entendendo o espaço ligado à realidade social e o mesmo não se forma de maneira espontânea, sendo produzido pelos homens. Lefebvre (2006) apresenta o conceito de espaço-tempo: o espaço é a ordem sincrônica da realidade social e são as relações humanas, por meio de suas ações e práticas, que produzem o espaço. A produção do espaço só pode ser compreendida no contexto de uma sociedade específica. O espaço e o tempo não são apenas relacionais, mas fundamentalmente, históricos. O estudo do espaço deve levar em consideração as relações sociais de poder e de conflito, que se expressam. O filósofo Lefebvre (2006) trabalha com a perspectiva de que o espaço é produzido pela ação humana e pelas relações sociais. O autor percebe o espaço em três momentos. No espaço percebido, esta percepção vai depender do sujeito, pois, vai depender da sua 31 prática espacial, que se baseia numa materialidade concreta e produzida; no espaço concebido, ele não pode ser percebido sem ter sido concebido previamente em pensamento; produto do saber; no espaço vivido, é a experiência vivida no espaço, experimentada na prática da sua vida cotidiana (LEFEBVRE, 2006) (Grifo nosso). O autor, com sua percepção do espaço, auxilia-nos à compreensão da teoria das representações sociais, pois apresenta uma discussão sobre o cotidiano, em que as representações se constituem do que é vivido, percebido e concebido em um movimento dialético. O espaço é a categoria chave na investigação das representações sociais. É no espaço que o homem vive, percebe e concebe sua visão de mundo. É no espaço percebido, isto é, na materialidade, que se direcionam as práticas sociais, contudo, é no espaço vivido que se permite as transformações. No espaço vivido, buscamos o universo individual, o espaço em que as representações sociais emergem na percepção do sujeito e nas práticas da vida cotidiana. De acordo com Santos (2008, p. 172), “o espaço é a matéria trabalhada por excelência. Nenhum dos objetos sociais tem tanto domínio sobre o homem, nem está presente de tal forma no cotidiano dos indivíduos”. A práxis humana atua cotidianamente sobre o espaço, e o sujeito, a partir do espaço percebido, ou seja, a partir da materialidade espacial, concebe o pensamento. Ao formular o saber atual diante de tal realidade vivida, o sujeito coloca em ação sua prática social. Essa espacialidade do espaço rural no espaço urbano, via distribuição de alimentos (PAA), coloca a possibilidade de novos pensamentos sobre a Reforma Agrária, que podem mudar a aceitação dos Movimentos Sociais de Luta Pela Terra e a legitimação da práxis dos movimentos por parte dos beneficiados com a produção de alimentos dos assentamentos rurais. A partir do movimento da produção, promove-se o movimento das representações? A mudança de espacialidade no espaço torna possível a construção de novas representações. De acordo com Santos (1996), a espacialidade é um momento no espaço, diferente da paisagem que é permanente: “a espacialização é sempre o presente, um 32 presente fugindo, enquanto a paisagem é sempre o passado, ainda que recente [...] a espacialidade é o momento das relações sociais geografizadas, em determinado arranjo espacial” (SANTOS, 1996, p. 73-74). Segundo Soja (1983), em seus estudos sobre espacialidade, [...] a espacialidade tornou-se ativa como uma estrutura concreta e repositório de contradições e conflitos, um campo da luta e estratégia política. As relações sociais e espaciais, a divisão social e espacial do trabalho, a práxis social e espacial estão deste modo interativamente engajadas e concatenadas, ao invés de reduzidas a simples gênese reflexo, causa inicial e efeito subsequente. (SOJA, 1983, p. 38). A espacialidade está relacionada à dinâmica espacial da sociedade, que cria relações sociais no espaço. Em nosso estudo, a relação cidade x campo é mediatizada pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que cria a espacialidade da Reforma Agrária no espaço urbano via distribuição de alimentos oriundos dos assentamentos rurais, mas perscruta-se se esse movimento territorializa-se. A relação campo e cidade é mediada por uma série de elementos. A divisão socioespacial do trabalho, embutida de questões econômicas e políticas, trouxeram a esses dois espaços uma separação, em que um se sobrepõe ao outro. De acordo com Marx e Engels (1845, p. 26), “a divisão do trabalho no interior de uma nação começa por provocar a separação do trabalho industrial e comercial do trabalho agrícola e, com ela, a separação de campo e cidade e a oposição dos interesses de ambos”. Segundo os referidos autores, a maior divisão material e espiritual é a separação do campo e da cidade, sendo que, a mesma oposição somente pode existir no quadro da propriedade privada (MARX; ENGELS, 1845). Em suas formas modernas, a divisão e oposição entre cidade e campo e entre indústria e agricultura, representa a culminação crítica do processo de divisão e especialização do trabalho. Embora não tivesse início com o capitalismo, foi desenvolvido com o capitalismo a um grau extraordinário e transformador. Esta visão manifesta-se sob 33 outras formas: a separação entre trabalho mental e trabalho braçal, entre administração e execução, entre política e vida social. Essa divisão social do trabalho rebate no espaço, o campo e a cidade, porém, ao mesmo tempo, esses dois espaços se complementam. Sposito (2010, p. 116) descreve sobre tal movimento: “não há diferenciação social sem divisão social e territorial do trabalho a divisão territorial do trabalho mais elementar é a que se estabelece entre a cidade e o campo. Na divisão do trabalho há divisão, separação, mas há também complementaridade”. A produção de alimentos no campo que reverbera sobre a cidade auxilia-nos a refletir sobre essa divisão do trabalho que traz a complementaridade do trabalho no campo à reprodução social de vida na cidade. A partir da materialidade do espaço, ou seja, com a análise do PAA, que é a materialidade do rural no urbano, buscamos compreender se ocorre a territorialidade da Reforma Agrária na cidade a partir da espacialidade dessa política pública, que entrelaça diretamente esses espaços. A PAA coloca novas possibilidades de formação de novas espacialidades da Reforma Agrária, que a priori se dá com as Ocupações e Manifestações de Luta pela Terra, que por sua vez, tentam resultar na conquista de assentamentos rurais. A produção dos assentamentos (Alimentos) tem sua distribuição no espaço urbano pela intervenção do Estado. Será que isso traz uma nova dimensão geográfica da Reforma Agrária no espaço urbano, criando uma espacialidade do campo na cidade? 1.2.2 Território e Territorialidade A discussão sobre Território e Territorialidade coloca-nos na necessidade de pontuarmos tais conceitos. O território, inserido na Geografia, é compreendido em diferentes perspectivas. 34 Compreendemos que, o território é um conjunto de relações sociais que se estabelece no espaço. Essas relações têm como pano de fundo a disputa pelo poder do espaço. O território é o espaço do poder. O território é um espaço de conflito e disputa pelo poder. O mesmo se (re)produz por meio da luta de classe, em que uma classe almeja o total controle do território em detrimento da outra. Para Oliveira (2003, p. 13), [...] território é assim, produto concreto da luta de classes travada pela sociedade no processo de produção de sua existência [...] O processo de construção do território é, pois, simultaneamente, construção / destruição / manutenção / transformação. É em síntese a unidade dialética, portanto contraditória, da espacialidade que a sociedade tem e desenvolve. De acordo com Souza (2009), o território é constituído de duas propriedades. Para o autor, é impossível compreender ou representar o território sem as mesmas, sendo elas: a) o núcleo central de sua proposição repousa sobre a afirmativa de que o território é constituído de relações sociais fundadas sobre as diferenças de poder. O território seria o primeiro modo de dar significado às relações de poder; b) as mudanças na organização das relações sociais correspondem às mudanças, nas representações do poder, e esta mudança não implica num único sentido. [...] Uma ausência de compreensão de que é a práxis que consolida espacialidades e os limites de enfrentamento destas diferenças geram, portanto, os territórios. (SOUZA, 2009, p. 109). O território é construído por meio das relações sociais imbricadas de poder. A disputa pelo território é uma disputa por espaço, por ideais, bens naturais, culturais e econômicos. Souza (2009) aponta que, o território reúne quatro elementos: as relações de poder, as representações simbólicas, as normas e a identidade subjetiva. O território somente é concebido pelo exercício de poder, sendo inseparáveis os dois elementos. A disputa pelo território perpassa por uma disputa econômica, política e cultural. O território é fruto das relações sociais que se desenvolve pelo espaço, tendo como pano de fundo, a luta de classes. 35 O geógrafo Oliveira (1999, p. 74) parte da concepção, [...] de que território deve ser apreendido como síntese contraditória, como totalidade concreta do processo/modo de produção/distribuição/circulação/consumo e suas articulações e mediações supraestruturais (políticas, ideológicas, simbólicas, ect) onde o Estado desempenha a função de regulação. O território é assim, produto concreto da luta de classe travada pela sociedade no processo de produção de sua existência. O autor coloca o território como elemento contraditório da luta de classe e o Estado como regulador do território. O Estado, na concepção classista, serve como instrumento para manutenção da classe dominante no poder, logo, para preservar os privilégios burgueses. O Estado faz a mediação do conflito na disputa pelo território e legitima a posse do território, favorecendo a classe que representa. De acordo com Marx e Engels (1845, p.112), “[...] o Estado adquiriu uma existência particular a par, e fora, da sociedade civil; mas ele nada mais é do que a forma de organização que os burgueses se dão, tanto externa quanto interna, para a garantia mútua da sua propriedade e dos seus interesses”. Fabrini (2011), assim como Oliveira (1999) e Souza (2009), também trabalha com uma concepção classista de território. Para o autor, um território também pode constituir-se na inconstitucionalidade, ou seja, sem a legitimação do Estado. Para o autor, “a formação do território está sujeita às forças sociais que são protagonistas no processo de sua formação”. (FABRINI, 2011, p. 99). O território é contraditório e deve ser interpretado como um espaço de resistência e subordinação, pois essa contradição territorial é derivada das classes sociais que disputam a hegemonia sobre o controle do território, sendo que o mesmo é uma construção social. (FABRINI, 2011). A ocupação de terras constitui-se em um território camponês, mesmo não sendo legitimada pelo Estado. Esse território legitima-se como camponês pelas práticas que se concretizam nesse espaço, ou seja, pela territorialidade camponesa. É um território fora da constitucionalidade, mas não é um território sem territorialidade. O território é um espaço delimitado por relação de poder e constrói-se a partir das relações sociais mediadas pela correlação de forças opostas, em que ocorre a disputa pelo 36 domínio do mesmo. Quando uma força se sobrepõe a outra e ganha o domínio do território, passa-se, então, a disputar a hegemonia da territorialidade. Ao analisar a conquista da terra, o enfrentamento direto do campesinato versus agronegócio, que se dá com a ocupação dos Movimentos Sociais de Luta pela Terra, quando este território passa a ser um assentamento, a priori, tem-se um “território camponês”. Neste território, pode manifestar-se opostas territorialidades: há uma disputa pela territorialidade camponesa e a territorialidade do agronegócio, porém, essa disputa, entre outras disputas que se espacializam no assentamento rural, não anulam o território camponês, e sim, a totalidade do território do campesinato. O território é camponês e a territorialidade é camponesa e do agronegócio. A disputa pela territorialidade vem junto com uma nova disputa territorial. (Fernandes, 2006). De acordo com Raffestin (1993), o espaço é anterior ao território. O território constitui-se a partir do espaço e é resultado das relações sociais de disputa pelo poder numa determinada área. Sendo assim, o autor cita que: “o território se apoia no espaço, mas não é o espaço. É a produção a partir do espaço” (RAFFESTIN, 1993, p. 37). A compreensão do autor avança na distinção entre espaço e território. Raffestin (1993) baseia-se em Lefebvre para a compreensão da mudança do espaço em território. O espaço produz-se e modifica-se como um território nacional com toda infraestrutura (rodovias, canais, estrada de ferro, circuitos comerciais e bancários, autoestrada, rotas aéreas, etc.). Sendo assim, o território nacional foi realizado pelo trabalho humano e esta modificação foi marcada pelo poder. Raffestin (1993, p. 144) conclui que, “o espaço é a “prisão original”, o território é a prisão que os homens constroem para si”. O espaço é a matéria-prima das relações e por isso, as representações dadas neste espaço são o que o torna um território (RAFFESTIN, 1993). O território não pode ser uma prisão, pois ele expressa o desejo do sujeito. Um assentamento rural é um território e para os assentados, configura-se como um espaço de esperança e de libertação da fome, da falta de moradia e de desemprego. As relações de poder expressam-se no território, pois uma classe anseia ter o domínio homogêneo do mesmo. As representações simbólicas (terra, produção familiar, direitos, luta, cooperação) atuam sobre as normas de conduta que podem ou não reafirmar a identidade de “sem- terra”. 37 Raffestin (1993), um dos autores que trabalha com conceito de territorialidade, aponta que, A territorialidade adquire um valor bem particular, pois reflete a multidimensionalidade do “vivido” territorial pelos membros de uma coletividade, pelas sociedades em geral. Os homens “vivem”, ao mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial por intermédio de um sistema de relações existenciais e/ou produtivistas. (RAFFESTIN, 1993, p.158). Raffestin (1993) trabalha com a territorialidade mais no nível material, pois para o autor, a mesma somente pode ser analisada em relações reais, colocadas no contexto sócio- histórico e espaço-temporal. A territorialização é a representação social que se configura no território. É a expressão das relações sociais que se estabelecem a partir de uma materialidade, criando uma mediação com o espaço por meio da dominação e da apropriação, que assim articula a territorialidade do território. As práticas cotidianas dos sujeitos são essenciais para a construção e manutenção da territorialidade. Entendemos territorialidade como um conjunto de práticas que se expressam no território. A territorialidade expande-se para além de seu território e os valores de um território podem permear por outro território. A territorialidade abrange outros territórios sem necessariamente desterritorializar-se do seu território de origem. 1.3. Representação social na construção da territorialidade Este olhar para as práticas da vida cotidiana, que para Lefebvre (2006) é permeado pelo espaço vivido, concebido e percebido, ajuda-nos na compreensão da teoria das Representações Sociais de Moscovici (2003), em que este conhecimento advém do senso comum, do cotidiano e da espacialidade próxima do sujeito. 38 Entender as representações sociais da Luta pela Terra elaborada por sujeitos urbanos que se beneficiam com a produção de alimentos dos assentamentos rurais é o principal objetivo desse estudo. A Luta pela Terra traz consigo uma série de estigmas, porém, a materialidade dessa luta no ambiente urbano por meio da produção e distribuição de alimentos, pode gerar conflitos ideológicos e novas representações sociais sobre a Reforma Agrária. A luta pela terra tem apresentado diferentes desdobramentos tanto no plano concreto quanto no plano abstrato. A luta pela Reforma Agrária é histórica, sendo que, para os trabalhadores protagonistas desse processo, a mesma é cotidiana. Trata-se de uma luta de classe que teve início com a escravidão no Brasil. Entre escravos e senhores de engenhos, os quilombos representaram a maior resistência contra a escravidão e pela luta pela terra. Em um espaço-tempo diferente, essa luta, mesmo que em diversos momentos da história tenha sido sufocada, ainda hoje permanece viva entre os explorados. (WHITAKER, 2009) A luta pela terra desencadeou uma série de outras lutas, de modo que, hoje, os movimentos sociais não mais reivindicam somente terra, mas também reivindicam outro projeto de sociedade, contrário ao que está (im)posto. Esse projeto propõe uma sociedade justa e igualitária, de modo que o dinheiro não valha mais que o ser humano. Os movimentos sociais são os protagonistas dessa luta que se propõe a corrigir os erros históricos. A terra deve cumprir sua função social e não uma função de negócio. No palco de conflito fundiário, a disputa dá-se entre Camponeses versus Agronegócio. A luta de classe expressa-se na disputa pelo território e os meios de produção. Uma das estratégias que os Movimentos Sociais utilizam é a ocupação de terras, isto é, um enfretamento direto com o Agronegócio em um conflito que é mediado pelo Estado. O Estado, por sua vez, propõe uma Reforma Agrária de mercado, totalmente contrária a ensejada pelos movimentos sociais. A efetivação dos assentamentos rurais de Reforma Agrária é precedida de diversas ocupações, sendo que, as ocupações são expressões concretas da espacialização da luta pela terra e os assentamentos, a territorialização da luta (FERNANDES, 1996). 39 No Brasil há uma forte criminalização da luta pela terra. A mídia hegemônica contribui para a depreciação da Reforma Agrária, formulando ideologias para a não legitimação social da reforma agrária e para a criminalização dos sujeitos da luta pela terra. O MST é constantemente estereotipado pelos meios de comunição. No intuito de deslegitimar a luta dos excluídos, esses meios tentam vincular o movimento a ilegalidade e a criminalidade. De acordo com Tfouni e Romão (2004, p. 255), “através de suas narrativas e explicações sobre os fatos do mundo, elas criam lógica e coerência onde não existe lógica e coerência alguma”. A mídia desvincula a luta por justiça que os Movimentos Populares reivindicam, vinculando a luta com baderna. A mesma camufla propositalmente as injustiças sociais para invalidar a ação coletiva desse sujeito que é fruto do processo histórico de acúmulo de desigualdade social. Segundo Sauer e Souza (2008, p. 53), Fortemente influenciados pelos meios de comunicação de massa, o senso comum estabelece uma estreita ligação entre conflito e violência, definindo os movimentos sociais populares que disputam a posse da terra como agentes causadores dessa violência. Completamente influenciado por um “discurso modernizador” do grande agronegócio, a violência é associada a nichos não-modernos ou atrasados no campo, quando, na verdade, a realidade é exatamente o contrário. A criminalização dos Movimentos Sociais é uma estratégia da elite agrária, que se vale de todo aparato midiático e governamental para impedir a territorialização dos sem- terra por meio das ocupações (FERNANDES, 2003). De acordo com Oliveira (2003, p. 31), A luta e a própria reforma agrária vão para o banco dos réus. Os camponeses processados e condenados. Instaura-se em nome do rigor do cumprimento da lei, a velha alternativa de tornar os presos políticos em réus comuns. [...] Por isso, camponeses e trabalhadores rurais tem sido presos por lutarem para ter seu pedaço de chão, ou para fugir das formas degradantes de trabalho. 40 A ideologia urbano-industrial e seus preconceitos contra o rural obstaculizam a ação dos movimentos sociais de luta pela terra, porém, a pequena propriedade rural produtora de alimentos e recuperadora do meio ambiente é o que permite combater este preconceito (WHITAKER, 2009). A sobreposição que a cidade tem sobre o campo reforça o preconceito com o rural, sendo que, o campo é identificado como o lugar do atraso e a cidade como lugar do progresso. Criam-se estigmas para o ca