UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO CAMPUS DE BAURU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO MIDIÁTICA PSYTRANCE: O RITORNELO DA ALEGRIA COMUNICAÇÃO. DESIGN SONORO. MÚSICA ELETRÔNICA. Sabrina Maia Lemos Bauru 2006 Bauru 2006 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP/Campus de Bauru, como requisito à obtenção do título de Mestre em Comunicação. Orientadora: Profa. Dra. Solange Bigal PSYTRANCE: O RITORNELO DA ALEGRIA COMUNICAÇÃO. DESIGN SONORO. MÚSICA ELETRÔNICA. Sabrina Maia Lemos Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP/Campus de Bauru, como requisito à obtenção do título de Mestre em Comunicação. Sabrina Maia Lemos PSYTRANCE: O RITORNELO DA ALEGRIA F O L H A D E A P R O V A Ç Ã O Banca Examinadora: Orientadora Profa. Dra. Solange Bigal Titular Profa. Dra. Adriana da Rosa Amaral Titular Profa. Dr. Hélio Rebello Cardoso Júnior Bauru, 15 de Setembro de 2006. COMUNICAÇÃO. DESIGN SONORO. MÚSICA ELETRÔNICA. LEMOS, Sabrina Maia. Psytrance: o ritornelo da alegria. Comunicação. Design Sonoro. Música Eletrônica. 2006. 67f. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, UNESP, Bauru, 2006. resumo Uma escuta contemplativa dos acontecimentos sonoros do Psychedelic Trance desde a gênese da música eletrônica, as afecções bergoni- anas nietzscheanas e espinosanas se desdobram em Psy- trance, uma composição afectivo-sonora da mídia eletrônica. palavras-chave abstract A contemplative audition of the sonorous events of the Psychedelic Trance. By the texture of Deleuze and Guatarri meaning, since the eletronic music genesis, the Bergson, Psytrance, an key-words ..5... 31 32 40 47 S U M Á R I O.1.C o n v e r s a ç õ e s. 07 M a r t e a u s a n s M a î t r e 10 11 14 17 25 53 56S í n t e s e 59B i b l i o g r a f i a A s t r i x / A r t c o r e / A t c o r e / H o m m e g a R e c o r d s / 2 0 0 4 53 54 55 6. 2.D o n a s c i m e n t o : c o s m o s , f i l o s o f i a e m ú s i c a e l e t r ô n i c a C o n c e r t d e b r u i t s 4 ’ 3 3 ’ ’ S t e r n k l a n g3.P s y t r a n c e c o m o m ú s i c a d a a f i r m a ç ã o D e c o r e s , i c a r o s e d e l í r i o s O r i t o r n e l o s o n o r o - p s i c o d é l i c o E l e c t r o - é t i c a : a r a d i â n c i a d a a l e g r i a S y s t e m N i p e l / S t e a l t h e r o b o t / D e e p i n t o m a t t e r / N o g a R e c o r d s / 2 0 0 6 D j s e t D a t u r a / - - - - - - / P a n g e a P s y / C h r o m a n o v a / 2 0 0 6 C o r p u s ( a r t i s t / t r a c k / a l b u m / l a b e l / y e a r )4. .07 c o n v e r s a ç õ e sC plásticas sonoras que, se por um lado nasceram e se concretizaram da criação de processos midiáticos de composição sintética, por outro, estenderam-se para além deles. A Música Eletrônica Viva 1 Psychedelic Trance, Essa disposição é claramente manifesta nos praticantes ou adeptos ao Psy: sorrisos largos, roupas coloridas, leveza, descontração, peles tatuadas, piercings, drogas. As festas acontecem na natureza, ao amanhecer, na transição noite/dia. E o ambiente Psy chama-se rave - do inglês delirar. A apoteose Psychedelic Trance em que o culto a alegria vem acentuando-se como um elemento constitutivo de comunicação cada vez mais raro, o que é perfeitamente visível nas mídias eletrônicas, impressas e digitais, independentemente do público no target e ontologia modernas, quando atualiza especialmente o pensamento de Bergson, Nietzsche e Espinosa, dentre outros. Ora, se o Psy é realmente uma maneira de expressar o afeto compositivo - como o próprio movimento propõe - e, ainda, se essa expressão devém esse encontro termos, supõe-se que: 1. Aquilo que o Psy estimula contemplar é o próprio delírio da matéria vibrante; 2. O ritornelo, no Psy, aparece como uma versão sonoro-psicodélica; 3. O Psy, em suas latitude e longitude, está conectado especialmente à afecção compositiva e ao afecto de alegria; Psychedelic Trance parece estimular, não como solução de um problema, evidentemente, mas como um exercício permanente de relações midiáticas compositivas, quem 1 Chamada também de Música Eletroacústica em tempo real, a Música Eletrônica Viva é uma estética implicada à compactação de chips e transistores, criada a partir do uso de aparelhos e sintetizadores portáteis nos mais variados espaços de contemplação que não apenas os dos concertos e das salas. .08 células do corpo e tem poder curador. Os seguintes pensadores e suas respectivas posturas conceituais, propõem uma atitude criativa em lugar de uma metodologia musicais possíveis, no caso contemporâneo. Exatamente por isso, o andamento da pesquisa promete três movimentos principais: 1) testar a afecção bergsoniana, nietzscheana e espinosana na gênese da música eletrônica ancestral ao Psytrance; 2) desdobrar essas conexões até as variáveis sonoras do Psytrance conexões, agora, como audição do corpus sonoro. A disposição afecto-compositiva do Psytrance como um todo abre o precedente para que se possa escolher as músicas: Artcore, Steal the robot e um fragmento de um mix da Chromanova, respectivamente, dos produtores Astrix, System Nipel e do dj set Datura, como corpus de análise. A análise, por sua vez, deve se apresentar como o relato de algo como pura contemplação das causas sonoras do Psy. Causa de si, diria Espinosa. .09 .10 c a p í t u l oC 1D o n a s c i m e n t o : c o s m o s , f i l o s o f i a e m ú s i c a e l e t r ô n i c a Concert de bruits ...não mais com o jogo dos números e os segundos do metrônomo, mas com os pedaços de tempo arrancados do cosmos 2 Em meio às reverberações decompositivas das bombas atômicas e às descobertas iminentes de transplantes, lasers, DNA e audíveis os primeiros sons de uma pan-música 3 : a Música Eletrônica. Com samples 4 de vagões, maquinistas e pára-choques da estação de Batignolles, orquestras, piano, vozes humanas e de locomotivas, ressoava pelas ondas de rádio do dia 5 de Outubro de 1948 o Concert de bruits, o primeiro tratado sonoro de uma nova métodos de composição empregados pela vertente francesa possibilitassem uma “transmutação atômica da matéria sonora”, nada na música concreta provinha de máquinas ou osciladores sintéticos como na vertente alemã, chamada de Elektronische Musik ou Música Eletrônica Pura. de algo incontestavelmente novo que não negasse a linguagem musical clássica, uma evolução sem negação, um rompimento sem sons. 2 apud MENEZES, 1996, p. 20). 3 Termo usado por Flô Menezes para designar a música concreta francesa, onde todo e qualquer evento sonoro, desde um ruído, um estalo ou um vento a notas Idem, p. 18). 4 Amostragens sonoras. .11 O ruído, assim como o silêncio, teria se tornado uma obsessão para os músicos eletrônicos. A precariedade dos aparelhos os obrigava a conviver com os constantes murmúrios e sussurros imanentes às máquinas de captação e de reprodução musicais dos estúdios de rádio. Para além de simples fenômenos físicos, de uma perturbação na transmissão da mensagem, os compositores eletrônicos viam nos ruídos uma potência única, acontecimentos sonoros que tendiam para momentos-fronteiras 5 passagem ou o desvelamento de uma força anônima com a qual poderiam compor se a dominassem a partir de sua constituição mais elementar, caso conseguissem acessar as vizinhanças transitórias daquilo que nos remete às singulares manifestações da vida em sua ora mais granulares ora mais líquidas, ora mais secas ora mais suaves. Por mais que tais estruturas fossem uma espécie de ruído e se apresentassem como tal, diria Henri Pousseur que se tratava, sobretudo, de “ruídos que penetram a luz do espírito criador” 6, de ruídos que poderiam nos conduzir a regiões inimagináveis de uma escuta consciente dos segredos mais escondidos do cosmos. Concomitantemente à elaboração de Traité des objets musicaux 7, em 1965, nas localidades próximas de Princeton, EUA, Robert Wilson e Arno Penzias captariam, através de uma antena de rádio, um ruído extremamente fraco (mas extremamente persistente) de uma supernova, Robert e Arno encontraram uma perturbação ruidosa homogênea, quase-silenciosa, que provinha de todas as partes do Universo: o som-ruído do nascimento do cosmos. Concert de bruits (“Concerto de ruídos”) e outras tantas composições da radiação cósmica de fundo universal. 5 PINHAS, Richard. De Nietzsche ao Techno – Manifesto pelas máquinas-pensamento vindouras, para G. Deleuze e J.P. Manganaro net/interna.php?id=153&secao=esquizofonia>. Acesso em: 20 dez. 2005. 6 POUSSEUR, Henri. Estrutura do novo material eletrônico in MENEZES, Flô. Música Eletroacústica. São Paulo, Edusp, 1996. 7 .12 .13 contemplativa da Antiguidade, quase mítica, na qual a causa ou a fonte sonora de um ruído é sempre omitida: voz sem dono, verbo véu, falar-lhes por anos, no mais absoluto silêncio, como quem ouvia uma espécie de “revelação”. Emprestando o véu de Pitágoras, matemáticas divinas, mas propôs, com as suas técnicas de audição e de estruturação sonoras, um outro modo de se ouvir a voz da continuidade do tempo cósmico, um outro modo de se compor com esse continuum vibrante que é o mundo dos sons, daquilo que é ao mesmo tempo permanente e variável, impenetrável e moldável. Os novos processos de composição diziam não mais de um ouvido absoluto, mas de um ouvido impossível 8 : tornar audíveis forças e materialidades que não são audíveis por si mesmas, compor com as mínimas vibrações ou estremecimentos da matéria nas 9 nascidos nela e sermos parte dela: um contraponto no texto polifônico do Universo. Os ruídos fósseis com seus marulhos estiveram 10. Tornar audível, compor ou tornar visível são membranas de uma mesma problematização: criar aparelhos de captura ou de síntese por onde o cosmos possa passar. não poderiam ser abandonados em favor de uma linguagem estritamente sintética, levou-o a uma oposição categórica frente a Elektronische Musik 8 Ler em: ¿ Por qué nosotros, no-músicos? de Gilles Deleuze. 9 A música das órbitas dos astros celestiais, que a matemática poderia tornar audível. 10 Mundo como Vontade e Representação, vol. I, p. 309 (apud NIETZSCHE, 1983, p. 15). .14 passavam de truques de engenheiros “... quando muito bons para sonorizar desenhos animados” 11 . E não era mentira! Estávamos prestes a adentrar a era ecstasyante Hz, modulações, arpeggios e osciladores. Divergências todos os seus morfones e fonogênios cromáticos e contínuos, teria sido “um DJ techno meio século à frente de seu tempo” (PALOMBINI, 1999). 4’33’’ ... eliminar todos os pensamentos que separam a música da vida 12 Os concertos de música concreta, eletroacústica e mesmo os de eletrônica pura haviam se tornado repetitivos e pouco criativos devido ao seu caráter única e exclusivamente reprodutivo das composições. Era preciso, então, que músico e música se libertassem da inscrição rígida dos gravadores e dos auto-falantes, que eles fossem, ambos, acontecimentos sonoros na malha vibracional que se desenrolava: “operadores de eventualidades”, tal qual queria Boulez 13 eliminar os pensamentos que separavam a música da vida e o som do silêncio. 11 12 John Cage (1987, p. 116). 13 cunho improvisador. .15 promoveriam mudanças radicais tanto nos modos de se compor quanto nos modos de se ouvir música, mesmo porque o próprio quanta energéticos, da potência sonora nas suas forças de sensação e de conceito, a ciência constata em suas leis e funções, em que um elemento não aparece sem que outro, 14. oriental, é o som mais elementar da vida. Foi assim que Cage, depois de muitos anos de estudo e experimentações eletroacústicas, compôs 4’33’’ (quatro minutos e trinta e três segundos), uma composição em três movimentos de pausas. seguir as páginas da partitura e para encerrar um movimento e começar outro, fechando e abrindo a tampa do piano. 4’33’’ não era uma composição esvaziada, pois mesmo o silêncio tem seus próprios burburinhos e passageiros. No instante da criação dessa obra (1951), Cage a teria ouvido na Câmara Anecóica do laboratório de Ampex, hermeticamente isolada de qualquer ruído: 4’33’’, na sua concepção mais elementar, era uma composição dos ruídos insilenciáveis do próprio corpo, das altas freqüências do cérebro e das baixas freqüências dos pulsos do coração 15 , apenas alternâncias elétricas e cadência rítmica bombeando a vida, e nada mais. inquieta de uma matéria vibrante, e nunca ausência ou vazio. O que é o som senão uma espécie de silêncio, e uma espécie muito rara? 16 14 Sobre isso ver em “Do Caos ao Cérebro”, em 15 ANTUNES, Jorge. O Silêncio 16 uma espécie muito rara”. .16 noturnos? Talvez fossem essas coisas que Cage tivesse tentado nos dizer: que para além ou para aquém de qualquer coisa, de qualquer pensamento, de qualquer som, há sempre um novo universo prestes a se tornar sensível. fosse entoada, sempre haveria algo para preenchê-la ou atravessá-la. Mais interessante é que, contrariamente às composições comuns, em 4’33’’ o som é que é uma espécie de silêncio ou de intervalo. O espelho sonoro de Cage o levaria, então, a pensar que os intervalos aos ouvidos, mas à mente” 17. repetição e de saturação de uma molécula sonora até as suas camadas mais profundas: fazer dos “sussurros da duração acusmática” uma zona singular de intersecção de forças. Para Murray Schafer (apud ANTUNES, idem),“o silêncio é a característica mais cheia de possibilidades da música. Mesmo quando ele cai depois de um som, reverbera com a matéria deste e essa reverberação continua até no instante das suas criações, que para além de uma atividade mental ou intelectual, a música é para ser pensada com o corpo, sentida como os orientais a sentem. A ressonância que a música eletrônica fez pulsar entre os ouvidos oriental e ocidental, fez com que os músicos (eletrônicos) revissem toda a estrutura musical do ocidente. O tempo musical passaria a ser entendido à maneira de uma duração ou de uma pulsação interna imanente a cada composição ou ser sonoro, e a memória, como uma memória absoluta, cósmica, aquela mesma de que fala Deleuze (2005, p. 115) invocando Foucault. 17 CAGE (ibidem). .17 hecceidades 18 , individualidades plenas das quais nada se pode acrescentar ou subtrair, tempo anônimo ou no mans land capaz de conter todos os presentes vivos do cosmos. Uma hecceidade é uma coletividade de moléculas, hecceidade é um máximo de vozes para o menor dos intervalos, um máximo de vibrações para o menor dos silêncios. nosso próprio corpo, êthos tenda de dança. Se o próprio contexto de nascimento da música eletrônica viria a descobrir a potência sonora de tais forças plásticas, certamente seria somente com a música pós-eletroacústica, com o Psytrance, em especial, que tal plasticidade alcançaria toda a sua singularidade, como se verá mais adiante. Marteau sans Maître ... cordas em atrito, pinceladas ou percutidas; instrumentos de sopro de forma cônica ou cilíndrica, soados com palheta ou bocal; madeira, metal e pele (...) 19 Sintetizar e cristalizar toda uma zoologia sonora a partir da síntese aditiva de freqüências puras: assim nasce a Elektronische Musik francesa, a escola de Música Eletrônica Pura não pensava em termos de matéria e de forma sonoras, mas em termos de material e 18 Conceito que Duns Scot cria a partir de Haec ou de uma substância, pois tudo nele se dá a partir de relações de movimento e de repouso, de choque ou de encontro de moléculas que designam forças ou acontecimentos. Ver em DELEUZE, 1997, p. 47. 19 BOULEZ (MENEZES, idem, p. 94). .18 nas suas constituições mais atômicas e imperceptíveis. Pela primeira vez a estrutura de um som se tornaria parte da estrutura da obra segundo os seus elementos constitutivos: pela primeira vez pôde se falar em compor um som, em sintetizá-lo segundo timbres, A Música Eletrônica Pura e seus aparelhos sintéticos puderam proporcionar aos músicos uma verdadeira emancipação tanto dos intérpretes quanto da escritura instrumental, para eles limitante. A obsessão pela síntese de um continuum timbrístico nas séries encontrou na Música Eletrônica Pura o apogeu da sua realização, mas não sem críticas e resistências, como a de Robert Beyer (idem, p. 36), que teria abandonado o Nordwestdeutscher Rundfunk por não concordar com a atitude criadora dos serialistas: “no fundo os compositores seriais não se preocupam de modo algum com o material, nem com o velho, nem com o novo; eles se preocupam, isto sim, somente com o que se deixa racionalizar e calcular, com as proporções e as séries.” Se era verdade que os músicos alemães tinham em suas mãos um novo material para trabalhar novas sonoridades, é bem intelectual: contas e mais contas numéricas que, na grande maioria das vezes, nem chegariam a se tornar perceptíveis (música para músicos). começaria a encontrar outros caminhos, libertando-se do seu purismo inicial e envolvendo-se com outras estéticas e processos de composição que não somente o da síntese de ondas senoidais: é quando nasce a Música Eletroacústica. .19 adiante com a Música Eletrônica Viva, na qual os encontros de composição e de contemplação da música eletrônica se transformariam em verdadeiros rituais entoados nos templos e altares abertos da Natureza. Cada vez mais se caminhava para uma supressão das oposições entre as escolas em favor de um continuum musical de vozes, todos os povos, passaria a ser o elo principal entre mais variadas vertentes da música eletrônica. Em Visage (1961), Luciano Berio fará desaparecer os liames entre voz e som sintético, e em Kontakte em um continuum entre microtempo e macrotempo musicais. 01 / Kontakte .20 A potência de canto, coro ou coral do cosmos passaria então a atravessar as composições tanto pelas linhas ou dobras atômicas das ondas sonoras (microestruturas, microtempos) quanto pelo desenrolar temporal de toda a obra em sua formalidade (macroestruturas, macrotempos): são os antecessores dos desenhos sonoros da música eletrônica do século seguinte, implicada aos servem para cartografar ou sintetizar acontecimentos em qualquer linguagem, mas na música eletrônica, principalmente a partir dos sintetizadores (déc. 70), esses verbos sonoros se tornariam as próprias imagens ou aparições dos processos de composição: os parâmetros ou as unidades compositivas de cada ser sonoro (fabrica). Os seres da música, a partir da música eletrônica, seriam entendidos como os átomos de faraday: “centros de forças” em que precisavam se tornar sensíveis, de modo que de nada adiantaria se o novo material eletrônico, com toda a complexidade de desenhos sonoros que ele proporcionava, não pudesse ser trabalhado ao nível da nossa percepção auditiva. da duração sonoras sob uma nova perspectiva, a dizer, bergsoniana. Diria Deleuze que os seres da música são como os viventes de 20 Quando se adentra essa continuidade movente bergsoniana, tudo passa pela compreensão do movimento e do estremecimento da O desenho da contemplação bergsoniana, tal qual o desenho da música eletrônica é um movimento rítmico de contração e ser-tempo, de onde os viventes derivam como centros de indeterminação, prisma ou ponto cinético de desvio que, como uma rocha ou um mineral, é qualquer 20 DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 245. coisa de memória, lembrança, silêncio e muitas vozes 21. Na dimensão ontológica do tempo, em dermos deleuzeanos, há somente uma multiplicidade de durações, modos de ser no tempo, ritmos de existência pelos quais as coisas diferem, por natureza, de si mesmas e das outras coisas, onde tudo muda e permanece ao mesmo tempo. Vê-se porque os alemães direcionaram seus estudos para a síntese do material e da força do som. Boulez viu-se diante da ele teria se deparado com uma questão muito similar a de Bergson: a da existência de uma duração ou de um tempo absoluto (não pulsado). Tal duração, no contexto musical bouleziano, não se referia mais aquele relativo aos tempi entre si ou à permanência de certos andamentos, mas tratava-se, sobretudo, de um tempo liberado de medidas cadenciais, métricas ou logarítmicas. A música seria ou partículas inaudíveis: é como se procurássemos a vida para além da linguagem, e a duração e o tempo para além da música. 21 Qualquer rocha ou mineral e, especialmente os cristais (que transformam vibrações sonoras em ondas eletromagnéticas, gerando campos elétricos), possuem uma espécie de memória sonora. Ao ouvir - nado instante esses cristais acumulam tanta energia que tudo tende a colapsar, a caminhar em marcha à ré, fazendo com que as cargas retornem aos seus pontos -.21 02 / .22 Curiosamente, meio século depois de Boulez, a própria cosmomogia usaria dessa mesma imagem como força poética para das ondas de luz no espaço, sugere que o Universo é um tipo de éter molecular, ao contrário do que supõe a teoria da relatividade einsteineana, em sua estrutura de campos elétricos e magnéticos oscilantes. Haveria então, sons quânticos e equivalentes acústicos para os acontecimentos luminosos do espaço-tempo 22: nada que um artista, e especialmente um músico, não pudesse sentir ou intuir. Boulez teria descoberto que aquilo que se soa em uma música não é nunca uma forma ou uma nota, mas, diríamos, é antes um estado ou um desenho sonoro de mudanças de tensão ou de energia das partículas. Tais mudanças dizem, propriamente, de um tempo não pulsado que o compositor deve fazer audível a partir do seu material sonoro: para adentrá-lo, somente com poesia. Boulez, que se encantava com o modo de como tal tempo se incorporava nas vozes de um poema, tinha para si que os melhores textos sobre o poder da música eram de poetas. René Char teria sido o personagem do primeiro encontro da música bouleziana com a poesia, que levaria o próprio Boulez a compor Marteau sans Maître em nove peças divididas em três ciclos, com linhas rítmicas e melódicas que atravessariam toda a composição, em uma espécie de eletrônicos, para além do ruído e do silêncio, em Pierre Boulez tudo gravitava em torno do tempo. Não se poderia deixar de notar, pensamento musical. 22 2006. .23 para uma massa de forças (caos) onde pulsa toda nota e todo silêncio, plano mágico de quebras e rachaduras com o qual se poderia compor com o cosmos ou compor um cosmos, desta feita, sonoro. metamorfose ou as ondulações de zoé 23 . Como um fenômeno primordial, somente a música pode fazer-nos compreender a potência da arte dionisíaca, aquela que é diretamente apreendida de maneira inteligível, imediata e legitimamente estética 24: Aion ou a verdade representativa, é somente no sentido de que ela não pode representar outra coisa senão a si mesma, sendo, portanto, auto-referente que queiramos lhe impor. apud LYNCH, 1998): “Melhor não é a palavra mesma, mas o tom, a intensidade, a modulação, o ritmo com o qual uma série de palavras é 23 Dionísio, o deus da metamorfose, é a imagem arquetípica de zoé vida indeterminada, indestrutível, sem limites ou contor- nos, à qual se oporia bios, uma vida contornada Zoé - dade”. 24 NIETZSCHE, 1983, p. 21. .24 Procurar o tempo não pulsado que insiste no pulsado, ouvir o ritmo que se desprende das cadências e das métricas, tornar visível ou audível uma duração absoluta que está para além daquilo que é visto ou ouvido e que, no entanto, não pode se fazer sensível senão pela linguagem. Na medida em que nada pode representar a música, ela não pode ser entendida senão como uma linguagem dos afectos ou do enlace dos sentimentos “Canções são pensamentos, cantados com a respiração quando as pessoas são movidas por grandes forças & quando a tristeza” 25 e palavras, notas e letras. E se as discussões bergsonianas e mesmo nietzscheanas encontravam-se condensadas nos encontros que e seus processos abertos e labirínticos, bem como do desvelamento de uma potência afectiva e compositiva da música eletrônica: o encontro com Espinosa. 25 Retirado de Technicians of the Sacred .25 Sternklang ...durante um verão cálido e tépido, sob um céu iluminado pelas estrelas e, de preferência, no período de lua cheia 26 Os modos de ser no tempo, os ritmos de existência, as intensidades e as pulsações internas dos seres vivos da música eletrônica Eletroacústica em tempo real. A compactação de chips e transistores tornou possíveis performances eletroacústicas e eletrônicas cada espaços de contemplação, proporcionando aos compositores eletrônicos ambientações sonoras múltiplas. A chegada dos sintetizadores fez nascer um tipo de design manchas e rasgos sonoros, circuitos e modulações das distorções e fronteiras tensionantes, tal qual em Mikrophonie I 26 apud MOTTA, 1992). 03 / Mikrophonie I (1964) .26 Em termos deleuzeanos, retomando questões foucaultianas, pode-se chamar esse design sonoro de diagrama: aquele que uma potência ou vontade de poder sonoro no enlace dos dados de novas forças, o que quer dizer novos modos de sentir. A síntese das forças sonoras dava à música eletrônica o poder de adentrar os segredos mais sutis das microvibrações e dos microintervalos do material sonoro, estendendo-se para além dele: “trabalhar no interior de materiais muito limitados e integrar aí apud Deleuze, 1997a, p. 160). A música eletrônica, a partir melodias genealógicas de uma constelação de coexistências como uma variação contínua das forças: o labirinto. As composições arte da penumbra 27. Tal qual Dioniso, mas não sem Espinosa, a música eletrônica O tempo ontológico, tal qual para o pensamento bergsoniano, ou ainda a força, o poder e o afecto, tal qual para o pensamento 27 Idem, p. 281. .27 de pensamentos. música que se despontava. A musicologia acadêmica ou clássica não poderia mais dar conta das novas questões levantadas pelas se fazia necessária para entendê-la, uma “outra literatura sobre o ritmo que passe as métricas e os compassos e nos explique ritmos irregulares, micro-intervalos, novas articulações rítmicas. Não há, nem nunca houve, ‘ciências musicais’; há sim uma explicação da 28. ou atividade dos corpos da música e do pensamento: plano imanente de composições diagramáticas ou geométricas que só pode ser cartografado a partir dos afectos e dos devires que o atravessam, a partir das relações de velocidade e lentidão, movimento e repouso das partículas ou moléculas que nele insistem ou transitam. A partir da Música Eletrônica Viva ou eletronic live, cada vez mais os seres da música estariam comprometidos a afectos de luz e de temperatura, mais à maneira dos animais e das aves canoras do que dos compositores e freqüentadores de concertos: o canto ao Sol, a música do entardecer ou a canção noturna. Aos poucos e intensamente, a profundidade intelectual da dita “música dos civilizados” academia, pulsando sob outras vontades e poderes, composições e prolongamentos. 28 .28 Techno, o House, o Electro e o próprio Trance do contexto da racionalidade intelectual na qual a música eletrônica teria nascido, trariam consigo uma certa qualidade e quantidade de gestos e passos, linhas e dobras sintéticas implicadas em certas atmosferas de contemplação mais ou menos estelares, mais ou menos doces, animais, velozes ou lentas. Cada vertente operará, assim, com um regime de luz de “cores” sonoras distintas, com um modo pelo qual se poderia existir com mais ou menos intensidade, com mais ou menos energia: é como se cada uma delas pudesse O próprio nascimento da música eletrônica, bem como as discussões ontológicas que a afetam e que são afetadas por ela, traz o resgate da potência da música ocidental para o transe, para a adoração e para o êxtase, potência essa abundante na música sacra ou nas músicas elementar, tribal ou xamânica originárias. 04 / constelação de Sírius .29.29 Sternklang ou “Som das Estrelas” (1971), talvez a composição precursora do Psytrance (apud MOTTA, 1992), Sternklang trouxe para a música eletrônica o desenho de “uma celebração pública da harmonia, com cinco pessoas que circulam entre eles carregando tochas incandescentes, pessoas estas que, esporadicamente, entoam nomes de constelações estelares”. Psychedelic Trance ou Psytrance poderia devolver à música eletrônica, dita dionisíaca e cósmica, labiríntica e estética, o templo aberto da Natureza por onde as variações de duração e de intensidade das dobras sonoras passariam a engendrar afectos compositivos, vivos e cristalizados nos devires que o Solaris Um dos maiores festivais de Psytrance do Brasil .29.30 .29.31 c a p í t u l oC 2P s y t r a n c e c o m o m ú s i c a d a a f i r m a ç ã o .29 De cores, icaros e delírios A sensação vibra...29 que o Sol ou o dia, enquanto hecceidades ou individualidades plenas, de luz própria, nasçam das profundezas da Terra, do canto dos turbilhão de forças que são seduzidas e captadas na singularidade de um nascimento, bem como ainda as paixões que tal vida nova é capaz de despertar, em seus desdobramentos. Tudo o que nasce toma para si: empresta, arranca, conserva e transmuta os elementos dos quais procede. Sedução e traição: positivamente de si próprio 30. Se não pode haver outro epicentro primitivo para o Psy senão aquele mesmo onde se encontra a sua causa movente, isso não exclui a possibilidade de escutarmos nele as ressonâncias das descobertas dos seus antepassados sonoros. Tais ressonâncias não se referem às estéticas musicais em si, mas se referem, propriamente, às latências que lá existem, aos modos de existência lá implicados. Psytrance 29 DELEUZE, 2004, p. 271. 30 O processo de diferenciação ou de atualização do ser, o seu dinamismo (mesmidade e diferença, unidade e multiplicidade), a que se refere Deleuze com Berg- son, onde o ser “não procura fora de si um outro ou uma força de mediação porque sua diferença nasce do seu próprio núcleo, da ‘força interna explosiva que a vida carrega em si mesma’” (HARDT, 1996, p. 44). .32 .29 atualiza especialmente o pensamento de Bergson, Nietzsche e Espinosa, dentre outros. Ora, se o Psy é realmente uma maneira de expressar um afecto compositivo quem é que nele e por ele e quais matemáticas se servem dele como tal. Qualquer coisa, diria Deleuze (s/d, pp. 09-10), “é tanto isto como aquilo ou qualquer coisa de mais complicado, consoante as acontecimento Psytrance, viu-se apoderada por forças e deuses outros além daqueles dos quais teria nascido. De um sopro de paixão do homem para consigo mesmo, o Psy se a mídia eletrônica com uma estética sonoro-singular de contemplação do cosmos. No início dos anos 80, nas raves 31 promovidas em Goa, ponto de encontro de israelenses, freaks, músicos, yogîs, amantes da 32 encontraria, na ilha indiana paradisíaca, uma celebração pública de harmonia 31 “Delírio”, da língua inglesa. As raves, outdoor parties Acid House, em um período em que o raves eletrônica com uma nova droga: o Ecstasy ou MDMA (3,4-methylenedioxy-methamphetamine), conhecida como “a droga do amor”, ou ainda como aquela que é “capaz de abrir os portais para a alma”. As origens latinas da palavra remetem ao verbo delirare = pref. de (fora de) + lira (sulco de arado), designando uma alucinação, uma exaltação ou um excesso de paixão da alma ou do espírito. “Um lavrador vai a seu campo no tempo da semeadura para o arar, preparar as sementeiras. Faz um comprido sulco, raso e largo, com o facão do arado; e depois volta fazendo outro, e outro, muitos mais, todos cuidadosamente paralelos entre si, para facilitar o lançamento das sementes de um e outro lado das alamedas... Mas a calma do sol da tarde age-lhe misteriosamente na alma, e ele se segundo Simão de Miranda, pelo verbo delirar, imagem essa, inclusive, muito próxima (afectivamente) daquilo que entenderemos, aqui, por delírio. Disponível 32 Goa Trance, na origem. .33 .29 Sternklang germens sonoros do Psytrance e, entorpecendo-se, sonha com o liame sonoro que percorre o Universo, “engendrando dragões de fogo, cavalos alados, gigantes monstruosos” 33 e louva-deuses cibernéticos: “não é o sonho da razão o que engendra monstros, mas a racionalidade do insone” 34. inerentes ao próprio código sonoro-sintético. No entanto, a sua forte percussão tribal-sintética 35, aliada a toda uma multiplicidade consciência mágica, levando a batida psicodélica ao “centro do mundo” e de lá trazendo parte da matéria-prima que lhe comporia. Suas variações de pulso, durações e alongamentos periódicos do p. 120), é onde está, por excelência, o “verdadeiro centro de gravidade do homem”, aquele mesmo tão caro a Nietzsche. Etimologicamente, psicodélico quer dizer “aquilo que torna manifesta a alma ou o espírito” 36, enquanto o vocábulo trance remete ao “transe” mesmo das moléculas sonoras em suas danças alucinadas. A palavra psicodélico, apesar de se referir aqui a uma hippie-rock dos anos 60 e 70, e ainda tantas outras manifestações artísticas do 37, o LSD 38 e o próprio Ecstasy, 33 Hume (apud DELEUZE, 2001, p. 13), a propósito da fantasia delirante do fundo do espírito. 34 Ferrater Mora (2000, p. 656), a respeito da síntese do pensamento deleuzeano. 35 Geralmente bastante acelerada, acima de 130 bpm’s (batidas por minuto) a 4/4, originalmente. 36 Formada pelos verbetes psiché (alma ou espírito) + delos (manifestação, evidência). 37 38 Ácido lisérgico ou “doce”, como é docemente chamado. .34 .29 06 / Oversoul Aldous Huxley, inspirado principalmente pela mescalina 39, formula a palavra ao se referir aos alucinógenos em geral, amplamente Nas próprias palavras do criador do termo em questão (apud ADAIME, p. 09), o psicodelismo é uma estética que nasce de uma aspiração humana de “explorar, transformar e controlar o mecanismo de seu próprio espírito e, assim, alargar o campo de sua experiência do Universo” 40. Ainda a propósito do LSD, uma das drogas que teria inspirado Osmond em suas declarações a respeito da psicodelia, Hofmann (apud ULRICH) encerraria um simpósio, em comemoração ao seu 100° aniversário, com uma declaração apaixonada a respeito daquilo que a sua “criança” 41 poderia desvelar àqueles que a ela se submetessem: “somos seres da luz. Isto não 39 Derivada do cactus mexicano Peiote, sintetizada por Ernst Spath, em 1919. 40 Grifo nosso. 41 Tal qual o próprio Hofmann se referia ao LSD, criação sua. .35 .29 Implicado no próprio nascimento do movimento psicodélico, o Psychedelic Trance deve ser caracterizado e pensado como tal: uma viagem sonora capaz de nos colocar em contato com as forças cósmicas, com o “som-luz resplandecente a toda creação” 42. Dos feiticeiros-sonhadores astecas aos místicos do deserto, adentrar tais forças é sempre contemplar o universo de uma matéria vibrante, bergsoniana, a origem da intuição? “E o que é essa emoção criativa, senão precisamente uma Memória cósmica, que atualiza todos movimento da criação?” (DELEUZE apud HARDT, ibidem, p. 54). Indissociável desse desenho ou dessa “paixão da alma”, o Psychedelic Trance assim celebra o seu próprio estatuto: avançando ou avançar dançando, diria Goa Gil, o guru do Psytrance, ao encontro do “Espírito Cósmico”. Claro que nem toda diversidade, nem todas as contaminações próprias a toda coisa viva e nem toda produção sonoro-sintética dita psicodélica trazem, consigo um desenho tão singular 43 no Full On enteógeno, criado em 1978 por um grupo de etnobotânicos 44 45: apud LIMA). E na Terra Encantada sobre a qual somos convidados a habitar quando adentramos o terreno fértil das divindades xamânicas, os enteógenos podem ser ditos as folhas mesmas, os ramos, 42 do cosmos de Jesus. 43 Resumidamente, pode-se dizer que o Psy tem, no mínimo, três subvertentes: o Full On, a mais enérgica e dançante; o Progressive, mais tranqüila e menos osci- lante que o Full On e o Dark que, como o próprio nome sugere, constitui-se de sons mais tenebrosos, menos coloridos. 44 45 Neologismo criado a partir da palavra grega entheos (Deus dentro). .36 .29 as sementes, os líquidos, as seivas, os próprios espíritos da Natureza que põem-se a falar com os homens pelos icaros 46 que lhe são conferidos: (...) Ouvirás minha voz de serpente deslizar em seu ouvido. Verás minha luz sem a vir através dos sentidos... e meu calor te seguirá para além do frio e será parte de ti, (...) 47 Assim os psiconautas 48 chamariam o mix enteógeno/psicodélico: enteodélico, em síntese, os “lapsos divinos” dos enteógenos e as “experiências cósmicas” dos psicodélicos. Ora, não se pode pensar o Psytrance sem encontrar nele ecos e reverberações nos enteodélicos quanto naqueles religiosos dos xamãs ou dos orientais, embora não sem uma certa perversão: “voar para aprisionar os espíritos” 49 , ou voar para libertá-los. Por isso os produtores/djs do Psy serem consagrados como xamãs, bem como os descampados da Natureza, como templos ou chãos sagrados; as raves como um ritual (de dança, de cura); e as produções sonoras como os novos icaros ou cantos de poder, desta feita, sintéticos. Por ser uma estética sonoro-singular de contemplação do cosmos, como se sabe do início, o que o Psy contempla é exatamente o bloco de sensações que preenchem um plano de composição, em verdade: as profundezas (sonoras) da matéria, mas também 46 O canto ou melodia que os curandeiros (xamãs) utilizam em sua medicina ancestral. 47 Trecho de um icaro amazônico [trad. Livre do espanhol para o português]. 48 “Navegantes da psiché” e do hiperespaço tecnológico, os psiconautas são aqueles que utilizam psicoativos sem rituais e guias espirituais, encontrando suas próprias maneiras e artifícios para explorar as suas mentes. 49 .37 .29 Do Psy aos psicodélicos, a questão é sempre a de alterar os processos sinápticos, a de modular as linhas e os vazios, a de precipitar, estender ou mixar as vozes segundo esse ou aquele princípio ativo de uma qualidade movente. O som Psy é a droga mesma: “doce”, Ecstasy, a “carne de Deus” 50 converte” 51. Deleuze e Guatarri (1992, p. 272), inspirados também por Bergson e Plotino (para quem todas as coisas poderiam ser Psy própria operação de consistência dos sintetizadores; a própria plasticidade dos afectos e dos perceptos que o compõe 52; a realidade porque é pura qualidade (tornada variedade); e terceiro, porque é pura liberdade, criação perpétua, devires e devindos. Dizem ainda apud O que se torna audível precisamente é esse ser-tempo nos afectos e devires que engendram o metabolismo Psy preenche, inunda e esvazia a alma em sua remanescência. E o que é a alma para o Antonin Artaud bergsoniano senão “um subposto, não um depósito mas um subposto, o que sempre se restabelece e se levanta daquilo que outrora quis substituir, (...) permanecer para reemanar, emanar conservando todo o seu resto, ser o resto que vai retomar” 53. 50 Ou Teonanacatl, como as astecas chamam determinados fungos (cogumelos) de altíssimo poder alucinógeno, por vezes chamado ainda de “a carne do diabo”. 51 Idem, p. 271. 52 Entendendo-se os afectos não mais apenas como sentimentos ou afecções e os perceptos não mais como simples percepções, mas como “seres que valem por si mesmos e que excedem qualquer vivido” (idem é metálico, cristalino, pétreo, etc.” (idem, p. 217). 53 Apud DERRIDA, 1998, p.134. .38 .29 As camadas sonoras dos planos e das dobras da matéria do Psy são, também, as camadas, as folhas ou as cascas mesmas de uma alma Arlequim 54 ctônia, divina, todas elas de uma só vez: a própria radiância do delírio sonoro, da sensação delirante que delira a si mesmo enquanto sonoros, especialmente aqueles do Psy na eternidade que coexiste com essa curta duração” 55. Na intimidade das ondas sonoras que habitam o Psy, aquilo que vibra em cada modulação, acoplamento ou superposição das suas unidades compositivas 56 sonoras que ele mesmo cria, vibrando com a Terra, como um atrator ou um vórtice que agrega e desacopla passagens e conexões secretas. Delírio: aquele que celebra o Psytrance. Psytrance qualquer ruidosidade alucinada ou em qualquer relação de poder outra que não inspire uma dança ou mesmo um phatos criativo 57. Como se ouvirá do corpus, “o delírio é cósmico”, “o delírio delira as raças e as tribos, delira os povos, (...) delira-se sobre as 54 O farsante, o palhaço apaixonado da comédia da arte italiana (em Michel Serres, ) e suas muitas peles nômades, tatuagens e trapos de cores em 55 DELEUZE e GUATARRI, 1992, p. 216. 56 também a sua potência, a sua tendência a assumir essas ou aquelas vizinhanças afectivas. 57 - nosa. O phatos, tanto em Nietzsche como em Espinosa, supõe não um corpo “sofrendo” paixões, tal qual mostra Michael Hardt (ibidem, p. 98), mas “as afecções que marcam a atividade de um corpo, a criação que é a alegria”. .39 .29 partículas, os elétrons...” 58. E ao som de Deleuze, nunca o ressentimento, a dor ou os maus subterrâneos, diríamos, mas ouvir vozes, as mais distintas, humanas e não-humanas, em bando ou solitárias; diluir as conexões, as passagens pelas quais as linhas de sons-luz se agregam e se contaminam umas das outras; consumir a superfície e se fazer de “pura profundidade”, tal qual mesmo o “corpo coador” do esquizo, esburacado, aberto ao ; ser tomado por uma elasticidade tensionante, por uma gota de elétrons, travessura sonora: um delírio Psy! em processo, a própria vida em seus devires-loucos, devires-animais, devires-criança, com as suas vozes de ecos, de reverberações dos O ritornelo sonoro-psicodélico O espírito da gravidade é negado pela dança 59 O que se ouve, se sente, se retém, se conserva e se expulsa da audição do Psy: talvez as próprias pulsações, as dobras e as massas, dos turbilhões e dos emaranhados explosão da vida. Apaixonar-se em demasia, voz que fala no Psy pela membra disjuncta dionisíaca, o artista ou a criança que brinca com os segredos 58 2005. 59 DELEUZE, s/d, p. 42. .40 .29 remanescência mesmo da alma, de que falava Artaud, ou mesmo no movimento bergsoniano, a questão é sempre essa: saber o que se retém, o que se conserva e o que se expulsa. O ciclo do eterno retorno é “O tempo para expulsar o negativo, para exorcizar o reactivo, o tempo para um devir-activo” vontade de poder. Se se pode ouvir o eterno retorno como música, a música do eterno retorno “faz do querer qualquer coisa de inteiro”, como diria Deleuze (idem, p. 105). Aquilo que quer, quer na vontade, se chama poder: “a virtude que dá”, o princípio doador. Ora, se uma força ativa 60, a alegria da transmutação de uma força reativa 61 em ativa (ou a negação ativa). “O eterno retorno é o regresso distinto do ir, a contemplação distinta da ação, mas também o regresso do próprio ir e o retorno da ação: simultaneamente momento e ciclo do tempo” (DELEUZE, s/d, p. 40). 62 mesmo, aquele que traz tudo à superfície, aquele que faz de todas as coisas, ou de todas as forças, uma Voz, muitas vozes: a univocidade do ser se confunde com o eterno retorno em sua síntese 63 modos de ser no tempo, os ritmos de existência, os pontos de silêncio pelos quais se faz essa ou aquela vizinhança, esse ou aquele devir. Devir é “extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento 60 Nas próprias palavras de Deleuze (idem, pp. 93-94), uma força é dita ativa porque é: 1° força plástica, dominante e subjugante; 2° força que vai até o limite daquilo . 61 Por sua vez, uma força é dita reativa por três razões, porque é: 1° utilitária, de adaptação e de limitação parcial; 2° força que separa a força ativa daquilo que esta pode, que nega a força ativa (triunfo dos fracos ou dos escravos); 3° força separada daquilo que pode, que se nega a ela própria ou se vira contra si (reino dos fracos ou dos escravos). 62 63 Deleuze (2000, p. 185) mostra isso em Lógica do sentido .41 .29 e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornar, e através das quais nos tornamos. 64. Ritornelo é uma pequena orelha, um labirinto, uma pequena-orelha-labirinto para onde o som torna e retorna. Ecoa do ritornelo em seu “devir-expressivo”: a qualidade movente que sempre volta não como uma repetição do Mesmo, mas como uma repetição da Volta mas uma passagem para um Em Deleuze, Nietzsche se encontra de fato com a música eletrônica. O que se pode esperar deste encontro: um devir-Psy do ritornelo em sua aliança com o eterno retorno e que lhe atribui a qualidade não de uma “música do idêntico”, mas de uma “música ibidem, p. 138). De “Nietzsche à la Techno”, a repetição é uma repetição alternada do silêncio, o “duplo silêncio” como avaliador e criador, como e eternidade”. (DELEUZE e MANGANARO apud menores que ele cria nas muitas oscilações de freqüências e alternâncias rítmicas imanentes, que a boa nova chega: Psytrance, uma fazer sumir ou nascer; equação “querer = criar” um território (de passagem) para tudo aquilo que é ativo: a própria pista de dança, em êxtase e hipnose. “Cristal de espaço-tempo”, o ritornelo tem uma função catalítica e só faz arrastar e aglutinar vibrações, forças que o rodeiam: ele “é a forma a priori do tempo que fabrica tempos diferentes a cada vez” (idem, p. 168). Assim, o ritornelo é capaz de trazer as movimento e repouso entre as partículas. 64 DELEUZE e GUATARRI, ibidem, p. 64. .42 .29 O Psytrance é também do tipo “cristal ou proteína65“ (ibidem, p. 167), quando metabolizados, produzem paisagens melódicas e cadeias ou compostos: a dança, o riso, o jogo 66 máquina, como sintetizador ”67). 65 66 67 Psy. .43 07 / .29 No Psytrance a expressão maior do ritornelo aparece como um groove 68, uma potência músico eletrônica capaz de nos levar a um “tempo supremo” (Aion) 69 vetor, um dos vários outros componentes dos agenciamentos que se traçam no Psytrance. O groove é não o sulco, antes, os muitos sulcos que se cravam no tempo ou na terra, o “estado de fórmula” do ritornelo que os evoca em seus dois pólos 70 iguras sonoras 71 de Chladni, não aquilo faz mover todas as coisas ao fazer delas dançarinos. 68 Sulco, da língua inglesa: o mesmo sulco feito pela lira, no arar da terra, quando da imagem suscitada pelo nascimento da palavra delírio (ver p. 31, nas notas de rodapé). Em música, trata-se daquilo que se repete, determinando o ritmo (a distância crítica entre dois instantes): é a “levada”, o indizível do movimento de uma tal estética ou mesmo de um produtor, caracterizando, assim, a sua marca sonora. 69 Ver p. 18. 70 Um que depende de uma qualidade intrínseca e outro que depende do “estado de força daquele que escuta”. (DELEUZE e GUATARRI, ibidem, p. 168). 71 As zona de descanso da agitação das moléculas sonoras (o silêncio tornado visível, sob esse ponto de vista): toda a área “vazia” ou regido por tons, acordes a natureza como música 214). .44 08 / remansos sonoros .29 72 se torna possível (todo o resto é caos, delírio, loucura), essa linha ou câmara que é preciso fazer (dobrar) para viver, é como a linha de areia da placa de Chladni: são “os remansos do rio” heraclitiano de que fala Hélio Rebello 73 embarcação, água em fúria, sem, no entanto, fecharmo-nos apud REBELLO, idem), noções tais como a de “conversão a si, um retorno no mesmo lugar, residir em si mesmo”, onde está em jogo “a idéia de todo um movimento da existência pelo qual se volta sobre ressonâncias no groove psicodélico e que nos dizem dos modos de existência, dos acontecimentos que podemos nos tornar nele: um vento, uma tempestade elétrica, uma atmosfera ou se um fractal, um olho solar 74. 72 Idem, p. 138. 73 Embora invertido: “um rio nunca passa mesmo homem”. 74 apud Deleuze, ibidem, p. 143): “uma arte de si mesmo que seria totalmente o contrário onde .45 09 / Vision Crystal .29 damaru Psy é tido, tanto entre os seus produtores quanto entre os seus contempladores, como uma “música poderosa” 75, como aquela capaz de inspirar o senhor e o artista, até no fraco Aqui, o ponto de conversão ou de transmutação tão caro a Nietzsche 76 (a meia-noite, o negativo como o “trovão” e o “relâmpago” Psy (o amanhecer, a rachadura ou a no tempo que anuncia o grande retorno deságüe sonoro) quanto com o vôo que o “pássaro de fogo” espinosano alça por entre as batalhas sonoras Psytrance, fazendo dos grunhidos e dos brados que lhe compõe qualquer coisa de um sopro, de um alento 77 (a passagem das afecções passivas ou paixões alegres para as afecções ou sentimentos livre ativos): saturar a matéria, inundar o espírito de composições e devolver ao Universo, de uma só vez, todas as forças que lhe foram tomadas para tal. 75 Power Music, diria Dali (Hommega Records), uma produtora do Psytrance. 76 A destruição tornada ativa ou o niilismo (a negação como qualidade da vontade de poder) vencido pelo eterno retorno. 77 .46 .29 Electro-ética: a radiância da alegria Não é apenas uma questão de música, mas de maneira de viver...78 Se é no Cosmo panteísta que o Nomo 79 religioso desabrocha, ou antes, deságua, é nele também que a alegria, enquanto uma ética espinosana, é capaz de fazer, de toda paixão sonora delirante, de toda matemática musical uma afecção 80 ativa, isto é, aquela que compõe com a nossa essência 81, aumentando a nossa potência para agir: parece ser aqui que a pan-música 82, a propósito da música eletrônica (ou da mídia eletrônica enquanto som), encontra a sua expressão máxima. O tempo para torna-se ativo, diria Nietzsche, o tempo para tornar-se alegre, diria Espinosa: esses são os “pedaços de tempo arrancados do cosmos” que atravessam o Psytrance nas sensações que nele duram, na emoção criativa em que ele nos coloca, na Memória cósmica que ele nos faz acessar. Não se trata de contrapor as batalhas nietzscheanas ao “grande sopro calmo”, ao “sol branco da substância” de que falava Romain Rolland, a respeito da ética espinosana. Os acontecimentos sonoros Psy, em suas inversões, reversões e transmutações, passam por ambos os desenhos, são um e outro em contaminação perpétua, e não um ou outro. Se o Psy, nas quebras e rachaduras de que são feitas as suas paisagens melódicas, é essa mesma música vulcânica retorno) pode ser dita o próprio magma, a força que borbulha e atropela tudo por onde passa, enquanto que a alegria que Espinosa 78 DELEUZE, 2002, p. 128. 79 Um Nomo ibidem, p. 138) quem mencionam essa passagem, a respeito dos ritornelos cósmicos. 80 As afecções, que implicam a presença de um corpo afetante, bem como ainda o estado do corpo afetado, podem ser de dois tipos: as passivas tristes e as passivas alegres, sendo que somente essa última tem a potência para nos levar às afecções ativas (da essência), aquelas não determinadas por uma causa exterior. 81 decompositivos, de tristeza. Assim, em uma atividade de composição temos nossa potência de agir aumentada, enquanto em uma atividade de decomposição temos nossa potência de agir diminuída. 82 Ver p. 11. .47 .29 inspira compor (nos bons encontros que ele nos impele a organizar) parece-nos mais o vapor sulforoso quase imperceptível que nasce do centro da Terra, galgando os céus e deslizando por entre todas as coisas. doce violência que lhe é inerente; Espinosa desintegra, dissolve, consome calmamente, mas não sem menos velocidade, não sem menos força que a mais potente das forças. A qual dessas alegrias corresponderia à imagem sonora de um mar em fúria? Já não se pode mais saber: o devir-Nietzsche de Espinosa é, no Psy, tanto ou mais veloz que o devir-Espinosa de Nietzsche. Foi Lagneau (apud DELEUZE, idem, p. 132), embora naquilo que se referia obra espinosana de uma música: “’rapidez de pensamento’ fulgurante, ‘potência em extensão profunda’, ‘poder de perceber num único ato a relação de um maior número possível de pensamentos’” 83 Psytrance: quando a velocidade e a amplitude devêem, elas atravessam uma a essência da outra. deságüe sonoro imanente ao Psy, como tensão interna das ondas sonoras, que arrasta o sentimento da plenitude e faz dele o próprio “poder que quer transbordar” ou, em termos espinosanos, a beatitude mesma, a beatitude de um desaguar... Nada mais há aqui senão um verbo sonoro, Aion sem presente, sem diversidade de vozes” 84. Quando as paixões alegres delirantes que nos atravessam nos levam às alegrias ativas essencial”85 86, 83 Não se pode esquecer também do subtítulo provocante do texto que Deleuze escreveu com Manganaro, a propósito do eterno retorno na música techno: “mani- festo para as máquinas pensantes que vierem”. 84 DELEUZE, 2000, p. 190. 85 DELEUZE, 2002, p. 50. 86 Ver p. 35. .48 .29 a respeito do ácido psicodélico (“somos seres da luz”...ainda que de uma luz negra). Quando o Psy deságüa, as paixões alegres nos levam às afecções ativas, “as palavras de fogo de Espinosa” se encontram aterrorizantes, as vozes mais etéreas, divinas e mansas e estrondosos rugidos de trovões. Nesse mesmo instante, o jogo de forças ou o labirinto nietzscheano é tomado como um corpo 87 dos mantras sintéticos do Psytrance: “alternâncias e entrelaçamentos, semelhanças e diferenças, atrações e distrações, nuanças e arrebatamentos” (DELEUZE, 2000, p. 274). Que outro afecto ou auto-afecção senão a alegria poderia celebrar, em uma só voz, em um só corpo, a Natureza como música e fazer de cada um de nós, os dançarinos, seres adequados a todo o movimento da criação? O Psytrance, desde as suas origens como a dança para o “Espírito Cósmico” de que Goa Gil falava, tem um ser alegria. Isso quer dizer que ele é, propriamente, uma insistência luminosa capaz de permanecer mesmo quando a festa acaba, mesmo quando o sol se põe e uma nova música ou novo dia começam. Como diz Espinosa em Deleuze (2002, p. 128), “... a gente nunca começa, nunca se recomeça tudo novamente, a gente desliza por entre, se introduz no meio, abraça-se ou se impõe ritmos”. O Psytrance é a música da existência modo de existência capaz desses afectos, encontros, conexões e transmutações. que faz do Psy um devir-manhã, devir-montanha, devir-orvalho, devir-manada... Libélulas! Com os seus Nomos electro-psicodélicos 87 que o preenchem a cada momento, a força de existir). Um corpo, como mostra Deleuze (idem, p. 132), “pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro, pode ser uma alma ou uma idéia, pode ser um corpus lingüístico, pode ser um corpo social, uma coletividade”. .49 .29 aliquid, quer dizer, Alguma coisa, o Psy desenha uma “coletividade expansiva” 88 de totens sonoros 89: o uivo do lobo, o canto do pássaro, a tempestade, o nevoeiro. Aos poros de uma caixa acústica, não se deve nada senão o prazer de um aprendizado na potência: dança e phatos criativo como atividades compositivas. 88 No sentido mesmo em que uma alegria ética pode construir. Ver em HARDT, ibidem, p. 99. 89 o Psy de uma coletividade. Foi a pesquisadora Solange Bigal, em seus estudos sobre o ritual psicodélico eletrônico, quem criou o conceito totem sonoro, inspirada pelos festivais de dança que o Psy organiza. .50 10 / totem sonoro .29 O legado espinosano ao Psy 90 , repleta de vozes e melodias, que sobrevoam ou se movimentam constantemente por entre as passagens delirantes, por entre a doce violência com que os corpos vento” transborda o estado de força daquele que escuta. atividades de composição: não se trata “de seleção de um mundo, mas de uma sinfonia da Natureza 91, da constituição de um mundo cada vez mais amplo e intenso. O que é que o Psy, enquanto um modo, pode dizer ao cosmos, ou melhor, ser no cosmos, nos encontros que promove, nas relações de movimento e repouso, velocidade e lentidão dos seus corpos sonoros? Qual é a potência da sua força de existir Psytrance é mais que música, parafraseando Deleuze, é uma de maneira de viver, de criar, de compor (com) a vida. Torna-se o próprio “concerto de ruídos” (Concert de bruits), 4’33’’ de hecceidades, o “som das estrelas” (Sternklang), o “martelo sem mestre” (Marteau sans Maître quanta energéticos. Percorre todas as distâncias de uma pluralidade silenciosa ou mesmo do envigorar negro de um som com uma velocidade instável e uma amplitude preciso que um dia uma droga se chamasse ecstasy. O êxtase é o máximo de realização de si e de superação de si, da fusão bem- sucedida de si com o outro ou com o mundo, da felicidade e da comunhão”. Não só apenas de sorrir, colorir, , dançar, amar, delirar é de que são feitas as ladainhas sintéticas Psy, mas também de relampejar, chover, contemplar, ofertar fazem morada, das paixões alegres que lhe são imanentes, da Terra (Arha 90 Expressão de DELEUZE e GUATTARI (ibidem, p. 169). 91 Como “uma unidade superior imanente que se amplia” (DELEUZE, ibidem, p. 131). .51 .29 92 criadora e doadora. 92 Isso pode ser muito bem contemplado naquilo que se refere, de uma maneira geral, às estruturas das raves, nas quais se incluem estudos e práticas da Teoria .52 í n t e s es .29.53.29.56 .29 A palavra tibetana para escuta ou audição, thos ... se refere àquele que captou o ensinamento em seu coração e tornou-o seu. Assim, a palavra escuta, nesse caso, implica ouvir com o coração, isto é, com fé sincera (shraddha) (LTM – LV) Psytrance 1. ouvir, não com a “mera consciência sensorial da audição”, com o coração assim que a convicção intelectual torna-se certeza espiritual”, um acontecimento em que o conhecedor é o mesmo que o conhecido 93; 2. ladainha de louco, “caosmose” 94, um som de convocação de toda sorte de convidados: extraterrestres, “disparates e heterogêneos, delírios da matéria vibrante que habitam o fundo da alma ou espírito; 3. tornar, devir, misturar, retornar, talvez como algum dos animais de estimação de Zaratustra; acontecimento, um dragão; 93 GOVI in EVANS-WENTZ (Org.), 1993, p. LV. 94 .57 .29 Da ladainha mais subterrânea ao mais glorioso dos céus, o Psy mima a matéria em seu estado de fervor, de nervura, e faz dela a sua cada vez mais profunda” 95, mais densa, mais comprimida, não para aí permanecer, mas para fazer desse movimento uma “ponta de desterritorialização”, uma mola cósmica, um corpo glorioso, histórias de ventos e de uma humanidade maravilhosa ... rs! vontade que as possui, trazem consigo qualquer coisa de um “sentimento estético”; uma “beatitude”; um “sentimento e de prodigalizar”96; uma magia. 95 96 NIETZSCHE (apud .58 .29 Caos, Criatividade e o Retorno do Sagrado. São Paulo: Cultrix, 1994. ADAIME, Rafael Domingues. A pesquisa do inconsciente no século dos alucinógenos In: Cadernos de Subjetividade. São Paulo, Hucitec, 2005. ALLIEZ, Eric. . São Paulo: 34, 1996. A Assinatura do Mundo. São Paulo: 34, 1995. ANTUNES, Jorge. O Silêncio 2006. BARRETO, Jorge Lima. Entrevista a Pierre Boulez Entrevista a Karlheinz Stockhausen BERGSON, Henri. 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