1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO /DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA ELIZABETH SOARES PINHEIRO LOURENÇÃO PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO DA INDISCIPLINA NA ESCOLA Presidente Prudente 2021 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA ELIZABETH SOARES PINHEIRO LOURENÇÃO PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO DA INDISCIPLINA NA ESCOLA Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNESP/Campus de Presidente Prudente, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Educação. Orientador: Professor Dr. Divino José da Silva Linha de Pesquisa: Processos Formativos, Diferença e Valores. Presidente Prudente 2021 3 4 5 Dedicatória Eu dedico esta Tese à memória de minha mãe, “Dona Tina”. Mãe solo, que, a duras penas e com toda a carga de preconceito advinda dessa condição, me criou com muito sacrifício. 6 AGRADECIMENTOS Agradecer as pessoas que participaram da construção de uma Tese é tarefa bastante difícil, seja porque se corre o risco de se esquecer de alguém, seja pelos fortes elementos afetivos envolvidos. Devo, assim, começar a agradecer à minha mãe e à minha vó, que, se vivas estivessem, dentro de sua simplicidade, estariam muito orgulhosas. Faço um agradecimento especial ao meu maior incentivador: meu companheiro de todas as horas, meu grande amor, Mauro. O que dizer a você, neste momento? Pedirei ajuda ao poeta Vinicius de Moraes, que, apaixonadamente, escreveu: “Eu sem você, não tenho porquê, porque sem você não sei nem chorar. Sou chama sem luz, jardim sem luar, luar sem amor, amor sem dar. Sem você meu amor eu não sou ninguém”. Sem o seu apoio, teria sido muito mais difícil. Aos meus filhos, Isabella e João Guilherme, os quais, a seu modo, sempre me apoiaram e compreenderam as ausências que se fizeram necessárias. Tenho muito orgulho de vocês. Às parceiras no Ministério Público/SP, Priscila Takigawa e Maria do Carmo R. Lourenço, companheiras de trabalho e da vida. Ao Felipe Seregueti (Oficial de Promotoria) e à Bianca Mendes (Analista de Promotoria), sempre disponíveis e empenhados em bem exercer suas funções e com quem faço trocas profissionais e também de afeto. Às minhas “filhas acadêmicas”, Tassyane, Jaqueline e Nathália, minhas alunas, minhas colegas de profissão e minhas amigas. Obrigada pela troca, pelas risadas e pelo compartilhamento de ideias. Ao meu orientador, Professor Dr. Divino, pelo direcionamento e incentivo. Obrigada por compartilhar seu conhecimento e sabedoria. Obrigada pela sua humildade e compreensão. A professora Dr.ª Renata Coimbra, minha orientadora no Mestrado e que me honra na composição da banca de defesa dessa Tese. Aos colegas do grupo de pesquisa, com especial carinho à Giovana de Vito, Marcos, Aline, Vanessa e Alex. À professora Dr.ª Débora Dalbosco Dell’Aglio, que tanto tem colaborado no tratamento de temáticas importantíssimas para a área da infância e juventude, e que enriquece esta discussão, contribuindo com o processo de qualificação e defesa. À querida Professora, Dr.ª Sonia Regina Nozabielli, referência profissional que, do mesmo modo, me honra em participar da banca de defesa dessa Tese. 7 À Diretoria Regional de Ensino de Presidente Prudente, na pessoa da Sr.ª Dirigente e do Dr. Sebastião, sempre atento em atender às minhas solicitações para a realização desta pesquisa. Às escolas participantes, em especial aos profissionais que aceitaram colaborar com a pesquisa. Ao Ministério Público de São Paulo, o qual autorizou a minha saída para frequentar as aulas do Doutorado. Incluo nesses agradecimentos os servidores Eliza Mitiko e Márcio de Santi Vitti, sempre auxiliando nos processos burocráticos institucionais. Temerosa em ser traída pela memória e deixando de citar nominalmente a todos(as), agradeço aos promotores de justiça com os quais atuei e atuo, pois, com muitos deles(as) pude vivenciar o verdadeiro significado da expressão “promover a justiça”. A todos(as) os professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESP, que contribuíram para o aprendizado e a construção desse trabalho. Esses agradecimentos são extensivos aos funcionários do Programa, em especial à Ivonete e equipe da Secretaria e Biblioteca. A todos os que, de uma forma ou de outra cooperaram para a concretização desta pesquisa. Por fim, e não menos importante, agradeço a Deus. 8 O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva. Inclui. (Eliane Brum. História de um olhar, em A vida que ninguém vê, 2006). 9 RESUMO Esta pesquisa foi realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente – SP, e esteve vinculada à linha de pesquisa intitulada Processos Formativos, diferença e valores. O objetivo central deste estudo foi o de analisar os processos de judicialização dos comportamentos dos alunos dentro da escola, a partir de condutas indisciplinadas. A investigação foi concretizada por meio de pesquisa documental havendo a coleta de dados junto a cinco escolas estaduais do município de Presidente Prudente/SP, bem como em processos judiciais e procedimentos administrativos instaurados junto à Promotoria de Justiça e Vara da Infância e Juventude. Também foram feitas entrevistas com educadores que exercem a função de direção e coordenação, nas escolas. Constatou-se que a grande maioria dos casos levados à apreciação do sistema de justiça infantojuvenil se refere a comportamentos apontados como de indisciplina e, portanto, não deveriam ser a esse sistema direcionados. Observa-se ainda uma discrepância de compreensão, por parte das escolas, entre o que é ato infracional e o que é indisciplina. Além da confusão entre um ato e outro, não há linearidade de entendimento em relação às providências a serem tomadas, o que, na prática, leva à criminalização dos comportamentos dos alunos. Foi possível perceber que existe uma lacuna entre a expectativa criada pela escola sobre o que a justiça oferece, em termos de solução do problema e/ou do conflito, e do que realmente a justiça vem oferecendo na prática. Nenhum dos entrevistados demonstra conhecer o ritual de funcionamento do sistema de justiça infantojuvenil, vendo esse sistema, sobretudo, como aquele órgão que vai reprimir ou punir o aluno, em face de seu comportamento indisciplinado. Palavras-chave: Escola. Adolescência. Indisciplina. Judicialização. Justiça da Infância e Juventude. 10 ABSTRACT This research was carried out with the Graduate Program in Education at Universidade Estadual Paulista (UNESP), Presidente Prudente - SP campus and related to the line of research entitled Formative Processes, Difference and Values. The main objective of this study was to analyze the processes of judicialization of the behavior of public school students based on undisciplined behavior. The research was carried out through documentary research with data collection in judicial and administrative proceedings filed with the Prosecutor's Office and the Children and Youth Court of Presidente Prudente/SP city. Interviews were carried out with educators who exercise the function of direction and coordination, at Schools. None of the interviewees demonstrate that they know the operating ritual of the juvenile justice system, seeing this system above all as that body that will repress or punish the student, given their undisciplined behavior, however, the cases referred do not fit to what the Law establishes as a condition for the investigation of a crime or misdemeanor, or as defined by the Child and Adolescent Statute, an infraction. It was found that the vast majority of cases brought to the attention of the juvenile justice system refer to behaviors identified as indiscipline and, therefore, should not be directed to this system. There is also a discrepancy in understanding, on the part of schools, between what is an infraction and what is indiscipline. In addition to the confusion between one act and another, there is no linearity of understanding in relation to the measures to be taken, which, in practice, leads to the criminalization of student behavior. It was possible to notice that there is a gap between the expectation created by the school about what justice offers, in terms of solving the problem and/or conflict, and what justice really has been offering. None of the interviewees demonstrate that they know the operating ritual of the juvenile justice system, seeing this system, above all, as that body that will repress or punish students, given their undisciplined behavior. Keywords: school; adolescence; indiscipline; judicialization; Children and Youth Justice 11 Lista de quadros e tabelas Quadro 1 - Escola A.................................................................................................................105 Quadro 2 - Escola B.................................................................................................................106 Quadro 3 - Escola C.................................................................................................................106 Quadro 4 - Escola D.................................................................................................................106 Quadro 5 - Escola E.................................................................................................................106 Quadro 6 – Indisciplina x Ato infracional................................................................................107 12 Lista de gráficos Gráfico 1 – Dados do sistema Placon (Secretaria Escolar Digital) ........................................100 Gráfico 2 – Disciplina x Ato Infracional sem NDA.................................................................110 Gráfico 3 – Disciplina x Ato Infracional com NDA.................................................................110 13 Lista de abreviaturas e siglas CIJ - Coordenadoria da Infância e da Juventude CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente CONVIVA/SP - Programa de Melhoria da Convivência e Proteção Escolar COVID-19 - (co)rona (vi)rus (d)isease 2019 CRAS - Centros de Referência de Assistência Social CREAS - Centros de Referência Especializado de Assistência Social ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente FUNDEB - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação IDEB - Índices de Desenvolvimento da Educação Básica LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação LGBT – Lésbica, Gays, Bissexuais, Transexuais LGBTQIA+ - Lésbica, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexuais, outras opções - LGB, diz respeito à orientação sexual do indivíduo. TQIA+, diz respeito ao gênero LOE - Livro de Ocorrência Escolar MP – Ministério Público NDA – Nenhuma das Anteriores PANI - Procedimento Administrativo Individual PLACON – Plataforma Conviva PMEC - Professor Mediador Escolar e Comunitário PNAS - Política Nacional de Assistência Social ROE - Registro de Ocorrências Escolares 14 SARS-CoV-2 - Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 - síndrome respiratória aguda grave – coronavírus 2 SGD - Sistema de Garantia de Direitos SIS MP - Integrado - sistema de registro e gestão dos atendimentos ao público cível e criminal TALIS - Teaching and Learning International Survey UNESP - Universidade Estadual Paulista 15 SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................................17 CAPÍTULO I – Escola, juventude e indisciplina: construções e contradições..................25 1. A educação em tempos de crise: velhos problemas, novas roupagens.................................27 1.1 Controle e Resistência: A indisciplina como desafio educacional....................................42 1.2 Transgressores, perigosos, delinquentes e indisciplinados: construções em torno do adolescer (ou da adolescência) ...........................................................................................57 1.3 A judicialização dos comportamentos indisciplinados na escola.......................................73 CAPÍTULO II - Delineamento metodológico.......................................................................92 2.1 O local da pesquisa..............................................................................................................93 2.2 Participantes........................................................................................................................93 2.3 Aspectos éticos....................................................................................................................94 2.4 Coleta de dados....................................................................................................................94 2.5 Coleta de dados junto aos registros de ocorrência no sistema Plataforma Conviva (PLACON)................................................................................................................................94 2.6 Coleta de dados junto aos Procedimentos Administrativos Individuais (PANI) e Procedimentos para Apuração de Ato Infracional.....................................................................95 2.7 Coleta de dados junto a Procedimentos para Apuração de Ato Infracional (Vara da Infância e Juventude) ..............................................................................................................................96 2.8 coletas de dados junto a Ficha gerencial das escolas............................................................97 2.9 Realização de entrevistas com gestores escolares................................................................97 CAPÍTULO III - Análise e interpretação dos dados...........................................................99 3.1 Coleta de dados junto aos registros de ocorrência no sistema Plataforma Conviva (PLACON)................................................................................................................................99 3.2 Coleta de dados junto aos Procedimentos Administrativos Individuais (PANI) e Procedimentos para Apuração de Ato Infracional e aos Procedimentos para Apuração de Ato Infracional (Vara da Infância e Juventude) .............................................................................103 3.3 Coleta de dados junto a Ficha gerencial das escolas...........................................................105 16 3.4 Entrevistas com gestores escolares....................................................................................107 3.5 Análise das questões enunciadas........................................................................................111 3.6 Diferenciação entre ato infracional x indisciplina ............................................................112 3.7 O sistema de justiça na escola: Justificativas......................................................................115 3.8 Idealização do sistema de justiça: expectativas e frustrações.............................................119 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................125 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................130 APÊNDICES..........................................................................................................................149 ANEXOS................................................................................................................................150 17 Introdução “Mas voltemos a hoje. Porque, como se sabe, hoje é hoje. Tenho um arrepio de medo. Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim” (LISPECTOR, [1977] 1993). Peço licença ao leitor, iniciando essa introdução quebrando os protocolos do texto acadêmico. Fui tomada pela necessidade de trazer inicialmente, alguns esclarecimentos que considero importantes para a compreensão do que aqui está sendo defendido e também alguns elementos que demonstram qual é o meu lugar de fala. Poderia justificar esse momento, ao fato de minha formação profissional ser em Serviço Social, profissão que atua na defesa dos direitos humanos e supõe a erradicação de todos os processos de exploração, opressão e alienação. Também, pela circunstância de ter atuado na docência, por cerca de dez anos, recepcionando alunos oriundos em sua grande maioria da educação pública. Talvez, pela minha experiência profissional trabalhando junto à área sociojurídica (Ministério Público), todavia, entendo que há na realidade uma somatória de todas essas experiências, majoradas ainda à experiência de vida, talvez a mais forte dentro de todo esse conjunto de fatores. Nasci em um modelo de família que, nos dias atuais, poderia ser tachada de “desestruturada”, termo muito naturalizado e equivocadamente empregado para descrever as formações familiares que não atendem ao modelo tradicional e predominante (pai, mãe e filhos). Sou filha única, nascida de uma relação inter-racial (ele branco, ela preta), de uma mãe adolescente. Aos dois anos de idade, fui abandonada por um pai que sequer se deu o trabalho de reconhecer a paternidade, fazendo com que já carregasse, no primeiro documento válido e com sinônimo de cidadania, o estigma de “filha de pai ignorado”. Restou à minha mãe (solo) (in memoriam) deixar a vida rural e ir para a cidade grande em busca de trabalho como empregada doméstica. Enquanto ela trabalhava “na cidade grande”, não houve outra forma senão me deixar sob os cuidados de minha avó (in memoriam), figura pela qual nutri profundo amor. Esse abandono, voluntário do pai e involuntário da mãe, colaborou para uma série de eventos negativos, na vida pessoal e escolar, pois, havia ainda as dificuldades impostas pela condição de pobreza. A pobreza não rouba das pessoas apenas as condições mínimas de sobrevivência, mas, principalmente, as condições mínimas de sobrevivência com dignidade. 18 Na prática, isso se traduz na falta de acesso a necessidades que podem ir desde a falta de recursos para comprar creme dental ou absorvente até mesmo de medicamentos para problemas graves de saúde. Na escola (pública, registre-se) não tive o privilégio de estar cercada de adultos que me ajudassem nas tarefas; não me recordo da participação de minha mãe, em nenhuma das “reuniões de pais”. Não que ela não quisesse, que fosse omissa ou negligente, contudo, na condição em que se encontrava, trabalhar longe para sustentar a filha era sua única escolha. Nessa condição, foi na escola que fui sujeitada a todo tipo de situação vexatória, a começar pela exigência da presença de um pai, o qual sequer se fez constar oficialmente em minha certidão de nascimento. Foi também na escola, que uma professora me fez entender que eu podia traçar novos rumos e dar um outro sentido a uma história fadada ao fracasso, quando se nasce, nesse país, mulher e pobre. Por isso tudo, e não somente por isso ou aquilo, é que acredito que o que vou escrever está, por certo, de alguma forma escrito em mim, pois, para pessoas que nascem em condições sociais adversas (como foi o meu caso), conquistar o título de doutora pode ser um dos maiores atos de rebeldia contra o sistema que se pode realizar. Obs.: A aluna da foto da capa, sou eu, aos 10 anos, em uma escola rural no Estado do Paraná. As demais fotos, registrei em escolas distintas desta cidade. Posto isto... 19 A crise sanitária instaurada pelo novo coronavírus no Brasil e no mundo, em 2019, ficará registrada como um dos eventos mais tenebrosos da humanidade. No caso brasileiro, o desprezo pela ciência e o comportamento negacionista do governo federal levaram o país a ocupar com destaque o status de epicentro da Pandemia. Agudizam-se assim as outras crises em andamento, como, por exemplo, a crise política e econômica. A educação brasileira não ficou de fora. As escolas foram as primeiras a fecharem e as últimas a abrirem, pois, o contexto de governo não priorizou ações que pudessem garantir o retorno seguro tanto para os profissionais quanto para os alunos. Neste ínterim, abriu-se espaço para o resgate de resquícios de autoritarismo e conservadorismo, com a defesa de propostas que vão desde a educação militar até a implantação do ensino doméstico (homeschooling). Hanna Arendt [1954] 2016, p. 227) declarou que “[...] em toda crise, é destruída uma parte do mundo, alguma coisa comum a todos nós. A falência do bom senso aponta, como uma vara mágica, o lugar em que ocorreu esse desmoronamento.”. Atual como nunca, não é exagero afirmar que, das muitas coisas comuns a todos nós, a educação, sem sombra de dúvidas, sofreu de forma incisiva consequências ainda não dimensionadas, diante do desmoronamento governamental brasileiro nos anos de 2020/2021. É nesse contexto de pandemia e outras condicionantes, que o desafio de concluir esta Tese se concretiza. Não é apenas um desafio intelectual, mas, sobretudo, um desafio emocional, já que, uma espessa camada de tristeza e sofrimento também se abateu sobre mim ao me deparar com a perda diária de vidas humanas. Apesar disso, “[...] é preciso ter esperança, esperança do verbo esperançar; esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante.” (FREIRE, 1992). O interesse em pesquisar sobre o tema aqui apresentado, nasce principalmente, de minha prática profissional como Assistente Social junto à área sociojurídica. Após, quase vinte anos atuando junto a algumas Promotorias de Justiça da área cível, especialmente na Promotoria relacionada à infância e à juventude, foi possível o contato com procedimentos administrativos e judiciais envolvendo adolescentes que se encontravam em situação de risco (pessoal e/ou social). Dentre estes, o conflito com a Lei, a dependência química, gravidez na adolescência, evasão escolar e violências de todas as formas, entre outras expressões da questão social. Assuntos recorrentes junto ao chamado sistema de justiça infantojuvenil, o 20 qual rotineiramente vem sendo chamado a intervir, deliberar e julgar assuntos em que nem sempre seria admissível a sua atuação1. Outras questões referentes a medidas de proteção e efetivação de políticas públicas também demandaram (e ainda demandam) minha atuação profissional, requerendo o apontamento de soluções e/ou mediações entre a rede protetiva e as diversas políticas púbicas, dentre as quais a política de educação. Através de contatos sistemáticos com os serviços socioassistenciais, escolas, participação em reuniões de trabalho com conselheiros municipais e tutelares, gestores e equipes técnicas, mas, sobretudo, na avaliação de políticas públicas voltadas a crianças e adolescentes, constatei a incidência de problemas que negativamente abalam a vida de adolescentes, especialmente aqueles oriundos das camadas mais populares. Desse modo, a escolha do tema aqui pesquisado se relaciona com minha prática profissional, mas também com os estudos realizados no âmbito acadêmico, por meio da docência em Serviço Social, a qual exerci por cerca de dez anos. Ademais, no âmbito do mestrado (2015), ainda desenvolvi pesquisa qualitativa sobre as concepções de adolescentes em conflito com a Lei sobre a escola. Se, naquela época, centrei meus estudos na perspectiva de ouvir a voz do aluno autor de ato infracional, nesta investigação, busquei ouvir a escola, com base em seus registros e seus gestores. Neste sentido, questionamos, inicialmente, sobre quais as significações dadas pela escola ao comportamento dos adolescentes? Quais comportamentos podem ser vistos como inerentes ao adolescer? Qual a mensagem expressada pelo comportamento indisciplinado? Ao buscar a justiça não estaria a escola decretando o esgotamento de sua capacidade dialógica de resolução de conflitos? Há clareza por parte dos atores escolares sobre a diferença entre indisciplina e ato infracional? O que a justiça pode ofertar, diferentemente da pedagogia? Nessa perspectiva, evidencia-se a busca da escola pelo sistema de justiça para a resolução de questões que acontecem no ambiente escolar, judicializando os processos educativos, especialmente situações envolvendo alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, períodos de formação de alunos adolescentes. O elemento desencadeador dessa judicialização reside na indisciplina escolar, apontada como justificativa para se acionar o sistema de justiça, negando sua disposição e possibilidade de resolução de 1 Por exemplo, retenção de alunos em razão de deficiência 21 conflitos que privilegiem o diálogo e ações pedagógicas condizentes com a sua função formativa. Assim, a escola acaba por incentivar a criminalização dos comportamentos, além de nomear como público alvo desse processo alunos negros, deficientes e pobres, ferindo não só o princípio do direito à educação, mas também o de melhor interesse do adolescente. Por outro lado, é possível observar uma acolhida do sistema de justiça infantojuvenil, o qual também sofre de um esgotamento de sua capacidade de interlocução com os atores escolares e com as políticas públicas, em face de uma dogmática jurídica que se enfraquece perante as complexidades vivenciadas pela grande massa da população, num país polarizado e em grave crise econômica, política e sanitária.2 Esse processo de judicialização pode, na prática, se constituir como uma experiência escolar negativa, a qual não somente contribui para o desenvolvimento da conduta infracional na adolescência, mas também funciona como um preditor significativo para o abandono escolar, o baixo engajamento e mesmo situações de indisciplina e violência (SILVA; BAZON, 2014; COELHO; DELL’AGLIO, 2018). Nessa perspectiva, interessa-nos, nesta pesquisa, analisar os processos de judicialização do comportamento dos alunos da escola pública, utilizado como justificativa de conter a indisciplina em sala de aula. Esses processos, ocorrem diante da dificuldade da escola em lidar com o comportamento dos alunos e também de saber discernir a indisciplina de um ato infracional. Por que ocorre a judicialização dos processos escolares, se o que se espera da escola é que seja um espaço de construção do diálogo e de práticas que favoreçam a resolução de conflitos? Assim, a tese está dividida em três capítulos, onde no primeiro capítulo, intitulado “Escola, juventude e indisciplina: construções e contradições”, destaco que, historicamente, as instituições escolares são perpassadas por questões que em gral se transmutam e revelam um descompasso temporal que recria elementos mediados entre passado e presente, em face da crise do capital, cenário no qual a educação se movimenta e se materializa. Nesse cenário de crise (agravada pela crise sanitária decorrente da Covid-19), a educação é tomada para atender 2 Referimo-nos à Pandemia advinda por força da descoberta da SARS-CoV2 que causa o vírus COVID-19, identificado pela primeira vez no final 2019, em Wuhan na China e que se espalhou por todo o mundo, tendo sido o Brasil epicentro de contaminação em maio de 2020, com mais de 600.000 mortes (até 22.11.2021), com base nos dados divulgados pelo site: https://covid.saude.gov.br 22 “[...] a necessidades objetivas e subjetivas da reprodução da força de trabalho de acordo com as exigências do desenvolvimento do próprio modo de produção regido pelo capital.” (HILLESHEIM; GARCIA, 2019, p. 480). Ecoam, dessa amaneira, discursos de melhoria da qualidade da educação, contudo, pautados por uma lógica desenvolvimentista de mercado. Tanto o desempenho do aluno quanto o dos professores se tornam alvos de avaliações que vão medir resultados em função de seu desempenho no ambiente escolar, sob perspectivas neoliberais e neoconservadoras, que, associadas, instigam movimentos de controle sobre a ação docente, a exemplo do movimento Escola Sem Partido (MARTINS, 2019). Ainda nesse primeiro capítulo, com base na ótica Foucaultiana ([1987] 2012), explicito o papel desempenhado pela escola, no estabelecimento de formas de dominação, as quais estabelecem uma governamentalidade tanto em relação aos professores para com seus alunos, quanto da justiça para com a escola, a partir de processos de judicialização de comportamentos que expressam não só o esgotamento das possibilidades de resolução de conflitos, de forma dialógica, mas, também uma disponibilidade de se colocar como sujeito/instituição a ser controlado/a pelos discursos e práticas advindas do direito e da Lei. Na sequência, apresento o subitem denominado “Controle e Resistência: A indisciplina como desafio educacional”, onde debato sobre como a categoria indisciplina toma força no ambiente escolar, ora manifestada como meio de resistência do processo de regulação dos corpos adolescentes, ora tomada como gatilho para que a escola passe a requisitar a entrada do sistema de justiça para a resolução de conflitos do seu cotidiano, nomeando inclusive ocorrências de indisciplina como ato infracional. Tendo a indisciplina como desafio educacional, a escola, na expectativa de combatê-la, acaba por promover processos de exclusão, insistindo na prática de condutas tradicionais de controle e punição, em detrimento de outras estratégias mais pedagógicas (ABLON, 2018). Por oportuno, não se trata de negar a necessidade do estabelecimento de regras no ambiente escolar, ou mesmo de considerar a disciplina como um conceito apenas negativo. Chamo a atenção para a necessidade e a importância de a escola ser, para o aluno, um lugar protetivo e ressignificante, principalmente, para aqueles que apresentem comportamentos transgressores. Afinal, que nem sempre a indisciplina é uma demonstração de falta de vontade do aluno de se comportar bem, todavia, pode explicar sua falta de habilidade para se comportar bem. 23 No subitem, “Transgressores, perigosos, delinquentes e indisciplinados: construções em torno do adolescer (ou da adolescência)”, abordo as construções acerca dessa temática, destacando como muitas vezes os alunos adolescentes são indicados como transgressores, perigosos, delinquentes, antissociais e indisciplinados, em razão de sua condição social. Advirto para a necessidade de se combater práticas e atitudes escolares que insistem em marcar apenas sobre as características negativas ou meramente biológicas, já que a adolescência é um constructo que se configura por múltiplas determinações a partir de relações e condições sociais, culturais e históricas (OZELLA, 2003). Analiso que certos conceitos, como, indisciplinado, transgressor, perigoso ou delinquente, são características de diferenciação que regulam a vida dos adolescentes no ambiente escolar, diante de um poder regulamentador constituído pelos saberes e as normas ali existentes. Esse saber-poder classifica o comportamento adolescente que ou se sujeita ao exercício desse poder, ou o confronta. Indico também o engendramento histórico efetivado pelas áreas de educação e justiça, na constituição de estigmatizações a respeito do adolescer, especialmente dos jovens pertencentes às camadas mais populares, sendo esse engendramento amparado por ideias eugênicas, num claro movimento de criminalização da adolescência pobre (WANDERLEY, 2013). No subitem, “A de judicialização dos comportamentos indisciplinados na escola”, tratei da situação que concerne à transferência de demandas individuais ou coletivas da escola para a apreciação e intervenção do Poder Judiciário, sob a perspectiva da Lei e do direito. Aponto que, ao buscar a judicialização dos processos educativos, a escola estabelece processos de normalização que vão se encarregar de criminalizar os que escapam de seu poder disciplinar. Avalio, nessa discussão, que, não obstante o Poder Judiciário se constitua para reparar injustiças e a violação de direitos, em muitos momentos, revela-se distante e desconhecedor da realidade dos sujeitos escolares. Dessa maneira, questiono quais os motivos que têm levado a escola a recorrer à justiça quando ela própria poderia apresentar resultados mais previsíveis e próximos da realidade de seus alunos. Em seguida, no capítulo dois, exponho o processo metodológico da pesquisa, que foi realizada por meio de coleta de dados nas escolas, em processos judiciais e procedimentos administrativos instaurados junto à Promotoria de Justiça e Vara da Infância e Juventude do Município de Presidente Prudente/SP e por meio de entrevistas, realizadas com educadores que 24 exercem a função de direção e coordenação, nas escolas. As entrevistas foram norteadas por um questionário aberto, havendo o registro por meio de gravação de áudio e vídeo. No Capítulo três, apresento a análise e interpretação dos dados, os quais foram realizados por meio da técnica de triangulação, permitindo-se assim, a combinação do cruzamento de múltiplas fontes e informantes. Finalmente, na conclusão, apresento uma síntese que atravessa toda a pesquisa, bem como faço indicações de possibilidades futuras. 25 CAPÍTULO I – Escola, juventude e indisciplina: construções e contradições No decorrer desta Tese demonstrarei que a relação escola, juventude e indisciplina tem sido colocada em evidência em pesquisas acadêmicas3, bem como trazida à tona pelos meios de comunicação e por diferentes áreas profissionais. Atrela-se ainda, a essa tríade, a questão da violência (sobretudo escolar) vivenciada por muitos educadores, no cotidiano das escolas. Problemas de relacionamento, necessidade de se reforçar no aluno o sentimento de sua dignidade como ser moral, preparando-o para o exercício da cidadania, homogeneização dos comportamentos, ausência parental, desarmonia familiar, controle demasiado, regras injustas e mesmo resistência às metodologias e à autoridade do professor são explicações alegadas para se justificar a ocorrência da indisciplina (comparando-se até ao comportamento antissocial) (MARTINS; BOTLER, 2016; AQUINO, 1998, 2016; CORRÊA, 2017). Na ânsia de buscar soluções, a escola tem recorrido a diversas práticas e até mesmo ao sistema de justiça, no sentido de conter os comportamentos reprováveis dos alunos, em especial aqueles na faixa etária de 12 a 17 anos, a chamada adolescência. Essa faixa etária da vida das pessoas frequentemente é associada a uma fase difícil, quando alguns comportamentos são adjetivados como problemáticos. Desse modo, no imaginário da sociedade em geral, a adolescência é vista como uma fase impregnada de características disruptivas, na qual alguns comportamentos acabam tomando repercussão pública negativa, por contestar os padrões normativos presentes (BOCK, 2007; OZELLA, 2003; TEIXEIRA, 2010; SANTOS; MELO NETO; KOLLER, 2014a/b). Embora comportamentos ditos indisciplinados sejam frequentemente atribuídos aos alunos de menor poder aquisitivo, sustentar a sua ocorrência apenas no meio desse público é apoderar-se de explicações frágeis, já que sua ocorrência está presente também entre escolas particulares e mesmo nas universidades (ROSA e TELLES, 2019). Nessa perspectiva, pretendemos conduzir, de forma mais aprofundada, as discussões que se seguem sobre as construções e contradições que permeiam a problemática da relação 3ALVES, 2016; AMADO; FREIRE, 2009; AQUINO, 2011; BANALETTI; DAMETTO, 2015; BRITO, 2012; FERRARI; ALMEIDA, 2012; FERREIRA, et al, 2016; GOMES; MARTINS, 2016; HAHNE, 2017; JOHN, 2017; JULIANO, 2015; LOPES; GOMES, 2012; MENEGHETTI; SAMPAIO, 2016; MESQUITA, et al, 2016; NGWOKABUENUI, 2015; PESSOA; COIMBRA, 2016; SANTOS, et al, 2014a; SILVA; MATOS, 2017; SILVA NETO; BARRETO, 2018; SILVA et al, 2018; SIMUFOROSA; ROSEMARY, 2014; SOBRINHO, 2014. 26 escola, juventude e indisciplina, bem como as estratégias que vêm sendo utilizadas, a fim de se evitar sua ocorrência, dentro da sala de aula. 27 A educação em tempos de crise: velhos problemas, novas roupagens 28 1. A educação em tempos de crise: velhos problemas, novas roupagens Buscaremos ressaltar, neste capítulo, o estado de coisas que historicamente perpassam as instituições escolares e que, volta e meia, se transmutam e revelam um descompasso temporal que recria elementos mediados entre passado e presente. Dessa maneira, concepções e valores enraizados em momentos históricos específicos são reatualizados, mesmo que com novas roupagens, diante da crise do capitalismo. A educação brasileira, instituída na Constituição Federal de 1988, é direito de todos e dever do Estado, o qual deve promovê-la com a colaboração da sociedade. Apesar dessa instituição, no Brasil, ainda não se estabeleceu efetivamente uma política educacional que dê conta de atender às reivindicações da classe trabalhadora, público-alvo das escolas públicas, de sorte que funcione como uma educação consistente e com os mesmos padrões de qualidade. Acerca dessa realidade, vemos sua precarização geral constatada pelo descumprimento de metas mínimas, que vão desde o esforço de erradicar o analfabetismo ou até mesmo o de universalizar a educação infantil. Não é raro vermos, pelos meios de comunicação, cidadãos brasileiros dormirem em filas gigantescas, na busca de uma vaga na Educação Infantil ou até mesmo no Ensino Fundamental, sem nenhum tipo de garantia que lhes assegure atendimento, apesar do mandamento constitucional de oferta obrigatória (INÀCIO, 2020). No que se refere ao Ensino Médio, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE, 2020) apontam que, no Brasil, 11,5 milhões de pessoas com mais de 15 anos são analfabetas. Essa categoria, engrossa as estatísticas do grupo de jovens a quem se atribui a vivência do fracasso escolar, pois, apesar de adentrarem à escola, nela não permanecem. Assim, cotidianamente, gestam-se contradições na política educacional brasileira, onde o pano de fundo é a desigualdade social, a qual produz a exclusão social de grupos extensos da classe trabalhadora. Em tempos de Pandemia, essa desigualdade foi brutalmente mais exposta, agudizando as desigualdades estruturais (BOSCHETTI; BEHRING, 2021). Patto [1999] (2015), p. 86-87) afirma que, historicamente, a educação brasileira tendeu a deslocar os determinantes do fracasso escolar “[...] para o aprendiz e suas supostas deficiências”, o que se deu devido à filiação histórica de conceitos que apresentavam as dificuldades dos alunos brasileiros de escolar-se, sob a perspectiva da pedagogia e da psicologia. Com isso, conclui a autora, “[...] a pedagogia nova e a psicologia científica nasceram 29 imbuídas do espírito liberal e propuseram-se desde o início, a identificar e promover os mais capazes, independente de origem étnica e social.” Ainda para essa autora, as pesquisas educacionais brasileiras foram, ao longo dos anos, contaminadas pelas ideias liberais que instituíram no corpo discente as diferenças individuais de aptidão, adotando de tal modo teorias racistas importadas dos modelos europeus e reforçadas por diversos autores brasileiros.4 Há que se anotar ainda, nessa direção, a influência de outras áreas de formação, como, por exemplo, a Medicina e o Direito. Predominantemente, são os segmentos mais empobrecidos da população a quem se confere a tese da inferioridade e consequente responsabilidade pelo insucesso escolar. Com isso, as análises sobre as causas das dificuldades escolares seguiram mais centradas no aluno (pobre, negro, mestiço, deficiente) do que nos processos escolares, ora se ressaltando suas características biológicas, ora suas características psicológicas ou sociais, sustentando-se a ideia de que alunos não oriundos da classe social mais privilegiada seriam incapazes de desenvolver suas competências educacionais, de forma igualitária aos demais. Desse modo, predominou o entendimento de que o trabalho pedagógico encaminhado às classes sociais mais baixas era um trabalho “[...] dirigido a crianças inevitavelmente rebeldes, malcriadas, carentes de afeto, apáticas, ladras, doentes, sujas e famintas, e a famílias desestruturadas, ignorantes e desinteressadas.” (PATTO, 2015, p. 139). É somente pela perspectiva materialista histórica que essas ideias passam a ser questionadas, pelas vias do marco de uma sociedade de classes. Desde a década de 1980, já com a ampliação dos estudos de base materialista histórica, enfatiza-se a discriminação social existente no âmbito escolar, levando-se em conta os condicionantes sociais presentes na educação, ressaltando-se a importância da relação psicossocial no relacionamento aluno/professor, em detrimento das concepções tecnicistas que garantiam à escola um lugar confortável de neutralidade, no processo de ensino/aprendizagem, ao permitir a coexistência de padrões desiguais diante de sua clientela socialmente distinta. A partir da ascendência de tais ideias, há melhor compreensão sobre como a escola contribuiu para a manutenção das desigualdades sociais que historicamente demarcaram as propostas de escolarização, na educação pública. Estamos, nesse sentido, evidenciando uma 4 Como, por exemplo, Sílvio Romero, advogado sergipano e crítico literário, que defendia a ideia de necessidade de branqueamento gradual do povo brasileiro. Assumiu e defendeu com veemência a tese de que negros e índios são incapazes de interiorizar sentimentos civilizatórios, o que só aconteceria se os brancos os impregnassem, quer por seu exemplo moralizador, quer pelo cruzamento inter-racial. Ele exerceu influência sobre algumas gerações de intelectuais brasileiros (PATTO, 2015, p. 90). 30 herança que é histórica e que se coloca atual quando problemáticas relacionadas a dificuldades de aprendizagem são atribuídas apenas ao indivíduo, tido como “desajustado” em razão de sua condição ou classe. Saviani (1983, p. 42) sustenta que “[...] o papel de uma teoria crítica da educação é dar substância concreta a uma bandeira de luta de modo a evitar que ela seja apropriada e articulada com os interesses dominantes”, contudo, o que vemos é que, desde sua instituição, prevalecem na escola os interesses dessa classe e, por isso, nos resta questionar: os ditos problemas atuais da educação são os mesmos ou apenas estão transmutados com uma outra roupagem, no momento de crise atual do capital?. Essa crise, segundo Braz (2017), se reflete no Estado de bem-estar social e não expressa somente a crise de um arranjo sociopolítico possível, no âmbito da ordem do capital, implicando cada vez mais ônus sócio-humano de monta. Esse ônus, resulta na restrição de políticas sociais, as quais são vitimadas por ações de contenção/contingenciamento de gastos, seja para garantir o refinanciamento da dívida pública e avalizar a segurança dos credores, seja para atender às expectativas de organismos multilaterais, os quais impõem reorientações de estratégias anticrise e de raiz liberal. No Brasil, além dos efeitos da crise mundial do capitalismo, soma-se a crise sanitária5 e política, onde [...] as elites econômicas e políticas impõem um golpe à democracia, capturando as estruturas do poder da República Federativa, com forte apoio midiático. O bloco dominante vem succionando o orçamento público em favor das finanças, de interesses particularistas das várias frações do capital e dos proprietários fundiários, surdo aos clamores das maiorias. O fundo público, majoritariamente direcionado aos interesses do capital que rende juros tem parcela significativa capturada pela corrupção que grassa os centros do poder em aliança com segmentos do grande empresariado, em detrimento das políticas e serviços públicos e de qualidade. Este quadro apoia-se no braço repressivo e judicial do Estado e na radicalização da violência oficial. (IAMAMOTO, 2018, p. 67). Tal violência tem sua ofensiva entre os segmentos mais fragilizados da população (mulheres, negros, indígenas, jovens e pobres das periferias, por exemplo), nomeadamente no momento atual de reacionarismo radical, quando as relações sociais são tensionadas, ameaçando o legado de direitos conquistados pela população e, consequentemente, agravando suas condições de vida. Nessa conjuntura, a área educacional é duramente tocada, quer com a redução de recursos, quer com a introdução de reformas que buscam atender às demandas econômicas do mercado. A Emenda Constitucional nº 95/2016, por exemplo, limitou por 20 anos os gastos públicos. Muito embora saibamos que a expansão do sistema de ensino público 5 Estamos nos referindo à pandemia da Covid-19. 31 brasileiro voltado à massa da população jamais foi acompanhada de investimentos de verbas públicas suficientes, também é sabido que as reformas educacionais para a melhoria da qualidade da educação necessitam de elevação de volume de recursos financeiros – e não o contrário. Tome-se como exemplo a efetivação do Plano Nacional de Educação (PNE, 2014- 2024). Num total de 20 metas, entre outras, há previsão de formar a metade dos professores da Educação Básica em nível de pós-graduação e elevar seus salários, diminuir o analfabetismo, aumentar a titulação dos professores da educação superior, expandir a educação de tempo integral etc. (BRASIL, 2014). Muitas dessas metas, como já se observa, não estão sendo cumpridas. Tal cenário é agravado com a edição da Lei Complementar nº 173/2020, que, ao fixar o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), instituiu a obrigatoriedade de contenção de despesas, incluindo os Estados e Municípios. Soma- se a isso a desmobilização promovida pelo Governo Federal no processo de aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) e a redução de 18,2% no orçamento do Ministério da Educação, em 2021 (OLIVEIRA, 2020). Nesse contexto, temos uma conjuntura que não é externa à escola; pelo contrário, é nesse cenário que a escola se movimenta, que a educação se materializa. O ente mercado dita regras e impõe o reordenamento do Estado brasileiro, o qual recrudesce as ações de proteção social, flexibiliza direitos e permite que esse mesmo mercado alveje os fundos públicos (de educação, saúde, assistência social, etc.). Do ponto de vista das relações do trabalho, a ampla abertura comercial, o alinhamento aos interesses da economia globalizante e a flexibilização dos direitos trabalhistas, se configuram numa forte ofensiva contra a classe trabalhadora e seus direitos. Com isso, discursos de melhoria da qualidade da educação são tomados como meios de justificar o desemprego ou a crise no mercado de trabalho, sendo a escola tida como incapaz de qualificar os trabalhadores para o mercado. Com isso, cria-se, no âmbito da educação, uma nova subjetividade marcadamente de comportamento empresarial, com o incentivo (e também exigência) de abertura para a participação nos conselhos e órgãos, ligados ao governo, de representantes da iniciativa privada ou de movimentos a ela associados. Desse modo, “[...] cresce a crença na importância da participação de novos fornecedores e gestores de serviços públicos e o Estado passa a ser valorizado como um criador de mercados, favorecendo, regulando e monitorando as ações da 32 iniciativa privada.” (MARTINS, 2019, p. 4). Essas iniciativas colocam o professor como alvo de avaliações que vão estabelecer resultados a partir de seu desempenho, no ambiente escolar, o qual deve estar pautado na lógica desenvolvimentista do mercado. Martins destaca ainda o entrelaçamento, no Brasil, de ideias neoliberais e neoconservadoras, que, associadas, instigam movimentos de controle da ação docente, a exemplo do movimento Escola Sem Partido. Nesse mesmo sentido, observamos a proposta de implantação das escolas cívico- militares6, onde se realça a tentativa de reforçar a disciplina em sala de aula e a preferência para sua implantação em regiões que apresentam situações de vulnerabilidade social e baixos Índices de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Reforça-se a ideia da necessidade de controle sobre as classes sociais menos abastadas, por meio de uma política que se propõe ser focalizada e compensatória, já que compreende que o público-alvo dessa ação é eleito pela sua condição de pobre. Com isso, [...] fazem renascer a esperança na justiça social, mais uma vez graças ao papel democratizante atribuído à escola compensatória que supostamente reverterá as diferenças ou as deficiências culturais e psicológicas de que as classes “menos favorecidas” seriam portadoras. Geram dessa forma, uma nova versão da ideia da escola redentora: será a que redimirá os pobres, curando-os de suas deficiências psicológicas e culturais consideradas as responsáveis pelo lugar que ocupam na estrutura social. Em síntese, partem do senso comum, e apenas o devolvem à sociedade revestido de maior credibilidade” (PATTO, 2015, p. 74). Argumenta Gallo (2019), nessa direção: O que vemos com esse Programa é uma clara intenção: uma “escola de qualidade” para as classes populares, nas quais elas sejam disciplinadas e aprendam a obedecer, enquanto aprendem os conteúdos que farão com que os índices dessas escolas cresçam nas avaliações de larga escala, que fomentam estatísticas como o IDEB. Enquanto isso, a classe economicamente favorecida enviará seus filhos para escolas de elite, nas quais a disciplina é de outra natureza. Como resultado, poderemos ter uma sociedade bem estruturada; mas, por certo, não será uma sociedade democrática e cidadã, mas uma sociedade autoritária, na qual cada um saiba seu lugar. Há que se observar também que, essas escolas já nascem com a proposta de receberem mais recursos, o que talvez mobilize municípios à sua adesão, contudo, sabemos que a educação, de forma geral, é merecedora, desses investimentos. Muito embora não esteja no escopo desta pesquisa problematizar a implantação do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, vale indicar esse momento histórico e político brasileiro, que tende a precipitar-se nos órgãos da justiça infantojuvenil. É oportuno ressaltar 6 O Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares foi lançado pelo Governo Federal, em 5 de outubro de 2019, tendo sido oficializado por meio do Decreto nº 10.004, de 5 de setembro de 2019, sendo prevista a implantação de 216 colégios até 2023. 33 ainda que, esses e outros temas demarcam a corrente antagônica patrocinada pelo governo brasileiro, o qual se esforça em atacar não só a educação, mas também a cultura e o meio ambiente. Nessas circunstâncias, inserem-se na escola dilemas da sociedade anunciados por uma infinidade de fenômenos que cotidianamente despotencializam os corpos, seja dos alunos, seja dos professores. Evasão escolar, indisciplina, violência, bullying, gravidez na adolescência e ato infracional, são apenas alguns desses fenômenos, que coexistem e justificam a continuidade de se realizar pesquisas que possam apontar algumas proposições. Assim, entender o papel da educação e as soluções para os problemas que a perpassam requer, antes de tudo, se apropriar de concepções teóricas capazes de viabilizar uma análise concreta da realidade social dos sujeitos a partir da conjuntura histórica, social e política, pois, “[...] o enriquecimento do processo escolar na busca do não fracasso e do sucesso requer que a escola desenvolva conhecimento aprofundado da cultura local e das condições efetivas da vida das crianças.” (SPOZATI, 2000, p. 9). Vivemos hoje, mundialmente, um campo de embates de ideias, propostas e ações em torno da educação que, nos últimos tempos, está sob forte ataque, conforme analisam Masschelein e Maarten (2013, p. 10/156), o que tende a piorar, no período pós-pandemia da COVID-19. Para esses autores, os fortes ataques sofridos pela escola, quase que decretam sua falência, diante de sua redundância como uma instituição dolorosamente desatualizada e em face de práticas de ambientes (eletrônicos) de aprendizagem. Defendem ainda que, a escola, desde a sua criação, possui uma dimensão democrática e comunista e, ao longo da história, essa dimensão tem sido confrontada com tentativas de a domar. Firmemente, sustentam que há que se ter uma recusa em se endossar a condenação da escola, pois ela “[...] tem o potencial para dar a todos, independentemente de antecedentes, o tempo e o espaço para sair de seu ambiente conhecido, para se superar e renovar (e, portanto, mudar de forma imprevisível) o mundo.” Apesar desse ataque, afirmam que a escola pode ser reinventada, sendo nesse ponto que que reside hoje o grande desafio, não só dos educadores e pedagogos, mas de toda a sociedade, pois não cabe apenas à escola combater o cerco social a que a grande massa da população está submetida, diante do recrudescimento da desigualdade social. Trata-se de um compromisso público, político, ético, de Estado e de pessoas. 34 Desse modo, nosso exercício analítico, nesta Tese, é o de problematizar a judicialização das relações escolares, com a categorização trazida em torno do termo “indisciplina escolar”, no âmbito da etapa do Ensino Médio educacional. Não se trata de analisar a indisciplina escolar apenas, mas de compreender como, em função desta, a escola objetiva, normatiza e realiza abordagens que permitem a entrada de outras forças, outros poderes que atuam, tanto na produção da justiça quanto na produção de injustiças no ambiente escolar. A análise dessa problemática busca ainda compreender como a escola tem identificado atos de indisciplina e os catalogado como atos infracionais, recorrendo à justiça para atribuir sentido a discursos e práticas que, no fundo, refletem a sua incapacidade atual de ampliar as possibilidades de travar diálogos diante dos conflitos próprios e constituintes do fazer educativo. Schilling (2016) salienta que o contexto da indisciplina escolar se evidencia desde o momento em que a escola perde a centralidade do ensinar e aprender, o que ocorre quando há a quebra da promessa institucional de promover o direito humano à educação, que é condição para a realização de outros direitos humanos. Isso faz com que a escola, enquanto instituição, seja esvaziada de sentidos, abrindo espaço para a participação de outros segmentos, como, por exemplo, a justiça para a solução de conflitos próprios das relações escolares. Assim, toma corpo e forma esse fenômeno crescente que é o da judicialização das relações escolares, “[...] onde a justiça – agora mais ágil e acessível – é chamada a dirimir dúvidas quanto a direitos não atendidos ou deveres não cumpridos no universo da escola e das relações escolares.” (CHRISPINO; CHRISPINO, 2008). Tibério (2011, p. 112) pontua que a judicialização das relações escolares deve ser pensada a partir dos efeitos que ela produz no modo de produção do sujeito professor e na prática de subjetivação desencadeada por esse redimensionamento de poder. Logo, a escola, “[...] ao produzir um discurso com preponderância de questões ligadas ao âmbito jurídico vem produzindo um sujeito que faz da sua prática um cálculo legal entre deveres e direitos, enfraquecendo a possibilidade da construção de relações no plano ético”. Pela ótica Foucaultiana, podemos analisar esses efeitos como tecnologias que estão associadas a uma forma de dominação que implica “[...] certos modos de treinamento e modificação dos indivíduos, não apenas no sentido óbvio de aquisição de certas habilidades, mas também de aquisição de certas atitudes” (FOUCAULT, [1982] 2004) p. 324). Trata-se, portanto, de se estabelecer uma governamentalidade tanto em relação aos professores para com seus alunos, quanto da justiça para com a escola. Com efeito, ao judicializar atos 35 comportamentais indisciplinados de seus alunos, a escola não só expressa o seu esgotamento das possibilidades de resolução de conflitos de forma dialógica, mas, também a sua disponibilidade de se colocar como sujeito a ser controlado pelos discursos e práticas advindas do direito e da Lei. Nesse sentido, propõe-se a aceitação de uma moralidade que lhe é externa, mas que, na prática, expressa a busca em estabelecer “[...] uma moralidade social que busca regras para comportamentos aceitáveis em relação aos outros.” (FOUCAULT, 2004) p. 324). Trata-se, assim, de uma articulação de discursos que procura o disciplinamento, mas que ao mesmo tempo aceita a disciplinarização do corpo escolar. Foucault (1999, p. 46) apresenta argumentos de compreensão dessa articulação, ao afirmar que, [...] o processo que tomou fundamentalmente possível o discurso das ciências humanas foi a justaposição, o enfrentamento de dois mecanismos e de dois tipos de discursos absolutamente heterogêneos: de um lado, a organização do direito em torno da soberania, do outro, a mecânica das coerções exercidas pelas disciplinas. Que, atualmente, o poder se exerça ao mesmo tempo através desse direito e dessas técnicas, que essas técnicas da disciplina, que esses discursos nascidos da disciplina invadam o direito, que os procedimentos da normalização colonizem cada vez mais os procedimentos da lei, e isso, acho eu, que pode explicar o funcionamento global daquilo que eu chamaria uma “sociedade de normalização”. Nesse âmbito, o conjunto de elementos utilizados pela escola para estabelecer essas normalizações disciplinares é beneficiado por uma “espécie de privilégio de justiça” (FOUCAULT, 2012) pois além de instituir regras que ocupam um vazio deixado pelas leis, se favorece das regras que a Lei já instituiu. Desse modo, por meio de seus estatutos e regimentos instaura, [...] leis próprias, seus delitos especificados, suas formas particulares de sanção, suas instâncias de julgamento. As disciplinas estabelecem uma “infrapenalidade”; quadriculam um espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapa aos grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença. (FOUCAULT, 2012, p. 170). Foucault destaca ainda que, as normalizações disciplinares cada vez mais esbarram contra o sistema jurídico, mostrando-se incompatíveis, mas são justificadas com a manutenção de um discurso arbitrário sustentado pelo poder saber, com especial ênfase para a área da medicina7, a qual reforça diagnósticos, indica características comportamentais passíveis de serem tratadas, mesmo que não se relacionem com transtornos, mas com comportamentos. 7 Refiro-me aos processos de instituição da neurociência, neuroasceses, neurocultura, neuropsiquiatria; de produção do sujeito cerebral; da auto ajuda cerebral, neuroeducação e medicalização da educação, conforme indicam ORTEGA e VIDAL, 2007; EHRENBERG, 2009; GAUDENZI e ORTEGA, 2012; FIRBIDA e VASCONCELOS, 2019; SILVA, 2019. 36 Constatação que faço empiricamente, é que o cotidiano das Promotorias de Justiça (e mesmo dos Conselhos Tutelares) é pautado por atendimentos a diretores e professores inquietados e com o discurso de “não sei mais o que fazer e por isso vim aqui buscar ajuda”. Essa queixa, geralmente, é acompanhada de um relatório circunstanciado com a qualificação do aluno e com a demonstração do esgotamento de providências já realizadas pela escola em relação ao seu comportamento indisciplinado. Já participei de reuniões com educadores que solicitavam “providências” (entenda-se expulsão) de crianças que ainda frequentavam a Educação Infantil, com a narrativa de que não havia nada mais a ser feito, pois aquela criança “era terrível”, por pertencer a uma família “desestruturada”. O que é que se busca? Que tipo de orientação o Direito pode dar, diferente daquele que a pedagogia vem oferecendo? São dilemas reais e há uma diversidade de entendimentos sobre o que fazer e que respostas dar. Raramente, essas respostas são multidisciplinares, intersetoriais e coletivas ou atendem ao melhor interesse do aluno. Apesar disso, temos clareza de que as interpretações capazes de levar a elas são, acima de tudo, éticas, pois, no espaço escolar, há diferentes visões sobre a educação, o que não é diferente no sistema de justiça, o qual aplica a Lei. É certo, porém, que essa prática reafirma o que já argumentamos acima, a partir dos ensinamentos foucaultianos, a busca de se reforçar pela via da judicialização processos de sujeição. Ao longo da história, as práticas jurídicas conceberam uma forma de saber e de verdade definindo tipos de subjetividade em torno da instituição judiciária e de uma série de outras instituições – incluindo as escolas – que compuseram uma rede de poder, a qual, a despeito de não ser judiciária, desempenha funções da justiça. Não no sentido de punição de infrações, mas no sentido de corrigir as virtualidades dos indivíduos (FOUCAULT, 2012). Dessa maneira, o poder de controle social da escola sobre os alunos institui em seu interior um pequeno tribunal de atuação constante, porque “[...] o sistema escolar é também inteiramente baseado em uma espécie de poder judiciário”. A todo momento se pune e se recompensa, se avalia, se classifica, se diz quem é o melhor, quem é o pior.” (FOUCAULT, 2012, p. 120). Assim, em nome da defesa da legalidade, práticas de governo operadas pelo meio jurídico são executadas no interior das escolas, como formas de controle que almejam se apropriar de uma subjetividade que é, acima de tudo penal: É a lógica da fiscalização, do julgamento e da punição, segundo a qual uns fiscalizam os outros em uma cadeia interminável sustentada no temor e no terror, tendo como 37 base o sistema judiciário: a prática de julgar/condenar, que constitui uma biopolítica orientada ao clamor por castigos (SCHEINVAR, 2011, p. 147). Esse tipo de controle, conforme assinala Foucault ([1973] 2013, p. 94), característico da sociedade disciplinar, é voltado para “[...] as camadas mais baixas, mais pobres, as camadas populares”, presentes nas escolas públicas. Logo, esse aparelho de poder se desloca para grupos específicos, diferenciados pela classe social a que pertencem, pois sobre ela já existem verdades estabelecidas e que justificam não só a vigilância e exame, mas também a constituição de um saber. Esse saber para Foucault, é uma das características do poder epistemológico, nasce “da observação dos indivíduos, da sua classificação, do registro e da análise dos seus comportamentos, da sua comparação, etc.” (FOUCAULT, 2013, p. 119). Nas circunstâncias atuais, vemos a preocupação da educação com a formação profissional como parte constituinte de um projeto de normatividade neoliberal, de desempenho e de performace competitiva. Como afirma Veiga-Neto (2011, p. 38), a escola é uma instituição do maior interesse para o neoliberalismo, porque os processos econômicos “[...] devem ser continuamente ensinados, governados, regulados, dirigidos, controlados.”. Todos devem estar no jogo econômico, a competição deve ser maximizada e, neste sentido, à escola caberia ensinar técnicas que possibilitem a gestão do capital humano e a ratificação do sujeito que deverá aprender permanentemente, pois a finalidade maior desse tipo de vigilância e controle está em transformar a vida humana em força produtiva. O aluno é, nessa linha, concebido como recurso político em uma realidade governável por forças que reclamam uma regulação através “[...] um conjunto de técnicas performativas de poder” que o incitam “[...] a agir e operar modificações sobre sua alma e corpo, pensamento e conduta, vinculando-o a uma atividade de constante vigilância e adequação aos princípios morais em circulação na sua época.” (Ó, 2011, p. 177). Neste sentido, a escola segue como expressão de governo e regulação moral das massas, dos comportamentos, do tempo e espaço, visando o aumento da força de produção e ao estabelecimento de uma racionalidade política neoliberal, a qual que impulsiona ações de autogoverno para que os sujeitos busquem segurança apenas na mercadoria. Logo, recai sobre a escola, e, consequentemente, sobre o professor, a defesa de interesses econômicos, políticos e ideológicos que são muitas vezes escamoteados nos textos legais, sob a escusa de melhoria da qualidade da educação, mesmo que os próprios professores sejam nestes renegados com o pretexto da necessidade de contingenciamento de verbas. Executores e na linha de frente do trabalho pedagógico, reproduzem ideias e conteúdos prontos, 38 muitas vezes impostos, pois sequer são ouvidos ou consultados sobre esses conteúdos, não tendo “[...] o direito nem o poder de participar das decisões político- pedagógicas sobre a educação que praticam”, já que “[...] elas são reservadas aos donos do poder político e às pequenas confrarias de intelectuais constituídas como seus porta-vozes pedagógicos” (BRANDÃO, 2013, p. 100). Há que se considerar também, os modismos pedagógicos impostos ao professor sob o discurso da necessidade de se fazer frente à pedagogia tradicional e de atender às demandas do mercado apresentando-se com isso uma pedagogia que é, acima de tudo, de resultados. Conforme avalia Frigotto (2011, p. 245), [...] dentro dessa lógica, é dada ênfase aos processos de avaliação de resultados balizados pelo produtivismo e à sua filosofia mercantil, em nome da qual os processos pedagógicos são desenvolvidos mediante a pedagogia das competências. Veem-se ainda ameaçados pelos movimentos neo- e ultraconservadores, tais como Escola sem Partido, que além de propor um monitoramento constante sobre a ação docente, o faz por meio de táticas intimidatórias num franco processo de criminalização do professor com a nítida intenção de restrição à liberdade de expressão. Ademais, a defesa em torno do ensino familiar (homeschooling) que desqualifica a ação docente, nega a diversidade de pessoas além de privar da experiência de vida e de socialização que só a escola proporciona (TOMMASELLI, 2018; BOTO, 2018). Apesar de todas as discussões acerca das condições de trabalho do professor e das inúmeras reinvindicações por ele protestada, vemos, na ação docente, dificuldades que aumentam cotidianamente, culminando em sentimentos de insatisfação, sofrimento, pessimismo e adoecimento da categoria profissional. Com isso, acrescem-se os índices de absenteísmo e se amplia a frequência de problemas de saúde relacionados à ansiedade, estresse, insônia, dores de cabeça e nos membros, conforme apontam Carlotto, Câmara e Oliveira (2019), em pesquisa interessada em identificar o poder preditivo dos estressores ocupacionais para a tendência ao abandono profissional de professores. Além do abandono profissional do professor, as autoras constataram que o pensamento ou a intenção de abandonar a profissão também se configura como problema na ação docente, porque, apesar de o professor comparecer à escola, ministrar suas aulas e cumprir obrigações burocráticas, ele as efetiva apenas dentro de um limite mínimo e necessário para a manutenção do emprego, executando suas obrigações muito abaixo de seu potencial laboral. Pesam ainda sobre a docência fatores intraescolares, tais como o ambiente de aprendizagem, a organização 39 da escola, a gestão escolar, a falta de recursos materiais, espaço físico inadequado, entre outros. A gestão escolar, comumente associada com a liderança do diretor, tem-se mostrado relevante, a fim de manter um ambiente propício para a aprendizagem e favorecer o desenvolvimento de um trabalho coletivo (OLIVEIRA; CARVALHO, 2018, p. 5). Por oportuno, o trabalho profissional docente é duramente tocado, quando a conjuntura social e econômica afeta a área educacional, seja com a redução de recursos, seja com a introdução de reformas para atender às demandas econômicas do mercado. Dessa forma, a crise vivida na sociedade se reflete negativamente no ambiente escolar e na ação docente, sendo sempre adequada a abertura do diálogo para se ampliar o entendimento sobre a importância da educação na constituição dos sujeitos, a qualquer momento. Como se observa, os efeitos causados pela pandemia da Covid-19 (NOBRE, 2020; SANTOS, et al, 2020; GUIZZO; MARCELLO; MULLER, 2020) acentuam ainda mais os condicionantes políticos, econômicos, sociais e mesmo ideológicos que incidem e atingem sobremaneira a sociedade e, por consequência, a escola. Além de provocar um apagão educacional que terá grande impacto no aprendizado dos alunos da escola pública, a crise escancarou todos os problemas mais e menos conhecidos da educação, bem como fez ressurgir outros poucos debatidos, tais como a realização de atividades remotas, teletrabalho, metodologias de avaliação fora do contexto de frequência regular dos alunos, exclusão escolar, matrículas de alunos oriundos de escolas particulares e outras questões afetas não só à educação, mas também a outras áreas como saúde e assistência social, que inclusive terão de se voltar para o atendimento de uma demanda ainda maior, frente aos impactados sociais causados Silva (2009, p. 185) pontua que, a expansão e internacionalização da economia capitalista, as mudanças aceleradas nas formas de organização do trabalho, o desemprego, a proliferação de empregos precários, bem como “[...] discursos vulgares que induzem os cidadãos a pensar que a falta de emprego é devida a não qualificação dos indivíduos”, acabam, de forma acrítica, atribuindo à escola “[...] a incapacidade estrutural para preparar os estudantes em função das (supostas) necessidades da economia.” Esse panorama tende a piorar no momento atual de crise sanitária, na medida em que os municípios e Estados apresentem retração em seus orçamentos, e justificam a dificuldade de mais investimentos nas políticas públicas com base na queda da arrecadação de impostos e no aumento de despesas diante de medidas emergenciais que necessitaram ser tomadas pelo distanciamento social, tais como a 40 compra de equipamentos de proteção individual, materiais de limpeza e higiene, além de equipamentos destinados à realização de ensino remoto. Paro (2016, p. 391), ao analisar a escola pública, indica que nas camadas populares os pais expressam experimentar sentimentos de medo e reserva diante da instituição escolar que adota uma postura de fechamento em relação a qualquer tipo de participação. Além de sentirem constrangidos em face das relações formais e informais que se dão no interior da escola, há receio de que represálias possam ser cometidas contra seus filhos, tanto pelos professores quanto aos demais profissionais. “Às voltas com necessidades tão prementes, a escola em seu todo e as pessoas que aí atuam em particular, acabam deixando para um plano secundário a preocupação com medidas tendentes a criar uma dinâmica interna de cooperação e participação” (PARO, 2016, p. 361). O autor complementa: Na prática docente, parece muito difícil para o professor estabelecer relações dialógicas na sala de aula, se ele se encontra desestimulado com a deficiente formação profissional de que pode conseguir com as inúmeras preocupações decorrentes do baixo nível de vida proporcionado por seu salário. (PARO, 1992, p. 43). Ao considerarmos as diferentes características regionais brasileiras e suas disparidades socioeconômicas, evidenciam-se com maior ênfase os inúmeros problemas que assombram a educação brasileira e, como consequência, balizam a crescente desvalorização profissional da docência. De outro lado, vê-se o incremento no ensino particular, num franco processo de mercantilização da educação, quer nos ensinos fundamentais básicos, quer na graduação profissional, fomentando assim padrões de excelência divergentes e destinados à uma classe social pré-determinada. Para além dos condicionantes estruturais (sociais, políticos, econômicos e sanitários), devemos considerar também a subjetividade presente nas relações pessoais, seja por parte do aluno, seja por parte do professor, que se afetam mutuamente. Contudo, no campo da ética a prática docente deve se comprometer com a ação solidária exigida no trato com o aluno. Por isso, conforme analisam Araújo e Pizzi (2016), na atividade docente, a subjetividade de cada professor pode afetar diretamente, de forma positiva ou negativa, o seu estilo profissional, podendo comprometer o seu poder de agir, tendo em vista que a carreira profissional estará sempre “[...] mediada por um conjunto de elementos complexos, que se articulam, tensionando a totalidade da forma de sentir, pensar e agir do sujeito” (SOARES; BARBOSA; ALFREDO, 2016, p. 115). Logo, a consideração da história de vida do aluno é de suma importância e irá refletir diretamente na atividade docente. 41 No caso do professor, trata-se de como ele vai se constituindo profissionalmente a partir do exercício da função docente, da sua história de vida escolar, de como afeta e é afetado pela atividade da qual participa e dela se apropria, por meio da socialização de significados e produção de novos sentidos (SOARES; BARBOSA; ALFREDO, 2016, p. 117). Desse modo, a análise da prática profissional deve ser uma constante na constituição do fazer, muito embora saibamos que é um campo de difícil implementação, pois não se trata apenas de pensar o fazer profissional de forma objetiva, mas de forma a levar em conta que o professor é, [...] um sujeito que é dialética e historicamente mediado por diversos elementos objetivos e subjetivos inclusive, aqueles que dizem respeito às suas ações didáticas. [...] um sujeito que afeta e, ao mesmo tempo, é afetado pela atividade da qual participa em sala de aula (SOARES, BARBOSA; ALFREDO, 2016). Devemos, pois, considerar que, o professor não está solto ou desvinculado da realidade social que o cerca e o constitui, da mesma maneira que o seu aluno também não o está. A desconsideração dessa vinculação irá certamente acarretar num estranhamento na relação aluno/professor. Por conseguinte, discutir a crise da educação requer a contextualização da conjuntura de cada época, porque como bem já enfatizou Arendt (2016), a crise da educação está fortemente ligada à crise geral da modernidade. Momentos de crise requerem uma resposta, é “[...] o momento em que podemos perguntar o que é algo, o momento de nos colocarmos em situação de questionar o fundamento de nossas atividades mais importantes, o começo de uma revisão crítica.” (PORCEL, 2017, p. 78). Dessa forma, é importante observar, que, em que pese o momento vivenciado pela Pandemia da COVID-19, a qual como fenômeno sanitário, escancara os problemas já existentes e tensiona ainda mais a chamada crise na educação brasileira, não se pode perder de vista a necessidade de constância no investimento nas relações cotidianas do ambiente escolar, sobretudo, na relação entre professor e aluno, por mais difícil que seja o presente. A escola deve ser um ambiente de confiança das famílias e de proteção dos alunos onde as relações sociais devem se estabelecer sob a ótica de propostas pedagógicas e metodologias que propiciem não só o acesso, mas, principalmente, a permanência do aluno na escola. 42 1.1 Controle e Resistência: a indisciplina como desafio educacional De nada serve, a não ser para irritar o educando e desmoralizar o discurso hipócrita do educador, falar em democracia e liberdade mais impor ao educando a vontade arrogante do mestre. (FREIRE, [1996] 2016, p. 61). A partir do comportamento tido como indisciplinado, a escola tem acionado o sistema de justiça para “solucionar o problema”, demonstrando uma clara e perigosa tendência de criminalizar os comportamentos dos alunos. Não temos como negar que essa tendência traz consigo a lógica de se atribuir periculosidade a esses comportamentos, confundindo-se indisciplina com ato infracional. Muito embora a especificidade aqui analisada recaia sobre a categoria indisciplina, é importante observar que, essa tipologia não deve ser confundida com outras ocorrências. Conforme ressalta Aquino (2011, p. 467), há que se fazer, [...] diferenciação entre as noções de incivilidade, de indisciplina e de violência. Isso porque não é infrequente que os três vocábulos se apresentem amalgamados sob o mesmo manto semântico-pragmático de problemas disciplinares. Mais do que por uma ambiguidade linguística ou um vício formal, os três termos parecem ser frequentemente compreendidos como se portassem uma semelhante raiz causal, ou como se se tratasse de uma sucessão progressiva: da indisciplina à incivilidade, e desta à violência Awalyaa, et al. (2020) frisam que a incivilidade se refere a qualquer comportamento ou expressão que tende a ser rude, podendo ser notada por meio de comportamentos que atrapalhem o processo de ensino e a aprendizagem, impedindo que outros participem das aulas. Charlot (2002, p. 437) propõe que, para situações de violência, devem ser reservados os comportamentos que atacam a Lei, tais como, lesões, extorsões, tráfico de drogas e insultos graves. Já para a incivilidade, não haverá contradição nem à Lei, nem ao Regimento Interno escolar, mas, às regras de boa convivência, tais como, empurrões, palavras ofensivas, desordens, pequenas grosserias, piadas de mau gosto, situações comumente chamadas de “falta de respeito”. Reconhecendo que fazer a distinção entre os termos não é tarefa das mais simples, Charlot a entende como útil para que não se misture tudo em uma única categoria e também porque essa distinção “[...] designa diferentemente lugares e formas de tratamento dos fenômenos” (CHARLOT, 2002, p. 437). 43 Assim, uma situação de tráfico de drogas não depende do Conselho de Classe da escola, mas do sistema de justiça; inversamente, um insulto ao ensino deve ser tratado pelas instâncias da escola e não se justifica que se acione o sistema de justiça. Quanto à incivilidade, ela depende fundamentalmente de um trabalho educativo (CHARLOT, 2002, p. 437). Questões envolvendo indisciplina em sala de aula, em todo o mundo, constituem das queixas mais comuns dos professores, conforme apontam inúmeras pesquisas.8 O Teaching and Learning International Survey (TALIS), pesquisa internacional sobre ambientes de aprendizagem nas escolas e as condições de trabalho dos docentes e diretores (2008 e 2013), apontou que, no Brasil, os professores brasileiros são os que mais relatam gastar maior quantidade de tempo mantendo a ordem na sala de aula, consumindo 20% de seu tempo de aula, diante da média de 13% em outros países. Associada ao tema da indisciplina está também a questão da violência, a qual adquire importância acadêmica, a partir de meados da década de 1980, conforme assinalam Silva Neto e Barreto (2018). Já Aquino (2016), um dos precursores na discussão da temática indisciplina, argumenta que é, desde os anos de 1990 que especificamente o tema ganha força e forma, no interior da educação brasileira. Ainda segundo Silva Neto e Barreto, não há consenso em relação ao conceito de indisciplina e, por isso, sua definição não é única ou universal. Ressalvam, porém, os autores que é possível, notar-se observar um deslocamento entre os termos indisciplina e violência, “[...] de modo que um ato de indisciplina pode se desdobrar em ato de violência”. Há consenso, porém, que, “[...] a indisciplina e a violência na escola são fenômenos sociais e, consequentemente, escolares que devem ser estudados a partir das interações e não apenas considerados como consequência de deformação ou desvio dos alunos” (SILVA NETO; BARRETO, 2018, p. 3-4). Garcia (2013, p. 96) concebe a indisciplina como “[...] uma instabilidade e ruptura no contrato social da aprendizagem. Ela é, assim, uma força que atua no tecido da relação entre educadores e alunos, que sustenta o desdobrar do currículo”. Parrat-Dayan (2015, p. 19) afirma que o conceito de indisciplina pode ter significados diferentes: [...] se, para um professor, indisciplina é não ter o caderno organizado; para outro, uma turma será caracterizada como indisciplinada se não fizer silêncio absoluto e, já 8ALVES, 2016; AMADO; FREIRE, 2009; AQUINO, 2011; BANALETTI; DAMETTO, 2015; BRITO, 2012; FERRARI; ALMEIDA, 2012; FERREIRA, et al, 2016; GOMES; MARTINS, 2016; HAHNE, 2017; JOHN, 2017; JULIANO, 2015; LOPES; GOMES, 2012; MENEGHETTI; SAMPAIO, 2016; MESQUITA, et al, 2016; NGWOKABUENUI, 2015; PESSOA; COIMBRA, 2016; SANTOS, et al, 2014; SILVA; MATOS, 2017; SILVA NETO; BARRETO, 2018; SILVA et al, 2018; SIMUFOROSA; ROSEMARY, 2014; SOBRINHO, 2014. 44 para um terceiro, a indisciplina até poderá ser vista de maneira positiva, considerada sinal de criatividade e de construção de conhecimentos. Boarini (2013) salineta que a indisciplina escolar é um fenômeno sem nacionalidade, endereço ou classe social e além de revelar “[...] os conflitos velados da instituição”, pode significar “[...] a insatisfação com uma escola, que dia a dia torna-se cada vez mais anacrônica e incompetente para cumprir sua função social”. Conforme Aquino (2011, p. 467), a indisciplina como “[...] um conjunto de micropráticas transgressivas dos protocolos escolares (sem contar a razoabilidade, ou não, desses), cujos efeitos se fazem sentir imediatamente na relação professor-aluno”. Ele observa, ainda, que violência e indisciplina não devem portar “[...] feições semelhantes e nem uma causalidade comum, uma vez que os contratempos disciplinares se definem não pelo emprego da força, mas tão somente por condutas tidas como avessas às convenções normativas ali em uso.” O autor ressalta ainda que [...] a noção de indisciplina circunscrever-se-ia à refração à ordem regimental em vigor em determinado âmbito institucional ou, no limite, como invalidação desta. Mais especificamente, os atos indisciplinados, em sua maioria, atêm-se à violação das normas operacionais e de convívio ali norteadoras, seja por sua obscuridade ou rigidez excessivas, seja por sua implausibilidade ou, ainda, sua ineficácia (AQUINO, 2011 p. 468). Por essa linha de pensamento, tratando-se especificamente de descumprimento de um regimento ou normas de convívio pré-estabelecidas no âmbito escolar, não se justificaria o uso da judicialização das condutas de indisciplina. Alves et al. (2015) asseveram que as escolas se preocupam em receber alunos indisciplinados, pois entendem que esses vão prejudicar o andamento do seu trabalho. Com isso, acabam estabelecendo critérios para seleção destes alunos (o relacionando com sua escola de origem, o local em que se situa a escola, o local de moradia, distorção entre idade e série, análise do prontuário escolar, entre outros fatores), os quais são associados ao imaginário que os caracteriza como maus alunos: Na ausência de comprovação do bom comportamento de um aluno, um processo de “investigação”, termo usado por alguns dos secretários, pode ser realizado para obter evidências. A principal estratégia consiste numa espécie de entrevista com pais e candidatos, em que se busca apreender os motivos que justificam a demanda por vaga e possíveis desvios de conduta. A entrevista, muitas vezes, é suficiente para oferecer indícios aos secretários de que o estudante não corresponde às expectativas da escola, em função de seu comportamento durante a matrícula e das informações dadas pela mãe. (ALVES et al., 2015, p. 145). 45 Ainda segundo os autores, com a expectativa de combater a entrada de alunos indisciplinados, a escola acaba por promover processos de exclusão, efetuando avaliações que buscam selecionar características comportamentais que poderiam, a priori sugerir o perfil do aluno ideal e não indisciplinado. Santos et al. (2014), ao pesquisarem sobre a representação do aluno ideal por professores, apontaram que este deve ser estudioso, questionador, educado, que presta atenção e é participativo, respeitador, que melhora o trabalho do professor, e pensa no seu futuro. Fixados no aluno idealizado que inexiste, os professores desconsideram o vir-a-ser de possibilidades dos alunos-adolescentes, e até mesmo desautorizam sua inserção social, produtiva e realizadora. Nesta direção, podemos afirmar que se aprofunda o tensionamento na relação professor-aluno, posto que não há correspondência entre o comportamento que é idealizado pelos professores e a postura adolescente em sala de aula. (SANTOS et al., 2014, p. 191). Partindo dos apontamentos de Foucault (2012), a escola é trazida como uma das instituições de exercício de poder e de disciplina. Nesse ambiente, o poder se inscreve nas microrrelações onde a disciplina é uma tecnologia para o seu exercício que visa o disciplinamento do corpo como uma forma de adestramento e condicionamento pela via do controle do tempo, do corpo e do espaço. Dividir o indivíduo no espaço quadriculado e localizado em lugares determinados é estratégia de vigilância e, ao mesmo tempo, de controle de utilidade do espaço, afirma Foucault. O aluno disciplinado é, pois, aquele treinado para tanto; é aquele que, através do seu corpo, transmite a noção de docilidade, ou seja, não se levanta do lugar, não conversa com outros colegas, é assíduo, não fala quando não tem autorização; é quieto, silencioso, não usa o celular, obedece e acata. Porém, sabemos, que, na prática, as relações não possuem uma linearidade e são acima de tudo contraditórias, motivo pelo qual necessariamente haverá oposições e contra-condutas. Ainda na perspectiva foucaultiana, na medida em que a escola produz esse aluno disciplinado e obediente, ela cumpre não só o papel de produzir corpos dóceis e submissos, mas também o de aumentar a utilidade desses corpos. Nesse sentido, ao mesmo tempo que utiliza esse disciplinamento para manutenção da ordem e da normatividade a instituição escola, determina com isso um investimento político, afinal “[...] um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente” (FOUCAULT, 2012, p. 147), já que, para a escola, a associação boa aprendizagem e bons resultados está intimamente associada à boa disciplina. 46 Foucault (2012) indica que esse investimento político se dá por meio de uma microfísica de poder que é celular, que se desenvolve através de um conjunto de elementos distintos: o controle do tempo, dos comportamentos, das atividades, dos espaços, das relações, do corpo, de uma maneira que ele seja suscetível de utilização e controle. Duarte (2010, p. 218) adverte que “[...] o corpo se mostra como instância privilegiada de atuação dos micropoderes disciplinares, sendo concebido como campo de batalha no qual se travam conflitos cotidianos entre as exigências sociais da normalização disciplinar institucional e as linhas de fuga da resistência”. Acrescenta que, “[...] onde há poder também se instauram estratégias de resistência, que voltam a potência criadora da vida contra os processos de assujeitamento.” Daí que o comportamento indisciplinado configura ser a manifestação de movimentos de resistência do aluno, em face do controle exercido sobre ele, pelas normas disciplinares. De tal modo, problematizar o tema da indisciplina a partir da complexidade dos processos pedagógicos e das práticas disciplinares associadas à obediência à figura do professor como uma autoridade dentro da escola, permanece sendo importante, porque essa autoridade não é outra coisa senão exercício de poder. Santos, Pereira e Rodrigues (2013, p. 585) destacam a existência de uma lógica docêntrica que acompanha a figura do professor, “[...] centro de todas as atenções, autoridade de saber, de ordem, de determinação, de onde emanam todas as decisões, respostas e perspectivas de produção do conhecimento.” Tratar, pois, da questão da autoridade do professor na escola é refletir sobre relações de poder próprias da vivência em sociedade e, nesse sentido, devemos considerar quais são os alicerces de construção da ética social vigente e as bases de sustentação do sistema dominante, as quais amparam certas práticas de poder que vão sendo cristalizadas entre nós. Percebo que esse recorte é importante de ser debatido, tendo em vista os pretextos utilizados para relacionar a ocorrência da indisciplina, em função da ótica do desrespeito à autoridade do professor, em sala de aula, notadamente por determinados grupos sociais (pobres, pretos, com deficiências, LGBTQ+, sucedidos “da família desestruturada” etc.). Alonso (2018) confirma a expectativa construída historicamente em torno da ação docente, a qual alçou a figura do professor como autoridade no ambiente escolar, seja por sua formação pedagógica, seja como figura moral a pautar a consciência dos alunos. Vemos, porém, o declínio dessa autoridade a qual muitas vezes, é banalizada e transformada em rejeição, resistência e mesmo violência (SANTOS; PEREIRA; RODRIGUES, 2013). Arendt (2016) sublinha que a autoridade traz uma característica única que não diz respeito apenas ao lugar de 47 hierarquia (de pessoas ou instituições), mas também do reconhecimento dessa autoridade por parte daquele que obedece. Afirma ainda que a perda da autoridade (de uma forma geral e na escola) está diretamente vinculada ao modo de vida instaurado pela modernidade. Ainda com base nas ideias arendtianas, Birulés (2017, p. 130) enfatiza que [...] o problema da educação no mundo moderno radica no fato de que, por sua própria natureza, esta não pode renunciar à autoridade, nem à tradição e, ainda assim deve se desenvolver em um mundo que já não se estrutura graças à autoridade, nem se mantém unido por meio da tradição. Pelo contrário, no mundo moderno, o presente é supervalorizado e apresenta uma geração de alunos que além de estar em descompasso com a tradição e o passado são profundos consumidores de tecnologia, que muitas vezes não está disponível aos professores, inclusive pela falta de domínio destas. De acordo com Arendt ([1954] 2016, p. 10), a escola se interpõe entre o domínio privado do lar e o mundo que deve ser apresentado a um novo ser, a criança, na condição de aluno. É nesse processo de apresentação do mundo a esse novo ser (a criança ou o jovem) que a autoridade do professor toma forma. Para ela, “[...] os educadores fazem sempre figura de representantes de um mundo do qual, muito embora não tenha sido construído por eles devem assumir a responsabilidade, mesmo quando, secreta ou abertamente, o desejam diferente do que é.” A autora ainda entende que [...] “quem se recusa a assumir a responsabilidade do mundo não deveria ter filhos nem lhe deveria ser permitido participar na sua educação”. Ela diferencia a autoridade e a competência do professor, destacando que “no caso da educação, a responsabilidade pelo mundo toma a forma da autoridade.” A autoridade do educador e as competências do professor não são a mesma coisa. Ainda que não haja autoridade sem uma certa competência, esta, por mais elevada que seja, não poderá jamais, por si só, engendrar a autoridade. A competência do professor consiste em conhecer o mundo e em ser capaz de transmitir esse conhecimento aos outros. Mas a sua autoridade funda-se no seu papel de responsável pelo mundo (ARENDT, 1954, p. 10). Nessa linha, o educador é totalmente responsável pelas verdades que produz, verdades que determinam a vida. Resta compreender qual a verdade que se busca - e isso vai além de se dominar conteúdos, já que há muitas verdades produzidas, discursos que nos tomam a todo momento e que se embatem. Arrazoar que os educadores estão todos do lado do bem, é uma visão romântica e até mesmo ingênua. O professor, ser social como seu aluno, está inserido numa estrutura muito maior que a sala de aula. Fazer-se professor é um processo que exige uma 48 disposição ética, fazer escolhas, conhecer o ambiente escolar, conhecer o aluno, ter clareza de quais sãos os fins da educação. Assim, há que se considerar que as concepções de autoridade, tanto do aluno quanto do professor possuem um elemento subjetivo, que está relacionado ao processo de reprodução social e à criação de valores constituídos na particularidade do indivíduo, na sua formação social e na dinâmica das relações travadas no ambiente escolar, mas que se configuram necessariamente no processo histórico de sua constituição enquanto ser social. É na reprodução social e nas condições sociais objetivas de cada momento histórico que o indivíduo atribui valor às coisas, se contrapõe ou reafirma tais valores, segundo as suas concepções de mundo, normas e conceitos morais. Nesse sentido, nem todos os grupos sociais vão atribuir “autoridade” à figura do professor, como aquele a quem tem o direito de se fazer obedecer. Lemos (2012) e Manacorda (2004) inferem que a exigência do respeito à autoridade do professor, historicamente, foi capaz de reproduzir práticas que aceitavam até o castigo físico como meio pedagógico e como forma de indicar os limites de sua autoridade, dentro da sala de aula, situação não mais aceita na atualidade, felizmente. Adorno (1995) destaca uma ambivalência arcaica em relação à imagem do professor, enquanto outras profissões, como, por exemplo, os médicos e os juristas, os quais ficaram livres dela. Entende que a opinião pública tende a não levar a sério o poder dos professores por ser um poder sobre sujeitos civis não totalmente plenos (crianças e adolescentes). Inferimos ainda das pontuações de Adorno, que uma imagem negativa em relação ao uso de práticas que aceitavam castigos corporais acompanhou o professor, mesmo após sua proibição. “Esta imagem representa o professor como sendo aquele que é fisicamente mais forte e castiga o mais fraco.” (ADORNO, 1995, p. 105). Há que se considerar também que a proibição de condutas autoritárias não significa dizer que houve a aceitação, por parte dos professores, sobretudo, no caso dos docentes mais antigos, onde a formação não corrigiu o que Adorno (1995, p. 115) chamou de “deformação psicológica.” Esse pressuposto de autoridade é questionado pela indisciplina, que pode se manifestar por meio de sinais de desinteresse pela forma como as aulas são ministradas, pelas metodologias aplicadas ou pelos conteúdos ensinados, ocasiões em que reverberam na autoridade do professor, comportamentos do aluno que invalidam a “naturalidade” da obediência. Esse questionamento ou invalidação confrontam igualmente essa lógica de correção e treinamento estabelecido para a manutenção da disciplina na escola. Ao produzir estratégias de 49 resistência ao poder disciplinador apresentado pela autoridade do professor, esse comportamento geralmente é interpretado como ato de indisciplina. Assim, o aluno vai sendo individualizado no ambiente escolar ao ponto de ser elevado à condição de infame, em face da não submissão às exigências sociais de normalização disciplinar da escola. Infames, no sentido foucaultiano quando são tratados como personagens obscuros, “[...] por causa das lembranças abomináveis que deixaram, dos delitos que lhes atribuem.” (FOUCAULT (2003), p. 18). Salienta Duarte (2010, p. 222). Nas sociedades disciplinares, a individualização não resulta mais da posse de uma individualidade que se manifeste em traços de distinção adquiridos por nascimento, posses, tradição etc., mas se define por meio da transformação do indivíduo em "caso", em "objeto" de conhecimento: é o poder disciplinar que individualiza e fabrica o "homem calculável", distinguindo e classificando os indivíduos entre normais e anormais, tomando a norma e seus desvios como referência padrão na hierarquização dos comportamentos. Essa individualização, de um lado, permite à escola exercer práticas tradicionais de punição, que vão desde a advertência até a expulsão compulsória do aluno ou mesmo o encaminhamento do “caso” a outras instâncias (Conselho Tutelar, Judiciário, Promotorias de Justiça) como forma de resolução do problema. Nesse percurso, são reunidos rudimentos que irão colocar o aluno na obscuridade já que diferenciar é uma característica do poder disciplinador. Sob a ótica foucaultiana, essa obscuridade se evidencia quando o comportamento do aluno questiona a ordem disciplinar vigente (FOUCAULT, 2003). Ainda sob a perspectiva foucaultiana (2012, p. 138), a escola, como instituição disciplinar, se organiza de sorte “[...] a estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos”, mecanismos que visam não