UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS - RIO CLARO Licenciatura em Pedagogia Erika Rodrigues MOSAICOS: ESCRITA-FLUXOS Rio Claro 2009 5 LICENCIATURA EM PEDAGOGIA ERIKA RODRIGUES ORIENTADORA: Profª Drª MARILENA AP. J. GUEDES DE CAMARGO MOSAICOS: ESCRITA-FLUXOS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Câmpus de Rio Claro, para obtenção do grau de Graduado. Rio Claro 2009 6 800 R696m Rodrigues, Erika Mosaicos : escrita-fluxos / Erika Rodrigues. - Rio Claro : [s.n.], 2009 85 f. : il., fots. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura - Pedagogia) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro Orientador: Marilena Aparecida Jorge Guedes de Camargo 1. Literatura. 2. Escrita. 3. Movimentos de sentido. 4. Devir. I. Título. Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP 7 Agradecimentos A todos os que me acompanham. A todos que já se despediram. Ao meu pai: por todos os silêncios. Para Thiago: por todos os olhares. À amiga Fernanda: por todas as palavras. 8 1 Introdução O presente trabalho iniciou seu pensamento no ano de 2008, quando me deparei com uma situação nova: lecionar em uma classe de 1º ano, em uma escola pública da cidade de Rio Claro – escola municipal “Antônio Maria Marrote”. Partindo desta situação, das expectativas e questionamentos que ela mobilizava inevitavelmente, comecei a me indagar a respeito da preocupação central do trabalho – a questão da escrita. Entretanto, essa questão perpassava outros âmbitos além da situação de alfabetização na qual eu estaria envolvida. Trata-se, antes de tudo, da escrita que me acompanha desde muito tempo, escrita que engendra seus desígnios entre maneiras do meu sentir cartografado em letras. Escrita que necessito escrever, que me mobiliza, na qual não tenho escolhas. Escrevo. E, a partir do inicio das aulas, grande parte do trabalho proposto se encontrava no fato de que ensinaria a escrever. Entre as diversas questões que se delinearam em mim após constatar este fato, a que mais me afetou foi perceber que, embora eu sentisse a escrita em seus fluxos; escrita sensível, olhar a folha em branco e vislumbrar sentidos, me permitir senti-las e escrevê-las - essa concepção de escrita não se evidenciava fortemente presente no cotidiano escolar. Ao pensar a respeito da escrita-fuxos em detrimento à escrita entendida como técnica, uma questão principal se delineou: qual a origem dos fluxos? Se desejo alimentar a aprendizagem desta escrita é necessário conceber sua natureza e sua gênese. Qual o motor que desencadeia essa necessidade de escrever abandonando as letras sobre o papel, sendo tomada como que por uma entidade que, em seu profundo silêncio, faz movimentar gestos, vozes, cenários, imagens diversas de cultura, homem, mulher, civilização? O que permite e desencadeia tal fluxo? Quais os modos de encontrar com as possibilidades do escrever que não se restringe à técnica, à decodificação em detrimento ao sabor. 9 Chegar à escola e perceber os contornos, as pessoas, os espaços, as cores, os vestígios de cotidiano me convidou a sentir as expectativas de estar, viver, potencializar, mover-me nesta experiência. O primeiro momento deste encontro me trazia a sempre nova impressão de que os lugares estavam em transito, todas as coisas pareciam moverem-se: as carteiras, as pessoas, os olhares. Quais movimentos aconteciam em relação à escrita? Aconteciam? Onde? De que maneira eu poderia configurar estratégias para seduzir as crianças? O que poderia ser investido na pretensão de contar-lhes e compartilhar com eles a escrita que tanto me move, que me contorce as entranhas, me faz refém? Todavia, a estranheza era vislumbrar sem conhecer os rostos, nomes, as feições. Não podendo prever o ambiente que encontraria na sala de aula, me entreguei à incerteza, mantendo, entretanto, uma certeza: para falar de sedução preciso ser sedutora. Para ensinar escrita, preciso vivê-la. E, desse modo, constatei que qual fossem os acontecimentos que se seguiriam, somente seriam de fato significativos, se existisse - anterior à palavra, ao gesto, à escrita, à aula - o prazer e os sentidos do que me mobilizam a escrever, dizer, agir, ensinar. Convidei o desconhecido e o incerto para formular propostas, para concretizar intenções, seduzir para ter prazer, estratégias para assegurar que a experiência seria vivida em sua face intima, por mim saboreada. Tudo o que se entrelaçaria ao cotidiano escolar era o porvir, porém a incontestável sensação de que, qual fosse este cotidiano, era necessário estar de tal maneira implicada, que isso somente poderia ser feito pensando a partir do meu próprio corpo, minha escrita, a vibração dos meus nervos. Embora, descobri com o tempo aquilo que já sentia desde tanto tempo que não saberia mais quantificar – nenhum destes “meus” é meu de fato. Escrita de muitos, corpo habitado por muitos; face que se desenha no espelho em milhares de cacos de vidro, mosaicos em desenho sempre inéditos. Permanecendo face e não sendo mais. Durante o primeiro ano do trabalho foram sendo contornados espaços de escrita que me remeteram a pergunta: quem? Quem são estes que transitam pelos textos, quem é o autor, que é o leitor, quem desenha as paisagens, quem habita 10 estes espaços. Momento de reconhecimento, de encontros e desencontros, esperas, ânsias, anseios. Caminhando todos os dias pelos corredores da escola, ainda hoje a pergunta se refaz, quem esta sendo escrito? A partir de onde? O que esta sendo composto no ato de escrever? Escrever que se dá como ato, as letras se desprendem do papel e tomam formas diversas, letras que vão caminhando silenciosas, outras vezes, estridentes pelos dias. Escrita que não trata mais da letra sobre o papel, escrita que é engravidada pela palavra-ato-potência e se insere nos espaços do cotidiano escolar para continuar de escrevendo, inscrevendo. Escrita que transpõe escrita em letras, escreve atos, realidades, perspectivas, entendimentos. Mas, o que significa este lugar? O que significo neste lugar? O que sinto no estar aqui? Misto de prazer e agonia, por vezes ao sair da escola a sensação de estar apaixonada me invadia e sentia frios na barriga, alegria incontrolável. Por outras, a sensação de que o maquinário abriria seus gigantescos dentes e devoraria tudo o que é vivo para tornar cinza. Sempre intenso, o cotidiano escolar me leva de uma perspectiva a outra, sacode, pergunta, investiga, me olha. E eu, ao olhar, me revejo, me desconheço, me reconheço, não cesso nunca o movimento. Vivo dele. Não sabendo a gênese dos fluxos, não deixava de perceber que nas entrelinhas, nos subterrâneos, nas gargantas, no riso descontrolado, nas palavras traçando novidades das letras, era incontestável: havia fluxo e ele nos arrasta. Impossível não vivê-lo, ainda que seja possível reconhecer variados mecanismos de controle, punição, engessamento dos fluxos. Letras mal traçadas, tremidas, incompletas, letras de quem caminha em poucas letras. Ao longo de nossas vivencias, de nossos conflitos, de nossas novidades, fomos compartilhando segredos, olhares, vontades, intenções, desarranjos. A questão inicial foi se rearranjando, criando novos contornos. A gênese dos fluxos do olhar literário pressupôs a necessidade de entender o que está sendo dito ao dizer literário, que literatura nos referimos, que letras, quem é este que é leitor autor, opera movimentos de releitura na escrita e escreve ao ir relendo? Como este fluxo habita a corporeidade? O que sinto? Porque “a leitura é um confrontro” (Ponty, 11 2002) entre corpos impalpáveis e palpáveis, entre invisíveis latentes. É escrita de entrelinhas, entendimentos, metamorfoses da leitura. E a escrita é “voz nua e sem órgão...” (Derrida, 1991). E o olhar, deixou de ser a retina, para aprofundar-se em todo o corpo. Mas, em relação à gênese? Como entendê-la? Gênese que significa principio? Entretanto, antes do principio – o nada? Gênese entendida, não como o início de um desencadeamento linear de acontecimento, em sentido oposto, como instante em que se reconhece uma nova composição do mosaico. Gênese como principio no contínuo, momento em que há mudança no estado das coisas, descoberta de cenários. Gênese como ímpeto. Fissura nos retrato. Momento em que, estilhaçado o espelho, redefinem-se novas faces. Incorporação de vozes no momento em que sentimos, e não compreendemos, entretanto, o sentido permanece exigente, voraz, e nos movimenta. O que desencadeia estes sentidos e desfaz a paralisia do corpo-maquina moldado pelas instituições do sempre vendável, sempre descartável, sempre manipulável? Nesse sentido, buscando por uma definição de escrita, sujeito, gênese, olhar, deparei-me com a questão do movimento e a impossibilidade de conferir a cada um destes conceitos uma face estática e imóvel. Fora de suas relações estes conceitos tornavam-se estanques, entre eles os movimentos que não os deixa imobilizar. Dessa forma, a constatação de que não é possível nomear/ delimitar a literatura por ser justamente seu caráter de movimento este fazer/ desfazer/ refazer e as lacunas entre discursos e estados, que confere sua especificidade (Ranciere, 1995), estendeu seus contornos também às definições de sujeito e gênese. Se, no inicio do trabalho a preocupação foi distinguir os conceitos, o olhar foi voltando-se, a partir desta constatação, para o que se move entre estas distinções, uma vez que é impossível separá-las. A escrita não é estável, carrega perturbações, conflitos, confrontos, rupturas, paradoxos, desconfortos. Mas não somente as rupturas, como as reformulações, os contornos, as conciliações. Nascer misturado ao mundo, Ser e não-ser, como substantivos que se circunscrevem. 12 Tocar, ouvir, cheirar, mastigar, beber, sentir cada entonação da experiência de estar com as crianças, no seio da instituição escolar enraizada nos pressupostos de sua existência fundada na pretensão da disciplina (Foucault, 2004). Cotidiano que é atravessado e mergulhado no humano, na sociedade, na cultura. Cultura organizacional que enlaça o modo como são concebidos os dias. Assim como não é possível dissociar os conceitos apagando a dimensão relacional dos movimentos entre cada um deles, tampouco é pertinente dissociar as práticas educativas do emaranhado social, dos movimentos que constituem e legitimam atos e discursos, que caracterizam as praticas educativas, que conferem à escrita suas ondulações. O interesse do trabalho é, considerando esta teia de movimentos e aspectos, sentir entre elas, os momentos de criação e vivencias do cotidiano escolar ao longo de dois anos de trabalho. A intenção é, considerando os enlaçamentos de cada aspecto, não se restringir especificamente a cada um, estabelecendo seus limites isolados, mas operar a composição de sinfonias nas continuidades dos momentos vividos, fragmentos de vivencias para compor mosaicos do que foi sentido. Inter-relações, instantes, devires. Sou olhada. O que dizem estes olhares? Olho. O que vejo entre meus olhos? “Não me sinto apenas transido, sou transido por um olhar (...) É preciso, pois, que alguma coisa no olhar do outro o assinale para mim como olhar de outro, sem que o sentido do olhar do outro se esgote na queimadura que deixa no meu corpo olhado por ele.” (Ponty, 2007, pg. 77) O que o sentido do olhar do outro enraíza em minha pele que vai além desta queimadura? Olhar que fere? Olhar que carrega o meu olhar também, que me confronta, me indaga, me desconstrói e é desconstruido. Meu olhar passeia pelos dias. A mão arrisca a letra sobre o papel, os olhos procuram por algum indício de que a escrita será entendida. As palavras vão sendo traçadas aos poucos, uma letra ou outra não se encontra em seu lugar “por definição”, mas os sentidos estão nelas. Ao longo de dois anos de trabalho, inúmeros foram os momentos partilhados, as histórias criadas, as mudanças acontecidas. Muitos momentos marcados na 13 memória, sentidos que me visitam para relembrar, reconhecendo em mim aquelas sensações que foram sendo alteradas, transformadas em aprendizagem. Misto de alegria, êxtase, paixão, temor, potência e impotência, perguntas. Muitas perguntas. Juntamente com as perguntas, os passos. Cada questionamento um novo plano a ser percebido, silêncios e palavras trazendo a força de aprender o modo de senti-los. O dizer e como dizer, porque dizer, para quem e onde. Silêncios conquistados, lugares desvendado. Escola, zona de conflitos permanentes. Como chegar à escola e não sentir seus espaços de embate, disputas de poder, enquadramentos funcionais, quadros de hierarquias e nomeações, títulos, vozes, gritos, correria, brigas, espantos. Estar na escola e perceber-se nela: o que faço? O que ela faz de mim? Como seou vista e por quem? Quem são os olhos que se atiram sobre minha prática educativa, sobre o processo pelo qual me descubro observada – vigiada? Espaço de conflitos que me remete a perguntar, não mais acerca dos conflitos, mas: o que os conflitos mobilizam? O que aprendemos com eles? Onde estão os espaços destinados à cumplicidade secreta da infância que estende seus braços para a tarde? Mas, nos sabemos vistos. Onde está o permitido? Permissão que se arquiteta e se desvenda. Estratégias para a permissão dos fluxos, para a proteção, contra a ingenuidade. Os trabalhos que se encontram neste trabalho foram compartilhados com crianças de 7 a 8 anos, dos 1º e 2º anos e foram sendo organizados concomitantes ao desenvolvimento das questões propostas, conforme eram realizados, foram sendo replanejados e reavaliados, alterados, inventados. No período em que o trabalho se realizou, muitos foram os projetos que foram se delineando, realizamos pesquisas, contamos histórias, observamos os livros e inventamos histórias coletivas. Confeccionamos o “tapete para ler”, um tapete para asseguras as leituras silenciosas e as conversas literárias, com o objetivo de desenvolver o olhar literário das crianças - no que diz respeito à criação de universos literários coletivos e subjetivos e à sensibilidade literária. Propiciando um espaço de leitura e silêncio. 14 O tapete para ler evidenciou a necessidade de consolidar espaços simbólicos, foi confeccionado em grupo a partir de pedaços triangulares de tecido colorido. Após as discussões, fizemos uma lista de personagens, cenários, temas e acontecimentos na lousa para servirem como repertório ao qual acessar no momento seguinte. Foram distribuídos materiais de pintura e limpeza no centro da mesa, concordamos que a atividade exigia concentração. Durante a pintura temática escutamos música para nos inspirarmos. Os pedaços foram colados com cola quente e todos escrevemos o nome com giz de cera. As crianças registraram o que gostaram no tapete, o processo de confecção e se entusiasmaram com a idéia de sairmos da classe para procurar um lugar tranqüilo para ler. Especulamos personagens em grupo, votamos sobre as características físicas, afetivas, como vivem, fizemos projeções de imagens iniciais, registros, escolha dos detalhes. Escrevemos coletivamente as histórias de cada personagem, confeccionamos e costuramos seus órgãos para pensarmos em nossos próprios, para sentir o que se faz junto, o que juntos fazemos e como somos feitos de muitos. Retrocedemos percursos: de onde me vejo até o escuro do ventre, como é? Quais sensações? Cheiros. Como é nascer? Avançamos o percurso: quais expectativas do tornar-se adulto. Multiplicamos os possíveis: o que é ser outra coisa? Posso me reinventar e ser outro? Depois mudar de novo? E de novo? Podemos ser personagens? Como surgem? De onde vem? Para onde vão? Onde estão? Quais cenários, paisagens, contornos, contrastes, conflitos, escritas. A trajetória destes anos se traçou em muitos dias, em conversas, olhares, gestos, embates, erros, desejos. Invisíveis, as gestações, ainda que coreografias aos poucos desvendadas, olhadas, tocadas, ouvidas. Fragmentos de dias, de horas, de mulher, de infância, culturas. Fragmentos de muitos, vitrais quebrados em milhares de pedaços e recompostos, rearranjados ainda muitas e outras tantas vezes. Cenários convidando paisagens que convidam voz que permitem ato. Atos escritos, silêncios grávidos. Cada fragmento de cor e textura caminhando entre pensamentos, desejos, sentidos. Qual a gênese? Qual a natureza? Qual a origem daquilo que 15 sustenta a voz do louco, a paixão na arte, a dureza do equilibrista, a vibração da última nota ainda lutando em se desprender do acorde e fechar o som. Espaços que transitaram por muitas perguntas, seguindo ainda a outras para ter apenas a certeza de que não encontraram resposta, pelo simples fato de que não se trata de saber ou não a resposta correta, mas de que, por meio de cada pergunta, continuar tecendo o movimento da interrogação. Este trabalho compõe um mosaico de escrita-fluxos: momentos compartilhados, vivências dançarinas, interrogações copulando com a garganta, que não as deixa de perguntá-las, dizê-las, amá-las; este trabalho é um arranjo entre muitos possíveis de uma trajetória que não pode ser estática, não contém a pretensão de esgotar seus movimentos na rigidez do explicito, do explicado, do normativo. É mosaico móvel, pode ser rearranjado, virado, revisto, mas de qualquer forma, necessita ser sentido. 16 2 Coreografias O pneu preso por uma corda, preso à ele dois braços que o abraça. As mãos finas e sujas de terra empurram, enlaçam, giram em torno do pneu que é também balanço. O corpo todo se agita para frente e para trás, dá voltas, retorce a corda. Os cabelos soltos se bagunçam e arrastam na terra, cobrem o rosto, voam junto com o pneu balançando. A brincadeira se prolonga por muitos minutos. Meus olhos não conseguem desviarem-se destes sons de risada balançando, ora de pé, erguendo o máximo possível a altura das mãos, ora jogando-se sem hesitar, passando com as pernas esticadas por baixo, rodopiando em volta, sentando em cima, deitada no meio do pneu – o tempo é dela, e não lhe pertence. Cada movimento se desenlaça do seu corpo com tal facilidade que operam coreografias inéditas e intactas. A luminosidade deste momento não vem da tarde, embora ela não seja totalmente despercebida por mim, entretanto, o espaço de cores e sons que entrevejo se enraíza na dimensão do meu olhar que percebe, no seio da tarde, o riso de uma relação profundamente amorosa com o pneu a balançar, balançando-se. Sozinha, mas não desacompanhada, ela acolhe os movimentos de seu brincar carregado de prazeres, girando em gargalhadas e ruídos, gritos e silêncios, com os pés insaciáveis desliza de um lado ao outro, pula, corre, salta: pulsa. Linha invisível tecendo minuciosamente os traços: de infância. Frente aos detalhes de uma face desenhada no prazer de brincar entre instantes, me comovo com os acordes invisíveis das tantas relações impronunciáveis deste momento. Impossível descrever a rede de sentidos ao ir vislumbrando que, para além da constatação visível da beleza deste momento, ainda outros tantos sentidos se operavam em mim. Transitando nas esferas de minha comoção pelo fato de sentir a profundidade que me convoca a compor em traços, linhas, imagens, esquadros de instante, momentos de olhar que percebe e percebe-se, então, comprometido. Até o ultimo espaço do meu gesto, é impossível desligar-me destas mãos sujas de terra 17 rodopiando pneu, impossível não pensá-las, não ouvi-las, não me mover com elas. A perplexidade é a de perceber na cena, suas entrelinhas, seus desdobramentos. Estou intimamente ligada, não posso mais escolher não estar. Dizendo sem palavras os sentimentos de uma tarde anunciando ainda outras perguntas e sentidos, me deparo com a constatação que o pneu não é simplesmente o pneu. Ele é algo além dele, algo com o qual se conversa, se empurra, se bate, xinga e depois, com delicadeza, se beija. Muitos beijos são dados no pneu, abraços, pedidos de desculpas. Declarações de amor e novas coreografias. O que representa este momento? O que é isto que sinto que me comove? Sinto, de súbito, uma alegria incontrolável, e amo este momento. Momento sem palavras, indescritível porque impronunciável. Sensação que não pode ser racionalizada. Sou parte da tarde. Testemunho vida e presencio o deslizar de muitos gestos, estou interligada a cada um deles, a cada balanço, em cada movimento, me movimento junto. Não sou meu corpo, sou um corpo que habita a sensação de entardecer cúmplice à infância. Infância que não se diz e que jamais contara os segredos indecifráveis entre uma menina e o pneu a balançarem-se. De que são feitos os silêncios do âmago da infância? O impensável de sensações que convidam? Este espaço delimitado pela área do parque com seus balanços, gangorras, árvores, bancos, e pelos espaços de significados que hospedo entre meu corpo e tudo o que o afeta. O que represento nesse contexto? Meu olhar pode olhar enquanto não é visto, eu olho secretamente, disfarçado, para não ser vista, olho como quem se torna cúmplice do segredo por olhar. O som da gritaria das crianças me anuncia os muitos significados de estarmos ali. E aqueles que eu não compreendo; intento pensar sobre os fundamentos da educação, seus princípios, os pressupostos que enlaçam os objetivos de estarmos neste local. Movemos-nos em uma estrutura que ultrapassa a estrutura dos muros da escola, maquinário investido nas entrelinhas da instituição escolar, instituição disciplinar, nos contornos das relações de poder sempre latentes (Foucault, 2004), instituição burocrática, hierárquica, política, muitas vezes opaca, indistinguível. 18 Movemos-nos na gigantesca estrutura enraizada na pretensão do linear, do normal, das filas imóveis, em meio aos instrumentos em que “trabalha o poder de silenciar” (Orlandi, 2007, pg. 99). Mecanismo de coerção, repressão, reprodução, de tecnologias de poder que vão “escavando nos indivíduos ‘interioridades’ que eles não possuem, vai fabricando neles diferenças que os fazem reconhecíveis, para agrupá-los ou para separá-los – para manejá-los.” (Beltrão, 2000, pg. 44) Apenas isto? O som dos risos, da correria eufórica, da bola nos pés dos meninos; os olhares esperando - o que? Porque? Como nomear esta infância que transita além dos mecanismos de controle, que vive secretamente nos pés balançando a tarde? Confidências dos corpos vivendo para além do automatismo do poder disciplinar, reconhecendo espaços de possível, abrigando em silêncios os sentidos que movimenta contrariando as expectativas da instituição. Brincadeira desenfreada e sem controle, infância que não pede permissão – apenas gira, contorna, rodopia pelos momentos. A pretensão de abarcar a totalidade dos desejos, de reconhecê-los, nomeá-los, para institucionalizar a infância, se esvai nos braços amando o pneu, na fila que se desorganiza e vira dança, nas carteiras enfileiradas se bagunçando, no cinza do concreto das paredes sendo tingidos com marcas de mãos e tinta. A pergunta não é tanto como subverter a ordem, mas como reconhecer os lugares em que ela está sendo subvertida? É possível que não haja fuga? As delícias que habitam nosso corpo podem não transitar por eles, podem não causar arrepios, gritarias, danças, amores, tremores, saltos, correrias? Sinto. Estou no seio deste cotidiano – o que temos a dizer? O que precisamos manter em silêncio? O que é silenciado? Como nos movemos neste espaço? Quais aprendizagens são mobilizadas? Perguntas que movem outras perguntas, que mudam os sentidos, que nos dão sentido. A cada dia, um novo traço, um novo gesto, novas percepções acerca do que de fato estamos aprendendo neste lugar. Aprender a escrever, qual escrita? A ler – com quais olhos? Aprender a reler escrevendo, escrever releituras. 19 2.1 Nervuras de escrita-fluxos Qual a estrutura do conceito e os pressupostos da escrita? Considerando a teia de percepções e entendimentos que perpassam a significação do ato, em que bases se estabelecem a compreensão dos sentidos da escrita? Quais os aspectos fundadores de tais perspectivas? Existe um Ser da escrita, indiferenciado? Um núcleo ontológico ao qual referir-se? É em sentido oposto que se configura a impossibilidade da escrita universal, objeto de pertencimento à uma face indistinguível e objetiva, homogênea? Porventura, a escrita inevitavelmente entrelaçada às culturas, coletivamente traçada, feita de material humano invisível das civilizações, e herdado do conhecimento e nos símbolos, é escrita, ao mesmo tempo, passível de definição exata? Ao deslocar os papéis e as funções da estratificação e racionalização do universo e, concomitantemente, da escrita, se des-dicotomiza a organização cartesiana da natureza, da ciência, da cultura, do homem, da escrita. O que resta não é indistinção em que tudo pode ser qualquer coisa, mas a possibilidade de compreender tais distinções Fora da lógica das dicotomias, em relações que extrapolam as funções e operam em intersecções, por planos e sobrepostos em que: “cada traço não remete necessariamente a um traço lingüístico: cadeias semióticas de toda natureza são ai conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas” (Deleuze, 2000, pg. 11). Apagamento das fronteiras nítidas que conferem uma única realidade, para compor a configuração de nervuras. Disto decorre que não há um autor para um leitor, um leitor que dialoga com o autor, mas todo autor é leitor indissociável, escritor de releituras, todo leitor exerce sobre a leitura sua autoria, reescreve. Se a letra permanece, os sentidos extravasam e se tornam cenários re-lidos por aqueles que tornam a olhar, entretanto, cenário que se modifica com a chegada das estações, as mudanças do tempo, os personagens; cenário que é paisagem. Escrita que “não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou 20 de ‘reescrevê-lo’”. (Freire, 2003, pg. 20). Desconstrução do escritor/leitor para o engendramento das relações do autor leitor – autorias entre releitura de leituras que são novas autorias. Como pretender que a escrita seja estática, acabada, com seu sentido imóvel, se “os signos me arrastam como em um turbilhão para os sentidos e me desviam” (Ponty, 2002). ? Se a escrita existe no limiar dos movimentos e se inicia conforme corrói e faz ruir o antigo; inaugura. O que significa pretender uma escrita estanque - com seus sentidos todos organizados e pairando sobre a certeza dos enunciados, apenas interpretáveis dentro de um número estipulado de possibilidades garantidas pela coerência? Imobilizar a escrita para, segundo Ponty (2002), apagar o desconforto de ver na linguagem, a sociedade, como se nelas não estivesse inserido? Apagar a própria face mutável, pretensão da neutralidade. Desfazer-se do pertencer, desvincular-se, apagar-se como elemento de composição das perspectivas, para apagar o desconforto frente a impossibilidade de garantir respostas exatas, certezas unívocas? Pretensão de esquematizar e transmitir de modo idêntico à seu sentido ‘original” a fim de torná-la constante, a fim de “curar o excesso democrático das palavras” (Ranciere, 1995). Afinal, “disponível para todos e para cada um, oferecida nas calçadas, a escritura não é essencialmente democrática?”. (Derrida, 1991, pg. 96,). Quais mecanismos desfazem este caráter democrático e aprisionam a escrita nos limites dos instrumentos de impossibilidade de muito e privilégios de alguns? Entretanto, a escrita carrega em seu âmago o âmago do ser vivente – o movimento dos sentidos. A possibilidade de criação de sentidos, inclusive aqueles ainda não pensados, os impossíveis. Assim a palavra, assim a escrita, porque assim a existência que configura o estar no mundo. Assim, a letra não é mais um código, é um corpo. Não somente o corpo traçado da letra sob a linha, mas subjetividades cambiantes tornando a mudar formas, convidar visitantes, inventar fantasias, cenários, imagens, cores, cheiros, toques. Pessoa tomada por fluxos. Escrita que constitui rede de dizeres que se interpenetram, participam da partilha coletiva do sensível, partilha estética e política (Ranciere, 2005). 21 Grávida e indissociável de sua multiplicidade, a escrita é a arte de fazer dizer, muitas vezes de forma muda, as vozes de existências impressas, em última análise, na corporeidade. No corpo-limite, nas entranhas de um corpo político e relacional e, sobretudo, sensível. Quais as implicações de decretar a escrita instintiva, enraizada no inconsciente, na pertinência do inexato, no que tem a dizer a garganta do louco. A palavra é invisível (Carmo, 2000), a escrita lhe confere a materialidade da letra, no entanto, ela é tangível? Na medida em que não há possibilidade de carregar a intenção idêntica de seu nascimento para as trajetórias geradas no ato das leituras, o que significa a tentativa do explicador em sublinhar o código, tornando-o imutável no dizer de uma escrita considerada como figura tácita? Partindo daquilo que pertence aos desencadeamentos que possibilitam dizeres e mãos configurando humanidade na letra, nos símbolos, no acontecimento - intento fotografar instantes de escrita. Instantâneos de imagem de homem, cicatrizada na escrita. Como mergulho no paradigma das hiper-velocidades plásticas do consumismo exorbitante, na feição amargurada do imperialismo faminto das generalizações flutuantes, na cadência desritmada do descartável subjetivo, mas também, nas rupturas, nos possíveis, nos segredos de infância compartilhados no entardecer. Escrita-óssea, escrita-fóssil, escrita-fluxos. Por quantas e quais mãos o ato tem sido possibilitado? O que permite o fluxo de criação de realidades sensíveis inéditas, quando o apelo ao racional, objetivo, científico, exato e universal é proclamado incessantemente pelas gargantas positivistas a mais tempo do que a ignorância os torna meramente sustentáveis? Quando o maquinário social impulsiona ao sobreviver dicotômico e estreito, e o aparato tecnológico se prontifica a oferecer rapidamente a compra de realidades confortáveis, qual o espaço simbólico das lacunas do olhar literário? Em quais silêncios, em quais palavras, por qual temporalidade transita o artístico na escrita e, no que a precede como concretização do ato, a necessidade. O 22 impede que a escrita se torne um simulacro vazio e insustentável de palavras mortas? E o que a torna nervos, sangue, homem, respiração da existência? Como ensiná-la? Quantas entre-linhas, quantas texturas de escrita compostas em arranjos de intensidades que gravitam. Em quais direções? Qual a natureza da escrita? De onde nascem os fluxos desenfreados que nos impulsionam a escrever como necessidade? Escrita em que não há escolha, as mãos povoam todo o espaço da letra, dançam sobre o alfabeto para fazê-lo inexisitr, recriá-lo pela sintaxe do inconsciente, do imprevisto, da permissão das palavras erradas, errantes. “A dissimulação da textura pode, em todo caso, levar séculos para desfazer seu pano. O pano envolvendo pano.” (Derrida, 1991, , pg. 7). Nos emaranhados de fios tecendo e sendo tecidos, a mão lhes sobrevem como acontecimentos táteis, o céu da boca se desgruda e lambe os espaços de realidades povoadas por cenas, feições, vozes, luzes, core, tintas, invisíveis, acenos. Mão que tecem fragmentos, dês-pregando para re-costurar, desfiando os fios, movendo. Coreografias de escrita, escrita-fluxos, instantes grávidos traçando passos entre letras e silêncios, escrita de gestos, escrita de carne, nervura de escrever, escrita- ossea, humano latente, manuseios de invisíveis. “Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue” (Lispector, 1999, pg. 15). Escrita lacunar, gestada no vazio, em silêncios, engendrando fluxos, despertando sentidos, mobilizando corpo, sangue, perigos. Escrita libido, voracidade do fluxo que não aguarda, anseia devorar o intimo, o mundo, o outro, o antigo. Escrever é ato? Escrever é traço? Escrita de vozes encarnadas, ato-potência, traço-gesto. Escrita de muitas ancestralidades reconvidadas, sentando-se ao lado do ouvido para produzir novidades, memórias, possíveis, livros de imagens poéticas, livros de imagens absurdas, livros de impronunciáveis deslizando entre as linhas, livro de palavra caminhando, sentidos inter-ditos, paladar de paisagens de homem, de cultura, de vida, de humano, devorados nos espaços entre o silêncio e o dizer da letra. 23 Escrita produzida, permitida pelo que estremece e pulsa na corporeidade. Escrita de rupturas, conflitos, paixões, temporalidades, invisíveis palpáveis, fragmentos. Escrita bailarina, aparelho que arrasta à re-significação, que confronta o dito e o dizer impronunciável dos órgãos impalpáveis, como cordão umbilical que flui vida em mutação, liga e troca fluídos, gera vida e alimento, para constituir escritas e leituras não mais distintas entre si, mas existências que se relacionam, leitor que se torna sempre autor de entrelinhas, de releituras, de reescritas. Autor que é leitor de suas próprias palavras, leitor de perspectivas, patamares de visitas. Escrita como ato político, pois pertence à constituição estética da comunidade, ao mesmo tempo muda, posto que simulacro dos sentidos, e falante demais, visto que qualquer um pode lhe conferir voz, resignificá-la. (Ranciere, 1995). Escrita que seduz. Fios - película de intensidades, finura absurdamente frágil - ao mesmo tempo em que se formulam, desde o interior de sua composição, resistências: tecidos inquebrantáveis e efêmeros. Não há maneiras de designar o inicio de um e o termino de outro, estão embaralhados, concomitantes, sobrepostos, traçam malhas, embaraços, amontoado, por ora se esticam até o limite de sua elasticidade, depois suspendem o acontecimento em inúmeras velocidades. No espaço de suas coreografias transitam luzes, cores, cheiros, faces, mas os fios são as nervuras. Entre os fios, infinidades de outras composições – sonoridades em cores variadas, compostas pela imaterialidade do sopro de palmas de mãos abertas para a cópula. O complexo emaranhado gravita no desenrolar de movimentos constantes, mas nunca idênticos, distinguíveis, mas não capturáveis. A cada impulso, pulso de criação. Produzem-se ainda outros tantos fios tecendo contornos de sensações. Ao tentar seguí-los em seu pressuposto inicio, nos deparamos com a inexistência de qualquer inicio possível. Ainda sempre outros novos complexos compostos de modos diversos, desencadeando ainda em outros tantos movimentos complexos de fio e cordas. 24 O corpo sentado é este fio de ente que palpita coreografias invisíveis e concretas, pulsando, agitando-se em cordas vocais, porque o movimento não é escolha, é intermitente, presente. O movimento é invocado e invoca, exige, arrasta, devasta e preenche, formula, gira, dança, carrega, silencia, faz gritar –escreve. Em linhas de textos, em espaços de corpo este que não é mais, foi sendo tantos muitos outros, em composições. Mosaicos para o edifício de vitrais, artifícios da cor, luminosidade fragmentada dos dias. Este ser que pulsa é ainda este que habita – o corpo, o instante, a carne, o corpo para além do corpo, a água. Este que realiza espelhos em espectros e se espraia no infalível. Ossatura dos vasos sanguíneos transitados por minúsculos sentidos perfazendo o gozo. Nervuras nos tecidos de cada ato. Escrevo muitos, escrevo impronunciáveis. Muitos escrevem pela ponta dos meus dedos. Libido que habita a delicia e o dolorido de um corpo em fragmentos improváveis e latentes, humano encarnado nos limites finura deleite gravitando sabores no céu da boca, mergulhando varandas no entardecer do meio. Finura inquebrantável de girassóis transcritos, inscritos, nus. Em coreografias, esperando a mão que lhes arraste para o espetáculo em letras, frases, nomes se despindo, se despedindo dos adjetivos. Substantivos coletivos embaraçados, deslizando. Escrito feito de vozes, imagens, gestos, cenários de entardecer e anoitecer para os minutos intermináveis. Interessa encontrar entre os discursos edificados acerca da escrita e da leitura, os vestígios de sua acepção lacunar, desprendida da técnica. Encontrar suas lacunas, seus silêncios, suas nervuras. /investigar, sentir as coreografias que se produzem entre escritas, gestos, discursos, no cotidiano embebido nas relações de poder, a partir de diversas perspectivas. Escritura de possíveis, permissão dos des-conexos, do inconsciente, mosaicos feitos de muitas texturas, rupturas, deslocamentos, reconfigurações. 25 2.2 : intersecções, planos e sobrepostos Destranque os cadeados da coerência: a sintaxe Kaos corrompida pelo está. Imagens profanadas, a exatidão de linhas sobrepostas estão. Fluem. Dos espectros de eletricidade esvaindo-se nos poros, entr acordes desafinados de irrealidade na densidade das cores que encorajam o grito. Eu “vamos” desligar a norma. Eu – sujeito indefinido em terceira pessoa do plural - nunca único; desorganização sintática dos muitos eus, conjugação verbal reconfigurada. Balões de forma atmosfhera no som ao acordar ímpetos, há milhares de portas em cada agora espaço respirando convites do impossível. Êxtase da permissão: erro, promiscuidade do verbo. Desfazendo sólidos de identidades, as cores contaminam o foco a mover --- bifurcações multiplicadas. O nome não mais adjetiva o sujeito. Eletrocardio pontos. pontos. pontos. de ondas luminosas. Extra intenção dissonante dos fios. de cordas vocais na envergadura do berro e vasos sanguíneos, palpitante incerteza de trovão; estados pirotecnia desregulando paredes na virtualidade da forma. Manifestada irrealidade em flash´s a magnetizar-des ilusões. Corre, velocidade vende-se: plast-cidades. noturnas.tranquilizantes. Pingos de translúcida reação em linhas de maleabilidade do fluxo inquebr antável. Luz óssea. Vácuo de est- luz. Promíscuas, vadias, cheirando o azedo dos espermas que conserva em suas vestes inapropriadas. Putas! Embebedando a coerência ao profanar as estruturas e, ainda, viva até o ranger dos ossos, parasitando os becos imundos e contagiando de subversão e delírio as imagens límpidas. Escravas do descontrole, rivais da substância imaculada: assim é o âmago da delícia. Trapos guardados. Pressa, pressa, pressa. O pedido – ajuda, não desinteressada. Plast-ajuda, meta-amorfo tido. Visceral libido. Caosomatizar vermelho em si-outros lhes verão a farta esqueletura das simbiosis! Estremece o fim na ruptura, não quer irei no se fosse, mas é-si. Ele figurativa 26 o ex-terno, improvável aconchegado nós que distanciou si já. Enoja a des-conexão, deformado exógeno vazio, entrançados de excessivamente vestido publicitário. Esculpi olfatos, tornozelos molas, esqueleto-grama, flutua leve onda de marionete a sorrir sair desfalecendo fios, o feitio de arma bélica para as cópulas violentadas, cicatrizando o retrato com suas feridas. . Deita o canivete na toalha do des, a fome, a dor, o acaso do vício, estirado nos quarteirões e bebendo, fedendo, idealizando o banal, enclausurando a concepção no inverso do negativo como extrema facilidade do verme. Demoníaco escândalo do propósito, noturno de acidez dizeres contaminando os confortáveis, ressecando frágeis e assustadas asas de um corpo minúsculo e bem- vindo, no horizonte apenas divisório do espelho ensaiado para o verniz dos fatos. O grito engasga vias respiratórias congestionadas de alegoria comunicativa, vacilam cadáveres de crer - múltiplo é o ser-te análogo ao não-controle motor do sexo. Vilipendiado. Pulso junta esboço incandescente na alquimia de verità esfacelada, uma a uma penúltimas. Ruína corrosiva de corpo: vertiginoso. É nisto. E ainda assim. Marcam algemas dentro, implora, anseia, pede; e onde está o peso? Sobressalto. Sobressalto. Imagens estão, daqui até os personagens; pessoas fantasmas chegarão, encurralados nos rostos de passeio: ex-guerrilheiros devotos que perseguiram úteros, corredores e ossos. O embrião está atrasado, o grito não findou, o horizonte rompe ensaios. Hoje não. Os fantoches descoloriram filhos por parir, irão misérias, emoldurar-se telas em jantar. O corpo deitado ao chão é este. Fio de ente como questão, enroscado no humano advindo para restos – farelo diante do nome, sentado na maquiagem entre ciências, como se trouxesse do sono o cadáver. Sangue em seus lençóis consome água e tinta na película desde que abriu, pela primeira vez, os olhos, e respirou hálito de borrões mal-fazendo-os desbotados e apagando. Afundar vazio com tornozelos para, de branco em branco, refazer folhas. Na louça da estante, finos traçados dias que não aguardaram, quebrando o cuidadosamente no fio da janela, espaço é este o corpo inesgotável, próximo à despedida, produzindo desconforto íntimo de transbordamento, 27 com órgão de nostálgico e contínuos. Dilacerado incontornável e permanente que saltará, deixando uma carcaça, misto de pele e forma, deformada sobre o marginal, no vadio tropeço da passagem azul verdes, respirando. Clandestina ambigüidade. Que tristes os silêncios que não conseguiram 28 3 Temporalidades Segundos-líquidos, saborear o invisível, caminhar nos entremeios de imagens compostas coletivamente. Inversamente ao lugar garantido da certeza; almejar o incerto e novo, compondo movimentos. Expedição sem rota, mapa traçado ao ser trilhado, refeito ao ir fazendo-se, perspectivas ampliadas para cacos de vidro colorirem- se nos mosaicos. Re-elaborando imagens do mundo. Do tempo. O que é o tempo? Os segundos como imaterialidade são, no entanto, impalpáveis? Invisível tocável, o tempo descortina fluxos, manuseios de invisíveis concretos, manipuláveis, degustados. Se, o que não vemos existe, existe de que maneira? Quais seus contornos? Como vislumbrá-lo, tocá-los, traçar-lhes contornos? A formulação do que não é visto, descrição de imagens possíveis, sentidos compostos e decompostos. Como tocar a invisibilidade latente que comporta nuances de multiplicidade e convidar este não-ver para a visibilidade dos olhos habitados pelo corpo todo? Invisível que é visto por olhos- corpos-sentidos. O objeto em cima da mesa conta os segundos e os olhares que o investigam. “Pra quê isso, professora?”. Passado de mão em mão pelos grupos, vai sendo tocado e alterando os tempos. É virado, re-virado, entrecortado em sua contagem, começa novamente pelo meio, com pouca, muita ou nenhuma areia em seus lados. Então, lhes digo seu nome: Ampulheta. Todos acham um nome engraçado, “parece até que é o nome feito pra ela mesmo...”. O que está acontecendo quando esperamos a areia cair de um lado até o outro? “Ela está andando”, “Estamos parados olhando”. Digo que, se paramos para olhar, há algo que, no entanto, não está parado e a ampulheta está mostrando sua passagem, está mostrando o tempo que passa enquanto olhamos. Mas, é o tempo que vemos quando viramos a ampulheta? As respostas coincidem: “É a areia”. A areia passa porque o tempo passa, mas o tempo está onde? O tempo é a areia da ampulheta? Todos discordam. Então, escrevo: O que é o tempo? Podemos ver o tempo? 29 Após estas perguntas instaurou-se o silêncio. A ampulheta continuou caminhando entre as mãos ainda repetidas vezes. Foi feita à classe a proposta de produção de textos. A temática, a princípio desconcertante, foi aos poucos movendo traços e feições de pergunta ouvida e mastigada. O silêncio denuncia a falta de resposta? Insisto. Então, surge uma delas: “as horas”. Sugiro: e vemos os segundos, os minutos, as horas? Todos disseram que não. De que é feito o tempo? Silêncio e algumas risadas. Nenhuma tentativa de resposta. Arrisco. Digo. E peço para inventarmos aquilo que pensamos sobre essas perguntas. Se prestássemos bastante atenção, o que descobriríamos? Nesse intuito, pedi que escrevessem sobre estas perguntas e inventassem possibilidades. A palavra inventar, abriu os diálogos e instaurou novidades. “Pode inventar?”, “Pode escrever o que a gente quiser?”. Frente à permissão, muitos começaram a formular hipóteses e criar imagens para o tempo. Abriram-se os espaços para a compossibilidade de respostas na esfera das lacunas e não das certezas, o espaço em que a efetividade da criação destas escritas somente concebe seu desencadeamento quando investida de qualquer possível que configure sentido, ao contrário da certeza que espera e vincula uma única resposta. O convite para inventar possibilidades inverteu o mutismo da pergunta que apresentava, previamente, o pedido por uma resposta, a resposta certa, exata, a resposta esperada pela professora. Quando a única resposta correta foi desconstruída, instaurou-se o inicio dos diálogos, rompeu-se o ambiente estático e um novo fluxo configurou as perguntas. Porque se “pode inventar, então, pode falar tudo”. Nesse caso, podemos entender que a certeza não se vincula a um único significante estático e universal, mas é certeza na medida em que de alguma maneira opera e fornece sentidos. Certezas no plural, entendida como possibilidade de sentir e viver entre perspectivas e aspectos intercambiáveis do mundo. A partir da permissão do poder-inventar, as crianças iniciaram as produções de texto. O tempo “está misturado com o ar, por isso ele é invisível”, “De tão rápido não vemos”, “É feito de sol, das horas, de dia, de água”, “o tempo escorrega e é feito de água”. “O tempo é feito olhando as sobras”. “O tempo não pode parar”. “O tempo pode 30 parar sim. O tempo está em um minuto o minuto está parado e depois termina o minuto que estava. Agora chegou o outro minuto. E de repente tudo de novo. (...) Esta indo de um em um. Também porque o tempo é pouco”. “Para parar o tempo quebramos os relógios”. Percebi por meio dos diálogos e dos textos que um embate se formava a respeito do tempo que pode ou não parar. Muitos afirmavam que não, outros achavam explicações para o tempo que pára. Mas, de qual tempo estamos nos referindo? Há um tempo universal? Que abrange tudo e a todos e flui na mesma velocidade, da mesma forma? Existe apenas um tempo? Ao ler as produções de texto, percebi que o tempo ao qual nos referíamos não compunha uma essência, um ser único, mas somente poderia ser pensado como essencialmente heterogêneo. O tempo do qual as crianças falam em seus textos é o tempo tal qual o sentem, percebem, são certezas multiplicadas e relações traçadas sob muitas redes percebidas. Diferentes em relação à sua velocidade, composição, espaços e componentes. O tempo composto de dia, sol, noite, minutos, ou ainda, o tempo feito de água, permitem-nos pensar a partir das imagens que povoam as perspectivas de como o tempo é sentido por cada criança, e torna-se, então, tempo-outros. Não mais o mesmo tempo para todos, mas o tempo este. A liquidez do tempo-água, a invisibilidade do tempo-vento, ou a latência do tempo-dia comportam aspectos da multiplicidade que compõe os sentidos do pensamento, e os sentidos do viver-tempo. A velocidade do tempo confunde-se com a velocidade da vida? O que significa “quebrar os relógios?”. Escapar ao tempo? À qual tempo? Tempo-cronológico, tempo de minuto parado e caminhante? Em quais perspectivas podemos pensar que as velocidades plásticas e as hiper-velocidades subjetivas, enfatizadas pela “... ênfase na obrigação do movimento (...) do mais rápido e do sempre mais...” (Lipovetsky, 2004, pg. 57) são encarnadas neste viver-tempo de tempo-pouco? A velocidade sentida do tempo esteve presente em grande parte das produções textuais, evidenciando o modo como o tempo é sentido em sua urgência; do tempo contraído numa lógica urgentista? (idem, 2004). Este minuto parado, substituído pelo próximo, é minuto sempre no presente? As temporalidades vividas neste contexto apontam sentidos para o tempo 31 que co-existem aos sentidos do existir no tempo, entretanto, a pergunta se refaz: em qual temporalidade existimos, ainda que não se expresse em uma temporalidade unívoca, quais sentidos coletivos são transitados entre as compreensões? Socialmente consolidados, os tempos da contemporaneidade se re-afirmam em perspectivas diversas, todavia, sentidas e recorrentes nos diálogos e nos textos. E como pará-lo? É o mesmo que torná-lo sempre presente? Ou contrariar as temporalidades e tornar o tempo a-temporal? Divertir-se com a possibilidade de romper com as barreiras estáticas do ontem/ hoje/ amanhã, com suas linhas divisórias esquematicamente postuladas pelos dias, noites, horas e minutos. Tornar o tempo o tempo contínuo, em que ontem se confunde, ou antes, se espraia no hoje, que se entrelaça no amanhã, configurando modos e espaços de vida em tempos relacionais, em que “tudo é coextensivo à tudo” (Deleuze, 2000), em detrimento ao “tudo é descartável”, postulado pelas hipervelocidades do paradigma da hipermodernidade (Lipovetsky, 2004). Ao sugerir que o tempo pode ser parado quebrando os relógios, inevitavelmente pensamos no relógio-máquina de controle dos tempos, que pontua o tempo ao invés de fazê-lo deslizar como água. Qual tempo pára quando quebramos o relógio? O tempo-máquina? Entretanto, o tempo-máquina relógio é oposto ao tempo-água que desliza? Ou operam modos de conceber e viver o tempo-outros? As rupturas no tempo sugerem rupturas nos movimentos ou nos moldes de sua contagem? Quando A. V. J. escreve “Um dia tinha muitos relógios. E um deles se chamava o atrasado e tinha um sol bem bonito. E muitos anos não existia os moços da caverna e lá não tinha horas e relógios então não tinha tempo ai o homem dormia na hora do sol. A hora que o sol acordava os homens também acordava”, destacam-se aos meus olhos os muitos relógios e ausência de relógios como ausência de tempo, entretanto, não a ausência de movimento. Qual tempo? Tempo do relógio-máquina que não é o movimento do tempo- acordar do sol e dos homens. Quando começa este um dia com muitos relógios? O relógio que se chama atrasado configura qual tempo? 32 3.1 O contínuo do tempo Se você fosse para um lugar onde pudéssemos enxergar o tempo, como ele seria? Que lugar é esse? Como ele se chama? Como você chegou lá? Quem mora neste lugar? Como são? E, se o tempo resolvesse parar? Porque ele pararia? O que aconteceria? Convidados a pensar sobre estas questões, as crianças escreveram possibilidades em uma folha. Conforme este momento de escrita se estendia, configurava-se um espaço de escrita coletiva, uma vez que para compor estes cenários, pessoas e acontecimentos, foram formando-se pequenos grupos de conversa. Percebi que nem todos conversavam e que não havia diálogos fora dos grupos, então, sugeri que após a escrita pudéssemos todos ouvir a todos e, dessa forma foi possível socializar e relacionar as escritas para compor ainda uma outra, em um único papel, traçada com um fragmento de cada pessoa do grupo. Inicialmente, a escrita coletiva de muitos papéis e muitas crianças foi apresentada. Aos poucos foram evidenciaram-se as divergências, os diferentes pontos de vista, os contornos do que estava sendo delineado. Muitas crianças responderam que o tempo é uma roda que não pára de rodar, uma bola que roda, uma roda gigante. Destacado o movimento do tempo, este movimento se fez partindo da imagem do tempo em círculos. O que significa esta imagem de um movimento em círculos? Círculo que não pára de girar - em seu próprio eixo? Quando entendido como uma bola que roda, ela roda para outros lugares que são descritos em suas atmosferas. Quando entendido como uma roda gigante, gira em seu eixo, e a descrição dos lugares também se altera e se alteram as passagens dos cenários. No primeiro caso, este lugar é configurado por movimentos que, embora realizados em círculos, são da mesma maneira, contínuos e em linhas, pois “é um lugar que tem uma ponte, com um rio em baixo e neste rio corre muitos relógios e horas, que não pára de correr nunca”. Qual é o sentido da ponte? Como podemos entender os lugares por ela interligados? O rio é a imagem do movimento constante, porém não circular. A idéia de que o rio não pára nunca remete ao questionamento dos 33 movimentos de um tempo contínuo, que é entendido pelo autor do texto como o tempo trazido pelo relógio, mas não apenas um único relógio, muitos relógios e muitas horas. De que maneira o rio correndo entre duas margens traduz como imagem o continuo do tempo entre permanências? As margens não se movem, o tempo é o rio entre as margens, o continuo entre permanências? O que podemos pensar da ponte que interliga estas margens? Atravessa o rio, não se molha nele. Mas, a ponte é o único meio de atravessá-lo? Ponte que é povoada por seu habitante. Quem mora neste lugar “é o relojoeiro bigodudo que fica no começo da ponte, seus pés são bem fininhos e ele tem um bigode com o ponteiro do relógio”. O que faz este relojoeiro quando chegam outras pessoas? “Fala bom dia ou boa noite, ou boa tarde, até logo, assim”. Relojoeiro que avisa e marca o tempo, pessoa-relógio com bigodes grandes assim como grandes os ponteiros. A entrada da ponte avisa a entrada no tempo-relógio. A ponte estabelece o ponto de travessia entre as permanências sob o movimento, ela sobrepõe ao movimento do rio o firmamento do solo no qual pode-se atravessar, assim como o relógio estabelece sob as muitas temporalidades a configuração de uma única travessia de tempo. O rio não se deixa imobilizar, ele corre sempre e seus relógios são muitos, muitos são seus tempos. Mas, a ponte opera a mobilidade que permite cruzar este movimento, deslocar-se sobre ele, sob a condição de estabelecer um patamar sólido. Entretanto, sob a ponte ainda movimentam-se aqueles que passam por ele, ninguém na ponte permanece, ela é o meio pelo qual se locomove de uma margem à outra. Embaixo dela, não deixam de correr os relógios no rio. O tempo-máquina relógio opera, como a ponte, a estabilidade de um tempo caracterizado por conferir à multiplicidade de tempos, um tempo único a ser trilhado. O relógio mantém em seus ponteiros o guardião deste tempo-sólido para locomover-se, que não deixa de avisar sua passagem, não deixa de nomear o momento-tempo em que na ponte-relógio se entra. Todavia, assim como a ponte não imobiliza o rio, o relógio não imobiliza o contínuo do tempo. 34 O contínuo do tempo ultrapassa a possibilidade de qualquer estancamento de sua mobilidade, ainda que sejam edificadas pontes a fim de solidificar uma passagem entre duas permanências. Elas fornecem um patamar, mas configuram uma condição? A ponte opera a fuga ao movimento? Entre as permanências de suas margens forja-se uma terceira permanência a fim de que não nos sobrevenha os riscos do movimento incontrolável, de um rio com muitos relógios, que não cessa de correr? O relógio garante a unidade para a multiplicidade de tempos, para que entre permanências, aquilo que configura movimento seja trilhado seguramente em terra firme? Penso. Escuto os cenários, a ponte, o relojoeiro. As crianças gostam da história, se divertem, dão risada, perguntam mais. Então, pergunto: “E, só dá para atravessar pela ponte?”. Ele pensa, e logo em seguida responde: “Ah, não professora. Dá pra ir nadando, mas é mais difícil porque você pode se afogar”. Tentamos nos locomover no perigo de um rio em que podemos nos afogar em tantos relógios? A ponte oferece segurança no trajeto, mas a ponte é sempre segura? O que significa correr o risco da multiplicidade de tempos? O que significa a segurança da paralisia da ponte sob um rio incontrolável e continuamente móvel? O que significa quebrar os relógios para navegar em um rio de tempo-água, parar o tempo relógio para viver o tempo-rio? De que maneiras são vividas as multiplicidades de tempos entre permanências? Tempo que opera por “linhas de articulação, segmentaridade, estratos, territorialidades cambiantes, agenciamentos”, navegar em um “riacho sem inicio nem fim, que roí suas margens e adquire velocidade no meio”? (Deleuze, 2000, pg. 36). Movimento como continuidade que não se mantém em um único lugar, toma outros cursos, invade outras margens, cria rotas, seca outras rotas em outros lugares, mas mantém seus movimentos segundo velocidades e composições diversas. No segundo caso, o tempo é uma roda gigante, roda em seu eixo, roda sempre, mas passa sempre pelos mesmos lugares. Quem mora nela “são homens estranhos, altos, magros e que usam todos roupas verdes”, “o rei relógio azul manda na roda” e “o tempo pára quando não tem ninguém na roda”. Mas, “se o tempo parar todas as coisas continuam”. Tempo dominado por um rei, mas não exclusivamente por ele, visto que se 35 não há pessoas, porque a roda haveria de girar? Mecanismo dos cronômetros calculando as voltas – dias, noites, meses, ano, aqui, agora, antes, depois. Cada elemento em seu devido lugar e um após o outro, círculo feito por unidades; temporalidade dominada pela ordem. Dia e noite não se misturam, se tocam quando a roda passa por um em direção ao outro, substituem-se por exclusão, estabelecem um tempo universal e o retorno ao mesmo enquanto houverem passageiros a serem governados pelo rei-relógio. Quais relações se operam nos entremeios destas duas imagens de tempo trazidas para o diálogo? Como conceber os entrelaçamentos que perpassam e conjugam seus sentidos frente aos aspectos culturais, sociais, ontológicos que as configuram? As rupturas e continuidades, os esboços e a feitura de novas imagens em intersecção com outras. Embora haja distinções evidentes entre estas imagens, há linha divisória entre ambas? Conforme conversávamos sobre as histórias apresentadas, os cenários foram se compondo e se modificando, alguns detalhados, outros nem tanto. Quando convidada a ler seus escritos, uma das crianças disse não ter escrito nada. Ela achava que “esse lugar do tempo é cheio de coisas, todas as coisas que a gente vê”. E, que lugar é esse? – pergunto. “É aqui mesmo”. Quem mora lá? – incito. “Pessoas, a gente”. Para o ponto de partida e a afirmação inicial do nosso diálogo da constatação do tempo- invisível, surge o tempo feito de todas as coisas que vemos, que não está em outro lugar desconhecido, inexplorado, imaginável, mas presente, tempo latente, em meio ao que existe, às pessoas - este tempo é o aqui. Operando ainda outras imagens, entretanto, imagens conhecidas, palpáveis, concretas, acontecendo. O invisível do tempo que é visto entre a realidade vivida. Como entrever a coreografia operada no seio da produção de sentidos e de sentidos do texto, materializada nas analogias e cenários em que habitam as diversas temporalidades? A impossibilidade de uma resposta única convida a inventar outras e o espaço da impossibilidade se torna o lugar da criação de movimentos de pensamentos, sentidos, imagens. O não-saber cede lugar ao poder-dizer, que carrega 36 em cada palavra os sentidos que extrapolam a própria palavra para trazer ao poder- dizer os contornos de viver-muitos. 3.2 Mar do tempo: vida e criação “ Os poetas jogam os poemas por sobre as águas do mar. Na praia do Mar do tempo Que versos irão chegar?” (Quintana, 2006). Tempo de uma vida, o tempo de uma idéia, o tempo de um sentido, o Mar do tempo que muda os poemas no movimento de carregá-lo entre praias. O que significa o mar o tempo? Que mar é este? Do que é feito? O que acontecem com os poemas quando jogados neste mar? E com os poetas? O que acontece com a gente? Perguntas consideradas difíceis, dificuldade sentida e deslocada para o texto, cujo título “O que siguinifica”, evidencia o próprio pensamento do texto: “O que siguinifica o Mar do tempo! Siguinifica o que? Poxa que coisa: Difísicio!!A!! Eu já cei não é Igual a Fonte da Juventude A fonte deixa Você novo em Folha. O Mar Deixa velho.”1 O texto, que no início aponta a dificuldade sentida, vai se desenrolando junto ao pensamento e descobre no mar do tempo o movimento do envelhecer no qual estamos inevitavelmente mergulhados. Entrar no mar do tempo é entrar no movimento da vida, é possível sair do mar sem sair da vida? Tempo este líquido já expresso nos diálogos anteriores, entretanto, as margens aumentam, tornam-se mais distantes, o movimento não pode ser solidificado, pois para o envelhecer e a latência da morte não há 1 Grafia do texto conservada idêntica à produção original da criança. 37 patamares para o trânsito em segurança. O tempo torna-se o tempo-vivido, o envelhecer que não cessa, não repousa, tempo visível nos corpos, na pele, nos espelhos. O mar do tempo que é o tempo envelhecendo. Nesse sentido, não há pontes a serem construídas; o mar ultrapassa qualquer possibilidade de ponte. Há necessidade de sempre navegar de alguma maneira, encontrar modos de mergulhar na intensidade dos movimentos de um tempo que não nos abandona. Modos de navegar entre espaços flutuantes, espaços de perigo e vulnerabilidade, espaço da vida que não apresenta a segurança da ponte para atravessá-la, é necessário transitar sempre por meio dela. O que significa estar à deriva da vida? Afogar-se neste mar? Deixar de navegar? O que é necessário para navegar? Viver identifica-se imediatamente com navegar? Para mergulhar no tempo dos espaços da vida, é suficiente viver apenas? Vida de um organismo biológico com sua fisiologia automática e programada - que se esgota nos órgãos, no mecanismo, no ato de ser parido? É necessário apenas o ato de respirar? Viver pressupõe sentidos. Sentidos precisam ser criados. Criar modos de navegar no tempo, envelhecer nos movimentos de criação da vida. Porque “Navegar é preciso: viver não é preciso. (...) Viver não é necessário: o que é necessário é criar”.(Pessoa, 1980, pg. 15). Mar do tempo que é a vida, mas para navegá-lo é preciso não a vida, a criação. E, o que é viver sem criar? O que é criar sem viver? Porém, existem praias, lugares de chegadas e partidas, ilhas, espaços de terra. O que chega, chega o mesmo? Qual a espessura do mundo? O que são os espaços de terra entre mares? Qual a profundidade, os tecidos, os territórios, os espaços vazios, lacunas da realidade? Quantos são os trajetos? Inumeráveis e contáveis de quando em quando, mas sempre re-contáveis, re-configuráveis. De que matérias são feitos os invisíveis da existência de estar-sendo bicho vivente entre temporalidades. Sujeitos indefinidos sempre em terceira pessoa, para: “Não chegar ao ponto em não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados.” (Deleuze, 2000, pg. 7). 38 Entretanto, a face que envelhece carrega cicatrizes em seu espelho, marcas de muitos; reconhecível, distinguível, sentida, assentada sobre o território da areia da praia, ainda que de passagem, ainda que reconfigurável, ainda outras tantas vezes em mar aberto, ainda que alterados os territórios, permanecem patamares de silêncio, estados de permanências entre movimentos. Entre as incertezas, a constatação inevitável da latência da morte. A constatação inevitável do tempo. Tempo-água, tempo-máquina relógio, tempo- aqui, tempo-outros, tempo-muitos, mar do tempo, movimento de temporalidades e patamares de permanências. Sentido, vivido, criado, forjado, mensurável e imensurável, instigado. Escrito por nós de diversos modos – escrito com olhares, diálogos, escrito em silêncios, nas folhas de papel, nas folhas de papel de um grande grupo, em poemas. Em atos, em gestos, em palavras, desenhos, entre os dias do cotidiano escolar de tempos determinados pelos sinais, trimestres, anos, meses, conteúdos, séries, no espaço-escola do tempo-horário delimitado. “O que são os currículos, os programas e os planos de ensino senão grandes elaborações temporais de atos coletivos que, se chegam a perder em termos de exatidão, ganham sempre em termos de controle disciplinar?” (Beltrão, 2000, pg. 45). Controle disciplinar de tempos, controle de corpos - controle de toda a criação de tempos e de corpos? Criação de universos sensíveis entre temporalidades, criação navegante de vivente que não escapa à constatação de sua constituição efêmera, por que: “O tempo é quinen uma bola vai rolando rolando e pasando por todo lugar e vai passando o tempo tempo passa e é uma 39 onda divagar e nós acabamos a dormir!”2 2 Grafia do texto conservada idêntica à produção original. 40 4 Invisíveis palpáveis O olho enxerga a cena. Olhar debruçado, habitando, transitando, sentindo. Olhar emoldurando e sendo desenhado, concomitante à respiração, contornando as paisagens feitas de laços de significados, divórcios da transcendência, para tornar-se latente. Olhar que entrevê, transcreve, incita, e devora a realidade. Olhar-moldura feito de humano sentir, esculpido com matéria de sensações e desejos, instintos, sangue, cultura. Olhar maquinário? Pousado suavemente, aguarda que a mão lhe toque e umedece a folha em branco, palavras dançarinas caminhando em pleno possível, deslizando, pulsando, abrindo fendas no aparente, sugando ímpetos demasiados instáveis, estremecendo. Como definir aquilo que palpita e estremece? Fator desencadeante do pulso da vida, sopro. A mão que acaricia as palavras as devolve no papel movendo os tecidos de uma liquidez impronunciável do invisível captado por este olhar, “... como deixar de ver essa invisibilidade...?” (Foucault, 1995, pg. 20) Quem olha por trás da cortina e vislumbra o espetáculo desenrolando seus braços sobre os segundos? Quem é o expectador? Enquanto olha, desconfia que está sendo olhado? A caixa está em cima da mesa. Colorida, não muito grande, recoberta por palavras, imagens, cores e deixada ali lacrada como objeto não usual, novo na configuração do ambiente. As crianças chegam para um dia de aula. Chegam e olham a caixa. Indagam a caixa, tocam, tentam abrir, olham. A caixa tem um conteúdo desconhecido, emite som? Está pesada? Emite cheiro? A caixa é tocável, mas seu conteúdo ainda não é acessível. Alguns mais entusiasmados começam logo a perguntar sobre ela, a testar possibilidades e inicia-se um debate entre todos, as hipóteses vão mudando e aumentando a expectativa de todos. Em poucos momentos surgem as mais diversas possibilidades, nomes, sugestões, palpites, e está armado cenário deste dia. Durante todo o período da aula formou-se grupos envolta da caixa que iam e vinham para tentar compreendê-la. “O que vamos fazer com ela?”, “Para que serve?”, “Conta, por favor...”. A dúvida se avizinha e os acompanha até em casa. Não 41 se esvai, retorna para encontrar, então, no dia seguinte uma pequena etiqueta que avisa: “Caixa de criar histórias”. A novidade gera anúncios a todos que chegam, as crianças então descobrem que a caixa nos contará histórias: “Como?”, “Há livros dentro da caixa?”, “È uma história só?”, “Quando será contada?”, “Quem vai contá- la?”. As perguntas feitas são muitas, se avolumam, as expectativas voltam a preencher boa parte dos nossos diálogos. Como são criadas as histórias? De onde elas vem? Esta é a pergunta que faço. Talvez, entenderemos melhor o que há dentro da caixa se pensarmos nessa pergunta. As respostas vão surgindo lentamente, alguns não respondem e ficam pensando, outros se dispõe a arriscar: “Ela vem do livro!”. Pergunto: antes do livro, onde estavam? “Hum...” Outra criança propõe: “Na cabeça de quem escreveu!”. Provoco: “E como chegaram na cabeça dessa pessoa?”. “Sozinhas!”, “Alguém vai lá, sonha, acorda e inventa uma coisa!”, “Alguém contou para ele!”, “Ele ouviu em algum lugar!”. Ouço as possibilidades e entre eles não são poucas as discordâncias, alguns refutam, contrapõem, elegem as melhores respostas. Enquanto escuto as falas entrecortadas, algumas mais acaloradas, outras mais tímidas, vou, aos poucos, abrindo ligeiramente a caixa e espio. Alvoroço! Cutucões! “Xiiiuuu! Olha lá!”. Silêncio. Começo a colocar os dedos bem devagar dentro da caixa e demonstro o que sinto: maciez, cócegas, eu estremeço, faço careta, acaricio, sou espetada. Retiro a mão. Todos pedem que eu mostre, abra a caixa e acabe com a tortura, se agitam, perguntam o que eu senti. Proponho uma nova tentativa, brinco com o conteúdo da caixa, brinco com o conteúdo das expectativas, escuto a caixa e peço que eles também a escutem, então, todos fazem silencio absoluto para tentar ouvir. “Não ouvimos nada! O que você está ouvindo?” Muitos pedem incessantemente para que a caixa seja aberta, exploram os detalhes dos desenhos e imagens; volto a sentir a caixa, com as duas mãos, alterno sentimentos de êxtase e espanto, lentidão e euforia, conforto e repulsa, e as crianças vão me acompanhando nas reações, contorcem os rostos quando me espeto, dão risadas quando sinto cócegas, e mordem os lábios, beliscam os dedos, estão todos muito curiosos. Então, aos poucos, com muito cuidado, vou 42 retirando da caixa minhas duas mãos em concha, segurando o conteúdo delicado, torno-o pesado, muitos, em movimento, escapando, flutuando, mas não abro as mãos. Estão todos ansiosos, fazendo tentativas, questionando. Alguns se dispuseram a sentar mais perto, esticar-se para ouvir melhor. Questionei ainda outra vez o que achavam que era, as respostas foram diversas, muitos disseram se tratar de um pequeno bicho, insetos muito pequenos que não existem no mundo, outras, afirmavam ser um duende, um ser mágico, uma lesma. Incitei-os a detalhar características, como se parecem, andam, falam, moram, chamam, vestem. Algumas alternativas foram sendo abandonadas, outras ganharam mais contornos, detalhes, vozes, jeitos de andar, nomes, tamanhos, cores, cheiros, sons. De repente, uma criança se levantou de súbito como se encontrasse a resposta final, abanou as mãos: “Eu sei!!!”. E disse o que havia dentro da caixa: “O contador de histórias! Se a caixa é de criar histórias, só poder ser o contador que está aí dentro!” Todos ficaram surpresos, alguns concordaram, outros perguntaram para ele como ele sabia que não era outra coisa, mas G. começou a descrevê-lo dizendo que era muito pequeno e tinha um violão. Perguntei como achavam que ele é, deram-lhe um nariz pontudo e sandálias, descreveram seu tom de voz e o jeito de andar, cantaram a música para ele tocar, a dança, sapatos muito grandes, verdes. Depois de explorarmos as características do contador de histórias, algumas crianças começaram a se zangar, tornando-se mais impacientes, cruzando os braços em um canto e dizendo que queriam ver! O que havia e porque somente eu poderia ver e pegar? “Não vale, a gente quer ver também!”. As crianças então pediram para “ver de fato” o que era possível existir dentro daquele espaço, queriam ter certeza. Iniciou-se uma campanha de argumentos, procurando convencer a mim e aos colegas que não poderia ser dessa forma, exigindo que eu abrisse a mão naquele momento e mostrasse, que havia demorado muito e que queriam saber. “Não quero mais essa brincadeira! Fala logo, prô!”. Uma campanha foi feita, com palmas, pedidos, crianças pulavam, chacoalhavam-se, batiam palmas. 43 Concordei com os pedidos, mas lhes disse que ao invés de apenas mostrar o que eu havia retirado da caixa, eu repartiria com todos, colocaria em suas mãos, porque aquilo que eu estava segurando poderia ser dividido em muitas outras partes e em muitas outras coisas, e quanto mais o fosse, mais poderia continuar sendo compartilhado, não se esgotaria. Entretanto, cada pessoa o sentiria de muitas maneiras e se tornariam então muitos e muito diferentes, sempre que partilhado se tornaria diferente. Cada vez que outra pessoa pega vira uma outra coisa, e pode ser muitas coisas, e quando trocamos, vai cada vez mais mudando e cada um faz disso as coisas mais diferentes. Cada um que segura e sente, cria uma história, muda o que é. Todos fecharam os olhos, abriram as mãos e fui entregando. Pedi para que pudéssemos ver ao mesmo tempo e desvendarmos o mistério. A ansiedade não permitia, assim que eu deixava em suas mãos, os olhos espiavam, riam, demonstravam espanto. Quando as crianças abriam os olhos, as reações foram tomando a cena – alguns se mantiveram atônitos, parados, sem nada dizer ou fazer, com as mãos fechadas; outros brincaram com o que receberam, acariciaram, pegaram com a ponta dos dedos, deram beijos, emprestaram para os amigos, contavam o que era. Inventavam, contavam a aparência do segredo que tinham. Algumas crianças se revoltaram e ficaram decepcionados afirmando que não havia nada ali, que haviam sido enganados. Então, com bastante reprovação pegaram o que havia em suas mão e abandonaram. Esperei que as reações fossem provadas, continuei segurando entre as mãos o mesmo conteúdo. Ao ficar bravo com o “nada” que havia em suas mão, uma criança abriu um pouco as mãos e jogou no chão o que havia recebido afirmando: “Não quero!”, outra, vendo a decisão do amigo, se abaixou rapidamente, pegou do chão, e contou para os amigos que tinha “mais um”. O que há em nossas mãos? Que pode ser leve, pesado, flutuar, que é macio e espeta, que poder se tornar qualquer outra coisa que quisermos, pode ser um inseto, um mosquito, um contador de histórias e que poder ser qualquer outra coisa também? E que cada pessoa sente de formas diferentes, que pode ser partilhado, que dança, corre, dorme, que faz cócegas? Conversamos sobre o que cada um tinha feito com o 44 que recebeu, muitos conservaram o contador de histórias, então, passamos a ouvir as histórias que cada um estava ouvindo. Muitas crianças passaram a se interessar por este momento, sentamos e cada um convidou o contador, descrevendo os personagens, dando nomes para as histórias, pensando nos acontecimentos e nos lugares em que se passavam. Um fato marcante foi perceber que as narrativas passavam então a não ser exclusivamente em primeira pessoa, pois quem estava dizendo era o contador, dessa forma, “ele” dizia, e os pronomes foram se misturando, ora em nomes próprios, ora em terceira pessoa por meio das intervenções de outras crianças, ora em nome do contador de histórias. Assim, encerramos o dia. O que não vemos, não existe? Esta pergunta, escrita na lousa marcou o início das nossas conversas no dia seguinte. O que nós não vemos? Os sonhos, as bactérias, os ácaros, o vento, os planetas, os sentimentos. Não vemos, mas existem. Então, existem, mas nós não conseguimos enxergar porque é invisível. O que mais é invisível? A eletricidade, o escuro, fantasmas. Podemos inventar o que não existe? - Sim. - Não podemos. - Ah, Não sei. - A gente inventa no sonho. Pergunto: - O que a gente sonha existe? Muitas são as respostas. Alguns dizem que não existe, mas existe no sonho. Então, uma criança lembra: - Mas, se existe no sonho, então existe... E, em seguida: - É, mas só na imaginação. Então, a fim de perceber e instigar novas perguntas e novos conflitos, pergunto ainda: - E onde a imaginação está? 45 Grande parte das crianças respondeu que nossa imaginação fica localizada em nossa cabeça, no cérebro, em um órgão que está na nossa cabeça e inventa tudo, nos faz enxergar, falar, pensar, andar, comer. Em que medida é possível relacionar o fato deste lugar “cérebro” ser apontado como a matriz da criação do que não existe e do que existe e vemos ou não vemos, e as entranhas da trajetória ocidental de concepção do conhecimento identificado como conhecimento racional, lógico, objetivo, estrutural. É possível salientar traços destes apontamentos relacionando-os às estruturas de compreensão das formas de conceber o mundo estritamente ligado à razão? De que maneiras repercutem-se os elementos da estrutura dicotômica constituída pelo pensamento operacionalizado, racionalizado? Quais os aspectos são entre-concebidos na compreensão da imaginação localizada “no cérebro” e a matriz da ciência e das teorias do conhecimento, manterem uma arquitetura do positivo, universal, dos antagonismos indissociáveis? Estrutura. Razão. Lógica. Esquema. Sistema. Verdade. Objeto. Objetivo. Máquina. Corpo. Cada conceito, muitos dizeres. Somos um corpo, corporeidade. Somos corpos que carregam dimensões, faces, relações. Somos um corpo relacional (Deleuze, 2000). Corpo em movimentos. Entre as condições de um corpo delimitado por seu aspecto fisiológico, há as dimensões que neste não se encontram. Fomes que não são sentidas órgão-estômago. Somos seres pensantes, animais racionais. Mas não existo só porque penso. Precede o pensar, os sentidos. Sinto. Sentidos inteligíveis, outros apenas sentidos. Sentidos impronunciáveis, mas constitutivos. Pensamentos pré-reflexivos (Ponty, 2002). engendrados nas percepções do mundo. Antes de pensar o mundo, percebo-o. “Conhecer o mundo como matéria-forma convoca a percepção, operada pelos órgãos do sentido; já conhecer o mundo como matéria-força convoca a sensação, engendrada no encontro entre o corpo e as forças do mundo que o afetam”.(Rolnik, 2003). Percebo. Sinto. Penso. Entretanto, quais desdobramentos se operam quando a razão é entendida como o lugar privilegiado do conhecimento? Quando conhecer identifica-se imediatamente com pensar? O que significa o apelo ao absoluto, à unidade, ao verdadeiro. 46 Frente aos fragmentos de perspectivas, à multiplicidade de corpos em sentidos relacionais, o subjetivo, múltiplo, os focos, as redes, configuram patamares que se interpenetram, se chocam, se cruzam, se enlaçam, para formar uma gestualidade do possível, que não caracteriza um lugar único, uma verdade absoluta, mas perspectivas em devir. Como circunscrever a intersecção de universos, intermundos? A multiplicidade de entendimentos configurou o ambiente de nossas questões, os conflitos seguiam-se às respostas “diferentes”, na busca do consenso, assim, respondendo a pergunta com uma única resposta. 4.1 Órgão-olho que degusta cenas - Está nos olhos, professora! Esta foi a resposta de um dos alunos que causou estranhamento nas crianças da classe. O aluno que, percebendo a recusa dos amigos, explicou: - A imaginação está nos olhos. Sonhamos e vemos os sonhos, então, só pode estar nos olhos. Imaginamos e vemos o que a gente imagina. Não é visível, mas vemos. Que olhos são estes que enxergam o invisível? Debruçam-se sobre paisagens de sonho, inconcebíveis quando acordamos, não vistas, mas guardadas nos olhos, deitadas à espera do sonho, da permissão, dos invisíveis. Que olhar é este que não é olhar de pessoa acordada? Olhos que tateias, percebem, abrigam, investigam, experimentam, criam, envoltórios da imaginação. Olhos de imaginação, morada de um contador de histórias que não é o mesmo que nós mesmos, mas o é por nós, diz em nós, diz por nós. Cala quando calamos? Diz quando silenciamos? Olhos que enxergam o invisível criado pela imaginação, e mais que isso, abrigam a imaginação e todas as suas cenas que transitam pelo cristalino. Porque, ora, se vemos os sonhos, eles moram em nossos olhos. Nada pareceu mais óbvio que esta resposta, foi dita como um relâmpago, cortando e rompendo com as respostas até então oferecidas. Este órgão-olho que “funciona” mesmo quando não funciona do jeito que deveria funcionar, e enxerga quando está dormindo, olha quando não é possível 47 ver pelos olhos. Porque: “O imaginário não é um inobservável absoluto: encontra no corpo análogos de si mesmo que o encarnam”.(Ponty, 2007). Em que sentido este olhar refere-se aos olhos que é todo o corpo, corpo todo- olhos de existente que olha/ percebe/ sente/ pensa o mundo, e com seus olhos tateia, sente as imagens-sentidos, olho que se instala na pele, nos ouvidos, no sentir e explora, degusta, se implica, encarna, compõe, avista, se instala na sensibilidade do corpo vivo que é nu e percebe, corporeidade que abriga o olhar lançar-se pela existência. Olho que assiste como expectador? Olho-mãos, braços, gesto. Olhar político, estético, sensível, nos intercâmbios de relações, embates, conflitos. Humano que não se pode desatrelar a sua condição sensível, ainda que recoberto pela comercialização de anestesias e consumo de padrões. Olhar que não opera sínteses, mas movimentos, rotas, caminhos que não param de circular entre negações e conflitos, opostos que operam passos, se cruzam, se desfazem, mudam trajetos, sinalizam territórios, mensuram possíveis e os relançam na transitoriedade do porvir. Olhar que devora o existente metamorfoseando-o em invisíveis possíveis, engendrados no imaginário da retina. Olho que é o corpo todo. Surge, então, uma nova questão. Eu vejo minha imaginação, mas vejo sozinho, pois outras pessoas não vêem, posso apenas contar o que vejo, mas quem ouvir verá o que está em seus olhos e não o que vi com os meus. Por que não podemos enxergar a imaginação de outra pessoa quando ela está imaginando? A imaginação trouxe muitas possibilidades, histórias foram inventadas, idéias sobre sonhar junto, o mesmo sonho, pintar um quadro para enxergar junto, e quando todos procuravam respostas e possibilidades para esta questão, pedi que escrevessem uma produção de texto sobre o que haviam conversado. Instaurou-se um ambiente de escrita, as crianças conversavam para lembrar o que o amigo havia dito, se concentravam para tentar responder a questão, quando um aluno chegou perto de mim e entregou a sua folha. Nela estava escrito: 48 “A imaginação, nós não vemos mais ela existe iguau a bactéria, ácaros e etc. No nosso corpo. Não podemos inchergar porque .”. Perguntei se ele havia terminado e ele disse que sim, que não sabia porque e não tinha a resposta. Em seu texto, ele havia deixado a última palavra “porque”, um grande espaço, e somente então um ponto final. Perguntei se ele havia gostado do texto que escreveu, ele disse que sim, que estava bom, e começou a me contar que poderia inventar uma piscina de chocolate branco e preto pela imaginação, nadaria nela, ele tinha em seu texto escrito sobre ela, e estava muito animado com a possibilidade de que ela existisse. Mas o porque não enxergamos, ele não sabia. Mas a pergunta e o que pensou, sentiu sobre a pergunta estavam presentes em seu texto. O que segue a palavra “porque” é um grande espaço em branco, mas o texto não termina neste espaço, ele se encerra no ponto final. A pergunta não precisou ser respondida, permaneceu pergunta, mas o texto estava terminado em sua compreensão. Aquela dúvida não precisava ser respondida, mas sua existência não foi subtraída. O espaço em branco não precisa ser preenchido e o texto pode ser encerrado mantendo nele o contorno de um espaço de silêncio, espaço em branco grávido de significados. Em sua compreensão, o texto não precisava somente das palavras, texto de incerteza, com a incerteza explicita, corporificada pela letra. A lacuna está presente, participa dele, o ponto final somente pode ser colocado após este espaço de não-dizer. O final do texto não é a resposta da pergunta, é quando o lápis não pode mais dizer ou não precisa, o texto encarna o trajeto do pensamento, e o pensamento pressupõe sentidos, significados advindos da nossa percepção, do desencadear de sensações vividas, que são intrinsecamente lacunares, a-lineares, concebidas nos conflitos e não nas certezas. “A certeza, embora inelutável, permanece inteiramente obscura; podemos vivê-la, não podemos nem pensá-la, nem formulá-la, nem eriji-la em tese. Toda tentativa de elucidação traz-nos de volta os dilemas”.(Ponty, 2007, pg. 23). Dilemas não-grafados, mas corporificados pelo silêncio do texto, do trecho em branco, que diz. 49 Criação de existências, a partir do reconhecimento dos invisíveis em gestação transitando nos recortes de realidades, nas intersecções em que são operados os silêncios, no momento exato em que se tocam o dizer e o impronunciável, palavras que guardam gestos, dizem e silenciam. Criação de histórias, a partir do invisível observável e manipulável. Invisível convidado a coreografar perspectivas, sensações, cheiros, músicas, gestos, olhares, e que, mesmo quando recusado, não deixa de existir e é jogado, recolhido, transformado em outro material de histórias. Criação sensível de espaços para a degustação do Não, do inexistente presentificado, vivência de negativos que constituem. Criação de mundos outros. Existente e inexistente justapostos, indissociáveis; existente que carrega o inexistente como condição de sua possibilidade, inexistente que compõe existências em perspectivas. Laços em movimentos de sentidos enraizando composições de mundos, vida, sentidos. Premissas da criação de universos sensíveis, fator de desencadeamento das profundidades dos olhares, intercorpo que habita aspectos de suas dimensões multiplicadas no espaço dos invisíveis fundantes. A caixa de criar histórias esteve presente em nossas aulas por diversas vezes, trouxe em cada momento algo diferente. Fotografias, instrumentos musicais, flores, tecidos, cores, palavras, máquina de fotografar. Partindo do que ela desvendava, histórias, suposições, diálogos, embates, conflitos, textos, poemas, murais, textos coletivos e fotos, foram criadas. Cocretudes que se apresentavam, entretanto, carregando nas falas, nos embates, nas possibilidades, criações mergulhadas no invisível daquilo que elas não desvelavam. 4.2 Entre-espaços de visíveis Uma pedra. Uma pedra e o seu silêncio. Retirada da caixa, pergunto se ouvem o que a pedra diz. Todos respondem que não, pedras não falam. Pergunto se imaginam onde esta pedra andou, em resposta: “Pedras não andam”. Pedras têm vida? “Não!”. Conto-lhes que esta pedra esteve durante muito tempo no fundo do mar, acumulando tamanho, mudando de forma, vendo as coisas passaram, e passando também. Sendo 50 arrastada pelas ondas, trazida de volta, mudando de cores, de lugares. E que se recusava a falar, por isso está há muito tempo em silêncio, e, desde então, achamos que ela não fala. Um homem, andando em sua solidão pela praia, se abaixa e percebe a pedra. Olha por muito tempo para ela, percebe cada detalhe, cada risco de sua cor, cada marca em seu corpo. Senta-se com a pedra e conta para ela os seus segredos mais escondidos, conta tudo o que sabe sobre o mundo, e tudo o que não sabe. A pedra nada responde. Nada faz, fica quieta, parada, sem parecer se importar com o que ele está dizendo. Depois de muitas horas, começa a ficar muito escuro e o homem resolve ir embora para sua casa. Mas não quer continuar sozinho e pergunta à pedra se ela quer ir com ele. Como a pedra não responde, ele coloca em seu bolso a pedra e mais duas outras que encontra no caminho de volta. Os dias passaram rápido. A pedra e o homem estavam sentados e o homem percebeu que ele também não falava. Não entendia porque. Se a pedra estava lá, bem que poderia falar alguma coisa. Uma coisinha só, só uma palavrinha. Parava para escutar: será que ele que não estava ouvindo com atenção? Sssssxxxchhh.... Nenhuma palavra. Homem e pedra ficavam calados, sem nenhum barulho, nenhum movimento, sentados. Ele tinha certeza que a pedra falava. Tantos anos no mundo, no mar, pra lá, pra cá, e nenhuma história podia contar, não falava onde tinha ido, o que tinha visto, quem passou por lá. Era assim, e o homem sempre descobria alguns desenhos, algumas formas que não tinha percebido antes. Um pontinho preto aqui, uma dobrinha ali, um lugar mais amassado, outro mais arredondado. A pedra sem dizer. Mas, porque é então que ela não queria dizer? Pedras não falam. Decidiu. Voltou ao mesmo lugar que encontrou com ela, rodou os braços, e soltou, longe, rápido, até... - Até? - “Até o fundo do mar!”. O homem deu uns passos e foi... - Foi? - “De volta para a casa”. 51 - Porque...? - “A pedra não queria falar”. - E porque pedras não falam? -... - Se ela, de repente, um dia em estivesse muito diferente, e acordasse, assim, muito alegre, e, então, para a surpresa do homem, como um raio, falasse!!! Que língua ela falaria? “Língua de pedras!” E qual é a língua de pedras? “Dura”, “Que só ela entende”, “De mar”. E nós falamos língua de quê? “De gente!”, “Português!”, “De pessoa!”. Língua da gente, a gente fala como? “Com a boca”, “Com palavra”, “Na voz”, “Com letra”. O que é a palavra da pedra? Silêncio. “Qual a boca da pedra? “Os buraquinhos!”. “O monte de furo que tem nela”. “Ah, é! Isso, prô. As marquinhas”. Se, então, o homem entendesse a língua da pedra, que ela contava nas marcas, que histórias ela contaria? Porque o homem olhava tanto as marcas da pedra e não entendia? Será que a pedra, na língua das pedras, entendia o que o homem falava? A pedra foi tocada e cada detalhe, risco, marca, buraco, cor, ganhou novo contorno. Cada marca uma história, contada na língua das pedras, vista pelos nossos olhos. Histórias de pedra que ficou, em cada formato da pedra. Histórias de pedra contadas por pessoas, para traduzir as histórias contadas pelas marcas, para imaginar se a pedra entendia o que o homem falava, o que achava, o que dizia para ele, o que estava dizendo para nós. Histórias que falam do mar, que falam da água, que falam dos peixes, de outras pedras, tubarões, estômagos de baleias, amizades de pedras, ondas, histórias de pedras. Em meio aos contornos e cores da pedra por nós tocada, histórias vão sendo inventadas. Histórias que carregam, mais que a pedra como fato, a pedra como acontecimento. Acontecimento grávido de invisíveis. Pedra que diz quando fala além de sua fala visível, história que gera o contar de história, perpassando, enlaçando significados que vão sendo descobertos, trilhados por meio dos questionamentos, das hipóteses, da permissão do muitos. A caixa traz a pedra e, com a pedra, tudo o que não é visto nela, que não está em sua materialidade, mas está nela, com ela, 52 habitando os entre-espaços de sua existência - suas possibilidades de ser: pedra, linguagem, acontecimento, história, conto, marca, escrita. Visíveis que extrapolam o visível e configuram atmosferas, inéditos que mudam intenções, e, então, uma rosa é mais que uma rosa; é uma rosa tagarela, é percepção que abriga sensações de rosa, cores de rosa, idéias de rosa, vozes, possibilidades. Uma foto são histórias, e histórias fluem nos espaços destes invisíveis, cochicham fragmentos, escolhem os figurinos, cenários, pra travestir os óbvios com as multiplicidades complexas em que navegamos. 4.3 Caixa que é extrapolada pela caixa De repente, espanto! A caixa e todo o seu interior caem das minhas mãos e se abre, espalhando pelo chão diversos objetos, alguns conhecidos, outros ainda não revelados. Correria! Todos querem correr ajudar a pegar, para tocar, descobrir. Mas os objetos não retornam à caixa. São passados pelas mãos, sob os olhos, alguns se entusiasmam com os objetivos desconhecidos: “Por que esse?”. Entretanto, há muito que o conteúdo da caixa não estava dentro da caixa. Estavam espalhados pela classe, nos olhares, nas entrelinhas das histórias, nos gestos de espanto, de surpresa, e alegrias. Expectativas que pairavam durante as aulas. A caixa não se limitava à caixa, assim como os objetos não se limitam aos objetos. Partilham significados desnudados coletivamente, ditos em vozes e silêncios, percebidos. As histórias não estavam e não estiveram, desde o início, dentro da caixa. Estavam espalhadas por toda a classe. Então, o que a caixa proporciona? O desencadear das histórias? A criação de histórias perpassa pela caixa, que é um dos meios de provocar realidades, permitir o espaço para possíveis que são convidados a participarem dos momentos de imaginação, espaço para inventar. Sala de aula que é laboratório, em que se desenrolam experiências, manuseios, rompendo com a linearidade de uma possibilidade de história, um final, uma verdade, uma sentença. As perguntas são feitas com intenção de serem degustadas, provadas, vividas. Quando surgem posições divergentes, a primeira reação das crianças é buscar 53 uma solução para o conflito e estabelecer a “resposta” mais aceitável. No entanto, quando se percebem diante de questões em que estas respostas não existem, negociam significados entre as muitas “respostas”, cada uma delas configurando trajetórias de possíveis, tentativas que não-verificáveis concretamente. Dessa forma, o abstrato, o inimaginável o impossível, o ridículo, o nunca e os elementos invisíveis que constituem a vida, o corpo, a arte, são experimentados pela não-razão, por falas consideradas ilógicas, mas que vão significando através de símbolo, imagens, perspectivas. Do seio da abstração, são trilhadas histórias que contam concretamente. As sensações são encarnadas nas histórias, nos estranhamentos, nos corpos que podem deixar seus lugares pré-determinados pelo nome e abrigar dimensões negadas pela racionalidade técnico-científica e pela organização das unidades. As narrativas apresentadas por cada história se entrecruzam, se misturam e são a-lineares. As etapas não são segregadas na exigência de uma história com suas etapas segregadas, ao contrário, a multiplicidade opera desorganização dos moldes pré-estabelecidos para criar as histórias, e também, os moldes para encontrar, nos limites de uma narração, a descrição de um único ponto de convergência e consenso. A necessidade de dominar uma técnica a partir da qual são organizados modelos de coesão, é substituída pela desorganização das sensações que são vividas em um contexto diverso, e povoado de relações. E, nesse caso, a certeza torna-se plural como as sensações. 4.4 Goles de um de-beber Barulhim de vespa, besourim amarelo furando a folha, garrafa cheia de vagalume pra alumiá o de-noite. Contá perninha de furmiga, chamar passarinho emprestado, um instantinho só. A terra, os olhares, a pergunta, o brincar e a dureza da morte foram convidados à caixa. A caixa se maquiou, se modificou em novas cores e novos objetos, fotografias, novos convites para vivermos a sensação Guimarães Rosa. Em parceria com Fernanda Feitosa do Valle e Juliana D´Urso, re-elaboramos a 54 proposta inicial da Caixa de Criar Histórias a fim de que ela permitisse experimentarmos quais sensações poderiam ser vividas a partir da história do personagem Minguilim, do escritor João Guimarães Rosa. Durante todos os sábados do mês de junho, no Sesc em Piracicaba, realizamos vivências de literatura dramática com crianças de três a onze anos. Nos encontros que antecederam as vivências, muitos diálogos foram travados para delimitarmos o que a proposta carregaria em seus sentidos, intenções e maneiras de concretizá-las. A história do personagem é contada por meio da narrativa do escritor, entretanto, a proposta da experiência transitava por outros patamares, que não os da narrativa contada pela linearidade. As narrativas são sempre lineares? Nossa opção foi tornar possível experimentar as sensações do livro por nós vividas durante as leituras e os encontros, sem que necessariamente a história fosse contada em seus capítulos, mas que os acontecimentos estivessem presentes em maneiras de ouvir, tocar, cheirar e escrever as entrelinhas da história. Quais sensações participam da história? Quais toques, olhares, sentidos, paradoxos? Que sentimentos são mobilizados? Em que medida, estas sensações compõem as entrelinhas da narrativa e vão escrevendo uma história que não é a mesma, por ter sido re-lida, sentida, re-significada? Participava de nossas intenções compor estas entrelinhas, para que, ao ser contada, a história fosse feita não apenas por meio das palavras, e re-significada não apenas por meio do pensamento. Outras dimensões foram convidadas. A história traz acontecimentos da narrativa, mas não um após os outros, a história não é contada em todas as suas palavras, mas em acontecimentos, vividos na narrativa e vividos no espaço de sua dramaticidade. As entrelinhas foram sendo compostas e traçadas por cada pessoa presente, mas também coletivamente. Sentidas de diversas formas, mas vividas em conjunto, carregadas de símbolos coletivos. Enfatizamos as sensações que foram por nós vividas durante a leitura, traçamos os desenhos de um certo Minguilim, que morava longe-longe daqui, no Mutum. A terra no chão para ser vista tocada, as folhas espalhadas, procuravam compor elementos deste nome. Um lugar vivido por diferentes 55 óticas. Um lugar de sombras, bonito, feio, lugar olhado pela dureza, pela infância e pela beleza. Estes três aspectos (a infância, a dureza e a beleza) foram se entrelaçando nas falas, misturados, nem sempre concomitantes. Lembrando, ora famílias de passarinhos cheios d’água, ora as trovoadas, resmungos, sem-vergonhices; ora o pedacinho de céu indo dormir entre morro e morro. E, Minguilim, não sabia o que era bonito e o que era feio. O que é bonito? O que ´feio? Esta pergunta inaugura o momento de silêncio e de respostas. Mas Minguilim não sabia, e estando longe, dava uma saudadezinha até ficar debaixo do coração, e os caminhos quase sempre eram ásperos e secos. Enquanto o som dos agogôs preenchia o lugar, ôôô das vacas, ô... As cabaças são retiradas da caixa e oferecidas: - É pra beber Goles de um de-beber. - Água faz matar saudade? Convidando a provar o d