UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA MOTRICIDADE FORMAÇÃO, CONHECIMENTO E IDENTIDADE ACADÊMICA – O PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA MOTRICIDADE NA UNESP/RC CAIO ROTTA BRADBURY NOVAES Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Motricidade (Área Pedagogia da Motricidade Humana) RIO CLARO Estado de São Paulo - BRASIL Março - 2006 ii UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA MOTRICIDADE FORMAÇÃO, CONHECIMENTO E IDENTIDADE ACADÊMICA – O PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA MOTRICIDADE NA UNESP/RC CAIO ROTTA BRADBURY NOVAES ORIENTADOR: PROF. DR. SAMUEL DE SOUZA NETO Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Motricidade (Área Pedagogia da Motricidade Humana) RIO CLARO Estado de São Paulo – BRASIL Março – 2006 iii SESESESE (Rudyard Ki(Rudyard Ki(Rudyard Ki(Rudyard Kipling)pling)pling)pling) “Se és capaz de manter a tua calma quando Todo mundo em redor já a perdeu e te culpa, De crer em ti quando estão todos duvidando E para estes, no entanto achar uma desculpa; Se és capaz de esperar sem te desesperares, Ou enganado não mentir ao mentiroso, Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares, E não parecer bom demais, nem pretensioso; Se és capaz de sonhar e não fazer dos sonhos teus senhores Se és capaz de pensar sem que a isso só te atires; Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires Tratar da mesma forma a esses dois impostores Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas em armadilhas as verdades que disseste E as coisas por que deste a vida, estraçalhadas, E refazê-las com o bem pouco que te reste; Se és capaz de arriscar numa única parada Tudo o que conseguiste em toda a tua vida, E perder e ao perder, sem nunca dizer nada, Resignado, tornar ao ponto de partida; De forçar coração, nervos, músculos, tudo A dar seja o que for que neles ainda existe, E a persistir assim quando, exaustos contudo Resta a vontade em ti, que ainda ordena: Persiste; Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes; E, entre Reis, não perder a naturalidade, E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes; Se a todos pode ser de alguma utilidade; Se és capaz de dar, segundo por segundo, Ao minuto fatal todo valor e brilho; Tua é a Terra, com tudo o que existe no mundo. E – o que ainda é muito mais- és um HOMEM, meu filho.” iv AGRADECIMENTOS Quero agradecer em primeiro lugar a minha família, que me amparou, me deu forças e acreditou em mim, mesmo nos momentos mais difíceis, nas mais adversas condições, quando nada mais resta, vocês me ensinaram a perseverar... Meu pai, um dos homens mais sábios que já conheci, e o mais corajoso, a coragem da honestidade. Minha mãe, cujo amor infinito nutre a todos nós... Meu irmão, coração nobre, sem tua ajuda, e sacrifício não só por mim, mas pela família também, eu simplesmente não estaria aqui... do fundo do meu coração, obrigado!!! Amo vocês... Tia Célia, Vera, Renata, Rosana, Tio Alcides, Vó Ana; amo vocês, que sempre me apoiaram em todas as circunstâncias... Agradeço muito ao meu orientador Prof. Samuel, pelos ensinamentos, e pelos exemplos em conjugar a vida acadêmica e extra-acadêmica; por me ensinar a “fabricação da ciência”, o caminho da pesquisa, por vezes árduo e conflitante, por vezes florido de belezas que só existem aos olhos de quem sabe... Mas acima de tudo, solitário, como um caminhar que exige a paixão e o desapego, além do bem e do mal...a humildade e a beleza na ignorância, invisível a quem não crê no compromisso com a excelência humana, escolha de cada um... Agradeço por acreditar em mim, Professor, acima de tudo, obrigado. Agradeço ao CNPq pelo auxílio financeiro à realização desta pesquisa, sem o qual não seria possível terminá-la. Agradeço ao grupo NEPEF, por todos os ensinamentos e discussões. Sigamos rumo aos mais altos propósitos, certos do valor de nossa empreitada. Agradeço à banca examinadora, que muito me ensinou com seus apontamentos e sugestões, muito obrigado. Agradeço ao Departamento de Educação, no qual desenvolvi a maior parte deste estudo, e que por grande parte do tempo foi uma casa para mim, obrigado. As secretárias Mônica e Simone, a todos os professores. Agradeço muito ao pessoal da biblioteca, que tanto me ajudou e sem os quais seria impensavelmente difícil este labor, obrigado. Agradeço muitíssimo a todos os meus amigos, irmãos que a vida me deu, por tanta ajuda e compreensão, sem vocês eu não estaria aqui. Agradeço muito a ti Marli, por me ajudar a manter a lucidez neste período tão difícil, e pela força e apoio sem limites...Te adoro muito. Obrigado. Coloco aqui em palavras um esforço supremo para apreender a abstração mais sincera que me habita, mas sei que mesmo tal esforço é apenas uma pueril miragem perto deste sentimento... A minha gratidão e meu amor pela Natureza. Meu absoluto, que me nutre, me acalenta, nunca me deixando só, e para onde um dia hei de retornar em paz. Manifesta sua vida em mim, me faz sorrir, chorar, amar e lutar por ela... toma-me indiferente a tudo que não seja viver pelos teus caminhos, minha Terra... O homem que veio do humus, nascido da terra, voltará para a terra... v LISTA DE QUADROS PÁGINA Quadro I - PRÁTICAS CORPORAIS ALTERNATIVAS 152 Quadro II - JOGOS E RELAÇÕES INTERPESSOAIS 165 Quadro III - FORMAÇÃO PROFISSIONAL E CAMPO DE TRABALHO 174 Quadro IV - EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR 181 Quadro V - ESTADOS EMOCIONAIS E MOVIMENTO 186 Quadro VI - CORPO, MODERNIDADE E PÓS MODERNIDADE 191 vi RESUMO Um dos fatores que agrega legitimidade a uma área do conhecimento científico é a produção acadêmica, corporificada na forma de um sistema de pós- graduação, que além de efetivar a formação acadêmica integra a pesquisa à transmissão de conhecimento, perpetuando um ciclo acadêmico. Escolheu-se como lócus deste estudo o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Motricidade do Intituto de Biociências da UNESP/Rio Claro, local em que se levantaram alguns questionamentos relativos à “ausência” de indicativos claros sobre a questão do referencial teórico no processo de formação e produção de conhecimento. Na busca de dados para confirmar ou refutar tal questão efetuou-se a análise de fonte documental relativa à 28 dissertações de mestrado produzidas na Área de Concentração Pedagogia da Motricidade Humana, no período de 1998 a 2002, assim como de consulta aos documentos históricos do processo de constituição desse programa. Corroborando com esse trabalho utilizou-se também de entrevista com os membros da comissão de criação da proposta desse programa e com representantes da área de concentração. O foco deste estudo se concentrou portanto em investigar a produção acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Motricidade, área de concentração: Pedagogia da Motricidade Humana, buscando-se compreender os referenciais teóricos desta proposta, bem como seu processo de constituição. Trata-se, portanto, de um estudo de caso, de análise qualitativa. A análise dos resultados obtidos no estudo e a sua discussão inicial apontaram indícios de uma possível fragmentação da área de conhecimento, levando a falta de uma aquiescência básica acerca da identidade do programa, sugerindo a necessidade de uma nova configuração curricular. Sobre o conhecimento veiculado nas dissertações da Área da Pedagogia da Motricidade Humana considerou-se que a mesma mostrou-se, no que tange a produção acadêmica, que não há clareza conceitual sobre a própria proposta. No âmbito deste processo as Ciências da Motricidade aparecem como sinônimo de movimento humano, na forma de um espectro, que nem sempre foi referendado diretamente, mas de forma subjacente a algumas temáticas oriundas da Educação Física. Embora haja este descompasso a formação acadêmica do programa circunscreve-se em torno de um capital simbólico oriundo das ciências naturais e ciências humanas, gerando um capital cultural pelo processo de nominação e um habitus que segue o rigor acadêmico. Palavras chave: motricidade humana, educação física, pós-graduação, conhecimento, identidade acadêmica vii SUMÁRIO LISTA DE QUADROS...........................................................................................v RESUMO.......................................................................................................................................vi CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO................................................................................................... 1 O problema ......................................................................................................... 3 Justificativa ......................................................................................................... 7 Questões a investigar.......................................................................................... 9 Objetivos............................................................................................................11 Organização do estudo ......................................................................................12 CAPÍTULO 2 – REVISÃO DA LITERATURA .......................................................................... 14 2.1 – A Educação Física na Universidade: Formação, Produção e Conhecimento e Identidade Acadêmica......................................................14 2.1.1 - O nascimento da pós-graduação no Brasil ...........................................14 2.1.2 - A educação física na pós-graduação .................................................................21 2.2 - As Matrizes de Pensamento na Educação Física e a Busca da Legitimidade Acadêmica .........................................................................................................27 2.2.1 – A matriz científica .................................................................................................30 2.2.1.1 – A perspectiva disciplinar ou Cinesiologia ............................................30 2.2.1.2 – A perspectiva na Ciência da Motricidade Humana ............................33 2.2.2 – A matriz pedagógica ............................................................................................37 2.2.2.1 – A perspectiva pedagógica .....................................................................37 2.2.3 – O colóquio sobre a Epistemologia da Educação Física: Cinesiologia e Ciência da Motricidade Humana .....................................................................................46 2.3 - Identidade, Especificidade e Autonomia.....................................................52 2.3.1 - A construção da identidade .................................................................................53 2.3.2 - O Campo Acadêmico Educação Física como espaço social de construção da identidade, especificidade e autonomia....................................................................75 2.4 - Os Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu na Educação Física do Brasil..................................................................................................................90 2.4.1 - As propostas de pós-graduação em Educação Física, Ciências da Reabilitação, Ciências do Movimento e Ciência(s) da Motricidade ...........................91 2.4.2 - O Programa de pós-graduação em “Ciências da Motricidade” da UNESP de Rio Claro ...........................................................................................................................100 CAPÍTULO 3 – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ..................................................... 106 CAPÍTULO 4 – APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS ......................................................... 121 4.1 – As Entrevistas .........................................................................................122 viii 4.2 – Fonte Documental - As dissertações da Área de Concentração: Pedagogia da Motricidade Humana – (1998-2002) e os Documentos do Programa de Pós Graduação .......................................................................................................150 CAPÍTULO 5 – DISCUSSÃO DOS RESULTADOS................................................................. 196 5.1 - A proposta do Programa de Pós-Graduação e a sedimentação de um Corpo de Conhecimentos relacionado as Ciências da Motricidade e a Pedagogia da Motricidade Humana ...................................................................................196 5.2 – O PPGCM – PMH – Lp, o Capital Simbólico e o Habitus.........................202 5.3 - O PPGCM, as diretrizes da CAPES e a prática acadêmica desse processo .........................................................................................................................207 5.4 – O perfil Profissional (Acadêmico), o Capital Cultural, e as relações entre Conteúdo e Forma – Profissão Acadêmica ......................................................211 CAPÍTULO 6 – CONCLUSÕES ................................................................................................ 217 REFERÊNCIAS......................................................................................................................... 223 ABSTRACT ............................................................................................................................... 232 APÊNDICE ................................................................................................................................ 233 1 CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO No ano de 1998 prestei vestibular para Educação Física na Universidade Estadual Paulista, tendo como motivações a prática esportiva que fez parte de minha história de vida, desde a idade de 10 anos. Outro fator foi a curiosidade incessante sobre o corpo humano: o que conseguia e não conseguia realizar, minhas sensações etc. Ingressei na Universidade Estadual Paulista (Unesp), Câmpus de Rio Claro, tendo como opção o curso de Bacharelado, pois como, ainda, não tinha clara a diferença entre as graduações, acreditava que poderia encontrar nessa opção os conhecimentos básicos que fundamentavam a Educação Física. Porém, no decorrer da graduação, outras questões começaram a me chamar a atenção, como: a identidade do curso; o campo de trabalho; a epistemologia que fundamentava a Educação Física; a dualidade área biológica x área de humanas; as lutas acadêmicas entre grupos de pesquisa etc. Em 2002, concluí o curso de bacharelado em Educação Física, mas muitas questões ainda tinham permanecido mal resolvidas, me levando a prosseguir nos estudos. Neste período entrei em contato com o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Formação Profissional no Campo da Educação Física (NEPEF), buscando resolver ou encontrar respostas para estas questões. Na ocasião de minha entrada no grupo se discutia o texto clássico de MANUEL SERGIO (1983), sobre a Ciência da Motricidade Humana, o qual me despertou muito interesse pela inclusão do tema da corporeidade nos fundamentos de sua epistemologia. Porém, mesmo cônscio da complexidade 2 de tais pensamentos e da maneira radical (tanto como pensamento fundacional como pela ousadia) de tratar a Motricidade Humana como uma ciência, este assunto me estimulou a entrar nessa senda. No NEPEF se discutia como tais idéias geraram algumas confusões no meio acadêmico da Educação Física me levando a tentar entender algumas propostas que circulavam no âmbito da Educação Física, como a proposta curricular do curso que tinha concluído. Este apresentava algumas disciplinas (dimensões filosóficas da motricidade humana, dimensões sociológicas da motricidade humana, dimensões psicológicas da motricidade humana, introdução à educação do movimento, entre outras) que apesar de mencionarem a motricidade humana pouca relação apresentavam sobre este tema e também entre si, por conta do currículo disciplinar. Embora esta proposta curricular, em sua reestruturação de 1989, apresenta-se a terminologia motricidade humana denominando o eixo que perpassava o currículo, nessa proposta entendia seu objeto como movimento humano, fazendo também uma inter-relação com a proposta do Programa de Pós-graduação que acabava de ser criado, a mesma não deixava claro o eixo epistemológico do conhecimento que deveria orientar este processo de formação. Esta situação me levou à estudar a proposta do Programa de Pós- graduação em “Ciências da Motricidade” da Unesp de Rio Claro, procurando tentar compreender qual era a identidade e a natureza do seu conhecimento, a partir da abordagem da área de concentração denominada de Pedagogia da Motricidade Humana. 3 O problema A implantação da Pós-graduação Stricto Sensu em Educação Física, no Brasil, data de 1977, com a criação do primeiro programa na Faculdade de Educação Física (e Esporte) da Universidade de São Paulo, tendo como referência o Diagnóstico da Educação Física e dos Desportos, documento, este, elaborado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC). Sobre o assunto foi colocado, nesse documento, de forma pontual que no início da década de 1970 a falta de pesquisa científica na área foi decisiva, corroborando para que diversas iniciativas fossem tomadas no intuito de atender a necessidade de demanda científica (NÓBREGA, 2003, p. 174). Neste momento, a pesquisa científica passou a ser uma necessidade que as universidades buscaram suprir, ingressando em cursos de pós graduação stricto sensu no exterior. Porém, com o retorno dos docentes que foram estudar no exterior, uma nova realidade configurou-se: transformar a Educação Física em uma área científica, ou alicerçá-la em fundamentos científicos (NÓBREGA, 2003). O tempo passou e gradativamente houveram avanços na oferta dos programas de pós-graduação, mas esta formação, ainda, se mantêm predominantemente, exógena (fora da área da Educação Física) nas áreas de humanidade e ciências biológicas, como foi apontado em dados da CAPES e do CNPq (KOKUBUN, 2003). Numa breve retrospectiva pode-se dizer que na década de 80, a área adquiriu novos contornos que foram colocados por reflexões profundas sobre sua identidade. Todavia, visando superar a visão restrita aos universos do esporte e aptidão física, paulatinamente, foi havendo contato acadêmico com 4 outras áreas do saber. Nesta busca, os anos 90 vão assinalar esforços na tentativa de se delimitar uma identidade epistemológica para a área ou uma nova área, considerando-se as matrizes teóricas. No momento atual, depois destas transformações e apesar do desenvolvimento da Educação Física na área acadêmica, a pós-graduação enfrenta novos desafios em sua trajetória, como apontou TANI (2000): a) consolidação dos programas em funcionamento; b) expansão do sistema sem perda de qualidade dos programas já existentes; c) reflexão sobre a base epistemológica dos programas, para evitar a ampliação das ambigüidades acerca de sua identidade acadêmica; d) aumento da quantidade e qualidade da produção intelectual e redução da heterogeneidade da produção docente; e) integração com a graduação; f) formação de docentes de ensino superior que realizam pesquisa e não apenas ensinam; g) diminuição dos desequilíbrios regionais. TANI (2000) aponta, ainda, que a adoção pela CAPES de critérios internacionais de excelência acadêmica coloca para as áreas de pouca tradição acadêmica de pesquisa metas difíceis de serem alcançadas, trazendo o questionamento de como estas reagiriam perante tal pressão. Destaca-se, em suas considerações para a Educação Física, a preocupação com a identidade acadêmica de seus cursos, a partir das bases epistemológicas que lhes dariam sustentação. 5 “Existe uma heterogeneidade muito grande na base epistemológica dos diferentes programas em funcionamento...Isso coloca em dúvida a própria identidade acadêmica da área e faz com que a coerência entre a área básica, as áreas de concentração, as linhas de pesquisa e os projetos vinculados dentro de cada programa seja prejudicada.” (TANI, 2000, p. 82) Em seu entendimento, TANI (2000) compreende que os demais empreendimentos na área da Educação Física encontram-se em um ‘círculo vicioso’ difícil de se quebrar, porque o desenvolvimento de uma área de conhecimento e sua pós-graduação pressupõe uma identidade acadêmica definida. Porém, essa delimitação depende de um volume de ‘massa crítica’ que para a Educação Física, ainda, é reduzido, pois esse crescimento implicaria em uma identidade acadêmica estabelecida. Numa análise a partir de indicadores quantitavivos sobre o assunto, KOKUBUN (2003) considera o desenvolvimento da ciência brasileira a partir do crescente número de programas de pós-graduação, a uma taxa de 5% ao ano, e publicações internacionais a 12% no mesmo período, colocando, assim, o Brasil em 18º em ciência e tecnologia no mundo, no ano de 2000. Observou, porém, no que tange a Educação Física: - indícios de que a mesma parece não conseguir acompanhar este crescimento, colocando a produção intelectual da área “como o grande gargalo da pós graduação (sic) em educação física no Brasil” (p. 20); - dados relativos ao triênio de 1998-2000 revelam que a pós graduação em educação física produziu um total de 507 artigos, dos quais apenas 26 em periódicos com índice de impacto internacional e 147 em periódicos indexados nacionais. 6 - a produção em periódicos com índice de impacto, contudo, que representava 0,5% de toda a produção nacional em 1996, reduziu-se assustadoramente para apenas 0,04% em 2000. No geral, o que se tem é que a quantidade não tem sido sinônimo de qualidade para a Educação Física em relação à produção de conhecimento. Corroborando com este processo, as regras atuais de aceleração, da formação nos programas de pós-graduação, parece se configurar um quadro de difícil resolução a curto prazo. Portanto, estaria esta problemática radicada nas propostas dos programas de pós? No que tange a profissão, a profissão acadêmica, a Educação Física foi compreendida na Resolução CNE/CES 07/2004, como .... “(...) uma área de conhecimento e de intervenção acadêmico-profissional que tem como objeto de estudo e de aplicação o movimento humano, com foco nas diferentes formas e modalidades do exercício físico, da ginástica, do jogo, do esporte, da luta/arte marcial, da dança, nas perspectivas da prevenção de problemas de agravo da saúde, promoção, proteção e reabilitação da saúde, da formação cultural, da educação e da reeducação motora, do rendimento físico-esportivo, do lazer, da gestão de empreendimentos relacionados às atividades físicas, recreativas e esportivas, além de outros campos que oportunizem ou venham a oportunizar a prática de atividades físicas, recreativas e esportivas”. (BRASIL, 2004, p. 1) Conceituada como uma área de conhecimento e de intervenção acadêmico-profissional têm necessidade também de um corpo de conhecimento organizado que lhe dê sustentação e autoridade, tendo seus fundamentos na ciência, pois como apontou VENUTO (1999, p. 1): “Os estudos na área das profissões tendem a destacar o caráter científico do conhecimento como principal recurso no processo de institucionalização da profissão, o elemento essencial para aquisição de autoridade e inserção na hierarquia posicional vigente dentro do campo profissional. 7 “De fato, é bastante pertinente frisar a importância que a estruturação do conhecimento com base na racionalidade científica exerce sobre o processo de consolidação do grupo profissional, pois sabe-se que nas sociedades modernas, a ciência tem funcionado como um dos recursos mais eficazes para a legitimação da autoridade. (...) Ou seja, se o conhecimento específico não é estruturado numa base científica, as possibilidades de transposição para o campo profissional ficam praticamente reduzidas a zero”. Tendo como perspectiva tal cenário, este trabalho terá como meta compreender como um programa de pós-graduação, na área da Educação Física, organiza-se em termos de formação, produção do conhecimento e identidade acadêmica, visando refletir sobre a base epistemológica dessa proposta, bem como sobre as disputas e os agentes que as protagonizam no campo acadêmico. Justificativa Pensando nesta proposta escolheu-se o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Motricidade (PPGCM) do Instituto de Biociências da UNESP/Rio Claro em virtude de, após a leitura de quatro dissertações de mestrado vinculados à este programa, área de concentração: Pedagogia da Motricidade Humana, ter-se encontrado a “ausência” de indicativos claros sobre o seu referencial teórico no processo de formação e produção de conhecimento. O Programa de Pós-Gradução em Ciências da Motricidade da UNESP data de 1991, tendo como proposta permitir uma abordagem multidisciplinar (ou transdisciplinar) no estudo da motricidade humana. Na proposta de criação, 8 consta indicativos relacionados a situação de dependência que a Educação Física apresentava quanto a sua fundamentação em “ conhecimentos de outros campos, notadamente da Medicina e da Educação...(apontando, apesar das benesses) ... imensas lacunas foram deixadas em questões fundamentais para a Educação Física, pois nenhuma dessas áreas estuda especificamente a motricidade humana.” (UNESP, p. 6, 1990) Nos anos de 1994-1995 e 1996-1997 a CAPES avaliou o curso atribuindo-lhe os conceitos “B” e “4”, relativos a cada período.Nesta avaliação apontou-se também alguns limites na proposta que foram sintetizados por SOUZA NETO e HUNGER (1999) como: - linhas de pesquisa muito abrangentes; - estrutura curricular e corpo docente insuficiente para a formação do mestre e; - produção bibliográfica heterogênea, no que tange a qualidade dos veículos de publicação em função de que poucos docentes publicavam em revistas boas. Em 1999 houve a reestruturação do programa em duas áreas de concentração, a saber: Biodinâmica da Motricidade Humana (BMH) e Pedagogia da Motricidade Humana (PMH), caracterizando-se respectivamente pelo embasamento nas Ciências Naturais e nas Ciências Humanas. Entretanto, o que mais chamou atenção foi o fato de que a “motricidade humana” foi tratada como uma área multidisciplinar e não como uma área própria, como na proposta de MANUEL SERGIO (1983). A opção contemplada a viu como objeto de estudo da área de conhecimento Educação Física. 9 Outro dado merecedor de atenção foi o fato desse programa não ter sido avaliado até o momento. Não se encontrou nenhuma avaliação formal, da própria instituição, sedimentada, criando-se a necessidade e o espaço para estudos que queiram aprofundar esta temática e/ou as contradições ou avanços desta proposta. Questões a investigar Face a esta delimitação, observa-se que diversas temáticas surgem inter-relacionadas, como a natureza do conhecimento produzido na Educação Física, sua situação enquanto área de conhecimento com objeto próprio ou como área de intervenção aplicada; e qual a relação que se estabelece entre Ciências da Motricidade e Educação Física. A partir destes temas geradores, vem a tona a seguinte questão, tomada nesta investigação: Quais os elementos constitutivos da Proposta do Programa de Pós- Graduação em Ciências da Motricidade, Área de Concentração: Pedagogia da Motricidade Humana que contribuem para identificar a matriz teórica veiculada, bem como a produção de conhecimento e a formação acadêmica? Esta questão de estudo, principal, traz subjacente a ela questionamentos relacionados a identidade, formação e conhecimento. Considerando esta premissa elaboraram-se as seguintes questões auxiliares, que visam aproximar a questão de estudo da realidade a ser investigada, como: (1) A proposta do Programa de Pós-Graduação da Unesp de Rio Claro (PPGCM), em sua configuração, contribuiu para a 10 sedimentação de um corpo de conhecimento relacionado às Ciências da Motricidade e à Pedagogia da Motricidade Humana? (2) O PPGCM – Área de concentração; Pedagogia da Motricidade Humana – linha de pesquisa, na demarcação de seu espaço social, produziu capital simbólico, na área de conhecimento específico e reproduziu o habitus de uma prática acadêmica? (3) O PPGCM, as diretrizes da CAPES e a prática acadêmica desse processo corroboraram para a solidificação da pós- graduação strictu sensu ou há necessidade de um novo redimensionamento? (4) O perfil acadêmico que emerge da formatação desse programa auxiliou na produção do capital cultural da área e estabeleceu relações entre conteúdo (conhecimento)e forma (metodologia)? Das respostas obtidas, espera-se encontrar subsídios que venham auxiliar os programas de Pós-Graduação na área da Educação Física ou da Motricidade Humana. Trata-se de uma pesquisa de análise qualitativa, valendo lembrar que esta não tem como princípio estabelecer hipóteses que auxiliariam nas suas ponderações. O fato de não haverem hipóteses ou questões específicas não implica a inexistência de um referencial que oriente a sua coleta e análise (LUDKE e 11 ANDRÉ, 1986), pois as hipóteses e teorias são construídas de maneira indutiva como resultado das observações. Como a forma de trabalho é indutiva exige-se muito do pesquisador, sendo considerada difícil até mesmo para experientes, levando este, necessariamente, a se aproximar do objeto de estudo numa fase anterior à estruturação da pesquisa, como no caso do pesquisador em relação ao curso de Bacharelado em Educação Física e ao NEPEF. Nesta fase se estabeleceram algumas questões iniciais e procedimentos metodológicos visando mapear o território a ser pesquisado. De forma que se entende que a construção de hipóteses e teorias referem-se mais a questões a investigar do que a hipótese propriamente dita. Espera-se que com os resultados coletados se possam viabilizar uma compreensão do espaço social e do habitus que permeiam o ambiente acadêmico, especificamente no cerne de sua produção de conhecimento, a pós-graduação. Objetivos Dessa forma, o foco deste estudo se concentrará em; (a) identificar na fonte documental do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Motricidade a produção de conhecimento proposta e sua mediação com a área de estudo e campo de intervenção da Educação Física relacionado à Pedagogia da Motricidade Humana; 12 (b) averiguar nas dissertações de mestrado da Área de Concentração: Pedagogia da Motricidade Humana a produção de conhecimento veiculada, a sua relação com o referencial teórico proposto e a questão do habitus acadêmico nesses trabalhos; (c) buscar informações relativas à área de concentração: Pedagogia da Motricidade Humana e suas linhas de pesquisa com os professores representantes desta área e com os membros da comissão de criação do programa, visando identificar se há ou não coerência entre a produção de conhecimento, a linha de pesquisa e a área de concentração nas mediações deste processo. Organização do estudo O estudo se apresenta organizado na seguinte configuração: no capítulo 1 – Introdução foi apresentada a explanação do problema e sua importância, bem como as questões de estudo e os objetivos. No capítulo 2 – Revisão da Literatura será apresentada as raízes históricas da pós-graduação na Educação Física, buscando-se compreender a origem dos questionamentos sobre o conhecimento e a identidade na área. Após essa retrospectiva, segue- se uma ilustração de como essa temática se apresenta na contemporaneidade, ilustrando as principais matrizes teóricas de pensamento, a busca de legitimidade que estas matrizes protagonizam, e uma apresentação do campo acadêmico da Educação Física (e/ou da Motricidade Humana) como objeto desse estudo. No âmbito desse processo apresenta-se a proposta dos 13 Programas de Pós-graduação em Educação Física com um recorte especial para o Programa de Pós-graduação em Ciências da Motricidade, objeto desse estudo. O capítulo 3 - Procedimentos Metodológicos, aprofunda a opção de pesquisa de análise qualitativa, colocando o estudo de caso como o itinerário utilizado, bem como apresentando as técnicas de coleta de dados e os participantes do estudo dentro do contexto dessa pesquisa. Apresenta-se no capítulo 4 - Resultados do Estudo, as entrevistas realizadas com os membros da comissão de criação da proposta do programa (PPGCM) e com professores representantes da área de concentração PMH, bem como a fonte documental relativa a proposta do PPGCM – Área de Concentração – PMH, e a análise das dissertações produzidas. No capítulo 5 - Discussão dos Resultados, encontra-se a mediação dos resultados encontrados com o quadro teórico que foi apresentado na Revisão de Literatura, tendo como referência as questões a investigar traduzidas em forma de tópicos ou itens temáticos. E por fim, o sexto e último capítulo que trata das Conclusões do Estudo. 14 CAPÍTULO 2 – REVISÃO DA LITERATURA 2.1 – A Educação Física na Universidade: Formação, Produção de Conhecimento e Identidade Acadêmica 2.1.1 - O nascimento da pós-graduação no Brasil No contexto do pós 2ª guerra mundial, o mundo ocidental reorganizou-se em função da nova ordem mundial. Houve necessidade de adequar-se a economia à esta nova situação, o que implicava numa série de mudanças sociais. No âmbito do ensino superior brasileiro, os indícios da necessidade de mudanças apareceram na constituição de 1946. Este panorama indicou a necessidade de se repensar as funções até então ligadas à formação profissional (SOUZA NETO, 1999). O princípio desta reforma materializou-se com a criação da Universidade de Brasília, implantando mudanças inovadoras como: - a departamentalização (extinguindo a cátedra, e concentrando em departamentos os docentes e recursos relativos à área de conhecimento comum); - formação da comissão de especialistas (em 1965, seriam responsáveis por pensarem na reforma universitária); - ensino superior dividido em graduação e pós-graduação, presentes na constituição de 1967, e na Reforma Universitária de 1968, Lei 5540. (SILVA, 1990). SILVA (1990), ainda destaca que desde o início dos anos 60 15 “...já existia um significativo volume de atividades de pós- graduação no Brasil. De acordo com levantamento realizado pela CAPES, em 1965 existiam 96 cursos de Pós-graduação propriamente ditos, além de 286 cursos de aperfeiçoamento e especialização.” (p. 30). Ressalta que apesar do já existente apoio da CAPES e do CNPq a este quadro, desde a década de 50, apenas a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 4024/61) fazia menção aos cursos de pós-graduação, conceituando-os como acessíveis àqueles que tinham concluído a graduação e obtido o respectivo diploma. No final de 1965 apareceram medidas legislativas que buscavam sistematizar a pós-graduação. De acordo com SILVA (1990) e AFONSO (1992), o Governo Federal requisitou ao Conselho Federal de Educação (CFE), através do ministro da educação, uma definição deste quadro, alegando uma ‘imprecisão sobre a natureza destes cursos’. O CFE em resposta a solicitação emite o Parecer 977/65, quando então, distinguem-se os cursos de pós-graduação estrito senso e lato senso, e se estabelecem princípios de controle sobre a regulamentação destes cursos, seguindo o modelo americano. Consta, neste parecer, a referência à finalidade da pós-graduação: “oferecer dentro da universidade, o ambiente e os recursos adequados para que se realize a livre investigação científica e onde possa afirmar-se a gratuidade criadora das mais altas formas da cultura.” (SILVA, 1990, p. 32). Sobre este processo, AFONSO (1992) apontou que “... a ênfase dada a criação de Programas de Pós- graduação, durante a década de 70, correspondia a algumas prioridades dos órgãos governamentais no sentido de exercer a função de mecanismo de formação de docente, capaz de atender a expansão quantitativa do ensino de 16 graduação, garantir a elevação dos níveis de qualidade de ensino e, ainda, estimular a volta de docentes pesquisadores que se encontravam no exterior.” (p. 2) No Parecer 977/65 foi colocado os princípios fundamentais que dariam os primeiros contornos de como deveriam ser os cursos de formação de mestres e doutores. Resumidamente, apresentaram-se alguns de seus principais pontos, como: - A pós-graduação compreenderá dois níveis de formação: Mestrado e Doutorado. Embora hierarquizados, o Mestrado não constitui requisito indispensável à inscrição no Doutorado podendo ser criados Programas de Doutorado sem que a instituição mantenha Mestrado na mesma área; - Divisão do programa de estudos em duas etapas, uma primeira de freqüência a aulas e seminários, e uma segunda de pesquisa e preparo da tese ou dissertação; - Os cursos de mestrado e doutorado deveríam ter a duração mínima de um e dois anos respectivamente. Além do preparo da dissertação ou tese, o candidato deverá estudar certo número de matérias relativas à sua área de concentração e ao domínio conexo, submeter-se a exames parciais e gerais, e provas que verificassem a capacidade de leitura em línguas estrangeiras, propondo-se uma para o mestrado e duas para o doutorado. - Por área de concentração entendeu-se o campo específico de conhecimento que constituiria o objeto de estudos escolhido pelo candidato, e por domínio conexo qualquer matéria não pertencente àquele campo, mas considerada conveniente ou necessária pra completar sua formação. - Organização das disciplinas curriculares em duas partes, uma formando a área de concentração e outra o domínio conexo; 17 - Flexibilidade e liberdade de iniciativa para os mestrandos e doutorandos no que se refere à organização de seus programas de estudo; - Além do diploma de graduação, exigência de rigorosa seleção intelectual dos candidatos, sob a alegação de que os cursos de graduação devem ser abertos ao maior número, por sua natureza, a pós-graduação há de ser restrita aos mais aptos; - Exigência de credenciamento dos cursos pelo CFE, para que seus diplomas sejam registrados no Ministério da Educação e Cultura e produzam efeitos legais; (BRASIL, 2002). Em julho de 1968, o governo baixou o Decreto n. 62.937, criando o Grupo de Trabalho da Reforma Universitária (GTRU). O relatório deste grupo, que gerará a Lei da Reforma Universitária, apresentou algumas semelhanças com o Parecer 977/65, destacando aqui a definição da pós-graduação como SILVA (1990) a transcreveu: -“a pós-graduação constitui na universidade moderna o alto nível de estudos, o espaço para o desenvolvimento da pesquisa científica e para formação dos quadros do magistério superior; - a condição básica para que as universidades brasileiras se transformem em centros criadores de ciências, de cultura e de novas técnicas, é a implantação dos estudos pós- graduados.” (p. 39) A autora, ainda, considerou este documento, conjuntamente com o Parecer 977/65, como os dois documentos mais expressivos da época, tendo em vista que “... com a Lei da Reforma Universitária, que o sistema de Pós- graduação foi regulamentado, estimulado e expandido”.(SILVA, 1990, p. 39). A Lei da Reforma Universitária impulsionou uma série de mudanças no ensino superior, que resultou numa racionalização dos recursos materiais e 18 humanos em torno do cultivo e estudo das áreas de conhecimento fundamentais, estudados em si mesmos ou aplicados a áreas técnico- profissionais. Baseada no modelo universitário norte-americano pode-se destacar, a partir de um quadro de categorias elaborado por SOUZA NETO (1999) as seguintes características: estrutura de ensino em dois níveis de pós- graduação – mestrado e doutorado; sistema de créditos; matrícula por matéria e avaliações ao invés de notas por menções; dissolução da cátedra e departamentalização; criação do vestibular unificado e classificatório. Pondera-se que devido às novas conjecturas sócio-econômicas houve o interesse em objetivar e garantir a formação de profissionais qualificados que pudessem atender ao mercado de trabalho mais complexo e em crescimento, acompanhando o ritmo crescente da economia. Destaca-se, também, a importância dos documentos informativos n. 2, n. 4, e n. 5, respectivamente tematizando “A avaliação de Projetos de Mestrado Profissionalizante”, “Novo desenho para a Pós-Graduação e sua avaliação” e “A necessidade de desenvolvimento da pós-graduação profissional e o ajustamento do Sistema de Avaliação às características desse segmento”, apresentados ao Conselho Superior da CAPES. Nestes documentos, além da valiosa observação sobre a evolução histórica da pós-graduação e seu contributo ao desenvolvimento científico do país, ressalta-se as preocupações da área sobre o urgente amadurecimento acadêmico do país: “Considerada a realidade atual do ensino brasileiro, em que ainda é muito baixo o índice geral de capacitação docente, e marcantes diferenças da situação de regiões, instituições e áreas...é forçoso reconhecer a importância que o Mestrado Acadêmico permanece tendo para o cumprimento do projeto 19 de desenvolvimento do referido nível de ensino no país”. (BRASIL, 1999. p. 468) O documento n. 2 atenta para que o mestrado acadêmico e seu crescimento no país depende do estágio de desenvolvimento de cada área ou campo de conhecimento; destaca-se também alguns apontamentos sobre a distinção entre o mestrado profissionalizante e o mestrado acadêmico. A pós-graduação acadêmica, como aponta o documento n. 4, de 12 de novembro de 2001, contava, até então, com 36 anos em sua formatação, ponderando-se que, apesar do sucesso crescente na história da educação brasileira, permaneciam problemas relativos à desigualdades regionais, demandas de qualificação do corpo docente, entre outros. Neste documento chamou-se a atenção para a capacidade do sistema de pós-graduação de “... responder de modo diferenciado às novas demandas da sociedade relativamente à formação de pessoal qualificado. A possibilidade de alternativas ao modelo de pós-graduação vigente, em função das áreas de conhecimento e características regionais, foi tema recorrente nos dois últimos planos nacionais de pós-graduação (1982-1985 e 1986-1989)...” (BRASIL, 2002. p. 478) Dessa forma, os ajustes e modificações indicadas que tiveram maior impacto se deram através da aprovação do documento “Mestrado no Brasil – A Situação e uma Nova Perspectiva”, apontando para o aperfeiçoamento e avaliação de cursos de mestrado profissionalizante. Este documento indicou a necessidade de distinção entre as duas formas de pós-graduação (havendo uma menção específica à área da saúde), no relatório-síntese do Seminário Nacional, realizado em Brasília, ano de 2001, destacou-se que “seja discutida a definição conceitual dos diferentes tipos de formação, evitando superposições a partir da coerência interna de cada um. Essa discussão deve incluir o mestrado profissional, voltado à atuação em setores não-acadêmicos; sua relação com a especialização nas profissões da saúde, 20 que possui significado bem mais preciso do que em outras áreas; e o papel do mestrado acadêmico nas quais a ambientação em pesquisa se faz a partir da iniciação científica...” (BRASIL, 2002, p.478). Estas questões serão novamente apontadas no documento n. 5, no que tange a ênfase dada na distinção entre os modelos de pós-graduação, pois a pós-graduação nacional foi implantada visando essencialmente o âmbito acadêmico (BRASIL, 2002). A meta última seria a expansão do doutorado acadêmico – “nível em que se consubstancia o ideal de formação do pesquisador”.(p. 483). Porém, este mesmo documento apresentou uma distinção sobre as duas formações ao colocar que: - a acadêmica, com o propósito de formar pesquisadores, se consubstancia na oferta do doutorado, cabendo ao mestrado um papel propedêutico; - a profissional, cujo objetivo é a formação de profissionais capacitados para o exercício de funções especializadas que não a pesquisa acadêmica, com caráter de curso terminal para obtenção da habilitação pretendida; Embora haja esses indicativos, os mesmos não serão objeto de análise deste estudo por não estarem vinculados diretamente com a temática de pesquisa. No âmbito dos esclarecimentos foi fundamental apontar alguns desses indícios de como a pós-graduação no Brasil está se reestruturando. Embora se tenha essa compreensão é fundamental assinalar, enquanto reflexão crítica, que a Pós-graduação no Brasil, ainda, é muito recente, devendo haver o extremo cuidado em primeiro consolidar os programas que existem para, depois, entrar no campo do mestrado profissional. Os cursos de Pós-graduação lato sensu deveriam cumprir este papel da capacitação profissional. Porém, como estes podem não ter cumprido o papel que lhes foi 21 confiado e como o mestrado profissional apresenta uma relação mais próxima com o mestrado acadêmico, em termos de status, este surge como um grande atrativo, uma vez que a própria CAPES não deverá ter o mesmo compromisso de investimento como tem com a Pós-graduação strito sensu. Dentro deste contexto, a compreensão da evolução da pós-graduação, bem como sua busca por melhores adequações, e o entendimento da complexidade que o tema abarca - posto o envolvimento de diversos fatores sociais como identidade, autoridade científica, e campos de intervenção profissional - auxiliam na compreensão de como se deu esta configuração com a Educação Física. Tais questões tornam-se relevantes para a área da Educação Física na medida em que abrem possibilidades para uma nova identidade epistemológica e configuração acadêmica. No entanto, essa questão não é de fácil resolução, pois ora a Educação Física é vista como uma área interdisciplinar, voltada à intervenção profissional, e ora é compreendida como uma área de conhecimento básico, vinculado a um corpo de conhecimento que dá sustentação aos cursos de graduação, e permite uma produção de conhecimento própria. Na prática, o que se assiste é um embate entre duas matrizes teóricas do pensamento, buscando a sua legitimidade enquanto uma prática pedagógica ou como uma área de estudo. 2.1.2 - A educação física na pós-graduação O primeiro curso de mestrado em educação física do Brasil – sendo também o primeiro da América Latina – data de 1977, constituído na USP, 22 Universidade de São Paulo. (SOUZA NETO, 1999; SILVA, 1990, AFONSO, 1992, TANI, 2000). Aponta-se também, que os três primeiros programas de Pós-Graduação no Brasil, além do supracitado, foram o da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criados respectivamente em 1979 e 1980 (SILVA, 1990). Destes, a autora coloca que foram estruturados a partir de objetivos semelhantes para a Pós-graduação em geral, buscando ‘contribuir para o desenvolvimento científico e tecnológico do país’. Neste processo, tornou-se crucial a participação, do Grupo de Consultoria Externa (GCE) criado no Departamento de Educação Física e Desportos do Ministério da Educação, com o intuito de “analisar a situação do ensino e propor medidas com vistas à implantação da Pós-graduação nessa área”.(SILVA, 1999, p. 58). Destacaram-se, também nos relatórios do GCE, como ressalta AFONSO (1992), que deveriam ser prioridades para os programas de pós-graduação a formação em nível de Mestrado e Doutorado de docentes “capazes de projetar a Educação Física ao nível de aculturamento já alcançado em outras áreas... bem como incentivar a formação de pesquisadores em Educação Física conforme a política de desenvolvimento nacional”.(p. 3). O grupo, que buscava estar em consonância com o Plano Nacional de Pós-Graduação, segundo SILVA (1999) reconhecia dois problemas fundamentais atinentes à expansão da pós-graduação da educação física no país: a inexperiência da área da educação física no campo da pós-graduação; 23 e o número reduzido de pessoal qualificado (titulados) para a implantação deste programas de pós-graduação. Apesar destes aspectos, AFONSO (1992) destaca diversos empreendimentos do Governo Federal que traduziam uma preocupação com a área da Educação Física, como sua inclusão obrigatória nos currículos plenos dos estabelecimentos de ensino de primeiro e segundo graus; o maciço investimento na construção de ginásios e parques poli-esportivos; o estímulo à criação de cursos de formação de docentes; a concessão de bolsas de estudo com o intuito de facilitar o aperfeiçoamento de docentes no exterior; e a consolidação de convênios internacionais. A autora, ainda, destaca que essa situação representava uma certa “... pressão política, e de certa forma psicológica, no sentido da criação dos Cursos de Mestrado em Educação Física, independente da existência ou não de um nível necessário, de um amadurecimento acadêmico em torno da existência de um corpo de conhecimento da Educação Física, ou mesmo da existência de um grupo de docentes qualificados com pontos de preocupação teórica definidos, de modo a justificar a criação dos referidos cursos”.(AFONSO, 1992. p. 3) O processo desencadeado pela Reforma Universitária levou a uma acelerada expansão dos cursos de graduação. SOUZA NETO (1999) destaca que houve um grande crescimento de novas universidades e faculdades de educação física depois da Reforma Universitária. Até 1969 havia quatro escolas de ensino superior, sendo que em 1986 este número sobe para 34 e chega a 50 em 1998 (dados relativos ao estado de São Paulo, SOUZA NETO, 1999), passando para 159 cursos na atualidade; no Brasil, esses números sobem para 592 cursos. (BRASIL, 2006). 24 Cria-se, portanto a necessidade de ‘mecanismos de avaliação qualitativa do ensino superior’ bem como da dinâmica desses programas de pós- graduação. O Conselho Federal de Educação (CFE) e a Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) começaram a utilizar sistemas de credenciamento/recredenciamento dos cursos, e avaliações bienais (AFONSO, 1992). A autora aponta que “... a experiência tem mostrado que os cursos credenciados pelo Conselho Federal de Educação e indicados como centros de excelência para a formação docente de nível superior e produção científica tem sofrido, em sua estrutura, modificações que, de certa forma, têm interferido na qualidade das dissertações e teses por estes cursos produzidos”.(p. 4) Apesar destes fatos, AFONSO (1992), coloca com relação às avaliações que, apesar da competência dos órgãos que regula a qualidade dos cursos, parece não existir uma ‘preocupação maior’ com as maneiras como vem sendo realizado o acompanhamento dos cursos. GAZZOLA apud AFONSO (1992) também aponta como estes sistemas vêm funcionando desde a segunda metade da década de 70, com progressivas melhorias em sua metodologia, ‘com um modelo de análise por consultoria’, mas faz alerta quanto às limitações ainda presentes nestas avaliações: “como todos os sistemas avaliativos, o da CAPES também tem limitações. Em determinados momentos, um ou outro curso pode ter sentido que o conceito obtido não correspondia a seu desempenho”.(p. 5) No estudo da autora, buscou-se demonstrar aspectos por vezes negligenciados nas avaliações institucionais, e que por vezes poderiam fornecer dados significativos na melhoria dos programas de pós-graduação. Por observar algumas ‘contradições’ entre os resultados de excelência, 25 explicitados nos relatórios de avaliação destes programas em seu estudo descritivo, buscou levantar a opinião dos mestrandos, cuja realidade vivida dentro dos programas não era ‘necessariamente traduzida nas avaliações. A CAPES, a partir do triênio de 1998, passa a adotar uma nova sistemática, a iniciar pelo tempo de avaliação, que passa a ser trienal, sendo o primeiro ciclo de 1998 a 2000. Nesta nova sistemática, segundo documento de área relativo a esse período, adota diversas medidas, como a adoção do sistema Qualis para avaliar a produção dos programas, parâmetros mais equânimes para a grande área da saúde, entre outros (BRASIL, 2002). Observa-se pelas mudanças adotadas, que é um sistema avaliatório em constante busca de aperfeiçoamento. TANI (2000) sobre o sistema Qualis, coloca que “...em termos de produção científica, a publicação em periódicos internacionais de reputação tornou-se a meta a ser perseguida por todas as áreas de conhecimento.” (p. 80), se tornando um desafio para algumas áreas atingirem tais metas. Em documento de área da CAPES do triênio 2001 – 2003, observa-se que a grande influência da adoção dos critérios da Grande Área da Saúde influenciaram sobremaneira na qualificação da produção intelectual na Educação Física, estando claro no documento a necessidade de “... “contribuir e incentivar os programas a buscarem estratégias para reagir de forma adequada aos novos parâmetros de excelência estabelecidos pela Grande Área da Saúde...” (BRASIL, p.1, 2003a). Aborda-se no documento também, a expectativa de que, com a melhora nas avaliações, se busque não somente a melhoria e manutenção da qualidade, mas ‘ abarcar a especificidade de uma 26 área eminentemente interdisciplinar’. Destaca-se, na página 7, que “... “na EF é fundamental delinear estratégias para alavancar a área orientada às Ciências Sociais e Humanas, também denominada de Sócio-Cultural”.(BRASIL, 2003a) Aponta-se que a questão de identidade acadêmica da área, que foi uma preocupação na última avaliação, vem demonstrando avanços, quando os programas se modificaram, configurando as opções curriculares dos programas de pós-graduação em dois modelos básicos: um modelo disciplinar, ‘onde subáreas constituem áreas de concentração’ e um modelo temático onde se tem a ‘articulação de diferentes subdisciplinas’. (BRASIL, 2003a). Tematizando, por sua vez, as concepções que nortearam a criação dos programas de pós-graduação, SILVA (1990) aponta que o incentivo governamental para o aperfeiçoamento no exterior, (em especial nos Estados Unidos, aonde segundo a autora, só em 1979 foram enviados mais de setenta professores de cursos de educação física), deixou também algumas conseqüências mais sutis. Destaca que além de certa criação de ‘’dependência de pessoal e das instituições americanas’ observável em diversas áreas do conhecimento, também serviu a consolidação de um modelo de pós-graduação americano, cuja subjacente concepção de ciência “... centrada nos pressupostos de uma concepção positivista de ciência – oriunda de uma filosofia de justificação da ordem burguesa, caracterizada por uma visão fisicalista, neutralista e quantitativista de ciência... é na década de 70, difundida em grande escala no meio da Educação Física nacional”.(SILVA 1990. p. 64). Entretanto, faz-se mister ressalvar a consideração da autora, alertando que apesar do certo domínio desta concepção, também co-existiram nessa época outras tendências na ‘Educação Física / Esportes’, também 27 influenciando cursos de pós-graduação; cita-se, portanto as vertentes biopsicológicas, “populares” e de Esporte Para Todos (EPT) (SILVA, 1990). Em seu estudo sobre a produção científica realizada nos três primeiros programas de pós-graduação na educação física no Brasil, coloca que “tais pesquisas, desenvolvidas sob a forma de dissertações, assumem determinadas características e tendências que expressam concepções filosóficas e de ciência específicas, posturas epistemológicas determinadas, opções por determinados referenciais teóricos, temáticas, etc., as quais só podem ser discutidas à luz dos determinantes históricos que permearam o processo de suas produções...” (p. 78) Acredita-se por estes elementos, que ao abordarmos a temática da pós- graduação, é preciso uma visão abrangente sobre as forças e atores envolvidos, buscando as raízes das razões que movem os processos históricos. 2.2 - As Matrizes de Pensamento na Educação Física e a Busca da Legitimidade Acadêmica A história da Educação Física, no âmbito da universidade, foi marcada por vários acontecimentos, nos últimos 15 anos, relacionados a três fatos cruciais: o seu repensar no âmbito escolar, a reestruturação dos cursos (com a criação do bacharelado) e a implantação dos cursos de pós-graduação, no final da década de 70. (TANI, 1996) Neste contexto, o seu itinerário acadêmico-profissional ilustra uma constante busca de identidade e esforço por enquadrar-se nas concepções 28 modernas de educação e ciência. Entretanto, contrapondo-se a este esforço coexiste uma linha de pensamento que ainda mantêm a Educação Física sobre o jugo das concepções clássicas de ciência, positivista e detentora de uma relação simplista de causalidade e linearidade. TANI (1996) também aborda a questão, ao colocar que “... a Educação Física mergulhou numa fase de crise, onde a necessidade de mudança conceitual, estrutural e operacional foi reconhecida por uns, descartada por outros, e isto gerou choques entre o velho e o novo em praticamente tudo que a envolve” (p. 12) Este meio termo, entre o antigo e o novo, a escolha entre manter a tradição e a busca do moderno pode indicar um momento de ruptura epistemológica, vivenciado pela ciência no geral. Porém, para a Educação Física ilustra uma tendência: o constante mediar entre dicotomias. Como aponta BETTI (1996, p 73) “A discussão acadêmica no âmbito da Educação Física sempre foi presa fácil dos dualismos: Educação Física versus esporte; esporte versus jogo; teoria versus prática, etc”. Nota-se que esta trajetória histórica sempre foi marcada pelo conflito, mas que o mesmo não foi obstáculo para a criação dos programas de pós- graduação. Porém, para compreendermos a gênese destes programas é necessário entender que esta se radica nas concepções que nortearam a própria graduação, envolvendo a polissemia que o próprio conceito de Educação Física assumiu no ideário dos vários pensadores que contribuíram para este tema. 29 BETTI (1996) identificou duas concepções científicas que balizaram a Educação Física no âmbito acadêmico. Uma proposição de influência norte americana, entendendo a Educação Física a partir de uma perspectiva disciplinar, no trabalho de HENRY (1978) e, a segunda, de origem européia na perspectiva de uma ciência própria, apresentada nos estudos de MANUEL SERGIO (1983 e 1992). Todavia as propostas não se esgotaram neste âmbito, pois se somaram a estas concepções científicas linhas de pensamento influenciadas por teorias pedagógicas de base marxista, a partir da década de 80 e as propostas e contribuições do pensamento antropológico na Educação Física, mais recentemente a partir de LOVISOLO (1995) e DAOLIO (1995). Após estudar as tendências que permaneciam na área, BETTI (1996), compreendeu-as, no contexto das diferentes concepções, como alinhadas em dois grandes domínios denominados de matriz científica e matriz pedagógica. Cada uma destas formas de pensar oferece suas contribuições. Entretanto, muitas vezes, limitam-se a apontar insuficiências uma da outra: ora minimizando o universo da Educação Física ao “cárcere” da pedagogia e ora perdendo-se em embates teóricos estratosféricos, com pouca afinidade com a realidade social e profissional. No bojo destas questões, ainda persiste à busca dessa identidade acadêmica em função dos cursos de pós-graduação terem se organizado com um certo grau de liberdade, mas de questionável coerência com relação ao seu papel fundamental que é analisar profundamente a realidade do fenômeno estudado e dar solidez científica a sua área acadêmica e formação profissional. 30 2.2.1 – A matriz científica 2.2.1.1 – A perspectiva disciplinar ou Cinesiologia Na matriz científica, a perspectiva da disciplina acadêmica teve início a partir dos questionamentos levantados por JAMES BRYANT CONANT, a quem foi designado o trabalho de estudar a formação de professores nos Estados Unidos, no ano de 1961. Como destaca SOUZA NETO (1999), o abalo ocorrido na história do ensino nos EUA ao fim da década de 50 foi devido a alguns sucessos e avanços tecnológicos conseguidos pelo rival dos americanos na época, a URSS. Esta situação de inferioridade suscitou o interesse do governo estadunidense por entender o que estava acontecendo. Dois anos depois, os resultados deste estudo apontaram a necessidade de mudanças para o setor, e especificamente para a Educação Física, apontou problemas de natureza fundamental destacados por LAWSON (1984), explicitando que o ensino de Educação Física se centrava fundamentalmente nas habilidades motoras e capacidades físicas, e que não poderia pautar-se neste único conteúdo. O fator de legitimidade acadêmica não poderia basear-se apenas na mera proficiência de habilidades, mesmo que ela fosse considerada pertinente a um campo prático. Todavia, não se justificando nesta instância, deveriam ser cancelados todos os cursos da área de pós-graduação. Em resposta a este relatório, uma série de trabalhos começa a surgir e contrapor-se as indicações de CONANT (in SOUZA NETO, 1999); destacando- se, particularmente, os estudos de HENRY (1978) que publicou um trabalho relacionando a Educação Física como disciplina possuidora de um corpo 31 organizado de conhecimentos, e o dos pesquisadores ZIEGLER & VANDER- ZWAGG (1968) que categorizaram a Educação Física, procurando contemplar suas dimensões enquanto atividade educacional e enquanto área de saber. ZIEGLER & VANDER-ZWAGG (1968) também reforçaram a proposta de HENRY (1978) ao abordar a Educação Física como uma disciplina acadêmica. Na mesma linha de pensamento, BROOKS (1982) contribuirá para este “movimento disciplinar”, esclarecendo que por sua visão a Educação Física buscaria a compreensão do corpo humano em atividades de exercício. O seu corpo de conhecimento poderia assumir tanto uma natureza multidisciplinar quanto interdisciplinar, fundamentando-se em conhecimentos de outras disciplinas ou em parcelas das mesmas, que possam embasar os seus estudos. Como decorrência deste movimento disciplinar várias questões são levantadas, entre elas se a substituição do termo Educação Física por Cinesiologia ou Ciências Cinesiológicas, Ciências do Exercício, Ciência do Esporte (SOUZA NETO, 1999). No Brasil a proposta da Cinesiologia é uma das mais estudadas; sugerida no país por TANI (1996), que a compreende esta proposta como uma área de conhecimento que tem o movimento humano como objeto de estudo concentrando suas atenções “no estudo de movimentos genéricos (postura, locomoção, manipulação) e específicos do esporte, exercício, ginástica, jogo e dança”.(p. 25-26). Nesta abordagem, busca esclarecer que a delimitação do 32 objeto de estudo deve ser compreendida como um intento de organização e sistematização do conhecimento, e não como um engessamento. A Cinesiologia, segundo TANI (1996), teria a característica de uma área de conhecimento (mais do que uma disciplina), pois abrangeria os estudos nos diversos níveis (macro e microscópicos). Esta flexibilidade conceitual aponta alguns limites, como o próprio autor sugere, à sua teorização: “Essa abrangência traz dificuldades em relação a sua identidade epistemológica e metodológica, pois a pluralidade se apresenta como uma característica inerente e como condição indispensável ao sucesso do empreendimento”.(p. 26). Porém, mesmo assim, observa os avanços desta proposta em relação às demais, pois aponta que: “... a maioria desses estudos tem enfocado questões conceituais e não tem resultado na proposição concreta de uma estrutura acadêmica para a área”.(TANI, 1996, p. 25) Compreendendo o movimento como uma ‘complexidade organizada’, elemento que remete ao paradigma sistêmico como referencial, entende-se a Cinesiologia com uma estrutura transdisciplinar, como apontam alguns autores como HENRY (1978), NEWELL (1990), entre outros. Constituída em três grandes sub-áreas de investigação (biodinâmica do movimento humano, comportamento motor humano e estudos socioculturais do movimento humano) estas subáreas “incorporariam as diferentes especialidades hoje existentes, para fomentar uma maior comunicação interna e estimular a realização de estudos investigativos e temáticos”. (TANI, 1996, p. 26). O autor também esclarece a necessidade de entendimento que, para o sucesso do projeto da Cinesiologia, é preciso ter em mente que para cada 33 perspectiva de análise, existem ‘epistemologias e metodologias adequadas’, dando mostras de uma tentativa de conciliação entre os paradigmas das ciências humanas e naturais, que pautam a maioria das disciplinas acadêmicas da Educação Física. 2.2.1.2 – A perspectiva na Ciência da Motricidade Humana A perspectiva da “ciência da motricidade humana” foi teorizada pelo Prof. Dr. Manuel Sergio Vieira e Cunha, em Portugal, apresentando para a comunidade acadêmica da Educação Física uma alternativa à problemática oriunda do cartesianismo e dos ditames biomédicos sobre os quais a área estaria radicada. Num primeiro momento de reflexão deteve-se sobre os estudos da conduta motora (com influências da Psicomotricidade), na qual o “Homem persegue a superação e o sonho, nomeadamente o desporto e a dança, mas sem esquecer a educação especial e a reabilitação, a ergonomia, o jogo desportivo típico do lazer e recreação e a motricidade infantil”.(SERGIO, 1999, p. 182) Mas num segundo momento de reflexão concebe que a matriz teórica da conduta motora é a Motricidade Humana, entendendo a Educação Física como estágio anterior, a pré-ciência da Ciência da Motricidade Humana, sendo apenas seu ramo pedagógico. Neste contexto questionará em que conhecimento reside à cientificidade das faculdades de Educação Física e o seu objeto de estudo. Haverá critica com relação à visão parcial de saúde e do conceito de Homem. De modo que a 34 Educação Física balizada nas concepções clássicas de ciência deveria ser suplantada por uma visão holística e ecológica que desse conta de abordar a natureza humana dinâmica e em constante interação e auto-organização com o seu meio. Em sua crítica a concepção que norteava os currículos de Educação Física até então, coloca que “A tradição cinqüentenária de formar professores para o ensino secundário enclausurou os currículos das Faculdades de Educação Física e Desporto, num pedagogismo ou num biologismo, que não se pensava epistemologicamente... (apontando o escopo de estudos de sua proposta como)... o desenvolvimento humano, através da motricidade, pelo estudo do corpo e das suas manifestações, na interacção dos processos biológicos com os valores socioculturais”.(SERGIO, 1999, p. 26-27) SOUZA NETO (1999) salienta que nesta proposta encontram-se elementos do discurso da pós-modernidade (abordagem sistêmica, auto- organização, etc.); o mesmo autor referenda DOLL JR. (1998) quando define o embasamento desta proposta em uma cosmologia biológica. Porém, MANUEL SERGIO coloca que somente nas ciências humanas pode radicar-se a motricidade humana, pois “... só como ciência do homem (onde a compreensão é superior à explicação) a motricidade encontra justificativa... (a ciência do homem) percepciona a motricidade como estrutura essencial da complexidade humana” (SERGIO, 1989, p 84). Ainda compreende o avanço necessário à compreensão do homem a partir da motricidade humana, rompendo com os efeitos da profunda distinção entre res cogita e res extensa, que apregoam que a mente deva ser estudada “... através da introspecção e o corpo de acordo com os métodos específicos das ciências da natureza”.(SERGIO, 1999, p. 181). 35 Desta forma percebe-se que na proposta de MANUEL SERGIO a matriz teórica de conhecimento deixa as ciências biológicas e vai para as ciências humanas. Na compreensão do homem como um ser práxico, não especializado e carenciado, tem-se a motricidade como a própria energia e apelo à transcendência, ao adaptar-se ao ambiente variável do mundo; concebe então a motricidade como próprio ‘estatuto ontológico’; “... processo criativo de um ser em que as práxis lúdicas, agonísticas, simbólicas e produtivas traduzem a vontade e as condições de o Homem se realizar como sujeito, ou seja, como autor responsável dos seus atos”. (SERGIO, 1989, p.83) Deste entendimento sobre o significado do movimento humano, coloca para aqueles que o estudam, que o termo Educação Física deveria ser substituído por Educação Motora, e que as instituições de ensino superior se denominassem Faculdades de Motricidade Humana, ‘referindo-se a um campo de conhecimento, e não a uma profissão’. SOUZA NETO (1999, p. 80) destaca que “... agora na ‘ciência da motricidade humana’, o corpo se torna referência de tudo. Neste ‘paradigma emergente’, antidualista e holístico... a Educação Física é a pré-ciência da Ciência da Motricidade Humana”. SERGIO (1999) aponta de modo crítico que a Educação Física, até então, nunca havia precisado se legitimar epistemologicamente, “ou seja, de encontrar em si as formas e as razões da sua própria cientificidade, precisamente porque o Poder sempre se serviu dela e nunca a serviu como 36 instrumento insubstituível de conhecimento e transformação”.(p. 183). Desta feita, critica a busca de legitimidade pelo discurso da demanda social, apontando os limites de um papel meramente formativo, de conotação reprodutiva: “Não podemos continuar com aquela tendência psicológica que adopta como critério da legitimação o interesse da juventude pelas actividades corporais (nomeadamente o desporto); nem a tendência sociológica, que toma como critério essencial a sua importância na saúde e no lazer das populações; nem a tendência pedagógica (de que se socorrem aflitivamente todos os saberes, sem autonomia) que sublinha numa disciplina tão-só o seu valor formativo”.(SERGIO, 1999, p. 183) Assim, a Ciência da Motricidade Humana seria possível a partir de um corte epistemológico que surgiria da transição do paradigma da simplicidade para o paradigma da complexidade; SERGIO (1999) ilustra o cenário epistemológico que remonta a essa transição, a partir da Idade Moderna, quando a ciência ‘acomodou-se docilmente’ sob o domínio da burguesia, que, a partir de uma confrontação da natureza ou da razão ante os desígnios da Monarquia ou da Igreja, passa a ignorar paulatinamente as relações com a totalidade, ocupando-se em uma especialização dos saberes. Aponta, como a transição da importância do entendimento e da manipulação da energia para o domínio da informação, da revolução industrial (a partir da segunda guerra) para a revolução informática (dos watts para os bits), que os referenciais de entendimento do mundo se transformaram, dando lugar a um universo incerto, aonde a construção e a desconstrução adquirem a mesma importância; no âmbito da ciência, esta passa a compreender-se mais como uma criação do que como uma descoberta. 37 Destacando os principais pontos deste cenário, SERGIO (1999) aponta a passagem de “uma epistemologia do objecto observado a uma epistemologia do sujeito observador”; de uma “ciência da necessidade a uma ciência do jogo”, e “porque tudo está em jogo, emergem o acaso e a contingência, a crise é evidente”. (p. 189). Destacando, portanto, a imanência e a transcendência do homem, sua existência em opostos, e conflitos próprios de nossa sociedade da informação, a necessidade de compreensão do homem a partir da motricidade humana residiria em sua incompletude, justamente neste esforço pelo vir-a-ser. Segue-se, portanto, com a abordagem da matriz pedagógica e suas vertentes de pensamento. 2.2.2 – A matriz pedagógica 2.2.2.1 – A perspectiva pedagógica Para BETTI (1996) o pensamento que exemplifica claramente aonde se apoiava teoricamente esta matriz estava na premissa de que a busca do objeto da Educação Física deve se dar pela compreensão de que ela é antes de tudo uma “prática pedagógica”, portanto uma prática de intervenção imediata. Considera-se Valter Bracht o pensador expoente deste movimento, quando em sua tese advoga que a Educação Física deva buscar, sim, seu objeto de estudo, mas construí-lo a partir da sua “intenção pedagógica”. Tal premissa adquire maior expressão com a crítica à crescente especialização da área. BETTI (1996) destaca que este processo acaba por 38 gerar uma compartimentalização do conhecimento; fato que TANI (1996) também ressalta, atribuindo isso como conseqüência da adoção hegemônica do paradigma das ciências naturais. Ao que aparece, os dois autores concordam que, com a fragmentação da área em sub-áreas pouco relacionadas, os especialistas tendem a buscar legitimidade nas ciências mães de suas disciplinas, e não na Educação Física. Porém, no âmbito da Educação Física, da prática pedagógica, há a tentativa de se tentar colocar um pouco de ordem nesse processo, buscando nas abordagens pedagógicas o elo de ligação que estaria faltando para a constituição de um quadro teórico. Em estudo mais aprofundado sobre as origens das abordagens pedagógicas, na Educação Física, SOUZA NETO (1989) retoma os pressupostos epistemológicos das correntes educacionais, no âmbito da Pedagogia da essência (a partir do essencialismo) e da Pedagogia da existência (a partir do existencialismo), em um retrospecto histórico. A partir da elaboração deste cenário, o autor classifica em três modelos majoritários de ensino, contendo cada um duas abordagens. Neste quadro conceitual, SOUZA NETO (1989) enquadra as concepções de ensino vigentes na Educação Física e suas respectivas influências filosóficas, como se destaca sumariamente: -Modelo de transmissão cultural, abarcando a abordagem “humanista” tradicional e a abordagem comportamentalista. Para a Educação Física, as principais concepções influenciadas por essa proposta são a concepção 39 higienista e a concepção desportiva da Educação Física, respectivamente à seqüência das abordagens. -Modelo progressivista, abarcando a abordagem “humanista” existencial e a abordagem interacionista. Para a Educação Física, destaca-se a concepção humanista de Educação Física e a concepção progressivista; -Modelo crítico, abarcando a abordagem sócio-cultural e a abordagem sócio-política. Para a Educação Física, dentro da abordagem sócio-cultural, destaca-se a concepção “alternativa”, e a concepção progressista de Educação Física, com influência da abordagem sócio-política. Todavia, quando se pensa na matriz pedagógica da Educação Física observa-se que esta se originou a partir de algumas influências do modelo de transmissão cultural, da psicologia humanista, do construtivismo, da teoria crítica, da Escola Nova (progressivismo) e da antropologia. Em seus questionamentos, fomentados por esta formação, expõe a crítica ao contexto escolar e pedagógico no “papel ideológico e/ou reprodução de valores transmitidos em suas aulas...” (SOUZA NETO, 1999). Destas reflexões críticas sobre seu papel na sociedade, haverá o repúdio e até a negação de algumas partes de seu conteúdo, como a aptidão física e o esporte. Como esclareceu BETTI (1996, p. 80), os defensores desta visão aceitam apenas a intervenção pedagógica, “... buscam resguardá-la no interior da escola, restringindo seu alcance conceitual, quando deveriam buscar ampliá-lo”. 40 No âmbito desse processo, AZEVEDO e SHIGUNOV (2001) também elaboraram um mapeamento conceitual das principais abordagens pedagógicas da Educação Física, apontando seus principais defensores, bases teóricas, e propostas ideológicas e metodológicas, agrupando tais abordagens em preditivas e não preditivas, a partir da existência ou não de princípios norteadores de uma nova proposta de Educação Física. Nesta listagem, ressaltam a importância de cada uma no processo de amadurecimento da área enquanto processo global. No entanto, não deixam de apontar os limites que cada uma possui isoladamente. “... são desdobramentos do pensamento da EFB (Educação Física Brasileira) surgidos a partir da década de 80, em virtude da crise que se instaurou nessa área de conhecimento, tendo como marco diversas publicações, onde alguns de seus autores procuravam questionar e criticar e outros reafirmar e confirmar a hegemonia de modelos tradicionais existentes”.(AZEVEDO e SHIGUNOV, 2001, p. 92) Tem-se, portanto, em oposição às tendências da Educação Física na década de 60 (quando o treino e o jogo esportivo eram destacados, com o apoio científico da fisiologia), uma nova configuração da presença da Educação Física na escola, no final dos anos 70, passando a ser vista como fundamental no processo formativo da criança. O corpo se torna referência máxima, em suas qualidades perceptivas, neuro-motoras, ‘o domínio de si mesmo’- o esporte cede lugar a Psicomotricidade. A formação do professor passa a ser dimensionada para as potencialidades do seu papel educacional como não ocorrera antes, esquecendo a excelência técnica da execução de movimentos para preocupar- 41 se com o papel pedagógico da educação pelo movimento, mas perdeu-se a especificidade do conteúdo da Educação Física. Posteriormente, na década de 80, ganhou terreno a dimensão sócio-política do trabalho do professor e sua responsabilidade na comunidade (SOUZA NETO, 1999). No bojo desse encaminhamento, DARIDO (1998) apresentou uma análise crítica sobre as abordagens pedagógicas mais representativas na Educação Física, como: desenvolvimentista, interacionista-construtivista, crítico-superadora e sistêmica. Em sua análise sublinhou que tais abordagens surgiram “... em oposição às vertentes mais tecnicista, esportivista e biologicista... a partir, especialmente do final da década de 70...” (DARIDO, 1998, p. 58). Para a autora as principais diferenças e congruências entre cada uma delas, bem como seus limites e contribuições, residem no âmbito da valorização do produto ou do processo do ensino da Educação Física, a especificidade da área ou a formação do cidadão em conjunto as disciplinas escolares, entre outros tópicos. No geral, para a autora, fazendo-se uma síntese das influências mais significativas dessas abordagens, apontou-se que a desenvolvimentista e a construtivista-interacionista foram as que receberam uma maior aderência por parte dos professores, enquanto que a crítico-superadora “até o momento, pouco tem sido feito em termos de implementação dessas idéias na prática da Educação Física...” (p.62). 42 Na perspectiva da abordagem crítico-superadora, ainda, foi colocado que esta “utiliza o discurso da justiça social como ponto de apoio, e é baseada no marxismo e no néo-marxismo, tendo recebido na Educação Física grande influência dos educadores José Libâneo e Demerval Saviani” (p. 23). Todavia não se pode deixar de mencionar que esta abordagem se destaca pela valorização do contexto sócio-político do aluno, sendo considerada diagnóstica (pois propõe uma leitura da realidade, a partir dos valores de quem a julga), e teleológica, por projetar uma direção a ser seguida. (DARIDO, 1999). Sobre a abordagem sistêmica, proposta por BETTI (1994) em sua obra “Educação Física e Sociedade”, DARIDO (1998), em sua análise, colocou que “... parece ainda não ter sido amplamente discutida e divulgada, quer pelos meios acadêmicos, quer pelos meios profissionais” (p. 65). A partir destas concepções podemos perceber que as abordagens críticas foram as que prevaleceram a partir da década de 80, apesar dos limites apontados. Neste ambiente, as críticas de natureza sócio-política denunciaram os conteúdos da Educação Física tradicional, como o Esporte e a Ginástica, enquanto ‘elementos de alienação’. Dentro desse contexto, SOUZA NETO (1999) apresentou também uma revisão de literatura e um delineamento da trajetória histórica do que se entendia como conteúdo das aulas de Educação Física. Entre os conteúdos, a ginástica predominou, por muito tempo, na maior parte dos sistemas ou escolas, apesar de originalmente não ser concebida para a sala de aula. 43 Com o passar do temo sucedeu-se a substituição do termo Ginástica pelo termo Educação Física, pois a educação, na visão de John Locke, não era só intelectual ou moral, mas também física (MARINHO, 1984). Porém, uma vez disseminada a expressão “Educação Física”, no século XX, esta incorporou sobre a sua terminologia diferentes práticas pedagógicas. Como exemplo desse processo SOUZA NETO (1999) apontou que se passou da hegemonia da “educação do gesto à um conteúdo de natureza esportiva” (p. 82). Como destaque deste percurso histórico, SOUZA NETO (1999) assinalou que o período militar (1964-1984), apesar de seus dogmatismos e darwinismo social, contribui para a afirmação da Educação Física no âmbito educacional. No entanto, apesar das críticas efetivadas pelo movimento pedagogicista às práticas tradicionais da Educação Física, é de bom tom lembrar que ‘negar o passado é negar a própria história’. Não se trata de apoiar ou negar a concepção militarista na Educação Física mas de olhar a história de uma época dentro de seu contexto cultural. Cabe observar que o movimento crítico que buscava o repensar da hegemonia positivista dentro da Educação Física acabou por também desequilibrar a balança para o lado oposto, ao desqualificar a validade do ‘paradigma da condição física’ (BETTI, 1996), demonstrando também uma rigidez que tanto criticavam em seus antagonistas. No bojo desse processo outros estudiosos (DAOLIO, 1995; LOVISOLO, 1995) vão apresentar novas contribuições à Educação Física, enquanto prática pedagógica. 44 DAOLIO (1995) em sua obra “Da cultura do corpo”, apresentou uma visão antropológica de corpo a partir da leitura de Marcel Mauss, com destaque para os conceitos de “fato social total” - interpretados como a totalidade do fenômeno social em suas dimensões biológicas e culturais indissociadamente - e de “técnicas corporais”, enquanto maneiras adotadas por cada grupo social com as quais se sabem servir de seus corpos de modo eficaz e tradicional, equivalendo, de forma inédita até então, o tema da corporeidade a qualquer outro fenômeno social. A luz destas idéias, e também a partir de outros antropólogos como Roberto da Matta, Clifford Geertz e Lévi-Strauss, DAOLIO (1995) busca resgatar as concepções de corpo com as quais os professores de Educação Física embasam suas aulas, enfatizando a história de vida destes professores (sua própria experiência corporal e sua trajetória de formação profissional) como fator importante nesta construção. Nota-se, ainda, que DAOLIO (1995) busca ressaltar a importância da idéia de construção cultural (de saúde, de corpo, de práticas corporais) em contraponto a concepção natural ou biologicista vigente na Educação Física, a qual enfatiza apenas o desenvolvimento das valências físicas e de um determinado tipo de educação, não havendo espaço para a pluralidade cultural ou para o contexto social no qual o aluno está inserido. DAOLIO (2004) destaca o conceito de cultura presente no pensamento de diversos expoentes da Educação Física, revelando o crescente prestígio e importância que o pensamento antropológico apresenta para a área, colocando-o até mesmo como uma perspectiva de estudo: “Assim, a educação 45 física pode, de fato, ser considerada a área que estuda e atua sobre a cultura corporal de movimento”.(DAOLIO, 2004, p. 9). Apresentando semelhanças com as idéias de DAOLIO (1995), LOVISOLO (1995) também analisa a atuação dos professores de Educação Física em seu livro “A arte da mediação”, abordando as demandas sociais e o imaginário conceitual que envolve as aulas de Educação Física nas escolas, trazendo no bojo de suas reflexões os conflitos de identidade que a área da Educação Física enfrenta quando se envereda pelos caminhos da cientifização abandonando seu passado empírico e as demandas sociais de onde surgiu. LOVISOLO (1995) coloca, portanto, que a atuação do Educador Físico deve se pautar menos pelos padrões de conduta científica estrita e mais com o plano das artes e dos valores, aproximando-se à postura de um bricoleur, conjugando assim todos os meios que têm a mão para realizar um objetivo social proposto “O problema se coloca na prática quando o educador físico deve produzir um arranjo das disciplinas num programa de atividade corporal. Neste caso, o educador físico se nos parece muito próximo da figura do bricoleur, de Lévi- Strauss, que a partir de fragmentos de antigos objetos, guardados no porão, constrói um objeto novo... A utilidade pode assim ocupar lugar central na obra ou programa de intervenção do bricoleur”.(LOVISOLO, p. 20, 1995) Desta maneira, LOVISOLO (1995) aponta que a Educação Física institucionalizada surge então de uma demanda social de programas de “atividades corporais”, tornando-se assim “... impossível pensar a educação física sob o modelo da institucionalização das disciplinas científicas”.(p. 26). 46 No capítulo final de seu livro, discute sobre as possibilidades de arranjos curriculares dos cursos enquanto cursos disciplinares ou “mosaicos”, situando que aqueles que possuem uma intervenção aos moldes do bricoleur devem pautar seus conhecimentos em torno da aquisição de seus objetivos sociais, mais do que produzir conhecimento pelo seu valor em si, apenas. Assim, a Educação Física, ou Ciências do Esporte como também denomina a área, enfrentaria o problema da efetivação da interdisciplinaridade comum a diversas áreas tanto das ciências naturais como sociais, apontando que “... não há um problema epistemológico particular das Ciências do Esporte e que, portanto enfrentamos os mesmos problemas...” (LOVISOLO, p. 136, 1995). Entende-se, portanto, as congruências entre o pensamento de DAOLIO e LOVISOLO, no deslocamento do eixo de importância das estratégias de legitimação científica adotadas pela Educação Física, trazendo como alternativa a aproximação de valores culturais já estabelecidos na sociedade, contidos no âmbito da prática. Infere-se que essa prática, compreendida nos dois livros, refere-se, primordialmente, a prática pedagógica, entendida como mecanismo de transmissão / criação cultural, estabelecendo- se aqui, portanto, sua ligação com a matriz pedagógica. Porém, esta é uma questão não resolvida seja na Perspectiva Cinesiológica, da Ciência da Motricidade ou na Perspectiva Pedagógico-Antropológica, suscitando novas discussões no âmbito da epistemologia. 2.2.3 – O colóquio sobre a Epistemologia da Educação Física: Cinesiologia e Ciência da Motricidade Humana 47 Compreende-se após a ilustração deste cenário, a singularidade enfrentada na compreensão do campo da Educação Física, quando possui matrizes de pensamento baseadas em tradições epistemológicas tão distintas. A luta engendrada pelos grupos representantes destas matrizes, em torno da hegemonia em nominar a área e dar-lhe contornos de identidade construídos de acordo com suas razões próprias, torna-se mais relevante quando pensamos nas possibilidades de arranjos curriculares da área, no âmbito acadêmico. Esse tema foi debatido em recente encontro que reuniu grandes expoentes da área da Educação Física, o II Colóquio sobre Epistemologia da Educação Física realizado em Maringá, de 18 a 20 de julho de 2005. Neste encontro, elaboraram-se textos que buscavam a compreensão do locus científico da educação física, bem como sua subseqüente caracterização profissional. A identidade acadêmica, percebida no teor dos textos, assumia duas configurações distintas: uma área multidisciplinar, organizada sob a égide da Cinesiologia, e uma ciência baseada na hermenêutica, concebida como uma nova ciência do campo das humanidades, a Motricidade Humana (nota-se aqui que a tendência dominante contemporânea é matriz científica, não sendo representada a matriz pedagógica no teor dos textos). Em ambas as concepções, apresentadas, observou-se a preocupação por parte de seus interlocutores em clarificar os termos, e buscar um mínimo de aquiescência conceitual para a área; levantou-se uma polissemia ‘indesejável’, que pode dificultar o estabelecimento de valores comuns: 48 “... uma vez que comumente se constata a utilização de alguns deles enquanto sinônimos, ou seja, Motricidade Humana / Atividade Física / Movimento Humano, como constou no Parecer CNE/CES 0138/02, que tratou das Diretrizes Curriculares nacionais para os cursos de Graduação em Educação Física, que foi aprovado e homologado, contudo, depois substituído, devido a questões mais político-partidárias, do que epistemológicas e científicas”.(TOJAL, 2005, p. 4) Levanta-se que a dificuldade em se estabelecer esse entendimento pode se dar por influências ‘político partidárias’, como destacou TOJAL. O autor cita ainda sobre a definição da especificidade de estudo da educação física... “... recaiu sobre o termo Movimento Humano, sendo ainda indispensável que se entenda que essa definição não ocorreu através de qualquer análise epistemológica, mas sim pela preferência de alguns participantes da reunião decisória, apesar de não se conseguir conceituá-lo a contento”.(TOJAL, 2005 p. 4) Entretanto, OLIVEIRA (2005) também aponta para uma aceitação já consolidada, a respeito da caracterização deste termo na comunidade: “Meu entendimento básico, referente à especificidade do componente curricular Educação Física, considera essencialmente sua pertinência ao estudo do movimento humano... definindo o movimento humano como o objeto de estudo, ou principal, ou característico, ou específico, a ser explorado e desenvolvido... nas aulas do componente curricular Educação Física, tem sido sustentada por vários autores e instituições, tais quais, entre outros: Aquino, 1939; AAHPER, 1970; Arnold, 1988; Betti, 1985; Briggs, 1974; Brown, 1967; Brown & Cassidy, 1963; Cardozo, 1969; Cunha, 1984; De Santo, 1993; Dittrich et al., 2000; Felshin, 1972; Ferraz, 1996; Florianópolis, SC, 1996; Freire, Soriano & De Santo, 1998; Freudenhein, 1990; Frost, 1975; Garanhani, 1994, 1995; Godfrey & Kephart, 1969; Jewett & Mullan, 1977; Jewett & Bain, 1985; Kolyniak Filho, 1996; Kozman, Cassidy & Jackson (1967); Logsdon et al., 1977; Mackenzie, 1969; Manoel, 1986; Mariz de Oliveira, 1985, 1991; Medina, 1983; Melani, 2001; Metheny, 1954; Mosston, 1969; Newell, 1990; Oliveira, 1983; Pangrazi & Dauer, 1985; Rizzuti & Votre, 1998; Sage, 1984; São Paulo, CENPEC, 2000; São Paulo, SE, CENP, 1992; São Paulo, SME, 1992; 49 Singer & Dick, 1974; Tani, 1991; Vannier & Foster, 1968; Veatch, 1970; Wall & Murray, 1994; e Willgoose, 1979.”(OLIVEIRA, 2005. p. 5) A conceituação do termo traz consigo um viés epistemológico; a compreensão deste movimento sob o ponto de vista multidisciplinar leva a caminhos diferentes do que se observado sob o ponto de vista fenomenológico. De acordo com OLIVEIRA, (2005), a Cinesiologia “... é caracterizada (1) pela organização e sistematização de conhecimentos pertinentes ao mover-se do ser humano, relacionadas com abordagens e análises biológicas, químicas, físicas, psicológicas, antropológicas, e sociológicas, entre as principais, e em composição com áreas correlatas...” (p. 7) A motricidade humana, por radicar-se nas ciências humanas, compreende que: “... emerge da corporeidade como sinal de quem está no mundo para alguma coisa, isto é, como sinal de um projeto, e dessa forma o homem é presença no espaço e na história, com o corpo, no corpo, desde o corpo e através do corpo, uma vez que basicamente não existe qualquer diferença entre motricidade e corporeidade...” (TOJAL, 2005. p.2) Estas duas concepções, que abarcam entendimentos diferentes sobre a realidade e sobre como podemos atuar nela; no plano acadêmico buscam uma configuração acadêmica que lhe garanta uma especificidade; porém se aproximam quando compreendem que, no plano da intervenção, deve existir um corpo de conhecimento organizado que dê suporte ao profissional. Sobre essa questão, TOJAL (2005) cita alguns apontamentos levantados por NAHAS (1997): “Mais que uma questão de nomes, nossa área carece de uma identidade acadêmico/profissional clara e socialmente justificável. Mesmo a nível internacional, perante a sociedade, o termo que ainda se aproxima mais daquilo que se estuda e se faz em nossa área é Educação Física. 50 Internacionalmente, termos charmosos e academicamente ‘superiores’(como Cinesiologia, cineantropologia ou cinética humana), ou mesmo motricidade humana ou ciência do movimento, além de não serem socialmente identificados com esta área que teimamos em fazer existir, provocam confusão e descaracterizam nossa essência”. (NAHAS, 1997, p. 77. in TOJAL, 2005, p. 6). Nota-se, pois, no trecho destacado, a preocupação levantada por NAHAS (1997) perante a necessidade da busca de legitimidade social, não se ignorando, portanto as condições sociais e políticas de uma ou outra perspectiva epistemológica. BETTI (2005) remonta a BRACHT (1997), para buscar uma posição conciliadora, quando avança o debate para a perspectiva da prática, sendo esta ainda caracterizada a partir do viés pedagógico. Segundo BETTI, a concepção de BRACHT (1997), coloca a intervenção profissional da educação física fundada na aquisição pedagógica de elementos da cultura corporal, que são trazidos a seu contexto: “O objeto da Educação Física como prática pedagógica é retirado do mundo da cultura corporal/movimento, ou seja, é selecionado a partir de critérios variáveis, dependentes de uma teoria pedagógica desse universo; configurado de forma mais abstrata, esse objeto seria a cultura corporal de movimento”.(BETTI, 2005. p. 3) BETTI (2005), a partir da aproximação com a prática (entretanto, faz-se aqui a distinção que ele referiu-se eminentemente a ação do licenciado, não caracterizando a atuação extra-escolar), compreende que se possa reverter o processo de distanciamento ocasionado pelas proposições científicas: A “prática” passa a configurar-se como possibilidade de mediação entre a “matriz científica” e a “matriz pedagógica” que se apresentam no debate sobre a identidade epistemológica da Educação Física, entre a “teoria” e a “prática”, entre o “fazer corporal” e o “saber sobre esse fazer”. (BETTI, 2005. p. 2) 51 A aproximação entre estas diferentes matrizes também supõe alguns conflitos; entretanto, BETTI (2005) traz uma imprescindível contribuição, ao trazer a tona às implicações axiológicas das escolhas que norteiam esse processo científico; a compreensão dos valores, como critérios para o julgamento de nossas escolhas traz o entendimento de que, independente de qual configuração acadêmica ou raiz epistemológica se assuma, não se poderá esquivar de manter-se aberta a possibilidades enquanto um projeto que apresenta suas incertezas. Porém, ressalta-se aqui a distinção que TOJAL (2005) dispensa sobre o tema, ilustrando que, de certa maneira, as “regras” do campo científico admitem pouca flexibilidade quando se trata de sua legitimidade e aceitação perante a comunidade acadêmica: “Se for verdade que os modelos analógicos representam um estímulo incontornável, constituem também e ainda um risco, visto terem sido pensados visando outros aspectos da realidade, devendo a eles ser dispensada a necessária vigilância epistemológica, uma vez que só merece existir a ciência que se sabe igual e diferente”.(TOJAL, 2005, p. 6) Nota-se aqui, ‘a ciência que se sabe igual e diferente’, implicando possuir um modelo epistemológico igual a alguma das áreas consagradas, porém guardando a distinção de sua especificidade, (i.e. seu objeto de estudo), o que lhe garante sua autonomia acadêmico profissional. Faz-se menção aqui também, por ressaltar a importância de debates desta natureza, a citação de SERGIO (2005), ao considerar “Na introdução do livro Epistemologia, Mario Bunge escrevia, no começo da década de oitenta do século XX, que a epistemologia, ou filosofia da ciência, se tinha tornado no domínio mais importante da filosofia, nos últimos cinqüenta anos...” (SERGIO, 2005, p. 4) 52 Este cenário conceitual, tornado vívido por ocasião dos Colóquios de Epistemologia da Educação Física, ilustra as tendências que norteiam a área, e que como mencionou Betti (2005), configuram projetos. Pensar no âmbito da legitimidade de uma área acadêmica, nos traz a dimensão de que é preciso compreender que a mesma supõe a necessidade de uma identidade clara, fundada em uma especificidade de estudos e intervenção que lhe garanta um certo grau de autonomia perante outros campos. Para compreender o desenvolvimento destas questões no campo da Educação Física, abordaremos este tema no próximo tópico. 2.3 - Identidade, Especificidade e Autonomia Quando pensamos na identidade de um curso acadêmico, em nosso contexto curricular, relacionamos os temas conhecimento e profissão; antes de pensar em suas inter-relações, é preciso que nos aprofundemos um pouco mais sobre o universo conceitual que cada tema traz em seu bojo. Conhecimento, na concepção que queremos abordar, trata do conhecimento científico, que como vimos, é uma das maneiras de entender o mundo, natural e cultural, e enquanto ciência supõe regras e princípios aceitos por uma comunidade responsável pela atividade científica. As regras e princípios, metodologias e postulados, são norteados por um entendimento de como é possível conhecer a realidade, isto é, uma epistemologia. No meio acadêmico, a identidade de um ramo científico, uma área, ou uma disciplina, está relacionada com sua definição epistemológica. 53 Dentro dessa visão ou paralelo a esse contexto, a profissão pode ser compreendida como uma área de intervenção social, exercida por uma classe de trabalhadores especializados, detentora de um corpo de conhecimento (científico), cuja atuação é diretamente influenciada pela natureza deste conhecimento (VENUTTO, 1999). Ambas as instânci