LEONARDO FERRAZ A PERCEPÇÃO DE CRIANÇAS E PROFESSORAS DE ALFABETIZAÇÃO SOBRE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM AMBIENTE DE CONTATO DIALETAL SÃO JOSÉ DO RIO PRETO 2021 LEONARDO FERRAZ A PERCEPÇÃO DE CRIANÇAS E PROFESSORAS DE ALFABETIZAÇÃO SOBRE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM AMBIENTE DE CONTATO DIALETAL Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Departamento de Educação, como parte dos requisitos para obtenção do título de licenciado, junto ao Curso de Graduação em Licenciatura em Pedagogia, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, câmpus de São José do Rio Preto. Orientadora: Profa. Dra. Gisele Cássia de Sousa SÃO JOSÉ DO RIO PRETO 2021 LEONARDO FERRAZ A PERCEPÇÃO DE CRIANÇAS E PROFESSORAS DE ALFABETIZAÇÃO SOBRE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM AMBIENTE DE CONTATO DIALETAL Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Departamento de Educação, como parte dos requisitos para obtenção do título de licenciado, junto ao Curso de Graduação em Licenciatura em Pedagogia, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, câmpus de São José do Rio Preto. COMISSÃO EXAMINADORA Profa. Dra. Gisele Cássia de Sousa (IBILCE/UNESP – São José do Rio Preto) Orientadora Profa. Dra. Patrícia Fabiana Bedran (IBILCE/UNESP – São José do Rio Preto) Membro titular Profa. Dra. Caroline Carnielli Biazolli (CECH/UFSCAR – São Carlos) Membro titular Profa. Dra. Anna Flora Brunelli (IBILCE/UNESP – São José do Rio Preto) Membro suplente SÃO JOSÉ DO RIO PRETO 02 DE MARÇO DE 2021 Ao Ricardo (in memoriam) e à Isabela, dedico este trabalho. AGRADECIMENTOS À minha família, especialmente às minhas mães e ao meu irmão Rodrigo, pela compreensão e pelo apoio, fundamentais para minha caminhada. Aos amigos que me acompanham nesta jornada, dentro e fora da Universidade, pela parceria. Aos meus guias, pela proteção. Aos professores do Cursos de Licenciatura em Pedagogia e de Licenciatura em Letras, por todo aprendizado. Às crianças e às professoras que participaram deste estudo. À Permanência Estudantil e aos estudantes que por ela luta[ra]m. Sem políticas de assistência, minha jornada não teria sido possível. Em especial, à Profa. Dra. Gisele Cássia de Sousa, orientadora deste trabalho, pelas lições de linguística e de vida que carregarei comigo para sempre. Além da cuidadosa e paciente orientação, agradeço, também, por me apresentar o mundo da pesquisa científica e por guiar meus primeiros passos no universo acadêmico. “Nóis vamo a São Paulo Que a coisa tá feia Por terras alheia Nóis vamos vagá Meu Deus, meu Deus Se o nosso destino Não for tão mesquinho Ai pro mesmo cantinho Nóis torna a voltar” Patativa do Assaré (1984) RESUMO Neste trabalho, buscamos investigar a percepção acerca da variação linguística em ambiente escolar por parte de crianças, em fase final de alfabetização, e de professoras que atuam nesta fase, bem como as crenças que têm essas docentes sobre a variação no contexto de alfabetização em língua portuguesa. Os contextos definidos para a investigação são duas turmas de 1º ano do ensino fundamental I, que funcionam em escolas públicas do município de Palmares Paulista (SP). A região é conhecida pelo cultivo da cana de açúcar e atrai, principalmente em período de colheita, migrantes das regiões Norte e, em especial, Nordeste. Boa parte desses trabalhadores deslocam-se com a família, fixam residência na cidade e, em consequência disso, seus filhos passam a frequentar as escolas do município juntamente com os filhos dos moradores nativos da cidade. A variedade falada por esses migrantes, portanto, convive, nos diferentes espaços sociais da comunidade, com a variedade local e é claramente percebida como distinta dela, especialmente em se tratando de seus aspectos fônicos. As escolas investigadas são administradas pelo mesmo órgão municipal e atendem, cada uma, cerca de quatrocentos alunos do 1º ao 5º ano; porém, encontram-se em regiões opostas: enquanto uma se localiza no centro da cidade, a outra está situada em um bairro mais periférico. Em nossa investigação, partimos da hipótese inicial de que a percepção de variação ocorreria de diferentes modos (percepção espontânea ou estimulada, sobretudo pela professora da sala), com diferentes intensidades nas duas escolas investigadas, e estaria voltada a diferentes componentes da gramática. A fundamentação teórica deste estudo é composta de obras da Sociolinguística Variacionista (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006 [1968]; LABOV, 2008 [1972]) e da Sociolinguística Educacional (BAGNO, 2002, 2008, 2013; BORTONI-RICARDO, 2004, 2005). A coleta de dados para as análises ocorreu a partir de observações presenciais de aulas e de entrevistas semiestruturadas realizadas com as professoras das turmas observadas. Os principais resultados da pesquisa indicam que, neste cenário, a diversidade linguística é correntemente associada à noção de erro, dada a inconsistência teórica subjacente às crenças e à prática docente das alfabetizadoras. Esperamos que a realização da pesquisa possa fornecer subsídios para reflexões sobre o importante papel da variação linguística no ensino de língua materna em ambiente escolar. Palavras-chave: Variação linguística; Contato dialetal; Ensino fundamental I; Ensino de Língua Materna. ABSTRACT In this work, we seek to investigate the perception of linguistic variation by children and teachers in the school environment, at the final phase of literacy, as well as the beliefs that these teachers have about variation in the context of literacy in Portuguese language. The contexts defined for the investigation are two 1st year classes of first cycle of elementary education in public schools in the municipality of Palmares Paulista (SP). The region is known for the cultivation of sugar cane and attracts, mainly during the harvest period, migrants from the North and, especially, the Northeast. A large part of these workers move with their family, take up residence in the city and, as a result, their children start frequent schools in the municipality along with the native children. Therefore, the variety spoken by these migrants, in the different social spaces of the community, coexists with the local variety and is clearly perceived as distinct from it, especially in terms of its phonic aspects. The investigated schools are administered by the same municipal agency and each one serve about four hundred students from the 1st to the 5th year; however, they are in opposite regions: while one is located in the central region, the other is located in a more peripheral local. In our investigation, we started from the initial hypothesis that the perception of variation would occur in different ways (spontaneous or stimulated perception, especially by the classroom teacher), with different intensities in the two investigated schools and that would be focused on different components of grammar. Variationist Sociolinguistics (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006 [1968]; LABOV, 2008 [1972]) and Educational Sociolinguistics works (BAGNO, 2002, 2008, 2013; BORTONI-RICARDO, 2004, 2005) compose the theoretical foundation of this study. The data collection for the analysis occurred from classroom observations and semi-structured interviews conducted with the teachers of the observed classes. The main results of the research indicate that, in this scenario, linguistic diversity is currently associated with the notion of error, given the theoretical inconsistency underlying the beliefs and teaching practice of the literacy teachers. We hope that the conduct of the research can provide subsidies for reflections on the important role of linguistic variation in the teaching of mother tongue in a school environment. Keywords: Linguistic variation; Dialectal contact; Elementary School; Native language teaching. LISTA DE QUADROS E FIGURAS Figura 1. Esquema de representação da marcação de plural no SN em PB ............................ 19 Figura 2. Localização de Palmares Paulista no mapa do estado de São Paulo ....................... 29 Quadro 1. Quantidade e distribuição dos estudantes por escola ............................................. 31 Quadro 2. Dados pessoais, formação e experiência profissional das docentes investigadas .. 32 Quadro 3. Classificação das ocorrências de acordo com os fatores de análise ....................... 43 ABREVIATURAS UTILIZADAS A1 Aluna da escola periférica A2 Aluno da escola periférica A3 Aluno da escola central EP Escola periférica EC Escola central PEP Professora da escola periférica PEC Professora da escola central : Prolongamento de segmentos vocálicos nos trechos de fala transcritos (...) Indicação de que a fala foi retomada ou interrompida em determinado ponto SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................13 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ...................................................................................... 15 1.1. Sociolinguística: breve histórico e principais conceitos ................................................... 15 1.2. O tratamento dado à variação linguística no ambiente escolar ......................................... 21 2 ASPECTOS METODOLÓGICOS ........................................................................................... 27 2.1. O universo de investigação ............................................................................................... 27 2.1.1. Palmares Paulista: lugar de encontro entre diferentes falares .......................... 28 2.1.2. As unidades escolares investigadas ................................................................. 29 2.1.3. Os sujeitos da pesquisa: crianças e professoras ............................................... 30 2.2. A abordagem qualitativa ................................................................................................... 32 2.2.1. A observação participante ................................................................................ 33 2.2.2. A entrevista semiestruturada ............................................................................ 36 2.3. A abordagem quantitativa: dificuldades enfrentadas ........................................................ 37 2.4. Considerações éticas ......................................................................................................... 39 3 DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS DADOS...........................................................................40 3.1. Características gerais dos grupos investigados ............................................................... 40 3.2. Os resultados da observação em campo ............................................................................ 42 3.3. Análise e interpretação das entrevistas ............................................................................. 45 3.3.1. Concebendo variação linguística ..................................................................... 45 3.3.2. Crenças sobre os modos de falar ...................................................................... 48 3.3.3. Crenças sobre funções e prioridades do ensino de Língua Portuguesa ........... 50 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 53 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 56 APÊNDICE ............................................................................................................................. 60 13 INTRODUÇÃO Como é sabido, especialmente a partir da segunda metade do século XX, houve um grande fluxo migratório de nordestinos e nortistas para outras regiões brasileiras, principalmente para a região Sudeste, por diversos motivos, dentre os quais se destacam as dificuldades climáticas que prejudicam as atividades de plantio e colheita e a falta de oportunidades de estudo e emprego para os cidadãos das regiões Norte e Nordeste do país. Além das capitais dos estados, diversas cidades do interior também são destinos dessa população, que vem em busca de trabalho e melhores condições de vida. O município de Palmares Paulista, localizado no interior do estado de São Paulo e locus de investigação desta pesquisa, é uma dessas cidades. Em diferentes épocas do ano, o município acolhe muitos trabalhadores que oferecem mão de obra relativamente barata para o cultivo da cana de açúcar, que trazem consigo suas famílias, e que compõem boa parte da população palmarense. Considerando que a urbanização e as (i)migrações permitem que a cidade seja, por excelência, o lugar do contato entre línguas e variedades de língua, como preconizado por Calvet (2002), nesta pesquisa, parte-se do pressuposto de que, em razão desse fluxo migratório das regiões Norte e Nordeste para a região Sudeste, Palmares Paulista configura-se como um local de contato entre os falares nordestino e paulista, este caracterizado pela variedade falada na região noroeste do estado de São Paulo. Nesse contexto, a pesquisa empreendida neste trabalho teve como objetivo compreender como ocorre a percepção de variação linguística em ambiente escolar, tanto por parte das crianças quanto por parte das professoras, e quais são as crenças1 que essas docentes têm em relação a temas como variação linguística e ensino de língua portuguesa (LP, daqui em diante) como língua materna. Trata-se de uma pesquisa de cunho exploratório que, conforme Gerhardt e Silveira (2009), proporciona maior familiaridade com o problema, tornando-o mais compreensível e dando maiores possibilidades de construir hipóteses, visto que envolve tanto levantamento bibliográfico quanto realização de entrevistas. A observação em campo foi realizada em duas escolas públicas, localizadas em regiões distintas: enquanto uma se localiza no centro da cidade, a outra está situada em um bairro mais periférico. Examinamos momentos de interação de cerca de 39 crianças, com faixa etária entre 6 e 8 anos. Por meio da realização de entrevistas semiestruturadas, dialogamos com 2 1 Neste trabalho, concebemos crenças como “uma forma de pensamento, construções da realidade, maneiras de ver e perceber o mundo e seus fenômenos, co-construídas em nossas experiências resultantes de um processo interativo de interpretação e (re)significação” (BARCELOS, 2006, p. 18). 14 professoras da rede pública de um município de porte pequeno do interior do estado de São Paulo, cuja economia baseia-se no comércio local e nas agroindústrias sucroalcooleiras da região. Grosso modo, foram analisadas as crenças que elas possuem sobre o papel do ensino de LP nos anos iniciais do ensino fundamental (EF, daqui em diante) e o lugar ocupado pela variação linguística nesse processo. O foco desta pesquisa voltou-se justamente para esse possível contato entre variantes dialetais e para as prováveis implicações geradas por ele no contexto escolar de sala de alfabetização, isto é, se subjaz ao tratamento dado às variantes alguma espécie de preconceito linguístico, motivado pela crença ilusória de relações de superioridade/inferioridade entre variedades linguísticas distintas. Pode-se entender, assim, que as principais justificativas para o desenvolvimento desta investigação se encontram nas contribuições que poderão ser oferecidas aos estudos sobre ensino de língua materna, no tocante a discussões sobre a relevância de propostas curriculares e ações pedagógicas que levem em conta a heterogeneidade inerente aos sistemas linguísticos (LABOV, 2008 [1972]; TARALLO, 1990) e tornem os estudantes plenamente capazes de tomar atitudes de respeito linguístico, especialmente em se tratando de ouvir diferentes falares sem emitir julgamentos de valor, sem silenciar a voz do outro e sem intolerância. O presente trabalho organiza-se em três capítulos. O primeiro trata das concepções teóricas que nortearam a pesquisa e as análises aqui desenvolvidas. O segundo apresenta o percurso metodológico que realizamos e os instrumentos de coleta de dados que utilizamos. O terceiro capítulo, por sua vez, traz a discussão e análise dos dados coletados. Por fim, tecemos as considerações finais do trabalho. 15 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Para atender aos objetivos propostos por esta pesquisa, algumas concepções teóricas fundamentaram o tratamento dado ao material de análise. A pesquisa teve como norteadores trabalhos que já versaram, principalmente, sobre: (i) aspectos teórico-metodológicos da Teoria da Variação e Mudança Linguística; (ii) a reflexão sociolinguística dentro do ambiente escolar e o tratamento dado à variação linguística no ensino de língua materna em nosso país. 1.1. Sociolinguística: breve histórico e principais conceitos A sociolinguística é um dos ramos da Linguística que ganhou força e se consolidou por conta de seus conceitos inovadores e suas metodologias próprias de investigação. Contudo, o que é considerado Sociolinguística é, na verdade, um conjunto de diversas abordagens que, apesar de diferentes, apresentam uma essência que faz com que essa diversidade seja unificada. Em obra póstuma, o Curso de Linguística Geral, Ferdinand de Saussure estabeleceu uma de suas mais famosas dicotomias ao dividir a linguagem em dois elementos: a langue e a parole. Para ele, somente a langue, sistema individual que é utilizado como meio de comunicação entre os membros de uma comunidade, seria passível de ser estudada sistematicamente. Na medida em que decorre, portanto, de uma espécie de contrato entre os membros de uma mesma comunidade linguística, a língua adquire caráter social (MARTELOTTA, 2009). Embora a maioria dos estudos desenvolvidos até a metade do século passado tenham sido embasados no conceito de língua como sistema, a noção de língua como um fato social começou a ganhar força a partir dos estudos de Antoine Meillet que, em diversos textos, insistiu no caráter social da linguagem (CALVET, 2002). Meillet, constantemente apresentado como discípulo de Ferdinand de Saussure, distanciou-se de algumas de suas posições, principalmente da dicotomia que distingue sincronia e diacronia e da última frase do Curso: “a Linguística tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma” (SAUSSURE, 2012, p. 305). Ainda que não tenha sido escrita pelo linguista genebrino, essa frase representa perfeitamente seu ensinamento e diverge das afirmações sobre o caráter social da língua que se verifica nos escritos de Meillet, que implicam ao mesmo tempo a convergência de uma 16 abordagem interna e de uma abordagem externa dos fatos da língua e de uma abordagem sincrônica e diacrônica desses fatos. Segundo Calvet (2002), foi por meio dos estudos de Basil Bernstein, sociólogo da educação, que a sociolinguística se manifestou. Na medida em que considerou, ao mesmo tempo, as produções linguísticas reais e a situação sociológica dos falantes, Bernstein foi capaz de constatar que as crianças da classe operária apresentavam maior taxa de fracasso escolar em relação às crianças das classes sociais mais privilegiadas. Para analisar as produções linguísticas das crianças, Bernstein definiu dois códigos: o código restrito, presente na fala das crianças socioeconomicamente menos favorecidas, e o código elaborado, dominado pelas crianças das classes mais abastadas. Calvet (2002) aponta que esses códigos apresentam, além das diferenças socioculturais, diferenças do ponto de vista gramatical: o código restrito caracteriza-se por frases curtas, sem subordinação, e vocabulário limitado. Essa diferença, para Bernstein, era uma das responsáveis pela defasagem das crianças desfavorecidas em seu aprendizado e em sua visão de mundo. A tese principal de Bernstein, conforme Calvet (2002), era a de que o aprendizado e a socialização são marcados pelas condições familiares nas quais as crianças são criadas e, consequentemente, a de que a estrutura social determina os comportamentos linguísticos. Essa visão é concebida por Camacho (2013) como “o resultado de uma atitude preconceituosa a respeito dos dialetos de classe baixa e, especialmente, de um ponto de vista que ignora algumas premissas básicas sobre línguas e variedades dialetais” (p. 51). William Bright, em maio de 1964, organizou uma conferência sobre língua e sociedade na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Deste encontro, participaram diversos pesquisadores importantes, como William Labov, Dell Hymes, John Gumperz e outros. Camacho (2016) afirma que esse encontro marca o nascimento da sociolinguística como uma nova forma de fazer ciência, em oposição à gramática gerativa de Chomsky. De acordo com Camacho, Bright acreditava que a sociolinguística “poderia ser concebida somente como uma abordagem anexa aos fatos da língua em complementação à própria linguística formal, à sociologia e à antropologia” (2016, p. 463). Entretanto, ele aponta que Labov, desde seus primeiros textos, recusava-se a aceitar a ideia de que a sociolinguística ocupava lugar periférico nos estudos linguísticos. Segundo o autor, Labov (2008 [1972]) acredita que a relação de covariação entre língua e sociedade é metodologicamente indispensável, não sendo apenas um simples recurso interdisciplinar. A teoria variacionista, também conhecida como Teoria da Variação e Mudança Linguística, tem como precursores os trabalhos de William Labov. Antes de ser um estudioso 17 da linguagem, Labov trabalhava na indústria química, na Union Ink Company of Ridgefield, um laboratório de sua família. Essa experiência fez com aquele adquirisse, dentre outras coisas, perspicácia em relação à atividade de pesquisa e seus métodos (GORDON, 2013). De acordo com Tarallo (1990), a primeira investigação de Labov foi a que resultou na inovadora dissertação de mestrado sobre as variantes faladas na ilha de Martha’s Vineyard, intitulada The social motivation of a sound change, defendida em 1963. Ele notou que a variedade local era mais conservadora que a variedade do continente, ainda que a ilha passasse por diversas transformações. Como era um dos municípios mais pobres de Massachusetts, a ilha tornava-se cada vez mais dependente do turismo, que, por sua vez, ameaçava a independência dos nativos. Em razão desses fatores, Labov comprova que a mudança linguística é socialmente motivada e, pela primeira vez, motivações sociais foram sistematicamente propostas como explicações para a mudança sonora. Posteriormente, em seu estudo The Social Stratification of English in New York City, um marco na pesquisa variacionista, Labov correlaciona diferentes formas de falar com características sociais dos falantes. Para isso, ele desenvolve conceitos inovadores e técnicas de investigação que influenciaram estudos sociolinguísticos e outros estudos que analisam a língua como fenômeno social e interacional. A pesquisa laboviana sobre a estratificação social do /r/ em lojas de departamento da cidade de Nova Iorque constitui um dos trabalhos mais famosos da Sociolinguística. Ao analisar três lojas de departamento com características distintas – uma com maior prestígio e preços mais altos, outra com menor prestígio e preços mais baixos e, por fim, uma intermediária –, Labov percebeu que os vendedores, que compartilhavam as mesmas características socioeconômicas, aproximavam sua pronúncia à fala do público que eles atendiam. Portanto, uma das conclusões do trabalho foi a de que o prestígio da loja e as condições de trabalho eram fatores condicionadores de variação. Para Labov, o objeto de estudos da Teoria da Variação e Mudança é a língua em uso nos momentos em que os falantes prestam pouca ou nenhuma atenção ao modo como falam, ou seja, quando é mínimo grau de monitoramento. A variação ocorre, então, quando uma regra, vista como categórica, passa a concorrer com outra, tornando-se, assim, uma regra variável, até que uma delas alcance o estatuto de categórica mais uma vez. As variáveis sociolinguísticas, de acordo com a concepção laboviana, estão relacionadas a variáveis sociais e estilísticas, apresentam significados e valores sociais e estão sujeitas a avaliações tanto por parte dos falantes quanto por parte dos ouvintes. Há um grupo de variáveis linguísticas sensíveis somente a fatores sociais: são os chamados “indicadores linguísticos” 18 (Labov, 2008 [1972], p. 286). Eles podem estar relacionados a valores sociais, como no caso do /r/ nas lojas de departamento novaiorquinas, e/ou a valores locais, como no caso dos ditongos /ay/ e /aw/ em Martha’s Vineyard. Um outro grupo de variáveis sociolinguísticas são os “marcadores”. Tratam-se de variáveis mais desenvolvidas, que, além de sensíveis à estratificação social ou à identidade local, apresentam diferenciação estilística, isto é, podem ser consideradas formais ou informais. Esses marcadores podem fazer parte da consciência social e se tornarem o que Labov (2008 [1972]) chama de “estereótipos”. Uma das maiores preocupações dos estudos sociolinguísticos, em relação aos procedimentos metodológicos e à coleta de dados é a de realizar observação sobre o uso empírico da língua minimizando a interferência do pesquisador, pois, sem uma observação neutra, é possível que os dados sejam frutos de uma fala mais monitorada e, consequentemente, mais distante do vernáculo. A necessidade de coletar dados linguísticos naturais sem que os falantes deixem de agir naturalmente a fim de descobrir como eles falam quando não estão sendo sistematicamente observados é chamada por Labov de “paradoxo do observador”. A presença do pesquisador é fundamental para a coleta de dados, porém, pode fazer com que haja interferências na naturalidade das comunicações observadas. Na tentativa de superar esse paradoxo, Labov (2008 [1972]) afirma que um dos caminhos possíveis é eliminar eventuais constrangimentos decorrentes da situação de entrevista, lançando mão de procedimentos que possam desviar a atenção do falante e, assim, fazer surgir o vernáculo, isto é, “o estilo em que se presta o mínimo de atenção ao monitoramento da fala” (p. 244). De acordo com ele, se as intervenções e seus intervalos forem bem definidos, é provável que o falante inconscientemente presuma que não está sendo entrevistado, pelo menos naquele momento. Além disso, o autor também afirma que é possível cativar os entrevistados por meio de ações que recriem importantes emoções experienciadas em tempos passados – como, por exemplo, abordar tópicos relacionados ao risco de morte ou às memórias da infância. Dessa forma, as narrativas de experiência pessoal produzidas por essas pessoas constituem ferramenta dentro da entrevista sociolinguística, dado que podem revelar uma mudança de estilo que vai na direção de falas menos monitoradas (LABOV, 2008 [1972]). Tarallo (1990) trata de duas alternativas possíveis: a primeira, uma coleta indireta, consiste na ideia de que o pesquisador não participa diretamente das situações de comunicação; a segunda, por sua vez, assegura que o pesquisador deve participar de tais situações, nelas interferindo o mínimo possível. Essa presença é, na verdade, uma orientação teórica do próprio modelo variacionista, uma vez que o sociolinguista sente a necessidade de controlar tópicos de conversa e induzir realizações da variável linguística pela qual está interessado. 19 A pesquisa variacionista exige que um dos primeiros passos seja a definição de uma variável e suas variantes. Portanto, para além da análise dos contextos em que as variantes podem ocorrer, é preciso que o pesquisador pense nos fatores extralinguísticos que podem influenciar sua realização, como sexo/gênero, classe social, idade, entre outros. Para a realização do estudo, a coleta de dados pode ser realizada através entrevistas sociolinguísticas, entrevistas anônimas e rápidas, observações e registros assistemáticos, gravações (de programas televisivos ou de rádio, de interações entre pares de informantes e, até mesmo, de discursos públicos) e, por fim, questionários de produção e de percepção linguísticas (COELHO et al., 2010). Acerca da pesquisa variacionista, Eckert (2005, p. 3) afirma que ela se caracteriza pelo interesse em padrões gerais numa comunidade de falantes, isto é, as macrocategorias socioeconômicas definem os tipos de falantes que usam determinadas variantes da língua e não outras. De acordo com a autora, a maioria dos estudos dessa vertente são sobre “comunidades geograficamente definidas”, em que as variáveis são marcas de categorias sociais e carregam a relação de estigma/prestígio baseada na classe social. As variáveis compõem, junto das variantes linguísticas e de outros diversos elementos, os sistemas linguísticos das línguas naturais. Uma variável linguística é um conjunto de variantes, que, por sua vez, são as diversas formas de dizer a mesma coisa em um mesmo contexto com o mesmo valor de verdade. Veja-se, a esse respeito, o exemplo apresentado por Tarallo (1990) referente à marcação de plural no sintagma nominal (SN) no português brasileiro (PB, daqui em diante): Figura 1. Esquema de representação da marcação de plural no SN em PB Fonte: Adaptado de Tarallo (1990) 20 Como se pode notar, o esquema exemplifica uma variável linguística: a marcação de plural no SN. A essa variável, correspondem duas formas que concorrem para sua expressão, ou seja, “adversárias” no campo de batalha da variação: a primeira delas é a presença do morfema gramatical [s], que representa a marcação de pluralidade, enquanto a segunda é a ausência desse morfema, ou seja, a forma zero [ø], que indica a ausência de pluralidade. A partir desse exemplo, Tarallo (1990) ressalta que a variação linguística pode ser sistematizada, fazendo com que o aparente caos linguístico passe a ser visto como um sistema estruturado. As regras que explicam o favorecimento de uma variante e não de outra é que são variáveis, uma vez que decorrem de circunstâncias linguísticas e não linguísticas. Logo, percebemos que determinadas variáveis aparecerão apenas em determinados contextos, porque a variação não é aleatória. Conforme relata Freitas (1996), a Sociolinguística contribuiu muito para os avanços em questões educacionais, principalmente em se tratando de estimular estudos com o objetivo de construir novas metodologias que auxiliem os professores a desenvolver, nas crianças, habilidades cognitivas necessárias a uma aprendizagem mais ampla e, também, a lidar com a variação linguística em sala de aula. Com a mesma preocupação dos sociolinguistas, estudiosos da Antropologia da Educação discutiram tais pontos e começaram a verificar, através de pesquisas etnográficas, o etnocentrismo das teorias que buscavam explicar o fracasso escolar. Dentre essas teorias, destaca-se a teoria do “déficit genético”, que defende como causa do fracasso escolar as desigualdades naturais de aptidão e inteligência entre os indivíduos. Há também a teoria do “déficit cultural”, que defende a defasagem de cultura dos alunos provenientes de classes sociais mais desfavorecidas. Uma noção importante dessa teoria é a noção de background cultural, isto é, o espaço onde as crianças vivenciam experiências socioculturais. Esse background estaria, então, relacionado ao sucesso ou fracasso do indivíduo na vida escolar. Ambas as teorias deixam nítido o preconceito racial e cultural em relação a comunidades socioeconomicamente desfavorecidas (FREITAS, 1996). Camacho (2013), inclusive, tece duras críticas à teoria do déficit e ressalta que Essas noções foram interpretadas por Labov como conceitos maniqueístas profundamente arraigados num preconceito ideológico contra todas as formas de manifestação cultural das classes marginalizadas. Labov critica também a concepção binária de Bernstein em detrimento de um continuum estilístico do qual os dois “códigos” seriam apenas os polos mais prototípicos (p. 51). 21 Erickson (1987 apud FREITAS, 1996) comenta que a visão sociolinguística permitiu que antropólogos identificassem fatores que influenciavam o rendimento escolar e o ânimo dos alunos, como, por exemplo, o estilo de comunicação entre professores e alunos. A novidade dessa posição, segundo a autora, é a neutralidade: os fatos são analisados sem que se busquem culpados. 1.2. O tratamento dado à variação linguística no ambiente escolar O tratamento dado à variação linguística em sala de aula é, ainda, objeto de muita reflexão. Antunes (2009) salienta que em todas as línguas naturais ocorrem mudanças em seus diferentes níveis e que os educadores não devem, assim, pensar em uma língua homogênea, que possa ser falada e escrita da mesma forma e em todos os lugares. Bortoni-Ricardo (2005) declara que a escola não tem o direito de ignorar as diferenças sociolinguísticas. As peculiaridades linguístico-culturais dos alunos devem ser respeitadas e não violentadas pela tentativa de substituição dessa variedade pela língua institucionalizada, que é ensinada na escola e está presente nos documentos oficiais. De acordo com ela, os alunos devem ser conscientizados sobre a diversidade linguística com o propósito de que entendam que existem duas ou mais formas de dizer a mesma coisa e que “essas formas alternativas servem a propósitos comunicativos distintos e são recebidas de maneira diferenciada pela sociedade” (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 15). Os materiais didáticos utilizados no ensino público brasileiro são, na maioria das vezes, a principal ferramenta utilizada pelos professores em sala de aula. Portanto, devem, também, ser objeto de reflexão e discussão. É necessário que sejam fornecidos ao público escolar livro didáticos de boa qualidade teórico-metodológica, conectados com os avanços dos estudos da educação e das ciências da linguagem (BAGNO, 2013). Castilho, em obra de 1978, já apontava que os métodos e os materiais de ensino não estavam alinhados às reflexões dos cientistas da linguagem e que os nossos cursos de licenciatura apresentavam diversos problemas no que tange à formação de professores de língua materna. Em estudo sobre os livros didáticos utilizados no Brasil e aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), Bagno (2013) afirma que há um desequilíbrio metodológico interno: ao analisar o tratamento da leitura e da escrita, o autor conclui que as metodologias ali presentes estão mais sintonizadas com os estudos das ciências linguagem; 22 enquanto o tratamento dos conhecimentos linguísticos (dentre os quais encontra-se a abordagem didática da variação linguística) utiliza metodologias mais conservadoras e tradicionalistas. Há uma abordagem, a qual chamaremos de transmissiva (BAGNO, 2013), que faz com que noções, conceitos e informações sejam vistos como um conjunto de conhecimentos isento de crítica e revisão teórica, possibilitando que sejam transmitidos aos aprendizes sem a proposição de qualquer atividade reflexiva e sem contestações. Essa visão mais tradicional, conforme o autor, é contrária àquela preconizada pelas propostas didáticas mais contemporâneas (BRASIL, 1998, 2017), que reconhecem o conhecimento que as crianças, enquanto falantes nativos, têm de sua língua e propõem, dessa forma, um ensino de língua que, por meio de uma abordagem mais reflexiva, possa promover a ampliação de suas competências linguísticas e comunicativas. Acerca disso, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) orientam Os conhecimentos linguísticos construídos por uma criança que inicia o primeiro ciclo serão tanto mais aprofundados e amplos quanto o permitirem as práticas sociais medidas pela linguagem pelas quais tenha participado até então [...] é usando a linguagem que [a criança] constrói sentidos sobre a vida, sobre si mesma, sobre a própria linguagem. Essas são as principais razões para, da perspectiva didática, tomar como ponto de partida os usos que o aluno já faz da língua ao chegar à escola, para ensinar-lhe aqueles que ainda não conhece (BRASIL, 1998, p. 67, grifo nosso). Neste sentido, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) declara que Ao componente de Língua Portuguesa cabe, então, proporcionar aos estudantes experiências que contribuam para a ampliação dos letramentos, de forma a possibilitar a participação significativa e crítica nas diversas práticas sociais permeadas/constituídas pela oralidade, pela escrita e por outras linguagens (BRASIL, 2017, pp. 67-68). Bagno (2013) observa que algumas das coleções de livros analisadas por ele se baseiam em uma das principais sustentações discursivas empregadas pela gramática normativa, isto é, a ideia de que determinadas palavras ou construções sintáticas “não existem” porque não se encontram nos compêndios gramaticais que prescrevem a norma padrão. Entretanto, Bagno afirma que determinadas construções existem, ainda que sejam condenadas pela estreita e estrita norma-padrão. De outra forma, não seria necessário sequer que tais construções fossem apresentadas aos estudantes por meio das obras didáticas. Há, portanto, uma clara diferença entre existir e ser condenado. De acordo com o autor, os livros didáticos analisados, quando não recorrem ao discurso de inexistência, valem-se de um nebuloso conceito de informalidade. Desta forma, a relação dicotômica entre certo e errado é evitada, porém, o exame do uso destes 23 conceitos nessas obras permite concluir que as formas linguísticas mais conservadoras continuam sendo impostas e mascaradas através de discursos “politicamente corretos”. Ainda de acordo com Bagno (2013), uma das razões pelas quais os profissionais envolvidos na elaboração desses materiais, que geralmente são linguistas e pedagogos formados nas universidades mais prestigiadas do Brasil, ainda estão apegados a uma visão retrógrada dos fatos de língua e de linguagem é o conservadorismo do ambiente educacional. Boa parte dos educadores (e de outros profissionais relacionados à educação) “ainda acreditam que ‘ensinar português’ é o mesmo que ‘ensinar gramática’ e que ‘ensinar gramática’, por sua vez, é ensinar a nomenclatura tradicional por meio de exercícios mecânicos de aplicação” (BAGNO, 2013, p. 18). Desta forma, os grupos editoriais forçam as autoras e autores a incluir elementos que não deveriam estar ali e a excluir elementos relevantes para uma educação linguística avançada, colaborando para a manutenção de um círculo vicioso que o autor denomina “Santíssima Trindade da (des)educação linguística brasileira”, isto é, a conexão entre pedagogia conservadora, livros didáticos e gramática normativa. Ademais, conforme aponta Bagno (2013), as obras de caráter convencional são as mais escolhidas pelo professorado, provavelmente porque eles recebem uma formação deficiente durante a graduação, além das condições de trabalho desanimadoras às quais são submetidos. Obras inovadoras requerem tempo de leitura e reflexão e formação teórica e metodológica suficientes para lidar com as questões que os livros sugerem e solicitam, condições nem sempre propiciadas aos docentes dos ensinos fundamental e médio. No que se refere à formação das professoras e dos professores que atuam na educação básica, Bagno aponta que estrutura dos cursos de Letras e Pedagogia, sejam os ofertados por faculdades privadas ou os ofertados em universidades públicas, apresentam diversos problemas, principalmente em relação ao modo como são ministrados os conteúdos relacionados aos conhecimentos linguísticos, através de disciplinas de Linguística que, comumente, estão desconectadas com as teorias de ensino-aprendizagem de língua materna que embasam as políticas de educação linguística. Portanto, o autor acredita que essa situação pode explicar o porquê de a maioria das professoras escolherem as coleções de livros mais conservadoras, pois, como já mencionado anteriormente, essas coleções são menos desafiadoras. Bagno (2013) também discorre sobre o fato de parte dos professores sair dos cursos de licenciatura diplomados, porém sem conhecimentos básicos de Linguística. Ele acredita que isso acontece porque a maioria das pessoas que procuram os cursos de licenciatura possui baixos níveis de letramento e práticas restritas de leitura e escrita, por conta de suas origens e condições de vida. O problema central, segundo Bagno, reside no fato de que as pessoas que 24 atuam nos cursos superiores de Letras e Pedagogia ignoram esta situação e despejam sobre essas estudantes teorias sofisticadas que exigem alto nível de abstração e reflexão. O acolhimento de pessoas oriundas de camadas sociais mais desfavorecidas na universidade é um ponto positivo, porém, é imprescindível que a elas seja oferecida a oportunidade de se familiarizarem com o mundo acadêmico para que tenham condições de assimilar os conteúdos que serão ministrados posteriormente e exercer sua profissão de forma adequada. Bagno (2008) declara que a escola que pretende oferecer uma educação linguística a seu alunado deve desconstruir os discursos de discriminação que envolvem as relações entre língua e sociedade através do reconhecimento da heterogeneidade da língua, assim como da quebra de preconceitos, mitos e juízos de valor arraigados em nossa sociedade. Conforme se verifica a partir destas considerações, o impacto causado pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) sobre a produção de livros didáticos foi positivo, pois diversos aspectos neles contidos foram alterados em consonância com os avanços das pesquisas em linguística e educação. Contudo, alguns aspectos continuam marcados pelo senso comum e pela confusão conceitual e teórica, como, por exemplo, o uso do conceito de “informalidade”. Após análises desses materiais, Bagno afirma que esse termo é utilizado em uma tentativa “politicamente correta” de referência à noção de erro. O falseamento da realidade também é um dos problemas encontrados nas coleções de livros didáticos. Estes materiais propõem como objeto de ensino um modelo ideal e ilusório de LP, que não reflete o PB culto realmente produzido pelos falantes e que reprime qualquer tentativa de validação de variantes inovadoras, mesmo as que representam usos há muito tempo incorporados à gramática do PB. Faraco (2008) denomina esse modelo de norma curta, em contraste com a prestigiada norma culta. Os primeiros estudos dialetológicos realizados em nosso país na primeira metade do século XX analisaram o PB dividindo-o em duas categorias estanques e antagônicas: uma “língua culta”, utilizada pelas camadas urbanas mais letradas, e uma “língua popular”, empregada pelos falantes com pouca ou nenhuma escolaridade, isto é, uma boa parte da população (BAGNO, 2013). A simples existência desses elementos dicotômicos revela a crença na ilusão de que as elites urbanas letradas falavam uma variedade linguística muito próxima ao modelo prescrito pelos compêndios gramaticais normativos, baseados nos usos literários dos mais reconhecidos autores lusitanos do Romantismo. Entretanto, alguns anos depois, um grupo de pesquisadores comprometidos com a pesquisa linguística mostrou que a realidade dos grupos mais letrados de nossa sociedade não é bem essa. 25 O Projeto Norma Urbana Oral Culta (NURC), lançado ao final dos anos 1960, permitiu que se conhecesse a língua efetivamente falada pelos indivíduos rotulados de cultos, isto é, pessoas com ensino superior completo e antecedentes socioculturais urbanos. Os trabalhos realizados pelo NURC conseguiram revelar que existe uma norma culta brasileira, empregada pelas camadas socioeconomicamente dominantes, que se organiza através de princípios e regras gramaticais próprios e totalmente diferentes daqueles descritos e prescritos pelas gramáticas normativas; portanto, ninguém no Brasil fala e/ou escreve exclusiva e completamente a “língua culta” defendida pelas ideologias conservadoras. Bagno (2013) ressalta que é necessário compreender que o corpus do Projeto NURC talvez não mais represente tão fielmente as variedades urbanas prestigiadas, porque as entrevistas que o compõem foram coletadas ao longo dos anos 1970. Isto significa que, durante esses quase 50 anos, houve inúmeras mudanças na configuração socioeconômica, política e cultural de nosso país, como, por exemplo, a ascensão de uma nova classe média resultante da maior redução de pobreza observada nos últimos dez anos. Para que possamos visualizar melhor esta situação, vejamos o exemplo a seguir: a construção [para + mim + infinitivo] era alvo de estigma social pelas camadas mais elevadas de nossa sociedade e raramente aparecia nas amostras coletadas pelos pesquisadores do NURC. Contudo, no início dos anos 1990, essa construção já começou a ser verificada na fala de indivíduos pertencentes a camadas mais elevadas (BAGNO, 2013). Os linguistas brasileiros, além de reconhecer a necessidade de diferenciação entre norma-padrão (a “língua correta”, segundo os gramáticos normativos) e norma culta (os usos linguísticos efetivamente empregados pelos falantes mais letrados), concluíram que a norma- padrão não se encontra dentro do espectro das variedades linguísticas reais porque não se trata de uma variedade linguística. A norma-padrão é, pois, um construto sociocultural, um modelo que os conservadores insistem em dizer que devemos atingir. Vale ressaltar que, na pesquisa sociolinguística, “[...] só podemos rotular um modo de falar como língua, variedade ou dialeto quando é possível identificar empiricamente um grupo social que de fato fale essa língua, variedade ou dialeto” (BAGNO, 2013, p. 61). Um dos grandes problemas que enfrentamos no ensino de língua materna em nosso país é a rigidez das abordagens de variação linguística encontrada nos livros didáticos. A norma urbana culta, como qualquer variedade, encontra-se em constantes transformações, portanto, essas abordagens deveriam também sofrer transformações no sentido de proporcionarem tratamento adequado a essas normas urbanas que, cada vez mais, representam falantes até então estigmatizados. Outro grande problema verificado nos livros didáticos analisados por Bagno 26 (2013) é a associação forçada entre norma culta/norma-padrão e formalidade. Bagno explica que, ao utilizarmos o termo “norma culta/norma-padrão”, o que se coloca em jogo é um dos tipos de variação, no caso, a variação social, que está ligada a variáveis como nível socioeconômico, grau de escolarização, idade, sexo, entre outros. A formalidade e a informalidade da língua, por sua vez, estão ligadas à variação estilística, isto é, “às modulações que cada pessoa faz em sua produção verbal de acordo com o contexto de interação em que se encontra” (BAGNO, 2013; CAMACHO, 2011). Portanto, é imprescindível que entendamos que a variação social diz respeito a grupos sociais e a comunidades de fala, enquanto a variação estilística diz respeito ao uso individual. Um ensino de língua materna que esteja de fato comprometido com uma boa educação linguística buscaria, assim, levar o aprendiz a entrar em contato com a norma-padrão, não condenando as variedades do PB, mas confrontando o que é pregado por este conjunto de regras consideradas da língua padrão e o que é realmente produzido pelos falantes mais escolarizados, ou pelos menos escolarizados, em diversos contextos de interação verbal. É nesse sentido que a pesquisa descrita neste trabalho procurou examinar a forma como ocorre a percepção de variação em ambiente escolar e como as professoras alfabetizadoras concebem a relação entre este fenômeno e o ensino de LP, com o propósito de comparar a concepção que as docentes explicitam ter e o tratamento dado à variação em suas aulas de alfabetização, em um contexto escolar favorável à presença de variantes dialetais. 27 2 ASPECTOS METODOLÓGICOS Para a realização desta pesquisa de campo, lançaríamos mão, a priori, da complementaridade entre as abordagens quantitativa e qualitativa, assim como fazem Freitas (1996) e Salomão-Conchalo (2015) em pesquisas sobre a variação linguística em contexto escolar. Tal escolha justifica-se pelo fato de que, conforme Souza e Kerbauy (2017, p. 34), os propósitos das pesquisas realizadas no âmbito das ciências humanas, especialmente em se tratando da pesquisa em educação, dificilmente podem ser alcançados por meio de uma única abordagem, devido à complexidade de seus objetivos. Ao contrário do que muitos pesquisadores acreditam, a confluência de metodologia qualitativa de base etnográfica e quantitativa não representa um dadaísmo metodológico (SALOMÃO-CONCHALO, 2015). Antes, a relação entre a postura quantitativa e a qualitativa é concebida como possível e desejável, principalmente quando se trata de pesquisas sociolinguísticas, conforme defende Cardoso (2013). Frente a limitações impostas para a coleta, que serão mais bem esclarecidas adiante, obtivemos pouquíssimos dados, tornando inviável seu tratamento estatístico. Logo, dada à escassez de dados, priorizamos neste trabalho a análise qualitativa mediante a observação participante e a realização de entrevista semiestruturada. 2.1. O universo de investigação A escolha do universo de investigação, sobre o qual discorreremos a seguir, deu-se, principalmente, por duas razões: (i) na cidade de Palmares Paulista, conhecida por abrigar trabalhadores do Norte e do Nordeste que vêm ao noroeste paulista buscando melhores oportunidades de emprego, encontram-se pessoas originárias de diversos lugares, com seus diferentes falares; e (ii) as escolas – as duas únicas instituições de EF do município – localizam- se em áreas bem distintas e, consequentemente, atendem públicos de diferentes backgrounds socioeconômicos. 28 2.1.1. Palmares Paulista: lugar de encontro entre diferentes falares2 Antônio Theodoro de Carvalho, residente e proprietário da Fazenda Boa Vista do Generoso, fez, ao final do século XIX, uma doação de aproximadamente quarenta alqueires de terras, construindo, nesse espaço, em outubro de 1899, uma capela em louvor à Nossa Senhora da Conceição do Cordão Escuro. Como não havia nenhuma povoação nas redondezas, foi promovida, principalmente por Antônio, a concentração de casas ao redor da capela, dando origem à Vila de Cordão Escuro. A partir da criação, ainda no fim do século XIX, do trecho da Estrada Boiadeira do Taboado, que ligava Jaboticabal a São José do Rio Preto, Cordão Escuro passou a constituir importante ponto de escoadouro para a produção de café. Nessa época, conforme explica Oliveira (2018), a cultura cafeeira começava a experimentar seu apogeu em terras brasileiras, principalmente nos estados de Minas Gerais e São Paulo. Deste modo, graças aos benefícios da estrada, a Vila se desenvolveu a ponto de ser elevada, no ano de 1907, a Distrito pertencente ao município de Monte Alto e passou a se chamar Palmares. Em março de 1935, foi transferido ao município de Catanduva e, outra vez, em novembro de 1944, ao município de Ariranha, agora se chamando Jaguateí. Tornou-se Palmares Paulista em fevereiro de 1959 e, finalmente, conquistou autonomia político-administrativa no dia 28 de março de 1964. Atualmente, Palmares Paulista possui uma área de 82 km², compreendida entre as fronteiras dos municípios de Paraíso, Catanduva, Pindorama, Ariranha e Pirangi, e população – predominantemente urbana – estimada, no ano de 2020, em 13.486 habitantes. O município, pertencente à Microrregião de Catanduva e à Macrorregião de São José do Rio Preto, dista aproximadamente 410 quilômetros da capital do estado e é conhecido por acolher, em diferentes épocas do ano, muitos trabalhadores, principalmente nordestinos, que oferecem mão de obra relativamente barata para o cultivo da cana de açúcar, trazem consigo suas famílias e compõem boa parte da população palmarense. 2 Todas as informações aqui mencionadas sobre características geográficas e demográficas da cidade de Palmares Paulista foram extraídas dos sites da Prefeitura Municipal e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 29 Figura 2. Localização de Palmares Paulista no mapa do estado de São Paulo Fonte: Wikimedia Commons 2.1.2. As unidades escolares investigadas O trabalho de campo foi desenvolvido em duas escolas públicas localizadas na cidade de Palmares Paulista – SP e administradas pela Divisão Municipal de Educação. Trata-se de escolas de primeiro ciclo do EF destinadas, portanto, a alunos do 1º ao 5º ano. As escolas investigadas pertencem à rede pública do município e localizam-se em áreas opostas da cidade. A escola central, E.M.E.F. Vereador Raul de Carvalho, atende cerca de (400) quatrocentas crianças entre 6 e 11 anos de idade. Está localizada à rua Duque de Caxias, n. 173, no centro da cidade, perto de tradicionais lojas, oficinas automotivas e restaurantes. Por sua vez, a escola periférica, E.M.E.F. Vereador Antônio Humberto Gomieri, localiza-se à rua 7 de setembro, n. 1153, no bairro COHAB II. Atende, também, por volta de (400) quatrocentos estudantes entre 6 e 13 anos de idade. A região da escola está afastada do centro e do comércio mais tradicional, porém, em suas redondezas, encontram-se lojas de roupas, bares, padarias, mercearias e, inclusive, uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Ambas as escolas funcionam em períodos parciais: matutino (das 7h às 12h) e vespertino (das 12h30 às 17h30). A infraestrutura é também semelhante. Os prédios, basicamente, contam com um pátio de tamanho satisfatório para a quantidade de crianças que ali circulam, salas de direção e de coordenação, uma sala de professores, almoxarifados, uma cozinha, lavanderias, uma biblioteca, uma quadra poliesportiva e, aproximadamente, dez salas de aula. São atendidas por volta de quinze turmas nessas instituições, tendo em vista que há três 30 turmas de cada ano. Apesar de antigos, os prédios encontram-se bem conservados. Inclusive, foram reformados e tiveram suas fachadas redesenhadas no ano de 2020. Conforme conversa informal com a secretária municipal de Educação, responsável por tal órgão, as duas escolas recebem a mesma quantidade de verbas e não há distinções em sua gestão. Destaca-se apenas uma diferença principal: a presença, na E.M.E.F. Vereador Raul de Carvalho, de uma sala de Atendimento Educacional Especializado (AEE). Ainda que não tenhamos condições teóricas e metodológicas de mapear divisões sociais de classe, merece destaque a constituição socioeconômica dos bairros Centro e COHAB II: a região mais central ficou reservada para área das casas mais antigas habitadas por famílias mais tradicionais cujos membros são, geralmente, pessoas mais abastadas; contudo, na região mais periférica, que se desenvolveu depois, ao redor da região central, encontram-se casas mais simples habitadas, principalmente, pelos trabalhadores que atuam no comércio local e nas usinas sucroalcooleiras da região. É nesta região que mora boa parte dos migrantes do Norte e do Nordeste que vêm a São Paulo em busca de melhores condições de trabalho e de vida. Como se pode imaginar, a escola que se localiza no centro da cidade recebe alunos de famílias com boas condições socioeconômicas que, na maior parte dos casos, são nativos do estado de São Paulo; a escola que se localiza no bairro periférico, por outro lado, atende crianças de famílias que se encontram em situação de maior vulnerabilidade social e que são, geralmente, de famílias de origem nordestina. 2.1.3. Os sujeitos da pesquisa: crianças e professoras De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o processo de alfabetização, que deve ser o foco da ação pedagógica nos dois primeiros anos do EF, é o responsável por oferecer, aos estudantes, possibilidades de construção de conhecimento por meio da utilização de práticas de linguagem em situações reais de interação. Desta forma, escolhemos trabalhar, no primeiro momento da pesquisa, com estudantes de 1º ano do EF, ou seja, crianças que estavam no início desse aprofundamento de experiências com as linguagens oral e escrita, já iniciadas na família e na educação infantil (BRASIL, 2017). Trata-se, portanto, de aproximadamente (40) quarenta crianças na faixa etária entre 6 e 8 anos, filhas e filhos dos moradores do município, sejam eles nativos ou não. 31 Quadro 1. Quantidade e distribuição dos estudantes por escola ESCOLA DA ZONA PERIFÉRICA ESCOLA DO BAIRRO CENTRAL MENINAS 11 12 MENINOS 10 06 TOTAL 21 18 Fonte: Elaborado pelo autor As fichas de matrícula preenchidas antes do início do ano letivo, que nos forneceriam informações mais precisas sobre a naturalidade das crianças e de seus responsáveis, ficam armazenadas nos arquivos da Divisão Municipal de Educação e não estão disponíveis à consulta, como nos informou a secretária deste órgão. Em busca de contornar esse obstáculo, conversamos com as coordenadoras pedagógicas, que, diferentemente das diretoras administrativas, estão em contato mais direto com as crianças e suas famílias, a fim de que elas pudessem relatar como eram compostas as turmas que investigávamos. Ao longo dos primeiros dias de observação, portanto, por meio de conversas informais, as coordenadoras trataram da configuração das turmas e falaram, ainda que superficialmente, sobre as crianças – daquelas turmas – que haviam nascido em outras regiões do Brasil. Desse modo, constatamos que a escola localizada na zona periférica da cidade de fato atendia mais alunos migrantes do que a escola que se situa no bairro central. Considerando a necessidade de examinar também o papel do professor de sala de aula na percepção de fenômenos variáveis e o tratamento dado à variação linguística em ambiente escolar, incluímos na investigação as professoras responsáveis por essas turmas de alfabetização. São duas professoras, formadas em Pedagogia, que atuam na educação básica há, pelo menos, 10 anos. Nas análises e discussões expostas na seção 4, identificamos as professoras participantes da pesquisa da seguinte forma: PEP refere-se à professora que atua na escola situada à periferia, enquanto PEC faz referência à professora que trabalha na escola do bairro central. Apresentamos, abaixo, um quadro com o resumo das informações que compõem o perfil dessas docentes.3 3 Os dados apresentados no “Quadro 2” foram extraídos das entrevistas realizadas com as professoras. 32 Quadro 2. Dados pessoais, formação e experiência profissional das docentes investigadas Dados pessoais, formação e experiência profissional P1 P2 Idade 36 44 Sexo/gênero Feminino Feminino Cidade e estado em que nasceu Palmares Paulista - SP Palmares Paulista - SP Em que tipo de escola cursou a educação básica? (pública ou privada) Pública Pública Formação de nível médio e ano de conclusão Normal Superior (2001) Magistério (1995) Formação de nível superior e ano de conclusão Licenciatura em Pedagogia (2004) Licenciatura em Pedagogia (1999) Cursou o ensino superior em instituição pública ou privada? Privada Privada Cursou pós-graduação? Sim Sim Tempo de atuação na docência (em anos) 15 24 Fonte: Elaborado pelo autor 2.2. A abordagem qualitativa Conforme Severino (2016), diversas metodologias de pesquisa podem adotar uma abordagem qualitativa, que, por sua vez, faz referência mais a fundamentos epistemológicos do que a especificidades metodológicas propriamente ditas (SEVERINO, 2016). No que se refere ao tratamento de questões educacionais, o uso da abordagem qualitativa consolidou-se em meados dos anos de 1970, após amplos debates metodológicos (VILELA, 2003). De acordo com Vilela (2003), as reflexões que emergiam nesses debates culminaram, por exemplo, na substituição dos grandes questionários pela observação em profundidade e realização de entrevistas, naquele momento, não estruturadas. 33 Acerca da utilização da abordagem qualitativa nos estudos que investigam questões educacionais da atualidade, a autora declara que [...] para se conhecer os fatores relacionados, por exemplo, com o fracasso escolar de um determinado grupo de alunos é igualmente importante a revelação das perspectivas dos alunos, dos seus pais e de seus professores [...]. Nesse processo, parece ser muito mais ampla a forma de se construir os conhecimentos sobre a realidade escolar (VILELA, 2003, p. 460). Nesta pesquisa, valemo-nos dos pressupostos da abordagem qualitativa, pois acreditamos, assim como Freitas (1996) e Vilela (2013), que, para conhecer o universo escolar em toda sua complexidade, a escola deve se tornar ambiente de investigação e, em consequência, fonte direta de dados. Ambas as autoras ainda afirmam que pesquisas que investigam questões educacionais devem dar mais ênfase ao processo que ao produto, isto é, aos caminhos pelos quais se busca compreender as perspectivas dos sujeitos envolvidos na questão investigada. Desse modo, na tentativa de estar em contato mais próximo com a situação investigada em que se constroem as relações cotidianas e de buscar refletir sobre questões que não podem ser aprofundadas apenas por métodos de quantificação, lançamos mão dos pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa etnográfica em sala de aula, com base nos trabalhos de Freitas (1996) e Salomão- Conchalo (2015). 2.2.1. A observação participante A observação participante, um dos procedimentos metodológicos da pesquisa etnográfica, é uma estratégia dos estudos antropológicos – desenvolvida a partir do século XIX e muito empregada, inclusive, por linguistas – cuja preocupação, dentre diversas outras, é a maneira como as pessoas veem a si mesmas, as suas experiências e o mundo que as cerca (ANDRÉ, 2009). Dado que são diferentes as preocupações centrais de etnógrafos e de educadores, tornam-se dispensáveis nos estudos educacionais alguns requisitos da etnografia, especialmente aqueles sugeridos por Wolcott (1988 apud ANDRÉ, 2009), como, por exemplo, o contato com outras culturas, a longa permanência do pesquisador em campo e o uso de categorias sociais amplas na análise dos dados. Entendemos, assim, em consonância ao pensamento de André (2009), que o que se empreende nesta pesquisa é um estudo do tipo etnográfico, e não a 34 perspectiva da etnografia em seu sentido mais estrito. Na tentativa de investigar a sensibilidade de alunos e professoras de turmas de alfabetização a marcas dialetais, bem como o tratamento dado à variação linguística dentro de sala de aula, desenvolvemos um trabalho de campo nas escolas. Esse tipo de trabalho permite que o pesquisador “aproxime-se de pessoas, situações, locais e eventos, mantendo contato direto e prolongado” (ANDRÉ, 2009, p. 26). Dessa forma, buscamos fazer com que as crianças, as professoras e as situações comunicativas fossem observadas em sua manifestação natural e corriqueira. A observação empreendida com esta pesquisa foi realizada quinzenalmente ao longo do ano letivo de 2019, perfazendo o total de (60) sessenta horas-aula em cada escola.4 Além das aulas, acompanhamos, também, alguns momentos extraclasse, como, por exemplo, os intervalos. Leva-se em conta, nesse total, que os primeiros encontros serviram para a familiarização das turmas com a presença do pesquisador, visto que a sua presença em sala de aula poderia inibir o comportamento das crianças, acarretando em pouca ou nenhuma produção linguística interessante à pesquisa. Além disso, tomamos o cuidado de iniciar a observação após transcorrido um mês do início do ano letivo, de modo a garantir a ocorrência de um contato mais efetivo entre os alunos e, deste modo, maior probabilidade de interação linguística entre eles. O trabalho voltou-se, inicialmente, aos alunos do 1º ano do EF. Desenvolvemos a investigação a partir da observação presencial do pesquisador em sala de aula. Para registro deste momento da pesquisa, planejamos realizar anotações, por escrito em diário de campo, dos aspectos relevantes à investigação, como, por exemplo, a reação das crianças e das professoras a possíveis marca dialetais. A observação dos dados foi guiada por questões que representam os principais fatores de análise da pesquisa. Veja-se a seguir: 1) Qual é a idade do aluno que produziu o fenômeno variável? a. seis anos e meio (até sete anos e seis meses) b. mais de seis anos e meio (de seis anos e sete meses até seis anos e onze meses) c. sete anos completos d. sete anos e meio (até sete anos e seis meses 4 A carga horária inicialmente planejada foi definida em função da realização, por parte do pesquisador, de Estágio Curricular Obrigatório em uma das escolas investigadas. O Estágio integra a grade curricular do curso de Licenciatura em Pedagogia, da UNESP/IBILCE. 35 2) Qual é o sexo/gênero do aluno que produziu o fenômeno variável? a. feminino b. masculino 3) Qual é a idade do aluno que percebeu o fenômeno variável? a. seis anos e meio (até sete anos e seis meses) b. mais de seis anos e meio (de seis anos e sete meses até seis anos e onze meses) c. sete anos completos d. sete anos e meio (até sete anos e seis meses) 4) Qual é o sexo/gênero do aluno que percebeu o fenômeno variável? a. feminino b. masculino 5) Qual foi a escola observada? a. escola da região central b. escola da região periférica 6) Qual é a natureza do fenômeno percebido? a. fônica b. lexical c. sintática 7) A qual variedade pertence o fenômeno? a. nordestina (incluindo a região Norte) b. do interior paulista (variedade caipira)5 8) A percepção foi espontânea ou estimulada? a. espontânea b. estimulada pela professora c. estimulada por um colega da sala 5 Utilizamos o termo caipira, sem qualquer conotação pejorativa, para referirmo-nos à variedade do português brasileiro falada na Região Noroeste do estado de São Paulo. Conforme Gonçalves (2012), identificam-se como características do português falado nessa região do interior paulista o alçamento vocálico em contextos de vogais pretônicas mediais [e]~[i] – [o]~[u] (cf. SILVEIRA, 2008), a pronúncia retroflexa do rótico /r/ em coda silábica (cf. CASTRO, 2002) e a redução da sequência [-ndo]~[no] em contextos de gerúndio (cf. FERREIRA, 2010), ainda que este constitua fenômeno bastante produtivo no PB. 36 9) Houve atribuição verbalmente explícita de juízo de valor à variedade? a. não b. sim, houve avaliação positiva (falar legal, bonito, etc.) c. sim, houve avaliação negativa (falar feio, engraçado, etc.) 10) A professora da sala presenciou o fato de percepção do fenômeno variável? a. não b. sim, mas não foi ela quem estimulou a percepção c. sim, e foi ela quem estimulou a percepção 11) Se sim, qual foi a reação da professora diante do fato? a. indiferente (a professora mudou de assunto/tema da aula, por exemplo) b. de correção (indicou uma das formas variáveis como (in)correta) c. de explicação sobre a existência de diferentes modos de falar. As investigações realizadas ao longo do ano de 2019, infelizmente, não resultaram em quantidade significativa de dados.6 Assim, devido à insuficiência de dados coletados até então e às impossibilidades impostas pelas medidas temporárias e emergenciais de prevenção de contágio pelo novo Coronavírus, decidimos, em um segundo momento da pesquisa, complementar os dados com a investigação sobre como as professoras entendem e tratam a variação linguística, especialmente nessa fase de ensino de leitura e escrita, por meio de entrevistas, sobre as quais falaremos a seguir. 2.2.2. A entrevista semiestruturada Como instrumento de coleta de dados, em um segundo momento da pesquisa, utilizamos a entrevista semiestruturada. A opção por esse método se justifica pelo fato de que, conforme Lüdke e André, a entrevista “permite a captação imediata e corrente da informação desejada praticamente com qualquer tipo de informante e sobre os mais variados tópicos” (2014, p. 39 apud MOURA, 2017, p. 62). Nesse mesmo sentido, Moura (2017), com base em Alves-Mazzoti (2002), aponta que, devido a sua natureza interativa, as entrevistas permitem abordar temas mais complexos, que dificilmente seriam trabalhados de forma detalhada por meio de 6 No ano de 2020, devido à pandemia de COVID-19, todas as escolas municipais administradas pela prefeitura de Palmares Paulista interromperam suas atividades presenciais (Decreto nº 25, de 18 de março de 2020), impossibilitando, portanto, que continuássemos com a observação iniciada. 37 questionários. Também Triviños (2009) considera que as entrevistas semiestruturadas podem oferecer aos informantes todos os caminhos possíveis para que a liberdade e espontaneidade desejadas sejam alcançadas, enriquecendo, em razão disso, a investigação. O autor afirma que: Podemos entender por entrevista semi-estruturada, em geral, aquela que parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem respostas do informante (TRIVIÑOS, 2009, p. 146). A entrevista realizada com as docentes que atuam nessas turmas de alfabetização divide- se em duas partes (cf. Apêndice A): na primeira, há perguntas mais gerais sobre informações pessoais, vida escolar, formação acadêmica e histórico de atividade profissional das entrevistadas; na segunda, encontram-se perguntas relacionadas ao trabalho com a LP. Realizamo-las por meio de videochamadas, via Google Meet e, com a anuência das participantes, conseguimos gravá-las. Uma das vantagens da gravação, de acordo com Moura (2017), reside no fato de que este procedimento possibilita, de forma prática, posteriores consultas aos dados coletados. As entrevistas ocorreram entre os meses de novembro a dezembro de 2020. Cada entrevista durou cerca de (50) minutos e foi realizada em apenas uma sessão com cada professora. Durante a conversa, procuramos garantir que as respostas fossem dadas naturalmente, logo após as perguntas, para evitar possíveis consultas a dados da internet, bem como não permitimos que a chamada fosse interrompida. Vale ressaltar que, na intenção de deixá-las mais confortáveis, pedimos para que elas escolhessem a data e o horário em que nossos encontros aconteceriam. Enfatizamos, também, que a transmissão de imagens via webcam, por parte delas, não era obrigatória. Ambas as professoras, entretanto, se sentiram confortáveis e participaram das entrevistas com a câmera ligada. 2.3. A abordagem quantitativa: dificuldades enfrentadas Ainda que a pesquisa seja majoritariamente qualitativa, de base etnográfica, no primeiro momento deste estudo, planejávamos desenvolver uma análise quantitativa, nos moldes da pesquisa variacionista (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006 [1968]; LABOV, 2008 [1972]), de modo a apresentar resultados que se sustentassem na quantificação. Contudo, deparamo-nos, logo de início, com certas dificuldades na pesquisa de campo. 38 O plano inicial consistia em acompanhar as turmas durante as aulas e nos momentos extraclasse, nos espaços sociais do colégio, como os intervalos. A intenção era analisar o comportamento das professoras e dos alunos, tanto dentro da sala de aula quanto nos momentos de interação entre as crianças, sem que sua professora estivesse por perto, e, a posteriori, organizar a amostra e analisar os dados, a fim de dar continuidade aos passos da pesquisa sociolinguística, como, por exemplo, a seleção de ocorrências e a definição do envelope de variação (TARALLO, 1990). Entretanto, conforme apontado anteriormente, a representatividade do corpus não se mostrou suficiente para que pudéssemos referendar os dados quantitativamente. Dentre os obstáculos que enfrentamos na pesquisa de campo, destacam-se dois. O primeiro deles foi decorrente das limitações às quais o método nos submete. Como dito anteriormente, na primeira fase da pesquisa, planejávamos apenas observar as aulas presencialmente e realizar as anotações de pesquisa em um diário de campo. Contudo, encontramos dificuldade em acompanhar os momentos de interação, principalmente entre as crianças, inviabilizando, consequentemente, o registro de possíveis variáveis dialetais que por ventura surgissem ao longo das conversações. Embora tenham sido observados até mesmo momentos extraclasse, poucas conversas puderam ser claramente ouvidas e registradas. Limitados, também, foram os momentos de interação com a professora. Na maior parte do tempo em que estivemos em sala de aula, foi possível perceber que são poucos os momentos em que voz é dada aos alunos durante a aula, ou seja, criam-se, geralmente, poucos espaços em que as crianças teriam oportunidade de se expressar livremente. Acreditamos, porém, com base em Silva (2011), que essa situação se deve ao fato de que a presença do pesquisador nas salas possa ter provocado inibição das crianças, ainda que tenhamos tomado todo o cuidado necessário. De acordo com os pressupostos da Sociolinguística Variacionista (LABOV, 2008 [1972]), o pesquisador deve participar, de forma direta, dos momentos de interação entre os membros da comunidade investigada. Contudo, essa participação é capaz de fazer com que seja perturbada a naturalidade dos eventos. É o chamado paradoxo do observador, sobre o qual discorremos anteriormente. O segundo obstáculo enfrentado tem relação direta com nosso objeto de pesquisa. Constatamos, após pouco tempo de observação, que as crianças pertencentes às famílias dos trabalhadores migrantes eram as que menos falavam em público, principalmente durante as aulas. Muitas vezes, ao pedir que um destes alunos respondesse à alguma pergunta que havia feito, as professoras, principalmente a PEP, tinham de insistir muito. 39 Pelas expressões faciais dessas crianças, percebíamos sua timidez e a vergonha que sentiam ao ter de falar para todos os colegas. As crianças identificadas como não nativas falavam pouco e em baixo tom, a ponto de ser inaudível para quem não estava ao seu redor. Infelizmente, essa situação seguiu de forma exatamente semelhante até o momento em que tivemos de suspender a observação. 2.4. Considerações éticas Em cumprimento às exigências éticas relacionadas a pesquisas que, de algum modo, envolvem seres humanos, solicitamos, primeiramente, autorização formal à Divisão Municipal de Educação de Palmares Paulista e, depois, às diretoras administrativas das instituições de ensino envolvidas na pesquisa, via cartas de anuência, para que o desenvolvimento do trabalho nessas escolas fosse possível. As coordenadoras pedagógicas, ainda que não tenham assinado quaisquer documentos, participaram de todas as reuniões eventualmente necessárias e não se opuseram, em momento algum, à realização do estudo. Contatamos, também, as duas professoras e os responsáveis pelas crianças envolvidas neste estudo para solicitar que assinassem aos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido de participação na pesquisa. Ressaltamos que os materiais coletados serviram exclusivamente aos propósitos específicos da pesquisa e que os participantes tiveram resguardada sua identificação quanto à autoria dos dados. Convém ressaltar ainda que o projeto de pesquisa7 foi devidamente submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do IBILCE/UNESP, tendo sido aprovado no dia 11 de dezembro de 2019, sob parecer de n. 3.804.363, bem como o Relatório Parcial, no dia 30 de junho de 2020, sob parecer de n. 4.145.664. A emenda que tratou da inclusão das professoras como novos sujeitos de pesquisa8 e da realização de entrevistas semiestruturadas obteve sua aprovação junto ao CEP no dia 29 de outubro de 2020, sob parecer de n. 4.370.750. 7 N. do CAAE: 24022719.7.0000.5466 8 Vale relembrar que as docentes responsáveis pela turma, teoricamente, já participavam da pesquisa, conforme consta na subseção “2.1.3. Os sujeitos da pesquisa: crianças e professoras”. 40 3 DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS DADOS Os resultados das análises empreendidas neste estudo são expostos em duas subseções. Na primeira, apresentam-se os resultados da observação realizada nas escolas e, na segunda, analisam-se os dados coletados por meio das entrevistas realizadas com as professoras que participaram da pesquisa. Antes de apresentar esses resultados, porém, são expostas as características gerais dos grupos de alunos e professores estudados. 3.1. Características gerais dos grupos investigados Conforme mencionamos em seções anteriores, participaram do estudo duas professoras, do sexo feminino, formadas em licenciatura em Pedagogia, com idade média de 40 anos. Ambas as docentes, assim como suas famílias, são naturais do estado de São Paulo (mais precisamente, do noroeste paulista), cursaram toda a educação básica em escolas públicas da região e são, hoje, funcionárias públicas efetivas. Desde quando começaram a prestar serviços para o município, elas atuam exclusivamente em salas de aula. Graduaram-se em uma instituição privada e cursaram, no início dos anos 2000, pós-graduação lato sensu em Psicopedagogia, desta vez, em diferentes instituições privadas de ensino superior a distância. PEP, a professora que atua na escola da zona periférica, tem 36 anos de idade e possui formação mais recente. Tendo concluído o curso Normal Superior no ano de 2001 e se graduado em Pedagogia no ano de 2004, possui 15 anos de atuação docente. Trabalha, também, com turmas de 5º ano do EF em uma escola privada na cidade de Catanduva. PEC, a professora que leciona na escola do bairro central, conta com maior experiência em relação ao tempo de exercício da profissão. Concluiu o curso de Magistério em 1995 e graduou-se em Pedagogia em 1999, após já ter conquistado uma vaga no magistério público da cidade, em 1997. Aos 44 anos, totaliza, portanto, 24 anos de experiência de sala de aula. Durante todos esses anos, dedicou-se exclusivamente às escolas palmarenses, nunca tendo lecionado em outra cidade; contudo, experimentou, durante alguns anos de sua carreira, a docência no ensino superior, tendo atuado em cursos de graduação em licenciatura em Pedagogia, na modalidade a distância. 41 No que se refere aos estudantes, contamos ao todo com 39 crianças. Destas, 21 pertenciam à escola localizada na periferia, que chamaremos de EP. As outras 18 crianças faziam parte da escola situada no centro da cidade, cuja identificação será EC. Na turma da EP, havia 11 meninas e 10 meninos. Boa parte dessas crianças são filhas de pessoas com pouca escolarização. Nas reuniões que realizamos no início do estudo, a fim de explicar aos responsáveis o intuito da pesquisa, a maioria deles chegava após o horário de início, justificando que haviam se atrasado por conta do trabalho e de questões domésticas. São trabalhadores que atuam, principalmente, nas lavouras de cana ou como funcionários nas usinas sucroalcooleiras da região, servindo, geralmente, como mão de obra barata. Conforme a coordenadora pedagógica e a professora, nesta turma, assim como em toda a escola, a quantidade de estudantes nascidos, principalmente, na Bahia e/ou pertencentes a famílias nordestinas é alta. Por sua vez, a turma da EC contava com 12 meninas e 6 meninos. A situação socioeconômica das famílias atendidas por esta escola é um pouco diferente. Ainda que sejam, também, trabalhadores, os responsáveis pelas crianças dessa turma pertencem a famílias mais tradicionais e antigas da cidade e gozam, portanto, de certos privilégios. Vale ressaltar que a maior parte dessas famílias são nativas do estado de São Paulo. Trabalham, em sua maioria, no serviço público e nas empresas e no comércio da cidade vizinha, Catanduva. De acordo com a coordenadora pedagógica, a escola atende um número significativo de alunos que vieram de outros estados; contudo, na turma que investigamos, conforme nos informou a professora, pouquíssimos eram os alunos de origem nordestina ou nortista. No entanto, não fomos capazes de precisar essa quantidade, pois, como exposto anteriormente, as fichas de matrícula – documento em que consta a naturalidade do estudante e de seus responsáveis – ficam arquivadas na Divisão Municipal de Educação e, infelizmente, não puderam ser consultadas. As professoras, contudo, acabam tomando conhecimento sobre a origem de boa parte das crianças por meio de conversas com seus responsáveis, em razão do contato frequente entre escola-família. Embora não se saiba com precisão qual a renda das famílias às quais essas crianças pertencem, percebemos que a diferença socioeconômica, apesar de sutil, é fator importante para a constituição da clientela das escolas. Ao chegar na cidade, os trabalhadores migrantes, população economicamente menos favorecida, instalam-se, em sua maioria, em bairros mais afastados da área central. Dessa forma, já era esperado que encontrássemos, na EP, maior número de alunos cujas famílias vieram a São Paulo em busca de melhores condições de vida. Por outro lado, na EC, a 42 maioria dos estudantes da turma investigada é paulista, ocasionando, portanto, pouco contato entre os diferentes falares. Outros fatores extralinguísticos, como idade e sexo/gênero, por exemplo, não se mostraram relevantes como aspectos distintivos entre as escolas. 3.2. Os resultados da observação em campo Ao final das 60 horas-aula de observação, foi possível registrar três (03) ocorrências de momentos de percepção/avaliação de variáveis linguísticas, que se encontram transcritas abaixo. (01) [PEP está corrigindo alguns exercícios em sua mesa enquanto as crianças preparam-se para o intervalo. Há muito barulho, pois muitos falam ao mesmo tempo] A1: Que hora é a aula de ingrês? PEP: Não é ingrê:::s! É inglê:::s! (02) [PEP está fazendo chamada oral do alfabeto até o momento em que A2 pronuncia “fê” em vez de “éfe”. Prontamente, PEP gritou] PEP: É “é:::fe”! (03) [PEC está tentando deixar o ambiente mais íntimo e descontraído, perguntando às crianças como havia sido o dia anterior, como elas haviam acordado naquela manhã e quem as havia ajudado no dever de casa. Eis que uma das alunas, A3, responde] A3: Foi meu painho que me ajudou. [Percebem-se, ao fundo, risos contidos de um grupo de alunos; a professora, contudo, não reage] No quadro abaixo, encontram-se as três ocorrências que registramos tabuladas de acordo com os fatores de análise da pesquisa (cf. “2.2.1. A observação participante”).9 9 Nas colunas das ocorrências (01) e (02), espaços relativos aos fatores “4” e “5” encontram-se sombreados porque tais fenômenos não foram percebidos pelos estudantes, mas pela professora. 43 Quadro 3. Classificação das ocorrências de acordo com os fatores de análise FATORES DE ANÁLISE Ocorrência (01) Ocorrência (02) Ocorrência (03) 1. Idade da criança que produziu o fenômeno 06 07 07 2. Sexo/gênero da criança que produziu o fenômeno Feminino Masculino Feminino 3. Naturalidade da criança que produziu o fenômeno SP BA SP (família de origem nordestina) 4. Idade da criança que percebeu o fenômeno Não identificada (tratava-se de um grupo de alunos) 5. Sexo/gênero da criança que percebeu Masculino 6. Escola observada Periférica Periférica Central 7. Natureza do fenômeno Fônica Fônica Lexical 8. Tipo de percepção (espontânea/estimulada) Estimulada (foi a professora quem percebeu) Estimulada (foi a professora quem percebeu) Espontânea 9. Houve exteriorização de atribuição de valor à variedade? (e.g.: “é feio!” ou “está errado!”) Não Não Não 10. A professora presenciou o fato? Sim Sim Sim 11. Qual a reação da professora diante do fato? (indiferente/de correção/de explicação) De correção De correção Indiferente Fonte: Elaborado pelo autor. 44 Indubitavelmente, sabemos que, de acordo com os pressupostos teórico-metodológicos da Teoria da Variação e Mudança Linguísticas (TARALLO, 1990; WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006 [1968]. LABOV, 2008 [1972]), esses dados são incipientes visto que não chegam a compor amostra de tamanho considerável para posterior generalização dos resultados. Contudo, uma análise interpretativa dessas ocorrências é capaz de elucidar pontos sobre o tratamento da variação linguística em sala de aula. O fenômeno variável identificado na ocorrência (01) foi produzido por uma menina de 6 anos de idade, nascida no estado de São Paulo e aluna da escola que se encontra na periferia. Esse fenômeno não está restrito a uma ou outra variedade do PB. Segundo Costa (2007, p. 1), trata-se, na verdade, de um processo fonológico recorrente em nossa língua e que persiste na fala de determinadas comunidades. Segundo a terminologia de Câmara Jr. (1970), chamamos de rotacismo o fenômeno situado no plano fônico que consiste na alternância entre as consoantes líquidas lateral alveolar /l/ e vibrante fraca ou tepe /r/, em contextos de ataque complexo e coda silábica. A percepção da variante partiu da professora da turma que, apesar de não atribuir juízo de valor a ela, gritou com a aluna que a produziu, indicando qual forma deveria substituir a que havia sido produzida. Os dados em (02) e (03), por sua vez, não ocorreram na mesma escola, mas se unem pelo fato de que ambas as crianças envolvidas na produção das variáveis em questão são de origem nordestina. Em (02), o item foi produzido por um menino de 7 anos de idade, nascido no estado da Bahia e aluno da escola que se localiza na periferia. Esse fenômeno situa-se, também, no campo fônico e pertence à variedade nordestina. Trata-se, basicamente, de um modo de nomear as letras de nosso alfabeto. A professora foi quem percebeu a produção da variável e prontamente reagiu, com tom de voz mais elevado, no intuito de corrigir o aluno. O fenômeno presente na ocorrência (03), no entanto, foi produzido na escola central por uma aluna de 7 anos de idade, nascida no estado de São Paulo, porém, de família nordestina. Situa-se nos campos lexical e fônico e pertence à variedade nordestina. Apesar de ter nascido em terras paulistas, a aluna emprega a forma carinhosa de tratamento painho, característica dos falares nordestinos, especialmente do falar baiano. Vale ressaltar que há uma tendência ao abandono dessa forma por parte de falantes do sexo/gênero masculino da cidade Salvador, como observa Oliveira (2014), pois uma grande parcela desses indivíduos considera termos infantis as formas “painho” e “mainha”. A percepção, assim, foi espontânea e não houve intervenção da professora, que presenciou o fato e percebeu, nitidamente, que havia um grupo de alunos rindo de uma colega. 45 Mediante esses resultados, embora incipientes e não quantificáveis, pode-se considerar que a presença das variantes em sala de aula aparenta não ser muito bem-vinda. Sejam marcas dialetais ou traços graduais (BORTONI-RICARDO, 2004) – isto é, itens presentes na fala de quase todos os brasileiros –, esses fenômenos, em sua maioria, foram automaticamente taxados de erro ao ocorrerem na presença das professoras. No que se refere à sensibilidade das crianças a marcas dialetais, observamos que, em boa parte das situações, as docentes haviam reagido imediatamente, estimulando a percepção dos estudantes de forma inevitável. Com base numa visão normativista, as professoras alfabetizadoras assumem certa postura corretiva perante a heterogeneidade da língua que ensinam. Ademais, depois de terem imediatamente corrigido as variantes produzidas pelas crianças, as docentes não promoveram discussões sobre o tema, a fim de (re)significar crenças sobre o fenômeno e considerando, de fato, a diversidade sociolinguística no ensino da LP. 3.3. Análise e interpretação das entrevistas Apresentaremos, a seguir, a análise dos dados coletados na entrevista semiestruturada. Após terem sido analisados, os dados resultaram em três categorias, a saber, as crenças sobre: (i) a variação linguística e seu lugar no ambiente escolar; (ii) o seu próprio modo de falar e o de outros; e, por fim, (iii) a função do ensino de LP e o que deve ser priorizado, com esse ensino, em sala de aula. 3.3.1. Concebendo variação linguística Diante dos objetivos aos quais nos propusemos, decidimos, primeiramente, investigar o que as professoras entendiam por variação linguística, visto que suas crenças acerca desse conceito podem trazer implicações em sua prática docente. Em sua resposta à pergunta “Como você definiria variação linguística?”, PEP afirma A variação linguística é algo que a gente tem que valorizar e a gente tem que respeitar, né... principalmente por causa do sotaque (...) nessa variação entra o sotaque, entra a regionalidade, que é difícil trabalhar (...) envolve muito também, nessa questão da variação linguística, a questão do convívio familiar, 46 né, não adianta... tem certas palavras que a gente ouve que eu já tentei corrigir muito, mas que hoje eu paro e falo “perai”... então eu apresento o que seria correto, mas a criança nem sempre muda Em sua fala, PEP primeiramente declara que a variação linguística é algo que deve ser valorizado e respeitado e destaca, como elementos representativos de variação, o sotaque e o que ela chama de regionalidade, que, acreditamos, estar relacionado às expressões típicas dos falares de outras variedades do português brasileiro; contudo, a docente nos alerta sobre a dificuldade encontrada no que se refere ao trabalho com a variação em sala de aula. Logo em seguida, a professora trata da dificuldade em corrigir “certas palavras que a gente ouve”, relacionando-a à questão do convívio familiar. Portanto, ao se referir a fenômenos de variação, ainda que não de forma explicitamente metalinguística, a professora revela uma postura corretiva em sua prática docente. Ao declarar que apresenta “o que seria correto, mas a criança nem sempre muda”, PEP segue revelando que, subjacente à sua crença sobre variação, está a crença de que existe, em se tratando de língua, “certo” e “errado”. Apesar de dizer, em um primeiro momento, que a variação deve ser objeto de valor e de respeito, há momentos em que ela enxerga esse fenômeno como algo passível de correção. Contudo, conforme expõe Bagno (2002), do ponto de vista científico, “[...] não existe erro em língua, o que existe é variação e mudança, e a variação e a mudança não são “acidentes de percurso”: muito pelo contrário, elas são constitutivas da natureza de todas as línguas humanas vivas” (pp. 71-72). O trecho de fala de PEP transcrito abaixo reforça a visão de que variação é o que foge à norma culta e está restrita a determinados grupos sociais. Eu trabalho muito com a variação linguística, né, porque tenho bastante aluno (...) como eu falei no início, a nossa cidade recebe bastante gente de fora, né A professora estabelece uma divisão entre as escolas em que leciona. De acordo com ela, na escola da rede privada, poucos são os fenômenos de variação que se podem perceber, reafirmando, assim, a visão de que a variação linguística está presente, principalmente, na fala de indivíduos de classe social mais baixa. Vejamos No particular, [a variação linguística] quase que não existe, viu... é bem difícil encontrar ali 47 PEP ainda expôs a seguinte situação Outro dia uma aluninha virou pra mim e falou assim “tia, o fulano falou que come macaxeira, tia...ai credo... que que é isso?” (...) aí eu disse “acredito que você já tenha comido também”...aí, né...escrevi a palavra na lousa... fomos procurar no dicionário, né... aí digitei no Google pra eles verem, né, pra ouvir Apesar de demonstrar uma postura de correção frente à variação em sala de aula, PEP demonstra que valoriza, em seu trabalho, a variação, especialmente quando se trata de expressões lexicais típicas e bem conhecidas de determinados falares, como macaxeira. A segunda professora entrevistada, PEC, em resposta à pergunta realizada, disse Ah::: acredito que seja os dialetos, né... aqueles que vêm de outros lugares, né... a forma como eles falam... é muito interessante essa questão Ao se referir a dialetos e a pessoas que vêm de outras regiões, a professora evidencia que concebe a variação linguística como um fenômeno relacionado, principalmente, a aspectos regionais e geográficos. Declara, ainda, sobre a situação dialetal da cidade a nossa cidade é uma cidade com bastantes migrantes, então a gente recebe aqui baianos, paraibanos, né... muitos nordestinos (...) eles também ensinam muita coisa pra nós... eu me recordo que eu trabalhava no EJA e nunca tinha ouvido a expressão boi ralado... foi interessante saber que boi ralado era carne moída, né Ao afirmar que “eles também ensinam muita coisa pra nós”, PEC demonstra conceber essa troca linguística – e, por excelência, cultural – como algo positivo. No trecho abaixo, vemos que, assim como PEP, PEC declara que gosta de valorizar o modo como pessoas de outras regiões falam e contam histórias, por exemplo. Eles [os nordestinos] chamam a gente de “paulistas do brejo” porque a gente arrasta o “r”, né... e é interessante ensinar isso para as crianças e ensinar a respeitar, principalmente (...) eu gosto de valorizar a forma como eles falam, como eles pronunciam, a forma como eles contam histórias pra gente Em se tratando do tratamento dado aos fenômenos de variação, ao contrário de PEP, PEC afirma que A forma como eles falam arrastado, palavras diferentes da nossa, pronúncia do alfabeto (...) não tem como corrigir porque é a forma deles falarem, né 48 A docente busca, portanto, mostrar aos estudantes que esses fenômenos não estão errados e que estão relacionados, principalmente, com aspectos culturais e regionais. A respeito das relações entre língua e identidade, Bortoni-Ricardo (2004) afirma que “toda variedade regional ou falar é, antes de tudo, um instrumento identitário, isto é, um recurso que confere identidade a um grupo social” (p. 33). Diante do exposto, as docentes demonstram ter conhecimento básico sobre a existência de variedades linguísticas, especialmente as regionais, sobre conceitos relacionados à variação linguística e sobre a importância de se reconhecer, respeitar e abordar o fenômeno da variação em sala de aula. Entretanto, apesar de demonstrarem estar buscando tratar o fenômeno da variação de forma respeitosa, essa preocupação parece não estar refletida na atitude corretiva tomada por elas diante da ocorrência de variação em sala de aula, como evidenciaram os dados. Reveladas as crenças das alfabetizadoras em relação à variação linguística, apresentaremos, na categoria analisada a seguir, como elas enxergam diferentes modos de falar e como acreditam que deva ser o comportamento do professor em relação a sua própria fala. 3.3.2. Crenças sobre os modos de falar Antes de tratarmos da análise desta categoria, frisamos que compartilhamos, em consonância a Aragão (1999), a visão de que “as múltiplas variações observadas no sistema linguístico ocasionadas por fatores vários dão uma ideia multicolorida da língua, realçando seu caráter maleável, diversificado [...]” (p. 14). Isto posto, continuemos a análise. No que se refere à pergunta “Você acredita que haja modos de falar melhores e/ou mais bonitos que outros?”, ambas as professoras disseram não acreditar na superioridade de um falar em relação a outro. A esse respeito, Bortoni-Ricardo (2004) afirma que “essas crenças sobre a superioridade de uma variedade ou falar sobre os demais é um dos mitos que se arraigam na cultura brasileira” (p. 33). Contudo, a partir das respostas sobre como deveria se portar, em relação à língua, uma professora em sala de aula, notamos que, de certa forma, essa crença se manifesta, sim, presente. Vejamos, primeiro, o que diz PEP Eu viso muito o meu... voltar o meu vocábulo pra maneira mais correta possível... é... procuro sempre empregar o plural... é... procuro sempre, claro, 49 trabalhar de uma forma... como eu posso dizer... a minha sala de aula, os meus alunos, de certa forma, eles não são meu grupo de amigos... eles estão ali pra aprender... então eu procuro trabalhar de uma forma mais direta com eles, porém, respeitando todas as normas gramaticais da língua portuguesa, né Notamos que PEP defende que, em sala de aula, o professor precisa fazer uso da língua culta e respeitar as “normas gramaticais” do português. A docente revela que está sempre monitorando sua fala, pois, de acordo com ela, é como deve agir em sala de aula. Além disso, ela segue acrescentando que as crianças estão ali para aprender e, po