BREVE HISTÓRIA AFETIVA DE UMA TEORIA DESLOCADA Larissa Pelúcio1 Resumo: Neste artigo apresento alguns aspectos históricos e epistemológicos que cercaram a recepção de teoria queer no Brasil e seus desdobramentos políticos, preocupando-me, ainda, em oferecer elementos conceituais que ajudem a situar os aportes dessa proposta para estudantes de graduação, mas não apenas para esse público. O texto se divide em três momentos: (1) breve contextualização do surgimento e das propostas dos estudos queer como campo teórico de contestações relativas ao cenário político e acadêmico dos anos de 1980 nos Estados Unidos e sua chegada ao Brasil no início deste século; (2) as tensões locais entre movimento social e teoria queer, concentrando-me nos argumentos teóricos que temos acionado para apontar o potencial político desta vertente e, finalmente (3) procuro discutir as singularidades da produção teórica nacional associada ao queer, propondo uma epistemologia cucaracha para uma teoria cu, ou seja, um conjunto reflexivo que nos permita pensar para além dos limites canônicos de uma ciência de matriz heteronormativa. Palavras-chave: teoria queer, recepção da teoria queer no Brasil, epistemologia cucaracha, teoria cu, perspectiva pós-identitária. Corpus que importamos “Queer”, me disse ele. Não entendi de pronto, mas insisti. Foi então que Richard Miskolci, me falou pela primeira vez de Judith Butler, abanando nas mãos uma fotocópia de Cuerpos que Importan. Era o ano de 2004 e eu havia iniciado o doutorado sobre o modelo 1 Departamento de Ciências Humanas, UNESP – FAAC – Bauru. larissapelucio@gmail.com. 26 preventivo de aids e a forma como ele circulava, era apreendido e resinificado por travestis que se prostituem. Interessava-me ler tudo que discutisse a partir de uma matriz não-essencialista2 gênero e sexualidade. Interessava-me, sobretudo, aquelas teorias que buscavam lidar justamente com os corpos que pareciam desafiar a norma heterossexual. Butler foi, então, uma paixão inevitável. Como toda paixão foi hiperbólica. Adorei! Odiei! Devorei! Vomitei! Fui, enfim, me familiarizando com todo um novo léxico, com um conjunto complexo de ideias torcidas e por isso mesmo desestabilizadora, mas que me levaram a pensar “para além dos limites do pensável” (Louro, 2004: s/n). O impensável – leia-se uma sociedade não fundada na proibição das relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo - não está fora da cultura, antes dentro dela, apenas de forma dominada. É possível pensar de forma insurgente pelas bordas do social, na região que foi propositalmente forcluída dele e, muitas vezes, relegada até mesmo ao reino do abjeto. Emerge assim um pensamento queer, não- normalizador, uma teoria social não-heterossexista e que, portanto, reconhece a sexualidade como um dos eixos centrais das relações de poder em nossa sociedade. (Miskolci, 2014: 17. Neste dossiê). A teoria queer surgiu como argumento político e contestatório ao movimento assimilacionista de gays e lésbicas 2 Jeffrey Weeks assim explica esta matriz: o “essencialismo”, escreve ele, “é o ponto de vista que tenta explicar as propriedades de um todo complexo por referência a uma suposta verdade ou essência interior. Essa abordagem reduz a complexidade do mundo à suposta simplicidade imaginada de suas partes constituintes e procura explicar os indivíduos como produtos automáticos de impulsos internos”. (Weeks, 2010: 43) 27 norte-americano, mas, sobretudo de gays, aos impactos sociais da aids. O que começou como uma discussão interna no movimento, foi sendo sistematizado em linhas argumentativas que geraram um importante cabedal conceitual e teórico que desestabilizou a ideia de estudos de “minorias” e da sexualidade como um aspecto tangencial das dinâmicas sociais. O queer, apesar de ter sido um saber formulado no Norte Global, vai ser uma resposta atrevida das pessoas marginalizadas por uma ordem regulatória dos corpos, das sexualidades e assim também das subjetividades. Uma ordem que recusa outros arranjos sexuais e de gênero que não estejam conformados a uma moralidade burguesa, medicalizada e marcadamente eurocentrada. Mas, quando os estudos queer chegaram ao Brasil ele não entraram pela via das demandas e debates dos movimentos sociais, como nos Estados Unidos, mas pelas portas da academia. Chegaram aqui por meio da literatura dura e desafiante de Judith Butler, essa filósofa difícil de traduzir. Para compreendê-la em toda sua radicalidade era preciso sanar nossas lacunas como cientista sociais relativas a leituras de autores como Lacan e Freud; rever Lévi- Strauss e Foucault, sofrendo, mas, ao mesmo tempo se deslumbrando com o que aquela mulher extraordinária fazia com aqueles homens. Todo um corpo conceitual passou a circular nos eventos e aparecer nos textos, até mesmo de pesquisadoras/es que tinham suas desconfianças teóricas acerca da teoria queer. Termos como “heteronormatividade”, “perfomatividade”, “heterossexualidade 28 compulsória”, “inteligibilidade de gênero” e “abjeção”3 ocupavam, a partir dos primeiros anos do novo século, fóruns políticos, arenas acadêmicas, páginas de comportados periódicos científicos. Os estudos queer começam a ser referenciados no Brasil no mesmo momento no qual experimentávamos o fortalecimento de políticas identitárias4, entres estas estavam aquelas articuladas pelo então movimento GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais). De maneira que uma teoria que se proclamava como não-identitária parecia potencialmente despolitizante. Não tardou para que algumas lideranças do movimento LBGT brasileiro, muitas delas formadas na militância da luta contra a aids, se pronunciassem contra “os queer”. Isto é, não era propriamente contra um conjunto de proposições teóricas, de fato, pouco lido fora do ambiente universitário, que dirigiam suas recusas e acusações, mas a determinados nomes da 3 Para uma aproximação com este léxico sugiro Miskolci & Pelúcio, 2006. 4 No Brasil vivemos, nos anos de 1980, com o recrudescimento da aids o esvaziamento do movimento homossexual, com forte migração dos e as ativistas para as ONGs/aids, as quais passaram a receber fomentos de organismo internacionais via Programa Nacional de DST/Aids, reverteu-se no início do século XXI. Este foi um processo complexo, atravessado por múltiplos fatores, mas para meu argumento aqui, vale sublinhar que passada a fase “heroica” da luta contra a aids, o esgotamento de recursos financeiros para aquelas ONGs, o exercício de articulação política com diferentes movimentos sociais, outras questões suscitadas pela própria dinâmica social e política do país passaram a mobilizar os ativistas em relação a demandas relativas a diretos sexuais, fortalecendo, paulatinamente, o que viria ser chamado de Movimento LGBT, mas também o movimento de mulheres e o movimento negro. Muitas das bandeiras destes foram encampadas pelo Estado, de maneira que em 2004 foi lançado o programa nacional Brasil Sem Homofobia, ligado à Secretaria de Diretos Humanos do Ministério da Justiça. Um ano antes o governo Federal criou a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR/PR) cujo objetivo é diminuir a desigualdade racial no País, com ênfase para a população negra e, ainda em 2003, instituiu a Secretaria de Políticas para as Mulheres. 29 academia. (Pelúcio, 2014: s/n) Essa via de entrada mais acadêmica causou tensões, gerou (e ainda gera) debates acalorados, mas por outro lado deu uma higienizada nesse corpus teórico de caráter mais transgressivo. Até o próprio nome “queer”, que nos países de língua saxônica é uma ofensa e que soa mal aos ouvidos, aqui parecia mais um afago que uma ofensa. E isso não é uma questão menor, posto que a escolha da palavra “queer” para denominar uma teoria tratou-se de uma escolha política. Quer dizer, a ideia era transformar a injuria, as identidades ofensivas, atribuídas pelos outros em um termo de luta e combate. Eu achei isso sensacional. Mas sempre me incomodei com o queer muito acadêmico e muito urbano. Guardarei esse incômodo para outro texto, quero me concentrar um pouco mais nas traduções para estas torções. Pensou-se em muitas traduções para o queer em países de língua espanhola e portuguesa: teoria torcida, teoria maricas, teoria da bicha louca, teoria veada, mas nenhuma “pegou”, pois não tinha a capacidade de incluir na ofensa latinizada um número vasto de estilos de vida considerados indignos pelo mainstream e, assim, colocados de fora do status da ciência. Aliás, as traduções carregavam consigo o lugar hegemônicos dos homens homossexuais na produção se saber sobre sexualidades não-normativas, denunciando sem intensão, que a relação entre saber/poder pode ser também reproduzida nas margens. Inspirada em Beatriz Preciado, filósofa espanhola e um marco nas teorizações em uma perspectiva queer fora dos Estados 30 Unidos5, e no também filósofo, o francês Guy Hocquenghem, que em 1972 escreveu o seminal El Deseo Homosexual (cito a versão espanhola do texto), proponho, não uma tradução, mas uma apropriação antropofágica para o termo queer. Assumir que falamos a partir das margens, das beiras pouco assépticas, dos orifícios e dos interditos fica muito mais constrangedor quando, ao invés de usarmos o polidamente sonoro queer, nos assumimos como teóricas e teóricos cu. Eu não estou fazendo um exercício de tradução dessa vertente do pensamento contemporâneo para nosso clima. Falar em uma teoria cu é acima de tudo um exercício antropofágico, de se nutrir dessas contribuições tão impressionantes de pensadoras e pensadores do chamado norte, de pensar com elas, mas também de localizar nosso lugar nessa “tradição”, porque acredito que estamos sim contribuindo para gestar esse conjunto farto deconhecimentos sobre corpos, sexualidades, desejos, biopolíticas e geopolíticas também (Pelúcio, 2014: s/n). São inquietações que divido com outras/os teóricas/os, como o professor Pedro Paulo Pereira, que se vale das interrogações como ferramenta provocativa. “Como traduzir a expressão queer? Haveria possibilidade de o gesto político queer abrir-se para saberes-outros ou estaríamos presos dentro de um pensamento sem que nada de novo possamos propor ou vislumbrar?” (Pereira: 2013: 372). O gesto abre-se. Mas é também tolhido e criticado. Comecemos pelas críticas. 5 Ver de Preciado: O Manifesto Contrassexual e Texto Yonk; o posfácio ao livro de Hocquenghem intitulado “El terror Anal”; além da entrevista, já traduzida para o português, concedida a Jésus Carrillo, cujas referências estão na bibliografia deste artigo. 31 Recusas e reclamos ou medo de perder a “identidade” O professor e ativista reconhecido dentro do movimento LGBT no Brasil, se levanta em meio à plateia que acompanhava a mesa-redonda durante o evento promovido pelo CUS (Centro Universitário de Sexualidade), Stonewall, 40 + e o que no Brasil, realizado em 2010 na cidade de Salvador por Leandro Colling e Djalma Thüler, ambos da Universidade Federal da Bahia, e chama xs componentes da mesa de “racistas, homofóbicos”. Tratava-se de um evento queer, que contava com um conjunto de pessoas, entre militantes, acadêmicxs e artistas associadxs aos estudos de gênero e sexualidade e, mais acentuadamente à teoria queer. O professor, ainda de pé, é então vaiado pela plateia bastante jovem e, aparentemente mais simpática à mesa, assumidamente afinada com os estudos queer. “O queer é bafão”6, comenta um aluno que está próximo a mim, parecendo se divertir com aquela cena que, para mim, era triste e desconcertante. Por que estávamos sendo colocados como inimigos do movimento social? Por que a plateia vaiou um ícone da luta pelos 6 A expressão deriva do termo francês “bas-fond”, que significa estar num espaço subterrâneo, equivalente ao termo inglês “underground”. Bas-fond soa como “bafon”; daí para se transformar em “bafão” pela proximidade sonora foi só uma questão de uso frequente. O termo tem diversas possibilidades de uso, todas ligadas a eventos que saem da rotina, que têm potencial para virarem fofoca ou algo que movimenta a cena onde ocorre. Significa, assim, algo inusitado; confusão; uma revelação bombástica; situação polêmica e/ou explosiva. Há pelo menos uma década o termo circula em vários ambientes, sobretudo, onde jovens não-heterossexuais se reúnem. 32 direitos de homossexuais no Brasil? O que incomodava tanto o professor-ativista nas falas apresentadas durante aquele evento? As respostas a estas minhas aflições viriam sistematizadas na coletânea que resultou daquele evento. Na apresentação do volume, seu organizador, Leandro Colling já começa a oferecer-nos as pistas: estávamos desafiando os limites normativos das identidades que haviam servido, até então, como mote para demanda de direitos. O queer, como pensamento crítico, se propõe justamente a desafiar as identidades, não por niilismo, e sim a fim de promover uma profunda revisão teórica e política. Questionando não os sujeitos que “encarnam” identidades, mas a ordem social e cultural que as constituí como aceitáveis e normais ou abjetas e patológicas. Com essa proposta em mente, [o] que a Teoria Queer faz, e vári@s pesquisador@s dessa coletânea e do CUS também fazem, é apontar os limites das políticas identitárias. Ora, há uma imensa diferença entre pontar limites, criticar determinados aspectos de certas ideias e estratégias, e ser inimig@ dessas pessoas, dos movimentos e das suas estratégias. Essa diferença precisa ser compreendida para não entrarmos em uma disputa que só nos enfraquecerá. (Colling, 2010: 09) Apesar do risco de enfraquecimento, as recusas às propostas de uma teoria não-identitária continuam. Talvez isso se dê, justamente, porque ao apontar para as armadilhas das identidades, corremos o risco de sermos interpretamos como colocando em xeque lugares duramente conquistados por alguns/algumas ativistas. E assim, os postos políticos a partir do qual obtiveram respeitabilidades 33 e voz. Não se trata, em absoluto, de desqualificar esses lugares, muito menos as conquistas, mas de nos valermos da teoria como ferramenta de combate, uma forma sempre dinâmica para de análise e intervenção. Trata-se, portanto, de operar a partir da desconstrução como método capaz de nos dar pistas de como alguns discursos chegam a instituir verdades sobre comportamentos, corpos, pessoas, instituições. A desconstrução, conforme Jacques Derrida propôs, procura revelar o jogo de tensões existente na conformação dos binarismos, mostrando que muito mais que polares (por exemplo, heterossexualidade versus homossexualidade), os termos fazem parte de um mesmo regime discursivo que organiza e hierarquiza relações. Em outras palavras: Ao invés de priorizar investigações sobre a construção social de identidades, estudos empíricos sobre comportamentos sexuais que levem a classificá-los ou compreendê-los, os empreendimentos queer partem de uma desconfiança com relação aos sujeitos sexuais como estáveis e foca nos processos sociais classificatórios, hierarquizadores, em suma, nas estratégias sociais normalizadoras dos comportamentos. Ao colocar em xeque as coerências e estabilidades que, no modelo construtivista, fornecem um quadro compreensível e padronizado da sexualidade, o queer revela um olhar mais afiado para os processos sociais normalizadores que criam classificações, que, por sua vez, geram a ilusão de sujeitos estáveis, identidades sociais e comportamentos coerentes e regulares. (Miskolci, 2009: 157) Judith Butler (2003) já assinalava que as reificações de gêneros e identidades cristalizam hierarquias e alimentam relações 34 de poder, o que normaliza corpos e práticas, reproduzindo privilégios e exclusões. Essa normalização das identidades – e sua consequente opressão – define padrões de comportamento rejeitando as diferenças. Diferenças estas que são sempre constituídas em intersecção com outras diferenças. Lembra-nos, ainda, que essa constituição nunca é feita de maneira neutra, mas a partir de discursos que se assentam num binarismo restritivo, no falocêntrismo e na heterossexualidade compulsória. Daí as identidades serem tomada por Butler como normalizadoras, pois fixam e reificam “papéis sociais”: homem, feminino, masculino, negro, branco etc., perpetuando e reproduzindo subordinações. Fernando Seffner, na já mencionada coletânea, preocupa-se também com o potencial normalizador das identidades, mesmo daquelas que se colocam como dissidentes e questionadoras da ordem vigente. Ele expressa assim essa reflexão: A distância que separa a obtenção de direitos e a normalização da população LBGT é pequena, e há evidentes conexões entre esses dois movimentos. Conquistar direitos pode ser, em parte, ajustar-se à sociedade. Servir ao exército implica reconhecer que achamos legítima a necessidade de exércitos e implicitamente de guerras; casar pode estar levando a reificar esta forma de relação, no sentido de mostrar que é a única ou a melhor possível para se viver afetos e sexo; adotar filhos e constituir família pode levar a pensar que esses agrupamentos são de maior qualidade do que viver o sexo de modo livre. (Seffner, 2010: 60) Por isso, queer significou e, creio, ainda significa, “colocar- se contra a normalização – venha ela de onde vier (...) Queer 35 representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora” (Louro 2001: 546). O epistemológico é político “Nunca as epistemologias foram tão políticas e as políticas tão epistemológicas”, disse Boaventura de Sousa Santos, em sua fala de abertura do Colóquio Epistemologias dos Sul, ocorrido em julho de 2014, em Coimbra, Portugal. Entendo a teoria queer, cuiér, cu, cucaracha como exercício epistemológico e, portanto, com todo um potencial para a elaboração não só de novas bandeiras, mas como teoria capaz de propor um outro vocabulário, uma nova gramática que desafie as estreitezas de uma ciência que nos ensinou que para sermos levadxs a sério temos que usar os artigos no masculino. Assim, quando queremos falar de humanidade devemos nos referir ao Homem como abstração com pretensões de neutralidade. Se não o fizermos corremos o risco de ofendermos a audiência. Isto é, a própria linguagem para falarmos e sermos ouvidas; para ser falar de coisas sérias e com pretensão de verdade, é falocêntrica. Esta escrita cheia de @, *, x, /, são formas de marcar graficamente que reconhecemos e desafiamos esses limites, por mais incômoda que a leitura se torne. O Incômodo, neste caso, é ele mesmo um gesto que se abre (retomando aqui a provocação de Pereira lançada mais atrás) para experimentos que possam nos ajudar 36 a fazer uma ciência verdadeiramente humana, porque plural e arejada, aberta a outros saberes, sobretudo aqueles gestados pelas pessoas que estiveram historicamente banidas do campo respeitável da academia. Entendo que a teoria queer deve sua elaboração a um complexo processo histórico e político pelo qual “saberes sujeitados” foram se insurgindo e conquistando, a partir do segundo pós-guerra, múltiplas arenas de expressão. Para Michel Foucault, os saberes sujeitados compunham um conjunto heterogêneo de conhecimentos silenciados pelas circunstâncias históricas estabelecidas por densas relações de poder e que foram desqualificados, deslegitimados, em nome de um conhecimento verdadeiro, “em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns” (Foucault, 2005: 12-13). Essa insurreição dos saberes subalternos foi bastante sensível no marco da produção feminista, do qual a crítica queer é tributária. Postura insurgente que exigiu das teóricas e ativistas dos movimentos feministas a criação de uma linguagem própria para fazer ciência, pois a que havia disponível as apagava como seres históricos e produtores de conhecimento. Usaram, então, seus corpos, falaram na primeira pessoa do singular, jogaram suas subjetividades no texto forjando armas agudas que cutucavam o lugar pantanoso das ciências canônicas. Assim tem sido também com a produção queer, que aqui estou chamando de também de cu, para dar a nossa marca local a estas discussões. É pelo cu que chego a pensar nos desafios epistemológicos do presente. Quer dizer, que quero pensar fora das dicotomias excludentes que ancoram em uma 37 pretensa naturalidade do corpo e neutralidade dos órgãos “verdades” que têm implicado em perpetuação de desigualdades. É por aí também que convido quem me lê a pensar. Um convite que funciona como forma de desestabilizar o lugar da cabeça como metonímia para a razão ocidental. Berenice Bento (2010) escreveu que os feminismos, assim como o queer, são teorias pirotécnicas, porque nos oferecem instrumentos para o cerco, para a guerra e para o espanto. Acho que foram, sobretudo, das teorias que desafiam esses lugares de disputa, assim como das experiências que esgarçam o espartilho dos binarismos que vieram nossas inspirações e produções cucarachas7 em relação ao queer. Nosso espanto passa também pelas acusações que nos são dirigidas não por “fundamentalistas”, por representantes de discursos conservadores, mas quando elas vêm daqueles setores que julgamos parceiros, com os quais acreditamos estar construindo discursos qualificados para o enfrentamento às exclusões, aos autoritarismos mal disfarçados de cientificidade. Por isso, Bento não acredita na velha dicotomia “nós fazemos política, vocês fazem pesquisa”, endereçando a crítica a algumas alas do movimento LGBT que diz que sem identidade não se pode fazer política. Mas como fazer política, como fazer ciência quando os corpos são instáveis e os desejos rizomáticos? Esta questão já vem 7 “Cucarachas”, baratas em espanhol, foi expressão usada muitas vezes para nomear, nos Estados Unidos, os/as imigrantes latino-americanas/os. O termo, claramente pejorativo, pode nos servir aqui da mesma maneira como o xingamento “queer” serviu aquelas/es primeiras teóricas e teóricos queer. Explico: apropriamo-nos de uma identidade imposta a fim de politizá-la e, assim, transformá-la em ferramenta de luta teórica. 38 ecoando desde os anos de 1960, aguçando-se na década de 1990, quando as reflexões e lutas feministas se defrontaram com demandas que interrogavam qual mulher se referiam as feministas quando levantavam suas bandeiras de luta8. O feminismo branco, heterossexual e de classe média foi convocado a dar essa resposta para as mulheres do então chamado terceiro mundo. Tiveram que encarar os lugares de fronteiras, onde lésbicas se uniam a mulheres transexuais, que também se assumiam lésbicas. Ali, onde negras e imigrantes, antes de serem mulheres, eram corpos subalternizados pela raça e etnia. Por isso, dizer gay, lésbica, travesti, transexual é dizer muito pouco. Aliás, é quase sempre ofender, muito mais do que descrever (Miskolci, 2012). Fere, quando o que queremos é problematizar esses termos. Desejamos seguir no esforço de resignificação e de politização dessas categorias. Nós ambicionamos saber como se chegou a esse vocabulário de exclusões, porque, antes de serem categorias reinvindicadas, estas são identidades impostas. Assumimos que é preciso interrogar os saberes que divulgaram verdades sobre esses corpos, encapsulando subjetividades, patologizando desejos. As experiências concretas, sobre as quais as ciências sociais e humanas se debruçam, têm apontado para a necessidade de tornarmos os termos identitários mais prismáticos, menos reducionistas. Pessoas comuns também refletem sobre suas experiências e se apropriam de termos cunhados nas lutas políticas e 8 Para uma discussão aprofundada destas questões relativas ao sujeito do feminismo ver Cláudia de Lima Costa, 2002. 39 nas reflexões acadêmicas. Talvez um exemplo etnográfico ajude a dar consistência a essas propostas aqui encetadas. Durante os anos de 2010 e 2011 (Pelúcio e Duque, 2013), eu, juntamente com o professor e sociólogo Tiago Duque realizamos pesquisa entre jovens que não heterossexuais que frequentavam uma praça no centro de Campinas, São Paulo. Ali, na “Praça do Sucão”, conhecemos meninos femininos que se “montavam”, quer dizer, vestiam-se ocasionalmente com adereços considerados femininos; convivemos com gays muito jovens que se reconheciam como drag- queens, pois brincavam com o feminino a partir de experimentações múltiplas, considerando o “ser drag” como uma espécie de fase ou estágio antes de ser travesti; nos deparamos com travestis que faziam “a linha boy”, ou seja, reivindicavam para si a identidade travesti mas tinham todo um estilo próprio dos rappers; conhecemos travestis que estavam revendo suas experiências e considerando-se como transexuais. Toda essa fluidez nos impressionou e nos disse muito sobre as “transformações do lugar social da homossexualidade no Brasil” (França, 2010). Por isso nos interessamos também pelos trânsitos, pelas experimentações que resultam muitas vezes em incompreensões, expressas nas dificuldades dessas e desses jovens em acharem um termo, um lugar, na difícil conciliação entre o desejo de reconhecimento e o enfrentamento das normas que procuram negar as possibilidades ontológicas destes sujeitos. (Pelúcio & Duque, 2013: 20) Nomear essas experimentações tem sido um desafio para as 40 próprias pessoas que as vivenciam, uma vez que a matriz que produz esses termos, mesmo que apresente fissuras, ainda é heteronormativa, binária e, por isso, não suporta ambiguidades. Por tanto, as identidades, como entendemos, podem se tornar lugares de resistência, mas também de reiteração de convenções, servindo, por vezes, para balizar as distâncias entre o “eu” e o “outro” apontado, conforme o contexto, como o verdadeiro desviante. Sem dúvida a ênfase em políticas identitárias teve seu papel histórico inconteste para tirar as pessoas historicamente privadas do direto da ontologia – de ser e existir como sujeitos plenos – da invisibilidade. Porém, o que se discute mais recentemente, são os custos teóricos da insistência acerca dessa identidade que exigiu, de certa forma, a coerência e unidade destas identidades “dissidentes”. A questão que parece marcante nas discussões mais recentes sobre gêneros, sexualidades, raça, etnia é a desnaturalização da diferença. A própria diferença tomada, então, como categoria de análise (Brah, 2006). Refletir sobre como diferenças se tornam desigualdades exige esforços metodológicos desconstrucionistas, capazes de desnaturalizar os processos pelos quais as diferenças se tornam desigualdades. O esforço teórico empreendido pela teoria queer, mas não exclusivamente por ela, é justamente desafiar os termos pelos quais a cultura dominante vem perpetuando diferenças enquanto desigualdade, reconhecendo que as adesões teóricas são também locais políticos capazes de instrumentalizar-nos para o bom combate. 41 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENTO, Berenice. “Política da diferença: feminismos e transexualidades” In: COLLING, Leandro (Org.). Stonewall 40 + o que no Brasil? Salvador: EDUFBA, 2011. v. 1. p. 79-110. (Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/2260/ 3/Stonewall%2040_cult9_RI.pdf) BRAH, Avtar. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos pagu, Campinas, n. 26, jun. 2006. Disponível em: BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CARILLO, Jesus. Entrevista com Beatriz Preciado. Revista Poiésis, n. 15, p. 47-71, jul. 2010. 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