UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO LINHA DE PESQUISA: PROCESSOS MIDIÁTICOS E PRÁTICAS SOCIOCULTURAIS Carla Costa Garcia DA LOUCURA À CIÊNCIA: AS IMAGENS E A CONSTRUÇÃO DAS NOTÍCIAS SOBRE OS TRANSTORNOS MENTAIS E DE COMPORTAMENTO E SEUS PERSONAGENS NA FOLHA DE S.PAULO Bauru 2012 Carla Costa Garcia DA LOUCURA À CIÊNCIA: AS IMAGENS E A CONSTRUÇÃO DAS NOTÍCIAS SOBRE OS TRANSTORNOS MENTAIS E DE COMPORTAMENTO E SEUS PERSONAGENS NA FOLHA DE S.PAULO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus Bauru/SP, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação, desenvolvida sob a orientação do Professor Doutor Cláudio Bertolli Filho. Bauru 2012 Garcia, Carla Costa. Da loucura à ciência : as imagens e a construção das notícias sobre os transtornos mentais e de comportamento e seus personagens na Folha de S.Paulo / Carla Costa Garcia, 2012 271 f. Orientador: Claudio Bertolli Filho Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2012 1. Jornalismo. 2. Notícia. 3. Transtornos Mentais e de Comportamento. 4. Representações Sociais. 5. Jornalismo Científico. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. II. Título. A meus pais, que me ensinaram a sonhar e me possibilitam realizar. A todas as pessoas que convivem com os transtornos mentais e de comportamento e, além do distúrbio, vivenciam o preconceito e a exclusão social tão arraigados em nossa sociedade. Agradecimentos O Mestrado foi etapa árdua e bastante construtiva em meu processo de formação enquanto pesquisadora e acadêmica. Sem o apoio de pessoas queridas, que serviram de suporte e incentivo seria impossível obter essa conquista. Primeiramente, agradeço a Deus pela presença, força e oportunidade de vivenciar essa experiência e conquista tão especial. À minha mãe, minha melhor amiga e maior incentivadora nesta incursão, cheia de descoberta, conquista e alguns sofrimentos, ao mundo acadêmico e na batalha por meus sonhos. Ao meu pai, meu eterno conselheiro de poucas palavras e ouvido gigantesco e porto seguro, que jamais me permite desanimar ou desistir de meus ideais e objetivos. A meu orientador, Prof. Dr. Claudio Bertolli Filho, que aceitou retornar ao programa de pós-graduação para orientar-me. E, durante esse período de convivência sempre soube me ouvir, compreender minhas crises, estimular minha curiosidade e espírito de pesquisadora. Agradeço por dividir comigo parte de seu conhecimento, por me guiar e ensinar os caminhos para a produção deste estudo e pela liberdade para ousar, criar, errar e progredir. À Pro-Reitoria de Pós-graduação que, por meio da bolsa, possibilitou minha dedicação exclusiva ao programa. Ao Guilherme Tavares por dividir comigo esse momento, pelas discussões acadêmicas sempre tão produtivas e pela ajuda ilimitada e fundamental. A todos os docentes do programa, em especial, aos professores Maximiliano Martin Vicente e Mauro de Souza Ventura pela participação tão essencial em minhas bancas de defesa e qualificação. Ao professor Nilson Alves de Moraes pela gentileza em aceitar meu convite para a banca de defesa e pelas ótimas sugestões e provocações sobre minha pesquisa. Aos funcionários da Seção de Pós-graduação, em especial, ao Hélder e ao Sílvio, por toda a paciência e apoio e também pelas conversas e risadas compartilhadas. Aos meus colegas do Mestrado que partilharam comigo a vida acadêmica, os congressos, os dramas, as descobertas e as tensões vivenciadas neste período. Aos meus grandes companheiros de grupo do Labjor, Odilon, Cristina e Marilisa. Pessoas sensacionais e profissionais de sucesso, que me acolheram e me abraçaram, curtiram comigo a entrada para o Mestrado e me deram conselhos valiosos para a definição de meu objeto de pesquisa, além de despertarem em mim a paixão pelo Jornalismo Científico. Esta dissertação reflete um pouquinho de cada um de vocês, das experiências vivenciadas e do conhecimento compartilhado. Quase “Ainda pior que a convicção do não, a incerteza do talvez é a desilusão de um “quase”. É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi. Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu está vivo, quem quase amou não amou. Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas ideias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono. Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor, não me pergunto, contesto. A resposta eu sei de cor, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos “Bom dia” quase sussurrados. Sobra covardia e falta coragem até para ser feliz. A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai. Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são. Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris seria em tons de cinza. O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si. Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance... para as coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência, porém, preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer. Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo. De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar a alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance. Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morreu esteja vivo, quem quase viveu já morreu!” Texto atribuído a Luís Fernando Veríssimo GARCIA, C. C. Da loucura à ciência: as imagens e a construção social das notícias sobre os transtornos mentais e de comportamento e seus personagens na Folha de S.Paulo. 2012. 271f. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, UNESP, Bauru, 2012. RESUMO Partindo da hipótese de que o jornal é um meio heterogêneo e espaço constante de tensões entre vozes e versões empregadas na construção da narrativa noticiosa – um produto cultural, que deve ser inteligível ao público -, esta pesquisa tem o objetivo de inferir porque as notícias são como são. Para isso, utiliza-se como estudo de caso 366 textos sobre os transtornos mentais e de comportamento e seus personagens veiculados pela Folha de S.Paulo em 2009. A proposta é avaliar a partir de uma temática classificada na intersecção entre Comunicação e Saúde, cuja origem é científica, mas tem implicações na vida social de seus portadores, o jornal e a notícia como meios incorporadores e disseminadores, concomitantemente, de representações sociais e enunciados da ciência. Para tanto, adota-se pesquisa bibliográfica e análise de conteúdo, com vieses quantitativo e qualitativo. A primeira é empregada na revisão bibliográfica sobre representações sociais, Teoria Unificada da Notícia, jornalismo científico e a construção histórica dos distúrbios e de suas imagens. Já a segunda tem a finalidade de identificar as matérias que temos e compreender elementos constitutivos e versões da realidade que atuam em sua produção. Palavras-chave: Jornalismo. Notícia. Transtornos Mentais e de Comportamento. Representações Sociais. Jornalismo Científico. Folha de S.Paulo. GARCIA, C. C. From madness to science: the images and the social construction of news about the mental and behavioral disorders and their characters in Folha de S.Paulo. 2012. 271f. Dissertation (Master’s degree in Communication). Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, UNESP, Bauru, 2012. ABSTRACT Presuming that the newspaper is a heterogeneous media and a constant space of tension between voices and views used in the construction of news story – a cultural product, which should be intelligible to the public – this research aims to infer why the news are as they are. For this, it used as case study 366 texts about mental and behavior disorders and the characters transmitted by Folha de S.Paulo in 2009. The proposal is to evaluate throughout an issue classified in intersection of Communication and Health, whose origin is scientific, bus implies in the social life of their carriers, the newspaper and the news as incorporators and disseminators, concomitantly, from social representations and scientific statements. To this end, it is adopted literature review and content analysis with quantitative and qualitative biases. The first method is employed in the literature review about social representations, Unified Theory of News, scientific journalism and the historical construction of mental disorders and their images. The second aims to identify the news that we have and understand the components and reality proposition that operate in its production. Keywords: Journalism. News. Mental and Behavioral Disorders. Social Representations. Scientific Journalism. Folha de S.Paulo SUMÁRIO Introdução 12 1 Problema, métodos e fontes 17 1.1 Representações Sociais: conceitos, origem e poder simbólico 17 1.2 Representações Sociais e Comunicação: um caminho comum 24 1.3 A comunicação e o fazer jornalístico 28 1.3.1 A notícia: conceitos e característica 29 1.3.2 A notícia como teoria 31 1.3.3 A objetividade e o profissionalismo como ideologias jornalísticas 34 1.3.4 Notícia como valor simbólico e produto da cultura 38 1.4 Jornalismo e senso comum: entre notícias e representações sociais 42 1.5 O problema 45 1.6 Técnicas de pesquisas: indicando os caminhos 46 2 Do jornal ao gênero jornalístico 48 2.1 Jornal e Jornalismo: meio e forma de conhecimento 48 2.2 O veículo 50 2.2.1 A Folha de S.Paulo 50 2.2.2 Folha de S.Paulo – um breve percurso histórico 51 2.2.3 A Folha como veículo desta análise 57 2.3 Jornalismo Científico: entre conceitos e imagens 58 2.3.1 A Ciência na Mídia 60 2.3.2 Da escolha dos temas ao mito da neutralidade da Ciência e do cientista 63 2.3.3 Temas em Jornalismo Científico: a supremacia da Saúde 67 2.3.4 A Saúde na Mídia 69 3 Transtornos mentais e de comportamento: de conceitos a imagens 74 3.1 Dos conceitos...: as versões científicas tradicionais 78 3.2 ...A Imagens: as versões produzidas e partilhadas socialmente 81 3.2.1 A noção da loucura como representação geral dos transtornos 81 3.2.1.1 A negação do “diferente” e o internamento 82 3.2.1.2 O internamento enquanto espaço para medicalização 87 3.2.1.3 Questionamento e negação do modelo asilar 91 3.3 As imagens dos transtornos mentais e seus portadores na sociedade brasileira 95 3.3.1 As representações sociais dos transtornos e de seus personagens no Brasil 97 3.3.2 As Imagens dos transtornos e de seus personagens 97 3.3.2.1 O protagonismo dos nervos 97 3.3.2.2 Transtornos mentais e violência: das imagens à legislação penal brasileira 101 3.3.2 As imagens das causas dos transtornos mentais e de comportamento 105 4 Os transtornos mentais e de comportamento nas páginas da Folha de S.Paulo 110 4.1 Corpus: constituição do universo de análise (população) 110 4.2 As categorias de análise 113 4.3 Os números da análise (a frequência) 115 4.3.1 As notícias que temos 116 4.4 Transtornos mentais e de comportamento, jornalismo e fontes da notícia 118 4.4.1 As vozes da notícia científica 119 4.4.2 As vozes dos Personagens 120 4.4.3 As vozes das notícias de Geral 121 4.4.4 O que essas vozes determinam 122 5 Jornalismo Científico e construção social das notícias científicas sobre os 123 transtornos mentais e seus personagens 5.1 A construção social das notícias científicas: o que a mensagem tem a dizer 125 5.2 Os elementos construtores e as características que atuam na produção das 127 notícias dos distúrbios enquanto jornalismo científico 5.2.1 A origem das notícias e o foco nas pesquisas 127 5.2.1.1 A supervalorização do internacional 128 5.2.2 A contextualização e o didatismo como artigos de luxo 131 5.2.3 O didatismo 135 5.2.4 A corrida da ciência pela compreensão do mecanismo e causa dos transtornos 138 5.2.4.1 As relações causais 140 5.2.5 O senso comum da ciência: inquestionável, incapaz de erros e fraudes e 140 salvação da humanidade 5.2.6 O foco e a crença nos números 142 5.2.7 O foco no personagem 144 5.3 A construção social e as notícias científicas na Folha de S.Paulo 149 6 Jornalismo Científico, conteúdos, imagens e versões dos transtornos e 152 de seus personagens na Folha de S.Paulo 6.1 Os transtornos mentais como doença 152 6.2 A origem dos transtornos 153 6.3 Ciência normativa 156 6.4 A ciência como meio de compreensão, tratamento e eventual cura 157 6.4.1 A genética 158 6.4.2 O transtorno mental e de comportamento como algo tratável 161 6.4.2.1 Dos medicamentos às terapias e meios naturais: os tratamentos 162 6.5 Os transtornos mentais como doença e suas condicionantes 165 6.5.1 Desordem incapacitante, o problema e a causa de transtornos e sofrimentos 167 6.5.2 A relação com a morte 168 6.6 A questão da saúde pública 168 6.7 Quando a opinião pauta a notícia: o caso Ferreira Gullar 169 6.7.1 A repercussão do desabafo do poeta 172 6.7.2 A repercussão em notícias e novos artigos 175 6.8 Sentidos, continuidades e contradições 179 7 Para além do jornalismo científico: os transtornos mentais e comportamentos 182 e seus personagens na Folha de S.Paulo 7.1 Os transtornos mentais e de comportamento na Folha de S.Paulo: quando 182 o foco é o Personagem 7.1.2 Das temáticas às imagens dos Personagens 184 7.1.3 Breves Considerações 195 7.2 Quando outras mídias pautam a notícia: a referência aos transtornos mentais 195 e de comportamento e seus personagens por comporem uma obra artística 7.2.1 Dos transtornos às imagens: a análise das mensagens sobre Outras Mídias 196 7.2.2 Breves Considerações 201 7.3 A análise das notícias que abordam os transtornos mentais e de 203 comportamento de modo Geral 7.3.1 As notícias do bloco temático Geral 203 7.3.1.2 Núcleos de sentidos: entre temáticas e imagens, uma abordagem diversa 204 dos transtornos e de seus personagens 7.3.2 O bloco temático Geral Opinião 206 7.3.2.1 Das temáticas aos transtornos e imagens predominantes 207 7.3.3 Breves Considerações 210 7.4 A notícia e os transtornos mentais e de comportamento e seus personagens 210 na visão do leitor 7.4.1 A opinião e as visões dos leitores 210 7.4.2 Breve Comentário 212 7.5 Os transtornos mentais e de comportamento como Metáforas 213 7.5.1 O vocabulário da psiquiatria como metáfora 215 7.5.2 Rótulos, imagens e sentidos dos transtornos mentais enquanto Metáforas 217 na Folha de S.Paulo 7.5.3 Breves Considerações 221 7.6 Sentidos, continuidades e contradições 222 Considerações Finais 224 Referências Bibliográficas 229 Apêndice A – Glossário Transtornos Mentais e de Comportamento 254 Apêndice B – Tabelas e Quadros 266 12 INTRODUÇÃO Uma das falácias da produção jornalística é pensá-la como homogênea. O jornal é um meio heterogêneo, em que múltiplas vozes, imagens e sentidos coexistem e atuam ativamente na construção social da notícia. É ele um campo permanente de conflitos e tensões entre as diversas versões de uma “realidade” inesgotável, sobre as quais se misturam diferentes significados e conotações. A heterogeneidade está presente em todos seus textos, temáticas e seções. Entretanto é por meio da comparação entre o jornalismo científico e o não científico, que ela é explorada e analisada na presente pesquisa, que adota como estudo de caso a fim de inferir porque as notícias são como são, 366 textos noticiosos sobre os transtornos mentais e de comportamento e seus personagens veiculados pelo jornal Folha de S.Paulo em 20091. Da decisão de comparar jornalismo científico e não científico resultou a necessidade em se avaliar a totalidade das notícias veiculadas sobre a temática, estejam elas em quaisquer editorias ou seções do jornal e abordem os distúrbios em seus mais distintos contextos e conotações, inclusive como metáfora ou senso comum. E sua escolha partiu-se da hipótese de que a cobertura jornalística de um tema de origem científica, que interfere na vida social das pessoas por ele acometidas – como é o caso dos transtornos mentais e de comportamento e de seus portadores – é um meio de encontro, fusão e combate entre as diversas versões científicas e as múltiplas representações sociais a ele atribuídas, as quais seriam incorporadas e disseminadas pelo produto jornalístico. Para a análise, não se faz distinção de gêneros jornalísticos e, adotando como referencial a Teoria Unificada da Notícia iniciada por Michael Schudson e sistematizada por Jorge Pedro Sousa, parte-se do pressuposto de notícia como construção social e produto da cultura baseada na linguagem e produzida a partir de enquadramentos culturais compartilhados por jornal, jornalista, contexto social e público leitor. De modo que, o jornalista é visto como ser cultural, alguém que atua ativamente na produção da narrativa noticiosa e conjuga os mesmos mitos, crenças, senso comum e imaginários da sociedade em que está inserido e para a qual se reporta. Os transtornos mentais e de comportamento são aqui representados por meio das psicoses funcionais – esquizofrenia e transtorno maníaco-depressivo – e de desenvolvimento – autismo -, além da psicopatia e de neuroses como transtorno de ansiedade, síndrome do pânico, depressão, fobia, mania, transtorno obsessivo-compulsivo, etc. Distúrbios que, 1 A escolha do ano de 2009 foi pautada pelo critério de atualidade, uma vez que é ele o ano anterior ao início desta pesquisa. 13 segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 1993), caracterizam-se por um conjunto de sintomas e comportamentos que causam sofrimento e interferem nas funções e relações sociais do sujeito portador e cujas explicações sobre quem são, o que são e quais seus principais sintomas foram apresentadas em Glossário e incluídas nos apêndices desta dissertação. De acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), os transtornos mentais e de comportamento atingem a 23 milhões de brasileiros. Embora 12% da população nacional conviva com os distúrbios, a ciência ainda não foi capaz de desvendá-los totalmente, de modo que predominam controvérsias e muitas interrogações. Mas, se a ciência ainda não foi capaz de compreendê-los ou defini-los, no saber prático, prevalecem inúmeras representações sociais, que influenciadas pelos mitos, crenças, cultura e memória social predominante apropriam-se da construção histórica da loucura para atribuir imagens, familiarizar os transtornos e instituir o papel social de seus portadores e se baseiam em conceitos que os ligam ao isolamento e à incapacidade de pensar, agir e controlar seus atos e impulsos. Representações que estão presentes também nas notícias – valores simbólicos - e, muitas vezes, os condenam a viver como excluídos sociais vagando sem destino pelas ruas das grandes cidades ou trancafiados dentro de suas próprias casas, em hospitais ou manicômios judiciais, quando a exclusão os aproxima da violência. Diante desse contexto e do quadro de exclusão social imposto ao portador, cabe ao jornalismo, em especial o científico, selecionar e divulgar novos achados e eventuais desenvolvimentos da ciência na busca pelo entendimento, tratamento e possível cura dos transtornos. Ou seja, informar o leitor para que ele os compreenda, desmitificando a imagem de seu portador e contribuindo para sua inserção social. Entretanto, mais do que veicular as versões e acontecimentos científicos, cabe ao jornalismo científico fazê-las compreensíveis a um público amplo e generalizado. Processo, que assim como o jornalismo, atua sobre o senso comum e, por isso, é um espaço de tensão entre ciência e representações sociais, que são concomitantemente incorporados e disseminados pelo produto midiático, a notícia. Baseado nessas constatações, este estudo buscou identificar quais as notícias que temos sobre os transtornos mentais e de comportamento e seus personagens na Folha de S.Paulo, em 2009, compreender o porquê de serem como são e, consequentemente, responder ao problema que motivou e delimitou a pesquisa: por que as notícias são como são. Para isso, o método escolhido teve suporte na teoria das Representações Sociais e utilizou como técnicas a pesquisa bibliográfica e, em especial, a análise de conteúdo sob os enfoques quantitativo e qualitativo, as quais foram direcionadas com intuito de atingir os seguintes objetivos: 14 - Identificar o produto midiático como elemento que comporta, simultaneamente, representações sociais e versões científicas sobre uma temática específica; - Compreender a notícia como narrativa que destaca determinados aspectos da “realidade” e é construída sob a influência de vários fatores, com destaque ao cultural. - Averiguar no conteúdo das notícias os indícios de sua construção social, enfatizando o processo de produção das notícias científicas e seus elementos distintivos; - Identificar as múltiplas versões científicas e representações sociais dos transtornos mentais e de comportamento e seus personagens divulgadas pela Folha de S.Paulo em 2009; - Perceber os produtos midiáticos como polifônicos; - Compreender a construção histórica dos transtornos mentais e de comportamento e seus personagens (e, por consequência, de suas representações sociais) e seu aproveitamento ou não nos discursos midiáticos; Para atingi-los esta dissertação divide-se em sete capítulos, que trabalham cada um desses objetivos e fornecem pressupostos que possibilitam sanar as inquietações geradas pelo problema de pesquisa tornando possível inferir porque as notícias são como são – questionamento de suma importância para a compreensão e o desenvolvimento do jornalismo enquanto campo de estudo. O capítulo 1 atua como guia-base para o presente estudo. É nele em que se apresenta o problema de pesquisa e as inquietações que o geraram, assim como o método e as fontes da pesquisa. O primeiro toma como base a teoria das Representações Sociais, que são definidas como o saber prático e teorias do senso comum, uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, que visa transformar algo não familiar em familiar atribuindo-lhe significatividade social. Já as fontes são oriundas da noção de notícia como construção social e produto cultural, as quais são exploradas pelos postulados da teoria Unificada da Notícia. São expostas também as técnicas adotadas no processo de avaliação das notícias, a pesquisa bibliográfica e a análise de conteúdo, por meio dos vieses quantitativo e qualitativo. Do jornal ao gênero jornalístico é o segundo capítulo deste estudo. Nele, discute-se alguns dos elementos que atuam diretamente na construção das notícias aqui analisadas: o jornal como campo diversificado e espaço de tensões e o jornalismo como forma de conhecimento que atua sobre o senso comum. Apresenta-se ainda a Folha de S.Paulo, veículo produtor e disseminador desses textos noticiosos, e o gênero jornalístico que pauta quase 30% do corpus desta pesquisa, o jornalismo científico e, em especial, a comunicação e saúde. O terceiro capítulo, por sua vez, é dedicado à questão dos transtornos mentais e de comportamento. É onde se explica quais deles serão abordados e quem são eles. Os distúrbios 15 são apresentados e discutidos tanto com base em seus conceitos – versões científicas – quanto em seu saber prático – as representações sociais. Busca-se compreender a construção histórica dos transtornos e de seus personagens, que herdaram as imagens e os conceitos da loucura e, mesmo marcados pelo senso comum, não negam e são influenciados pelo discurso científico que, por outro lado, também é reflexo do saber e imaginário popular. A partir do quarto capítulo inicia-se a análise dos textos e a busca por identificar quais as notícias que temos. Os transtornos mentais e de comportamento nas páginas da Folha de S.Paulo apresenta o corpus da pesquisa e seu processo de constituição e delimitação. Ademais, fornece as categorias de análise utilizadas, sobre as quais se destacam a divisão dos textos em ciência e não ciência e, posteriormente, em blocos temáticos que os alocam a partir de assuntos ou abordagens semelhantes. Por meio da análise de conteúdo quantitativa, traz um panorama geral sobre essas matérias, além discorrer sobre quem são as vozes empregadas na construção social das narrativas noticiosas e as estratégias utilizadas nessa escolha a fim legitimá-las. Em O Jornalismo Científico e a construção social das notícias científicas sobre os transtornos mentais e de comportamento e seus personagens analisa-se as 107 notícias classificadas no bloco temático Ciência. O capítulo quinto visa averiguar e buscar na mensagem dos textos noticiosos indícios de seu processo de produção, que resultam nas matérias que fazem referência a um achado, pesquisa ou acontecimento científico e os veiculam a fim de divulgar ciência e não se restringem às editorias ou seções consideradas científicas – Ciência, Saúde e Equilíbrio. Já o capítulo seis também avalia essas 107 notícias científicas, entretanto o faz com ênfase na análise de conteúdo qualitativa. Busca-se os núcleos de sentido que compõem a mensagem do texto, a fim de encontrar significados e versões, além das continuidades e contradições que atuam como elementos construtores da notícia, uma representação sobre os transtornos mentais e de comportamento e seus personagens, enquanto ciência, veiculadas a um público amplo e diverso. O último capítulo trabalha para além do jornalismo científico. Nele é realizada a análise de conteúdo qualitativa das 259 notícias que, ao se referir aos transtornos e a seus personagens não tiveram como foco divulgar ciência. E se busca também encontrar as versões e núcleos de sentidos – complementares e até contraditórios – que compõem as representações dos distúrbios e seus portadores veiculadas pelo jornal. Nas Considerações Finais traça-se um paralelo entre as múltiplas versões veiculadas pelas notícias científicas e os diversos enunciados disseminados quando o foco do texto não é 16 divulgar ciência. Para tanto, destaca-se que os transtornos mentais e de comportamento são compostos por inúmeros distúrbios, que são representados pelo jornal de modo heterogêneo, diverso, complementar e contraditório. Por meio dessas comparações sobre quais as notícias que temos, explica-se porque elas são assim construídas e, consequentemente, infere-se porque as notícias – cujo principal esforço é fazer-se inteligível ao público - são como são. 17 1 PROBLEMA, MÉTODOS E FONTES Este capítulo visa servir de guia-base para esta dissertação. Nele, é esclarecido e apresentado o problema de pesquisa que motivou este estudo, além dos passos que, se decifrados, trarão pressupostos sobre como sanar ou ao menos amenizar a inquietação gerada pelo problema. Nas próximas páginas são discutidos os métodos e as fontes, que deram suporte ao trabalho e forneceram as pistas sobre qual caminho seguir na busca por produzir uma análise que pudesse colaborar com os estudos acadêmicos sobre a notícia, produto da atividade jornalística. O método utilizado e aqui apresentado teve suporte nos estudos de Serge Moscovici e Denise Jodelet sobre a Teoria das Representações Sociais, cujas relações com a Comunicação Social e Midiática e a atividade jornalística foram exploradas e discutidas. As fontes baseiam- se nos postulados sobre a Teoria Unificada da Notícia, cujo primeiro esboço foi produzido por Michael Schudson e teve Jorge Pedro Sousa como sistematizador. A teoria é focada no processo de construção da notícia e oferece indícios que possibilitam inferir sobre o porquê de as notícias serem como são – inquietação que motiva e guia esta dissertação. As técnicas utilizadas na tentativa por traçar uma hipótese para esse questionamento foram pesquisa bibliográfica e análise de conteúdo. Na busca por compreender quais as notícias que temos, porque as temos e tentar inferir porque elas são como são, utiliza-se como estudo de caso os textos noticiosos veiculados no ano de 2009 no jornal Folha de S.Paulo, diário brasileiro com maior tiragem, sobre os transtornos mentais e de comportamento e seus personagens. Temática interdisciplinar que se encontra localizada em Comunicação e Saúde e para a qual a ciência ainda tem respostas incipientes, embora o senso comum (representações sociais) já foi estabelecido e optou fazê-lo de modo discriminatório e estigmatizado, como apresentado no capítulo terceiro. 1.1 Representações Sociais: conceitos, origem e poder simbólico Influenciada pelos estudos de Émile Durkheim sobre Representações Coletivas, a teoria das Representações Sociais surgiu, na década de 1950, a partir de uma vertente sociológica da Psicologia Social desenvolvida na Europa. A obra La Psychanalyse: Son image et son public (1961) de Serge Moscovici é considerada a pedra fundamental desse 18 campo de estudo, que centra seu olhar na relação entre indivíduo e sociedade, e ao fazê-lo “recupera um sujeito que, através de sua atividade e relação com o objeto-mundo, constrói tanto o mundo como a si próprio” (GUARESCHI; JOVCHELOVITCH, 2009, p.9). Em seu livro, Moscovici relata seu trabalho de observação sobre “o que acontece quando um novo corpo de conhecimento como a psicanálise, se espalha dentro de uma população humana” (FARR, 2009, p.45). Para isso, colheu amostragens do conhecimento, das opiniões e das atitudes dos franceses sobre a psicanálise, e também avaliou a cobertura midiática sobre essa temática no país. Concluiu que havia diferenças entre a teoria e as representações sociais existentes sobre ela, pois ao ser inserida na sociedade francesa, ela passou por um processo de ressignificação de acordo com a cultura local, em função da existência de um “pensamento social resultante das experiências, das crenças e das trocas de informações presentes na vida cotidiana” (PAVARINO, 2003, p.5). Para conceituar a nova teoria, Moscovici baseou seu conceito-chave, Representações Sociais, na definição de Representações Coletivas atribuída pelo sociólogo francês Émile Durkheim, para quem, “o termo se refere a categorias de pensamentos através das quais determinada sociedade elabora e expressa sua realidade” (apud MINAYO, 2009, p.90). Desse modo, a representação estabelece-se a partir das relações entre os indivíduos e a sociedade e “só pode existir no todo” (DURKHEIM, 2009, p.41), devendo, portanto, conservar a marca da realidade social que a criou. Entretanto, elas têm o potencial de tornarem-se também fatos sociais, adquirindo vida independente, como explica o sociólogo (p.44-45): essas representações se tornam (...) realidades parcialmente autônomas que vivem uma vida própria. Elas têm o poder de se evocar, de se distanciar, de formar entre si sínteses de todas as espécies, que são determinadas por suas afinidades naturais e não pelo estado do meio no interior do qual evoluem. Por conseguinte, as representações novas, que são o produto dessas sínteses, são da mesma natureza: elas têm como causas próximas outras representações coletivas, não esta ou aquela característica da estrutura social. As representações coletivas são formas de pensamento que a sociedade elabora para expressar sua realidade e a partir delas, “torna-se possível criar esquemas de percepção, juízos que fundamentam as maneiras sociais de agir, pensar e sentir dos indivíduos” (MORIGI, 2004, p.4). Moscovici, por sua vez, apropriou-se do conceito definido por Durkheim, porém o adaptou ao seu contexto social, marcado por uma sociedade mais dinâmica e fluida. Por isso, substituiu a palavra “coletivo” por “social”, dando origem a um novo conceito e o início de uma nova teoria criada para a Psicologia Social. Entretanto, essa teoria tornou-se sugestiva a 19 outros campos de estudo como a Sociologia e a Comunicação, uma vez que centra seu olhar na relação entre o sujeito e o mundo, tendo a realidade social1 e as relações simbólicas por ela criadas como objeto central de análise. Assim, Moscovici (2005, p.12-13) afirma que “se existe em uma sociedade uma classificação dos indivíduos, podemos estar certos que de ela se objetiva no tempo, acaba fazendo parte desses indivíduos, e a sua realidade coincidirá com a aparência.” Ou seja, as representações sociais são dinâmicas, mutáveis e têm o poder de influenciar e serem influenciadas pela identidade social dos indivíduos e pela realidade social em que estão inseridos. As representações sociais têm a função de manter os sujeitos sociais informados sobre o mundo à sua volta, uma vez que “partilhamos esse mundo com os outros, que nos servem para compreendê-lo, administrá-lo ou enfrentá-lo” (JODELET, 2001, p.17). Elas guiam a forma de nomear e definir conjuntamente diferentes feições da realidade, “no modo de interpretar esses aspectos, tomar decisões e, eventualmente, posicionar-se frente a eles de forma defensiva” (p.17). Portanto, a teoria das Representações Sociais “se articula tanto com a vida coletiva de uma sociedade, como com os processos de constituição simbólica, nos quais sujeitos sociais lutam para dar sentido ao mundo, entendê-lo e nele encontrar o seu lugar, através de uma identidade social” (JOVCHELOVITCH, 2009, p.65). A busca do sujeito por sua identidade social está radicada no espaço público, pois é a partir dele que o ser humano desenvolve sua identidade e se abre para a diversidade. É nesse espaço que a mídia atua e, como mediadora social, divulga, altera e confirma representações que marcam um grupo social em determinado período. O que condiciona o estudo das representações sociais a manter com os meios de comunicação de massa, assim como com as práticas socioculturais “as relações mais significativas” (SÁ, 1998, p.43), uma vez que “os fenômenos de representação social estão ‘espalhados por aí’, na cultura, nas instituições, nas práticas sociais, nas comunicações interpessoais e de massa e nos pensamentos individuais” (p.21). Segundo Guareschi (2009, p.196), a definição de Representações Sociais mais aceita atualmente foi formulada por Denise Jodelet e as define como “uma forma de conhecimento 1 Berger e Luckmann (2001) afirmam que a realidade é algo construído socialmente a partir da objetividade e da subjetividade da sociedade e dos indivíduos que a produzem. A objetividade influencia nessa construção por meio da institucionalização e legitimação de estruturas, funções, papéis sociais e universos simbólicos estabelecidos pela tradição (por gerações anteriores a que constrói a realidade social desta época). A subjetividade, por sua vez, é responsável por estabelecer a realidade por meio da cultura e da identidade dos organismos que a vivem. A realidade social é, portanto, aquilo que é aceito e vivido pelo homem da rua (p.14) - a sociedade como um todo -, sendo que ela se constrói na relação entre o sujeito e o Outro através da comunicação, discurso, linguagem, cultura, instituições, mitos, estigmas, ideologias e crenças por eles compartilhadas e relacionadas. 20 socialmente elaborada e partilhada que tem um objetivo prático e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social.” (JODELET, 2001, p.22) Sendo, portanto, “uma forma de saber prático ligando um sujeito a um objeto” (p.27), que é “igualmente designada como saber do senso comum ou ainda saber ingênuo, natural, esta forma de conhecimento é diferenciada, entre outra coisas, do conhecimento científico” (p.21). Observa-se ainda uma reciprocidade entre a elaboração das representações sociais e da realidade social, uma vez que uma atua na criação da outra, pois ambas são construídas socialmente. Moscovici (apud GUARESCHI, 2009, p.196) afirma que o ato de representar não é um processo simples, pois carrega um sentido e valor simbólico, a significatividade social. Isso se dá uma vez que a representação social tem o poder de simbolizar (substituir) e interpretar (conferir significações) um objeto (JODELET, 2001). Jodelet (1985) identifica nesse ato de representar cinco características fundamentais: representa sempre um objeto; é imagem e com isso pode alterar a sensação e a ideia, a percepção e o conceito; tem um caráter simbólico e significante; tem poder ativo e construtivo; finalmente, possui um caráter autônomo e generativo. (GUARESCHI, 2009, p.202-203) Portanto, representar é atribuir imagem a um objeto e essa atribuição, além de ser simbólica e significante, torna-se independente e cria novos conceitos ou percepções que influenciam a realidade social como um todo. Pois, “a representação é uma forma de conhecimento” que “‘faz as vezes de’ e significa um aspecto do mundo para si mesmo e para os outros” (JODELET, 2005, p.43). É isso o que ocorre quando uma determinada sociedade elabora, por exemplo, uma representação social sobre o portador de um transtorno mental como a esquizofrenia. Ao atribuir uma imagem sobre quais atitudes (sintomas) correspondem ao distúrbio cria-se um conceito e um valor simbólico não apenas sobre o transtorno, mas sobre todos os indivíduos nessa condição. A imagem atribuída fará com que todas essas pessoas sejam vistas como perigosas, loucas e/ou indesejáveis socialmente e, portanto, passem a ser rotuladas, estereotipadas e excluídas das atividades e instituições sociais que compõem a realidade social, que elaborou a representação e que, ao “comprar” essa imagem, será alterada por ela. Pois, quando nos apegamos às posições emitidas por sujeitos sociais (indivíduos ou grupos), a respeito de objetos socialmente valorizados ou conflitantes, elas serão tratadas como campos estruturados, isto é, conteúdos cujas dimensões (informações, valores, crenças, opiniões, imagens, etc.) são coordenadas por um princípio organizador (atitude, normas, esquemas culturais, estrutura cognitiva, etc.). De modo focalizado, quando os 21 apegamos a elas, a título de modalidade de conhecimento, elas serão tratadas como núcleos estruturantes, isto é, estrutura de saber organizando o conjunto das significações relativas ao objeto conhecido. (JODELET, 2005, p.47) Portanto, ao buscar a significação da realidade é preciso pensar a partir de um conjunto social composto por diversas estruturas e instituições, que são “maneiras de agir, pensar e sentir, exteriores ao indivíduo e dotadas de um poder coercitivo em virtude do qual se lhes impõe” (DURKHEIM apud MINAYO, 2009, p.91). Desse modo, instituições, estruturas, cultura, mitos, preconceitos, acontecimentos sociais, etc., atuam como mediadores ao determinar a concepção e o imaginário que uma sociedade construirá - inclusive sobre suas ideologias e poderes dominantes - ou seja, estabelecem a própria realidade social. Por isso, trataremos as representações como uma forma de pensamento social, cuja gênese, propriedades e funções devem ser relacionadas com os processos que afetam a vida e a comunicação sociais, com os mecanismos que concorrem para a definição da identidade e a especificidade dos sujeitos sociais, indivíduos ou grupos, assim como a energética que está na origem das relações que esses grupos mantêm entre si. (JODELET, 2005, p.50) Além de Moscovici e Jodelet, o sociólogo Alfred Schutz (1973 apud MINAYO, 2009) buscou conceituar as representações sociais e afirmou que o conceito mais apropriado para elas é “senso comum”, uma vez que são construções mentais que têm significado na vida cotidiana dos grupos sociais que as elaboram. Para este autor, da mesma forma que o conhecimento científico, o senso comum envolve conjuntos de abstrações, formalizações e generalizações. Esses conjuntos são construídos, são fatos interpretados, a partir do mundo do dia-a-dia. Portanto, a existência cotidiana, segundo Schutz, é dotada de significados e portadora de estruturas de relevância para os grupos sociais que vivem, pensam e agem em determinado contexto social. Esses significados, que podem ser objeto de estudo dos cientistas sociais –, são selecionados através de construções mentais, de ‘representações’ do ‘senso comum’. (p.95-96) Nesse sentido, representação social “envolve uma simplificação da realidade na medida em que funciona como teoria, uma ‘teoria do senso comum’” (SÁ, 1998, p.22). Dessa forma, as representações sociais comportam-se como “fenômenos específicos que estão relacionados com um modo particular de compreender e de se comunicar – um modo que cria tanto realidade quanto o senso comum” (MOSCOVICI apud MORIGI, 2004, p.5). Por isso, seu estudo é indissociável ao processo de constituição simbólica, pois se fundamenta nas 22 noções de preconceito, no sentido amistoso da união e do familiar, nos estigmas, etc.. Os quais estão inseridos no espaço público, que atua a fim de estabelecer “as fronteiras que tanto ligam como separam as pessoas, que tantos as unem como as impede de tropeçar uma nas outras.” (ARENDT apud JOVCHELOVITCH, 2009, p.68). “Uma única representação reúne assim uma grande variedade de raciocínios, imagens e informações de origens diversas, com as quais ela forma um conjunto mais ou menos coerente” (JODELET, 2005, p.17-18). Sendo que seu estabelecimento origina-se a partir de dois processos: a ancoragem e a objetivação. A objetivação é responsável pela estruturação de uma representação social. É considerada como a fase figurativa, “o resultado da capacidade que o pensamento e a linguagem possuem de materializar o abstrato, elaborando um novo conceito a partir dos registros individuais existentes” (PAVARINO, 2003, p.10). Jodelet (2001, 2005) explica a representação como construção seletiva, esquematização estruturante e materialização, “como conjunto cognitivo que retém, entre as informações do mundo exterior, um número limitado de elementos ligados por relações, que fazem dele uma estrutura que organiza o campo de representação e recebe um status de realidade objetiva” (2005, p.48). Ou seja, ela transforma conceitos, ideias em imagens, materializando-os, dando-lhes um sentido prático e, por isso, os meios de comunicação constituem um lugar privilegiado para seu estudo, pois “é neles – na televisão, em especial – que melhor se configura a tendência à concretização das ideias em imagens” (SÁ 1998, p.71). A ancoragem, por sua vez, é o processo responsável por assegurar a incorporação social da representação social, ou seja, enquadrá-la na rede de significações vigentes, atribuindo-lhe um significado capaz de ser reconhecido socialmente, fazendo que seja compatível aos valores sociais e lhe dando coerência. Ela lida com “a fase simbólica da representação, interpreta e assimila os elementos familiares, classificando-os e nomeando-os” (PAVARINO, 2003, p.10). É um trabalho de memória, “o pensamento constituinte apoia-se sobre o pensamento constituído para enquadrar a novidade a esquemas antigos, ao já conhecido” (JODELET, 2001, p.39). A ancoragem atua: como enraizamento no sistema de pensamento, atribuição de sentido, instrumentalização do saber, explica a maneira pela qual informações novas são integradas e transformadas no conjunto dos conhecimentos socialmente estabelecidos e na rede de significação socialmente disponíveis para interpretar o real, e depois são nela reincorporadas, na qualidade de categorias que servem de guia de compreensão e de ação. (JODELET, 2005, p.48, destaque da autora) 23 Portanto, a ancoragem atua sobre o conteúdo e a estrutura de uma representação social. Ela interpreta um novo objeto a partir da cultura, memória e valores sociais vigentes, e atribui a ele um novo significado, uma classificação que o permita compor essa sociedade. Enquanto a objetivação tem a função de materializá-la, transformando ideias e imagens. Desse modo, a predisposição para que as pessoas endossem certas representações e não outras sobre determinado acontecimento emerge, segundo Joffe (2009, p.317), “das experiências da infância ligadas às experiências da vida adulta em constante desenvolvimento, que interagem com imagens mediatizadas pelos meios de comunicação, lendas e brincadeiras populares”. As representações incluem, portanto, “informações, experiências, conhecimentos e modelos que, recebidos e transmitidos pelas tradições, pela educação e pela comunicação social, circulam na sociedade” (PAVARINO, 2003, p.5). Dessa forma, elas não constituem simplesmente o estabelecimento de sentido ou a atribuição de imagem para os objetos, elas adquirem o valor de símbolos e, assim como as notícias, são modelos simbólicos de valores. Sendo símbolo o “resultado de uma mistura de imagens, de contrastes, de identificações, que condensam por assim dizer a variedade de objetos, afetos e outros significativos” (JOVCHELOVITCH, 2009, p.77). Ao se relacionar com sua totalidade (o objeto-mundo), o sujeito constrói um novo mundo de símbolos e significados. É através de sua atividade e relação com outros que as representações originam-se, o que permite uma mediação entre o sujeito e a sociedade que ele ao mesmo tempo descobre e constrói. “De outro lado, as representações permitem a existência de símbolos – pedaços de realidade social mobilizados pela atividade criadora de sujeitos sociais para dar sentido e forma às circunstâncias nas quais eles se encontram” (JOVCHELOVITCH, 2009, p.78). Esses sentidos se dão “de tal forma que a experiência de um, ao se mesclar com a experiência de outros, cria continuamente a experiência que constitui a realidade de todos” (p.75), a realidade social. Por isso, a construção das representações sociais se encontra nas instituições, nas ruas, nos meios de comunicação de massa, nos canais informais de comunicação social, nos movimentos sociais, nos atos de resistência e em uma série infindável de lugares sociais. É quando as pessoas se encontram para falar, argumentar, discutir o cotidiano, ou quando elas estão expostas às instituições, aos meios de comunicação, aos mitos e à herança histórico-cultural de sua sociedade, que as representações sociais são formadas. Os meios de comunicação de massa, particularmente, têm sido objeto de investigação para a teoria. Em sociedades cada vez mais complexas, onde a comunicação é em grande parte mediada pelos canais de comunicação de massa, representações e símbolos tornam-se a própria 24 substância sobre as quais ações são definidas e o poder é – ou não- exercido. (GUARESCHI; JOVCHELOVITCH, 2009, p.19) Por isso, elas devem ser analisadas a partir da compreensão do espaço social e de uma perspectiva temporal composta por três tempos: o tempo curto da interação que tem por foco a funcionalidade das representações; o tempo vivido que abarca o processo de socialização – o território do habitus (Bourdieu, 1983), das disposições adquiridas em fundação da pertença a determinados grupos sociais; e o tempo longo, domínio das memórias coletivas onde estão depositados os conteúdos culturais cumulativos de nossa sociedade, ou seja, o imaginário social. (SPINK, 2009, p.122) Ressalta-se que a construção das representações sociais - que se dá em um determinado espaço social a partir do tempo vivido, da sensação e da possibilidade de pertencimento a determinados grupos e do imaginário social - nada mais é do que “um processo de classificação e nomeação, um método de estabelecer relações entre categorias e rótulos” (GUARESCHI, 2009, p.201), cujo móvel desencadeante é “transformar algo não familiar, ou a própria não familiaridade, em familiar. Essa seria a razão de por que as pessoas formam e constroem representações sociais” (MOSCOVICI apud GUARESCH, 2009, p.212), as quais estabelecem uma visão consensual da realidade, que serve de guia para ações e trocas cotidianas (JODELET, 2001). Portanto, a fim de familiarizar-se com um objeto e estabelecer guias para a convivência, os grupos sociais lhes atribuem imagens e sentidos para que ele passe a constituir e ter valor em sua realidade social. Com isso, antes mesmo de se conhecer um sujeito ou viver algo como uma viagem a um lugar desconhecido, por exemplo, já é possível, segundo Goffman (1996), inferir, ter impressões sobre o que esperar dele ou dessa determinada situação, uma vez que um conjunto de imagens prévias já foi criado a partir do estabelecimento de representações sociais sobre eles. 1.2 Representações Sociais e Comunicação: um caminho comum As representações sociais instituem-se como saber prático e, desse modo, agem no sentido de estabelecer o senso comum, ou seja, universos consensuais de pensamento sobre objetos e fatos em um determinado tempo e em uma determinada sociedade. Familiariza-se algo antes desconhecido e lhes atribui sentidos, que lhes permitirão serem compreendidos e 25 interpretados de forma comum por aquela comunidade. Essa atribuição de significados não se estabelece individualmente, mas é fruto de um trabalho de construção coletiva dos membros sociais, os quais compartilham uma cultura e memória social e produzem sentidos em um mesmo lugar, a esfera pública (JOVCHELOVITCH, 2009). Local onde se estabelecem as relações sociais e que se destaca o poder de atuação dos meios de comunicação de massa, TV, rádio, jornal impresso, revistas, internet, etc. Ademais de se instituírem no mesmo espaço público, as representações sociais e a comunicação mantêm entre si relações significativas, uma vez que, interagem, influenciam-se e se alteram, atuando como elementos construtores da realidade social, pela qual são também construídas. As representações sociais produzem um novo mundo de significados e atuam como fenômenos mediadores entre o indivíduo e a sociedade (JOVCHELOVITCH, 2009). O mesmo ocorre com os meios de comunicação de massa que “desempenham a importante função de elo” (PAVARINO, 2003, p.13) e “estão presentes na sociedade atual de maneira tão atuante quanto fundamental em sua organização, representando um diferencial quantitativo e qualitativo na construção da realidade social” (p.13). Pavarino (2003, p.5) afirma que as representações são “uma forma de pensamento social que inclui as informações, experiências, conhecimentos e modelos que, recebidos e transmitidos pelas tradições, pela educação e pela comunicação social, circulam na sociedade.” Desse modo, além de fazer circular as representações sociais, é “en los procesos de comunicación social donde se origina principalmente la construcción de las representaciones sociales” (IBAÑEZ apud PAVARINO, 2003, p.15). O que, segundo Ibañez não é nenhuma surpresa, uma vez que os meios de comunicação de massa são importantes ao transmitir valores, conhecimentos, crenças e modelos de condutas à sociedade. Portanto, é possível afirmar que “a comunicação desempenha um papel fundamental nas trocas e interações que concorrem para a criação do universo consensual” (JODELET, 2001, p.29-30), ou seja, as representações sociais, que “se encontram tanto nas mentes das pessoas quanto nos meios, sendo necessário interceptá-las, exemplificá-las e analisá-la em ambos os lugares” (FARR apud MORIGI, 2004, p.5). Essa necessidade justifica-se em função do papel desempenhado pelos meios de comunicação na sociedade, que a partir do século XX adquiriram maior espaço ocupando “uma centralidade na vida social e cultural” (MORIGI, 2004, p.2). E, por consequência, tornaram-se fundamentais na produção da nova coesão social, pois “lidam com a fabricação, reprodução e disseminação de representações sociais que fundamentam a própria 26 compreensão que os grupos sociais têm de si mesmos e dos outros, isto é, a visão social e a autoimagem” (ALEXANDRE, 2001, p.116). “Dessa forma, a mídia, integrada por um grupo de especialistas formadores e sobretudo difusores de representações sociais, é responsável pela estruturação de sistemas de comunicação que visam comunicar, difundir ou propagar determinadas representações” (ALEXANDRE, 2001, p.123). O papel da comunicação midiática perante as representações sociais estabelece-se em três níveis: emergência, formação e edificação (MOSCOVICI apud JODELET, 2001). O nível da emergência corresponde às condições que afetam aspectos cognitivos, o conhecimento e se caracteriza pela “dispersão e defasagem das informações relativas ao objeto representado e que são desigualmente acessíveis de acordo com os grupos” (JODELET, 2001, p.30). Ou seja, refere-se àquilo que determinado grupo focaliza ou ignora (ressalta ou desconhece) de um determinado objeto de acordo com os interesses e as implicações dos sujeitos sociais. Já o nível dos processos de formação das representações corresponde à objetivação e à ancoragem, processos que originam uma representação social e se caracterizam, respectivamente, por interpretar e caracterizar um fato de acordo com a memória social e as crenças existentes e, posteriormente, materializá-lo, transformando ideias em imagens, algo palpável e inteligível ao grupo social. Sendo a objetivação o papel mais sobressalente dos meios de comunicação de massa sobre as representações sociais, pois atuam na concretização das ideias em imagens. O último nível corresponde às dimensões das representações relacionadas à edificação da conduta, “opinião, atitude e estereótipo, sobre os quais intervêm os sistemas de comunicação midiáticos” (JODELET, 2001, p.30). Esse nível refere-se aos efeitos da mídia sobre a representação e apresenta três diferentes propriedades estruturantes: difusão, propagação e propaganda. “A difusão é relacionada com a formação das opiniões; a propagação com a formação das atitudes e a propaganda com a dos estereótipos” (p.30). Esses níveis estabelecem o papel da mídia na formação, circulação e inserção de uma representação no contexto social. Sendo que no primeiro nível, a emergência, os meios de comunicação agem ao divulgar informações sobre determinado objeto a ser representado de acordo com os interesses econômicos, sociais e culturais daquele grupo social. No segundo, a formação, ajudam a formar parte da “realidade” social em que se encontram a memória social e as crenças que são usadas na interpretação de tal objeto e colaboram para interpretá-lo (ancoragem) e depois divulgam essa classificação de uma maneira a ser inteligível ao público – transformação de ideias em imagens (objetivação). No último, a edificação, são responsáveis pela circulação e consolidação (inserção social) de tal representação podendo 27 fazê-la de três diferentes formas: difundindo a informação e formando opiniões, propagando a informação e formando atitudes ou fazendo propaganda e estabelecendo estereótipos. No caso do estabelecimento de representações sobre os transtornos mentais, temática estudada nesta dissertação, a mídia pode desempenhar todos os níveis indicados por Jodelet. No nível de emergência, ela divulga informações sobre os transtornos, avanços médicos, novas descobertas e aspectos relacionados à condição e ao tratamento dos personagens. Na formação, recorre ao imaginário social, já formado há séculos, e fornece outros dados sobre crenças e mitos acerca da doença mental e de seus portadores para que, a partir deles a sociedade interprete o novo fato, objeto ou situação. O qual pode ser avaliado pelo próprio meio de comunicação que, também com base nessa memória e valores sociais, transforma-o em uma imagem inteligível ao contexto social. No último nível, a mídia faz circular essa representação, difundindo informações prós e contras o acontecimento divulgado, propagando ideias sobre a inserção ou exclusão social dos portadores e criando estereótipos (propaganda) sobre eles, podendo fazê-lo de forma positiva ou negativa, de acordo com a interpretação possibilitada pela realidade social sobre o objeto representado. Além de apresentar os níveis de atuação da comunicação sobre os fenômenos representativos, Jodelet (2001, p.32) também lista algumas importantes atuações dos mass media sobre as representações sociais. São elas: - A comunicação é o vetor de transmissão da linguagem, portadora em si mesma de representações. A matéria prima da comunicação, a linguagem, é também uma fonte constante de representações sociais; - A comunicação incide sobre os aspectos estruturais e formais do pensamento social, engajando os processos de interação social, influência, consenso, dissenso e polêmica. Ela influencia na formação e estabelecimento de crenças, imaginários, relações e na cultura da sociedade; - A comunicação contribui para forjar representações, que dentro de uma dinâmica e energética social, são pertinentes a vida prática e afetiva dos grupos sociais. “Energética e pertinência sociais que explicam, juntamente com o poder performático das palavras e dos discursos, a força com a qual as representações instauram versões da realidade, comuns e partilhadas” (JODELET, 2001, p.32). Portanto, a comunicação midiática, de fato, tem importância primordial no processo de formação e difusão das diversas imagens e versões da realidade partilhadas por um grupo social, por meio de fenômenos representativos. Os quais, por sua vez, apresentam a mesma 28 relevância no processo comunicativo, pois eles se influenciam mutuamente e se constroem, assim como a realidade social. 1.3 A comunicação e o fazer jornalístico A partir do século XX, os meios de comunicação de massa adquiriram o papel de protagonistas sociais e passaram a influenciar intensamente hábitos, pensamentos, cultura e senso comum dos sujeitos sociais a eles integrados. Cabendo a eles construir mitos, a imagem de heróis e vilões e até mesmo intervir na definição sobre o bem e o mal. Diante de tamanho poderio, autores como Rubim (apud MORETZSOHN, 2007) definem o período atual como “Idade Mídia”, uma vez que a sociedade está estruturada e ambientada pela comunicação, que apresenta profundas ressonâncias sobre a sociabilidade contemporânea em seus diversos campos. O alcance dos mass media sobre a sociedade também se faz presente nas representações sociais, com quem estabelecem uma relação de interdependência, pois se influenciam e atuam ativamente em suas respectivas construções - enquanto produto midiático e no estabelecimento do senso comum (unidades consensuais de pensamento que caracterizam as representações). Assim, enquanto fenômenos sociais interagem entre si e constroem a realidade social. Dentre as formas de atuação da comunicação de massa está o jornalismo. Ele tem a notícia como produto que irá construir, fazer circular e, através dela, atuará sobre a sociedade, transmitindo informações sobre um fato, interpretando um acontecimento e, por meio da linguagem, atribuindo-lhes valores e sentidos ao transformar ideias em imagens, que agirão diante do senso comum e da cultura estabelecida. A notícia constitui-se, portanto, como o produto do jornalismo, meio pelo qual ele se manifesta, informa a população e tem o potencial de formar ideias, opiniões e estereótipos. É ela que se constitui como elemento básico desta dissertação, uma vez que representa a totalidade do corpus analisado. Por isso, é importante compreender o que é a notícia, suas características, a tentativa dos comunicólogos em explicar por que elas são como são. Ademais de se discutir o mito jornalístico da objetividade em contradição à ideia de notícia como construção social, valor simbólico e um produto construído, veiculado e consumido em uma determinada cultura e em uma determinada realidade social, constituída tanto por elas quanto pelas representações sociais. 29 1.3.1 A notícia: conceitos e característica Primeiramente é importante esclarecer que nesta dissertação adota-se o pressuposto de que notícia é o produto da atividade jornalística. Desse modo, a notícia – elemento básico do corpus deste estudo – será analisada e avaliada sem que sejam realizadas distinções de gêneros, que classificam a produção jornalística em diferentes categorias como nota, matéria, reportagem, artigo, editorial, etc. Portanto, a notícia é o produto do jornalismo, a sua materialização e a responsável por inseri-lo no tecido social e permitir que atue como construtor da realidade social vigente em determinado tempo, cultura e contexto social. Diante da função social da notícia, surge a necessidade de conceituá-la teoricamente. Entretanto, essa conceituação consiste em um desafio para pesquisadores na área de comunicação, uma vez que as definições são amplas e controversas (ALSINA, 1989). Elas se distinguem desde a versão adotada como pressuposto primário neste estudo – de que a notícia é o produto da atividade jornalística – até definições que a compreendem como mercadorias comprometidas com a “prática ideológica” alienante, que visa ocultar a realidade. Há ainda acepções centradas no caráter da notícia, que alegam ser ela uma estratégia de reprodução do status quo, formatando ideias e comportamentos coletivos em relação à compreensão do cotidiano (BERTOLLI FILHO, 2009). Outros autores como Traquina (2005) e Herraiz (1966 apud ALSINA, 1989) focam suas definições na própria prática jornalística. Eles defendem que a notícia é aquilo que os jornalistas acreditam que interessa aos leitores e a definem de acordo com os critérios de noticiabilidade - elementos ou características que um fato deve ter para ser considerado interessante ao público - os valores-notícia: “elemento básico da cultura jornalística que os membros desta comunidade interpretativa partilham. Servem de ‘óculos’ para ver o mundo e para o construir’” (TRAQUINA, 2005, p.94). Este estudo reconhece a importância dos valores-notícia na produção jornalística, pois são implícitos ao trabalho do jornalista e determinantes no processo de seleção e transformação de acontecimentos em narrativas noticiosas. Entretanto, busca-se uma conceituação para a notícia e a adota baseada na teoria construcionista. Para a qual elas “são histórias que resultam de um processo de construção, linguística, organizacional, social, cultural, pelo qual não podem ser vistas como o espelho da realidade” (SOUSA, 2005, p.5). Ou seja, questiona-se desde já um dos mitos da atividade jornalística que, baseada na Teoria do Espelho, afirma que as notícias são o espelho da realidade, ignorando a cultura e a subjetividade do jornalista e do jornal no processo de construção social do texto noticioso. 30 Desse modo, será adotado o conceito de notícia cunhado pelo comunicólogo português Jorge Pedro Sousa (2002, 2005), para quem: uma notícia é um artefacto linguístico que representa determinados aspectos da realidade, resulta de um processo de construção onde interagem factores de natureza pessoal, social, ideológica, histórica e do meio físico e tecnológico, é difundida por meios jornalísticos e comporta informação com sentido compreensível num determinado momento histórico e num determinado meio sócio-cultural, embora a atribuição última de sentido dependa do consumidor da notícia. (SOUSA, 2005, p.3) A notícia é concebida como uma construção humana baseada na linguagem. Ela nasce da interação entre “a realidade perceptível, os sentidos que permitem ao ser humano ‘apropriar-se’ da realidade, a mente que se esforça por apreender e compreender essa realidade e as linguagens que alicerçam e traduzem esse esforço cognoscitivo” (SOUSA, 2005, p.3). Por isso, ocupa-se com a aparência (imagens ou representações sociais) dos fenômenos (e não com os fenômenos em si) ocorridos na realidade social e com as relações que, aparentemente, eles estabelecem entre si. E, as próprias limitações dos seres humanos (seus mitos, crenças, cultura e gostos pessoais), além das insuficiências da linguagem (que não é neutra) que a impedem de ser um espelho da realidade. Desse modo, “notícia contenta- se em representar parcelas da realidade, independente da vontade do jornalista, da sua intenção de verdade e da factualidade” (p.3). Além do mais, a notícia tem a característica de indiciar os aspectos da realidade a que se refere, assim como as circunstâncias de sua produção que, segundo Sousa (2002, 2005) estariam indiciadas em seu próprio conteúdo. A notícia estabelece-se como um enunciado produzido que, a partir da linguagem e de fatores construtores de origem pessoal, social, ideológico, histórico e do meio físico e tecnológico, cria um novo estado das coisas, um novo acontecimento a ser integrado ao mundo (RODRIGUES, 1997, 1999), uma representação, que pode assumir uma dimensão icônica e ser semelhante à realidade enunciada (SOUSA, 2005). Portanto, em função de seu próprio processo de produção, a notícia comporta informações que devem ser compreensíveis (inteligíveis) num determinado tempo e meio sociocultural (contexto). Ela engloba três etapas, produção (construção), circulação e consumo, e sua dinâmica só é totalmente compreendida quando findado todo esse processo. Este estudo, porém, enfoca apenas a construção social da notícia, buscando pistas por meio das estruturas indiciadas em seu próprio conteúdo, que permitam compreender porque temos as notícias que temos (quais são elas) e, inferir, porque elas são como são. 31 1.3.2 A notícia como teoria Na busca por compreender por que as notícias são como são é indispensável recorrer às chamadas Teorias do Jornalismo, cujo foco central é a notícia e, suas áreas de estudo e atuação alteram-se entre seus processos de produção, circulação e consumo. Dentre essas estão Espelho, Gatekeeper, organizacional, ação política, estruturalista, construcionista e interacionista. Teorias que Michael Schudson (1988 apud SOUSA, 2005) classifica como unidimensionais e julga serem insuficientes sozinhas para explicar as notícias, embora, em conjunto, revelem todo seu poder explicativo. A tendência “unionista” de construção da notícia (newsmaking) adotada por Schudson (1988), apropriada e ampliada por Sousa (2002, 2005) será adotada neste estudo. A teoria da notícia unificada organizada por Jorge Pedro Sousa baseia-se, principalmente, no que ele denomina de versão schudsoniana de sistematização das Teorias da Notícia, que foi estabelecida pelo sociólogo norte-americano em 1988. Segundo Sousa (2002, p.37), ela apresenta caráter sintético, particularmente útil e funcional e tem virtualidades pedagógicas. A teoria de Schudson afirma que as ações pessoal (gatekeeper), social e cultural quando inter-relacionadas são as três principais explicações para justificar e compreender que as notícias sejam como são. A primeira categoria é a acção pessoal. Aqui as notícias são explicadas como um produto das pessoas e das suas intenções. Alguém ou algum grupo quer dizer algo e di-lo. A segunda categoria é a acção social. Aqui as notícias são tomadas como sendo um produto das organizações e dos seus constrangimentos. Independentemente das intenções dos indivíduos que as integram, uma organização noticiosa produz notícias que a tornam mais operacional ou reduzem a incerteza com que se defronta no seu meio. A terceira categoria é a acção cultural. Aqui as notícias são vistas como um produto da cultura e os limites do concebível que uma cultura impõe. Independentemente das intenções individuais ou das necessidades organizacionais, uma dada sociedade num dado momento só pode produzir uma classe limitada de notícias de entre o campo de espécies de notícias hipoteticamente possíveis. (SCHUDSON, 1988, p.20) A proposta de Schudson unifica teorias já existentes e adota o conceito de notícia como produto cultural. Enfatiza que a subjetividade do jornalista e de suas fontes, o papel das organizações (rotinas produtivas e interesses) e própria cultura a que estão submetidos jornal, jornalista e público consumidor fazem-se presentes no processo de construção do texto noticioso. 32 À teoria schudsoniana, Sousa proferiu sugestões e, baseado no trabalho de Shoemaker e Reese (1996) e em suas próprias ideias, sistematizou a sua Teoria Unificada da Notícia, cuja versão mais recente data de 2005. O jornalista português afirma que uma teoria científica deve ser formulada de maneira breve, simples e clara e, se possível, matematizada e, a partir disso formulou o seguinte enunciado: a notícia é o resultado da interacção simultaneamente histórica e presente de forças de matriz pessoal, social (organizacional e extra-organizacional), ideológica, cultural, do meio físico e dos dispositivos tecnológicos, tendo efeitos cognitivos, afectivos e comportamentais sobre as pessoas, o que por sua vez produz efeitos de mudança ou permanência e de formação de referências sobre as sociedades, as culturas e as civilizações. (SOUSA, 2005, p.9-10) Assim, adicionou sobre os fatores construtores da notícia determinados pela teoria shudsoniana (ação pessoal, social e cultural), as forças ideológica, do meio físico, tecnológica e histórica2, além de destacar seu efeito social enquanto construtoras da realidade social. A força ou ação pessoal remete aos estudos sobre o gatekeeper realizados por White, em 1950, e afirma que as notícias resultam parcialmente das pessoas e de suas intenções, além da capacidade pessoal dos seus autores e dos atores que nela e sobre ela intervêm. Gaye Tuchman (1999) afirma que a notícia é uma compilação de fatos avaliados e estruturados pelos jornalistas, que têm a função de selecionar os acontecimentos e construí-la. Função subjetiva e influenciada pelas experiências, valores e expectativas do profissional da imprensa (SOUSA, 2002, 2005; MOTTA, 2002). Entretanto, deve-se ressaltar que as fontes das notícias e seus interesses pessoais e a própria rotina produtiva – deadline, linha editorial, a concepção ética do jornalista, etc. (TUCHMAN, 1999) – são elementos tão importantes quanto subjetividade do autor na produção de um texto noticioso. Por isso, pressupõe-se dizer que a notícia depende tanto do autor quanto dos atores que nela e sobre ela intervêm. A força ou ação social enfatiza os mecanismos que transcendem a ação pessoal e consideram as notícias fruto de dinâmicas e constrangimentos do sistema social, sejam eles extraorganizacionais ou sócio-organizacionais. As forças sócio-organizacionais referem-se às próprias organizações noticiosas, os jornais, os quais “têm impulsos próprios, independentes e mesmo contraditórias com as intenções das pessoas que estão na organização” (SCHUDSON, 2 Ainda que Schudson não tenha utilizado o fator histórico como ator de sua teoria, ele já fizera uso dele em sua obra Descobrindo a Notícia: Uma história social dos jornais nos Estados Unidos. No livro publicado em 1978, cuja primeira versão em português data de 2010, o autor usou a força histórica para compreender a origem do mito da objetividade no jornalismo. 33 1988, p.22). Sousa (2002; 2005) e Tuchman (1999) afirmam que essa ação é determinada pela tirania do tempo, a necessidade de cumprir o deadline da matéria, a competição por ser o primeiro a noticiar o fato e a obrigatoriedade de incluir no processo de seleção do acontecimento (gatekeeping) o valor-notícia da atualidade. Outro fator que a influencia é a rotina produtiva - resposta prática às necessidades das organizações noticiosas e dos jornalistas (SHOEMAKER; REESE, 1996 apud SOUSA, 2002, p.49). Ela atua como padrões comportamentais estabelecidos e permite que o jornalista, mesmo sob a pressão do tempo, “controle” seu trabalho, além de defenderem a eles e às organizações noticiosas das críticas e dos riscos elevados. Nas rotinas estão incluídas (SOUSA, 2005; TUCHMAN, 1993; SOLOSKI, 1999): a rede que se estende aos acontecimentos dignos de se tornar notícia (os locais no qual há estrutura e equipe para cobrir um fato); o desejo pelo lucro das organizações; os mecanismos (como a necessidade de manter o emprego e o desejo de melhorar na carreira) que impelem o jornalista a seguir as normas organizacionais, como a linha editorial; a competição entre editores e editorias; os recursos humanos e materiais disponíveis (tamanho da equipe, material e recursos tecnológicos para permitir a cobertura de um acontecimento, etc.); a hierarquia, organização e burocracia internas. Já o nível extra-organizacional refere-se aos constrangimentos que influenciam o jornalista fora da organização. Nele se encontram fatores como a audiência e o mercado, além das fontes de informação e das relações estabelecidas entre elas e os jornalistas. Relações frequentemente problemáticas, uma vez que fontes são os leitores interessados na notícia (TUCHMAN, 1999) e podem atuar como gatekeeper externos selecionando informações para os jornalistas, quando esses não têm experiência no que ocorre ou confiam demais em quem passa a informação, podendo ser manipulados por eles (SOUSA, 2002, 2005). As forças ou ações do meio físico e dos dispositivos tecnológicos dizem respeito à influência que um meio de trabalho adequado e bons dispositivos tecnológicos têm no aumento e na melhoria da produtividade do jornalista. A força ou ação histórica defende que as notícias são produtos históricos, que refletem também na atualidade. Pode-se afirmar que as notícias que temos, os conteúdos e os formatos são frutos da história, assim como os diferentes frames (enquadramentos) culturais utilizados para dar suporte a elas. Ou seja, transformações históricas como a inclusão de novos recursos digitais na produção jornalística - o telégrafo, o computador e a Internet -, além de mudanças na forma e estrutura da notícia - introdução do lead e o mito na 34 objetividade -, foram inseridas na prática jornalística e hoje atuam ativamente no processo de newsmaking. A força ou ação ideológica é exercida sobre os meios jornalísticos e funcionam como elementos configuradores da notícia, entretanto Sousa (2002, 2005) não se refere à influência ideológica dos meios na sociedade, mas sobre as ideologias que influenciam o fazer jornalístico. Nesse contexto, ideologia é considerada um mecanismo simbólico, que integra um sistema de ideias e cimenta a coesão e a integração de um grupo social em função de interesses, conscientes ou não (SOUSA, 2005). E, nos estados democráticos (SOLOSKI, 1999), as principais ideologias que moldam as notícias são os ideais profissionais, a objetividade e o profissionalismo, sendo que ambas “procurar relegitimar continuamente a função dos jornalistas” (SOUSA, 2005, p.12). A força ou ação cultural caracteriza-se pelo fato de os processos de construção da notícia ocorrerem num sistema sociocultural, sendo ela um produto cultural submetido a uma gramática da cultura, que a cria, mas também é criada por ela. 1.3.3 A objetividade e o profissionalismo como ideologias jornalísticas A força ou ação ideológica é considerada por Sousa (2002, 2005) como um dos fatores de construção da notícia. Sendo que, nesse caso, o autor não se refere à ação ideológica dos meios de comunicação sobre a sociedade, mas à ação desempenhada no jornalismo por dois ideais ou crenças: a objetividade e o profissionalismo. Em 1989, John Soloski já defendia a tese de que o ideal do profissionalismo jornalístico afetava diretamente os processos de seleção e relato das notícias, sendo esse método eficiente e econômico para as organizações jornalísticas controlarem o comportamento de repórteres e editores. Esse controle estabelece-se a partir do desejo dos jornalistas em serem aceitos como bons profissionais e de suas aspirações profissionais de obter melhores salários e cargos. Para isso, submetem-se aos “ditames profissionais” como “reportar o ‘fato’ sem cair na ‘opinião’” (SOUSA, 2002, p.79), “coragem para reportar mesmo em situações de perigo” (SOUSA, 2005, p.12) e são capazes de obedecer à política editorial da empresa em que trabalham, mesmo sem concordar com ela. Soloski (1999, p.95) afirma que essa ideologia controla o jornalista de dois modos, ao estabelecer padrões e normas de comportamento e ao determinar o sistema de recompensa profissional. Pela implantação de linhas editoriais as organizações limitam o comportamento dos repórteres, incluindo o conteúdo de suas notícias. 35 Entre essas normas e padrões de comportamento Soloski e Sousa identificam o próprio ideal da objetividade. Ele é considerado uma norma importante da atuação jornalística sobre a qual fluem aspectos mais específicos do profissionalismo como os critérios de noticiabilidade (valor-notícia) e a escolha das fontes. Esse ideal, porém, não reside nas notícias, mas no comportamento dos jornalistas, que “transformam-se em máquinas de escrever que registram, mais do que avaliam o mundo” (PHILLIPS, 1977 apud SOLOSKI, 1993, p.96). Cabendo a eles a necessidade de tentar reportar um fato, sem emitir opiniões, servindo como mero intermediário entre o acontecimento e o público, relatando-os do modo mais imparcial e equilibrado possível (SOLOSKI, 1999). A ideologia da objetividade jornalística refere-se ao que Tuchman (1999) denominou de “rituais estratégicos”, procedimentos (normas e técnicas) utilizados pelos jornalistas para defender-se das rotinas produtivas e dos erros, atuando como sustentáculo entre jornalistas e seus críticos. Desse modo, o jornalismo é visto como o último baluarte epistemológico da objetividade, uma vez que, ainda hoje, a linguagem dos jornais pretende ser vista como imparcial, isenta de valores e aspira a descrever fidedignamente o real sem admitir desvios para ficcionalidade ou para a opinião de quem produz a notícia (MOTTA, 2002). E, mesmo que a neutralidade já seja admitida como pretensão inatingível, “a perseguição à objetividade continua sendo a ortodoxia dominante nas redações, o axioma máximo da atividade profissional do jornalismo contemporâneo. O axioma da objetividade ainda é, de longe, o paradigma dominante do jornalismo mundial” (p.18). É ele quem garante a credibilidade do produto jornalístico (TRAQUINA, 1999; RODRIGUES, 1999; HACKETT, 1999), legitimando-o junto à sociedade, ademais de funcionar como defesa do jornalista perante as críticas e erros incutidos nas notícias (SCHUDSON, 2010). Foi exatamente em virtude da descrença nos fatos - que desde 1830 eram vistos como matéria-prima das notícias, produtos “vendidos” aos leitores e que se embasavam nos critérios de exatidão, vivacidade e atualidade – que surgiu o mito da objetividade jornalística (SCHUDSON, 2010). Após a I Guerra Mundial e em função da atuação constante dos profissionais de relações públicas na fabricação dos acontecimentos e no intermédio entre eles e os jornalistas, os fatos perderam credibilidade junto aos profissionais da imprensa, que descobriram que eles poderiam ser manipulados de acordo com os interesses de suas fontes de origem. Diante da descrença naquilo que consistia a base do fazer jornalístico foi-lhes imposto “um método projetado para um mundo no qual nem mesmo os fatos poderiam ser confiáveis” (p.144). Os jornalistas foram encorajados a substituir confiança na factualidade por uma lealdade a normas e procedimentos, ou seja, à chamada objetividade. Ela significava 36 que as afirmações sobre o mundo podiam ser confiáveis, desde que submetidas a regras estabelecidas e consideradas legítimas pela comunidade profissional. Com isso, os fatos não mais se consistiam por aspectos do mundo, mas por “afirmações validadas consensualmente a respeito dele” (p.17). Adquiriram um novo significado e foram substituídos por afirmações (declarações) sobre um acontecimento que representam o senso comum existente sobre ele. Nas décadas de 1920 e 1930, a objetividade também era utilizada para garantir credibilidade ao trabalho daqueles repórteres que não estavam aptos a produzir um texto interpretativo (SCHUDSON, 2010, p.178) e, por meio da separação entre reportar e interpretar um fato foi enunciada como crença profissional. Todavia, a crença na objetividade é apenas isto: a ideia de que se pode e se deve separar fatos de valores. Fatos, nesta perspectiva, são declarações sobre o mundo abertas a uma validação independente. Eles se colocam além das influências distorcedoras de quaisquer preferências pessoais. E os valores, nesta perspectiva, são as predisposições conscientes ou inconscientes de um indivíduo sobre o conceito de mundo; em última análise, eles são vistos como subjetivos e, portanto, sem sustentação legítima sobre outras pessoas. A crença na objetividade é uma confiança nos ‘fatos’, uma desconfiança dos ‘valores’, e um compromisso com a segregação de ambos. (SCHUDSON, 2010, p.16) A objetividade, por sua vez, “parece ter sido destinada a se tornar tanto um bode expiatório quanto uma crença” (SCHUDSON, 2010, p.185). Pois nasceu no exato momento em que a impossibilidade de superar a subjetividade na apresentação da notícia passou a ser amplamente aceita. Isso se deu pela própria descoberta dos jornalistas de que os fatos eram moldados e a eles transmitidos segundo interesses dos envolvidos neles e com eles. A objetividade, porém, destacava-se nesse contexto, uma vez que seguir normas e procedimentos era a única resposta a essa descrença sobre a veracidade e a exatidão dos fatos. A partir da década de 1960, o mito da objetividade passou a ser questionado e combatido por teóricos da comunicação e pelos próprios jornalistas que passaram a investir em outros estilos jornalísticos como o New Journalism e o Jornalismo Investigativo. A objetividade passou a ser vista como cumplicidade às fontes oficiais, enfraqueceu-se, porém, segue firme como “ritual estratégico” dos jornalistas. Uma prova desse fato foi dada por Sylvia Moretzsohn (2007) ao citar um trecho do Manual de Redação do jornal diário com maior tiragem no país, a Folha de S.Paulo. Na citação, repetida na versão mais recente do manual de 2001, discute-se a objetividade, afirma- se que ela não existe, porém não exime o jornalista da obrigação de ser sempre o mais objetivo possível. 37 Não existe objetividade em jornalismo. Ao escolher um assunto, redigir um texto e editá-lo, o jornalista toma decisões em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições pessoais, hábitos e emoções. Isso não o exime, porém, da obrigação de ser o mais objetivo possível. Para relatar um fato com fidelidade, reproduzir a forma, as circunstâncias e as repercussões, o jornalista precisa encarar o fato com distanciamento e frieza, o que não significa apatia nem desinteresse. Consultar outros jornalistas e pesquisar fatos análogos ocorridos no passado são procedimentos que ampliam a objetividade possível. (FOLHA DE S.PAULO, 1994, p.19 apud MORETZSOHN, 2007, p.184) O ideal adotado pela Folha baseia-se em manter “distanciamento e frieza” em relação aos fatos. E para que isso ocorra, estabelece os seguintes procedimentos: evitar opiniões, depoimentos entre aspas, texto em terceira pessoa e a utilização de fotos harmonizando-se com o que é descrito a fim de fornecer uma “prova” da veracidade dos fatos (HERNANDES, 2006). A objetividade permanece viva na prática jornalística, mas se assume somente como o “ritual estratégico” definido por Tuchman e se traduz na adoção de procedimentos formais na construção de uma notícia. Eles minimizam os riscos impostos pela tirania do tempo (SOUSA, 2005), por processos difamatórios – discordâncias das fontes interessadas – e pela pressão sócio-organizacional (linha editorial) (SOLOSKI, 1999). Para isso, procedimentos estratégicos são usados para averiguar os fatos e garantir que uma notícia seja “objectiva, impessoal, imparcial” (TUCHMAN, 1999, p.88). Segundo Tuchman (1999), Sousa (2005), Moretzsohn (2007), Traquina (1999) e Rodrigues (1999), os rituais são: 1 – Uma vez que a descrença nos fatos fez com que fossem substituídos por declarações sobre eles, o jornalista necessita contrastar fontes, apresentando diferentes pontos de vista sobre um mesmo acontecimento. Desse modo, cabe ao repórter sempre apresentar os dois lados de uma mesma história e ao público decidir entre eles. 2 – Quando possível, o jornalista deve obter e apresentar provas auxiliares que confirmem uma afirmação. Fatos, que podem ser representados por fotografias, documentos, etc., falam por si e garantem a credibilidade da notícia. 3 – O uso de citação – as aspas – é visto como indispensável à uma notícia. O jornalismo declaratório sustenta que ao inserir a opinião de alguém, o jornalista deixa de participar da notícia e permite que os fatos falem por si (TUCHMAN, 1999, p.81). Para “preservar a credibilidade dos profissionais, é o próprio jornalista que solicita pessoas estranhas à profissão para dizer aquilo que ele próprio desejaria dizer” (RODRIGUES, 1999, p.32). 38 4 – As informações precisam ser estruturadas numa sequência apropriada, por isso o uso do lead e da pirâmide invertida na hierarquização das informações é também uma forma de dizer que a notícia é objetiva. 5 – Notícias interpretativas, opiniões, devem vir separadas das notícias informativas. Sendo que as primeiras são rotuladas como opinião, o que isenta o jornal de garantir a sua veracidade. 6 – Critérios de noticiabilidade (valor-notícia) servem para determinar se um fato tem ou não potencial para ser noticiado. O valor-notícia, por sua vez, é dado pelo senso comum – aquilo que o jornalista acredita ser mais relevante e, consequentemente, despertará maior interesse do público - e representa o que a maioria dos repórteres “considera como verdadeira, ou dado adquirido” (TUCHMAN, 1999, p.87). 7 – A fim de que uma notícia seja inteligível para o público, o senso comum (as representações sociais) desempenha um papel importe na avaliação do conteúdo noticioso. É ele quem determina se uma informação pode ser aceita como fato e, informações, que o contradigam não devem ser publicadas (TUCHMAN, 1999). Em função dessas estratégias, Tuchman (1999) avalia que a noção de objetividade é explorada a partir de três vieses: os procedimentos noticiosos enquanto atributos formais de notícias e jornais; as decisões baseadas nas relações sócio-organizacionais; e o senso comum atuando como base de avaliação do conteúdo noticioso. Sendo que todos eles são utilizados como “rituais estratégicos”, enquanto normas e regras que servem para a defesa do profissional jornalista de críticas, erros e até mesmo em processos judiciais (MORETZSOHN, 2007). Rituais fortemente criticados por Schudson (2010), pois submetem o conteúdo da notícia à forma, que passa a compô-lo (lead, pirâmide invertida, aspas, etc.). Além de que o processo de coleta de notícias passa a construir uma “realidade” que reforça o ponto de vista oficial, instituindo os jornalistas como “meros taquígrafos na transcrição autorizada da realidade social” (p.216). Portanto, versões oficiais da “realidade” social, o status quo, e as representações sociais (senso comum) já instituídas são reiteradas e reforçadas pelo ideal de objetividade jornalística, que ao basear-se no senso comum, mesmo que o omita, já se torna produto das crenças, mitos e cultura da sociedade. 1.3.4 Notícia como valor simbólico e produto da cultura Embora o ideal de objetividade ainda seja amplamente aceito pelos jornalistas, a subjetividade e a interpretação no processo de construção da notícia não podem ser negadas, 39 pois ela é fruto de um sistema sociocultural, em que estão inseridos além do próprio jornalista, as fontes das matérias, o fato a ser noticiado, a organização jornalística e os interesses, as crenças e a cultura de todos os envolvidos. Desse modo, o jornalista não é alguém neutro, que apenas reporta um fato a partir de normas e procedimentos indicados pelo ritual estratégico profissional, ele se torna também um participante ativo nessa construção, pois é por meio de sua interpretação do acontecimento – que se dá a partir das crenças, mitos, e representações sociais por ele conjugadas -, que um fato torna-se um discurso e se transforma em notícia. Os jornalistas, enquanto elementos de uma cultura particular, “estão sujeitos à ‘gramática da cultura’ (COLBY, 1975), que define as regras de construção narrativa, uma descoberta que altera a noção de uma transposição ‘objectiva’ da realidade” (BIRD, DARDENNE, 1999, p.271). Regras que atuam sobre a incapacidade humana de captar a realidade do mundo, determinando quais de seus aspectos são úteis para a sobrevivência e lhes interessem a fim de que sejam absorvidos (MORETZSOHN, 2007) e retratados em narrativas que constituem as notícias (TUCHMAN, 1999). Sob esse ponto de vista, o mundo é concebido como resultado de uma criação intersubjetiva, que varia conforme cada cultura, “configurando ‘realidades múltiplas’, integrando os que dela fazem parte e excluindo os demais” (MORETZSOHN, 2007, p.47) e são nessas realidades múltiplas, variáveis de acordo com a cultura que a cria, que os jornalistas e os jornais estão inseridos, sendo influenciados por elas, mas também as influenciando. As notícias são o produto final de um processo complexo que tem início com a escolha e a seleção sistemática de acontecimentos (HALL et al., 1999) e versões da realidade socialmente construídas a serem transformados em estórias (TUCHMAN, 1999; BIRD; DARDENNE, 1999), relatos de acontecimentos noticiosos. A notícia é a transformação de um fato em discurso, que institui um modelo simbólico dos valores vigentes na sociedade. Modelo que se estabelece através do que Motta (2002) define como a disputa, situada na linguagem jornalística, entre o logos (rituais e a ideologia da objetividade) e o mythos (valores, crenças, fantasias e a cultura do jornalista) que se origina no processo de construção social do texto noticioso. A notícia lida fundamentalmente com a ambiguidade dos conflitos humanos, com as incertezas e as inseguranças do ser diante dos enigmas da humanidade e da natureza. As características do acontecimento jornalístico são a imprevisibilidade, a excepcionalidade, a aparente falta de nexo entre os fenômenos. Por sua própria natureza, esses acontecimentos são perturbadores e inquietantes porque estão carregados de emoções, tensões e 40 angústias. A ambiguidade desses acontecimentos anormais ou acidentais faz com que a forma discursiva da notícia assimile a sua carga polissêmica, impregne-se de uma dimensão simbólica que permite leituras várias, podendo aplacar ou exacerbar as angústias do ser humano. A linguagem das notícias possui, assim, modulações diversas, podendo resplandecer fantasias, sonhos, ilusões tanto quanto racionalidades objetivadas. Ela é, por natureza, uma linguagem complexa e contraditória. (MOTTA, 2002, p.2) É por meio da linguagem que um fato torna-se discurso (notícia) e constitui o que Rodrigues (1997, 1999) denomina como meta-acontecimento, um acontecimento discursivo. Ele não representa apenas o relato de um fato ou a tradução de uma ocorrência em linguagem, mas produz um novo acontecimento, que vem integrar o mundo, criando valores e significações e influindo sobre e interagindo com a realidade social e a coletividade. Desse modo, a significação não apenas reflete uma realidade pré-existente, mas constrói ativamente mundos cognitivos (HACKETT, 1999), que, através do discurso, constituem um novo “fato social” e estabelecem um novo estado das coisas, uma representação, de modo que o acontecimento crie a notícia, mas a notícia também crie acontecimentos, construindo assim a “realidade” (TRAQUINA, 1999). Essa representação, por sua vez, se dá quando o jornalista usa sua visão de mundo para selecionar e observar um fato dentro de uma totalidade e, ao relatá-lo, produz um discurso e o insere em outro contexto. Esse processo de descontextualização e recontextualização por meio do discurso carrega a subjetividade, pois “a linguagem neutra, isenta de juízos de valor, ‘no qual os factos puros do mundo pudessem ser registrados sem qualquer preconceito’, é impossível, porque ‘as avalições já estão implícitas nos conceitos, na linguagem em função da qual se fazem as observações e registros’” (MORLEU apud HACKETT, 1999, p.107). E, ao atribuir um novo contexto ao acontecimento noticiado mobiliza-se e alteram significados e conotações (HALL et al., 1999), que serão integrados à realidade social, colaborando, inclusive, para a construção da imagem daquele fato junto ao público. Os jornalistas tornam-se ativos na construção da realidade social permitindo ao público enxergar o mundo mediado por seu olhar. Isso se dá quando transformam “uma matéria-prima (os acontecimentos) num produto (as notícias)” (TRAQUINA, 1999, p.169) e para fazê-lo recontextualizam o fato a partir de enquadramentos (frames) compreendidos, aceitos e legitimados pela sociedade a qual se reportam (TUCHMAN, 1999; HALL et al. 1999, SOUSA, 2002, 2005). Utilizam como base de interpretação e construção discursiva da narrativa crenças e representações sociais compartilhadas pela cultura e memória social de seu público. Para isso, precisam estar inseridos e serem também sujeitos dessa cultura, estando 41 familiarizados com instituições, estruturas e pensamentos da coletividade para poderem utilizar, até mesmo inconscientemente, um conjunto de regras e conceitos destinados a dar sentido ao mundo e que sejam inteligíveis em determinado contexto social e histórico (HACKETT, 1999). O uso desses enquadramentos faz da notícia tanto reflexo como representação da cultura (BIRD; DARDENNE, 1999). Segundo Tuchman (1999), uma notícia pode ser classificada em estória, o que não a diminui e tampouco a reduz a ficcionalidade, apenas indica que ela é “uma realidade construída possuidora da sua própria validade interna” (p.262). E sua construção social se dá por meio de narrativas “elaboradas através de metáforas, exemplos, frases feitas e imagens, ou seja, símbolos de condensação (GAMSON, 1984 apud TRAQUINA, 1999, p.169) e de convenções e percepções do jornalista sobre ela, que não é necessariamente inédita, mas pode estabelecer-se como fruto de repetições. Ao recontar velhas estórias ou repetir notícias sobre um mesmo tema, o jornalista cria processos seriais, e, a partir de uma ação continua e recorrente, acumula vários fragmentos do real (MOTTA, 2002) e configura a intertextualidade e o sentido social do fato relatado. “Enquanto sistema simbólico, as notícias contam histórias, delineiam as fronteiras do bem e do mal, conformam “o que pode e o que não pode.” (...) as notícias são narrativas da contemporaneidade (...) se mostram como fábulas da vida moderna” (p.7). Uma vez que as reiterações constituem-nas como reflexo de uma narratividade e produto de uma cultura, que estimula imaginação, desejos e utopias no público, e atua como agente de realce ou confrontação do senso comum. Pois a criação de um novo acontecimento sobre o ocorrido inicial surge como um híbrido entre fato e fantasia, a objetividade dos rituais estratégicos utilizados na descrição e a subjetividade do construir, narrar e criar um produto final repleto de representações, significações e valores simbólicos. Desse modo, as notícias constituem valores simbólicos e têm a capacidade não só de reafirmar e fortalecer os mitos da sociedade para a qual são contadas, mas vão além, podendo elas próprias atuar como mito e folclore (BIRD; DARDENNE, 1999), algo que não reflete uma realidade objetiva, mas constrói o seu próprio mundo (FRYE apud BIRD; DARDENNE, 1999). É através dos mitos e do folclore que “os membros de uma cultura aprendem valores, definições do bem e do mal, e algumas vezes podem sentir emoções substitutivas – nem todas através de contos individuais, mas através de um conjunto de tradições e crenças populares” (BIRD; DARDENNE, 1999, p.266). As notícias são importantes na legitimação de costumes, crenças e tradições atuando como mito ao participar da constituição de valores e sistemas simbólicos dominantes. De modo que pequenos mitos, verdadeiros ou não, recontados inúmeras vezes, determinam a 42 identidade e a noção de poder social. E a narrativa noticiosa, como mito ou ratificadora deles, tem papel fundamental na determinaç