Revista Brasileira de Ensino de F́ısica, v. 33, n. 4, 4402 (2011) www.sbfisica.org.br F́ısica e pintura: dimensões de uma relação e suas potencialidades no ensino de f́ısica (Physics and painting: dimensions of a relation and its potential for teaching physics) Tiago Carneiro Gomes1, Cristiano Amaral Garboggini Di Giorgi2 e Paulo César de Almeida Raboni2 1Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia de Materiais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Presidente Prudente, SP, Brasil 2Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Presidente Prudente, SP, Brasil Recebido em 2/3/2011; Aceito em 10/7/2011; Publicado em 1/12/2011 Neste artigo são discutidas possibilidades de uso das relações entre a f́ısica e a pintura no Ensino Médio. A partir das propostas de ensino oficiais, que já incorporam a necessidade de rever a abordagem usual dos conceitos da f́ısica, e de propostas de outros autores que afirmam a necessidade de dar outros sentidos aos conceitos f́ısicos, mostramos como o desenvolvimento da f́ısica e da pintura indicam aproximações, e de como estas podem contri- buir para a compreensão de conceitos dessa e de outras disciplinas, bem como para a compreensão da realidade em seu sentido mais amplo. Palavras-chave: f́ısica, pintura, ensino de f́ısica, arte, Ensino Médio. This article discusses possible uses of the relations between physics and painting in high school. Based on the official proposals for education, which already incorporate the need to revise the usual approach of physics concepts, and proposals of other authors who claim the need to give other meanings to physical concepts, we show how the development of physics and painting indicate rapprochements, and how they can contribute to the understanding of concepts of physics and other disciplines as well as for understanding the reality in its broadest sense. Keywords: physics, painting, physics teaching, art, high school. 1. Introdução Este artigo tem como objetivo central apresentar al- gumas sugestões de como a relação entre a f́ısica e a pintura poderia estar presente no ensino de f́ısica, enriquecendo-o e contribuindo para contextualizá-lo. Para melhor situar a questão, iniciamos com a dis- cussão de como a proposta de relacionar f́ısica e arte já está presente na literatura sobre o ensino da disciplina. O autor brasileiro que melhor tem explorado esse tema é João Zanetic [1, 2], discutindo especialmente a con- tribuição que a grande literatura de ficção pode ofere- cer para esse fim. Mostramos também como os atuais Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do Ensino Médio apontam para essa direção. Em seguida, através de levantamento na bibliografia nacional e internacional, e também com base em algu- mas reflexões nossas, desenvolvemos a ideia de que na relação entre f́ısica e pintura encontram-se dimensões e aspectos históricos, socioculturais e técnicos. Por fim, apresentamos algumas considerações mais gerais sobre como essa relação poderia estar presente no ensino de f́ısica. 2. F́ısica e arte: uma relação fecunda para o ensino Embora este tema tenha repercussão internacional, nesta primeira parte focaremos principalmente textos voltados para a educação brasileira, uma vez que o obje- tivo central do artigo é oferecer sugestões de exploração dessa relação na nossa realidade educacional. Cabe inicialmente citar os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, que enfatizam fortemente a interdisciplinaridade, na parte referente às bases legais: Através da organização curricular por áreas e da compreensão da concepção transdisci- 2E-mail: raboni@fct.unesp.br. Copyright by the Sociedade Brasileira de F́ısica. Printed in Brazil. 4402-2 Gomes et al. plinar e matricial, que articula as lingua- gens, a Filosofia, as ciências naturais e hu- manas e as tecnologias, pretendemos con- tribuir para que, gradativamente, se vá su- perando o tratamento estanque, compar- timentalizado, que caracteriza o conheci- mento escolar. A tendência atual, em to- dos os ńıveis de ensino, é analisar a reali- dade segmentada, sem desenvolver a com- preensão dos múltiplos conhecimentos que se interpenetram e conformam determina- dos fenômenos. Para essa visão segmentada contribui o enfoque meramente disciplinar que, na nova proposta de reforma curricu- lar, pretendemos superado pela perspectiva interdisciplinar e pela contextualização dos conhecimentos. Na perspectiva escolar, a interdisciplinaridade não tem a pretensão de criar novas disciplinas ou saberes, mas de utilizar os conhecimentos de várias disci- plinas para resolver um problema concreto ou compreender um determinado fenômeno sob diferentes pontos de vista. Em suma, a interdisciplinaridade tem uma função ins- trumental. Trata-se de recorrer a um sa- ber diretamente útil e utilizável para res- ponder às questões e aos problemas sociais contemporâneos. Na proposta de reforma curricular do Ensino Médio, a interdisci- plinaridade deve ser compreendida a par- tir de uma abordagem relacional, em que se propõe que, por meio da prática escolar, se- jam estabelecidas interconexões e passagens entre os conhecimentos através de relações de complementaridade, convergência ou di- vergência. [3, p. 21] Coerentes com essa visão, avaliações institucionais como o ENEM, no ensino médio, e o ENADE, no ensino superior, têm cada vez mais inclúıdo questões de caráter interdisciplinar, tendência verificada, muitas vezes, nas provas dos mais diversos concursos. A preocupação em superar a segmentação do conhe- cimento também aparece nas orientações curriculares de ciências da natureza e suas tecnologias para o Ensino Médio: Essa competência cŕıtico-anaĺıtica de repre- sentação da realidade não é disciplinar, não se insere em uma única disciplina, já que seu objeto de investigação é mais complexo. Surge, então, a necessidade de se pensar sob uma perspectiva interdisciplinar. [4, p. 36] Nesse mesmo texto, esclarece-se ainda que essa pers- pectiva é essencial para a formação que se pretende com o ensino de f́ısica, na verdade, a que se espera como re- sultado do processo educacional, do qual a f́ısica é um dos componentes. ... quem se pretende formar com o ensino da f́ısica? Partimos da premissa de que no en- sino médio não se pretende formar f́ısicos. O ensino dessa disciplina destina-se principal- mente àqueles que não serão f́ısicos e terão na escola uma das poucas oportunidades de acesso formal a esse conhecimento. Há de se reconhecer, então, dois aspectos do en- sino da f́ısica na escola: a f́ısica como cul- tura e como possibilidade de compreensão do mundo. [4, p. 36] João Zanetic [1, 2], já citado anteriormente, é um autor que tem ressaltado a importância da abordagem desses aspectos do ensino da disciplina, dáı considerar especialmente a ligação entre f́ısica e literatura, sem deixar, no entanto, de enfatizar sua relação com outras artes, afirmando quão rica pode ser, tanto para a inter- pretação do mundo, quanto para a sua transformação: Essa aparente incongruência em procurar associar ciência e arte foi abordada por di- versos autores, alguns contrários e outros fa- voráveis a essa aproximação. Obviamente incluo-me entre estes últimos, acreditando que a contaminação mútua entre essas duas culturas é útil não apenas para interpretar o mundo, mas também para transformá-lo, como ensinava Karl Marx. [1, p. 57] Para o autor, outro ponto importante dessa relação é também a possibilidade que oferece de se estabelecer uma integração entre razão e imaginação criadora: Acredito que a f́ısica, bem como as outras ciências, bem trabalhada na escola, pode muito bem ser um instrumento útil tanto para o pensador diurno, dominado pelo pen- samento e discurso racionais, quanto para o pensador noturno, marcado pelo pensa- mento imaginário e sonhador. A grande ciência, que nos seus momentos criativos de ruptura nasce do encontro dessas duas ver- tentes, tem tudo para satisfazer o pensador que apela para o fantástico, para a ima- ginação, para o vôo do esṕırito. Precisamos construir a ponte entre as duas culturas. [1, p. 69] Chama atenção ainda, para a importância da formação interdisciplinar, tanto para os próprios obje- tivos maiores que se espera da educação, quanto para a possibilidade de despertar interesse pela f́ısica em alu- nos hoje totalmente desinteressados: ...a f́ısica deve participar da formação cul- tural do cidadão contemporâneo, indepen- dente das eventuais diferenças de interesses individuais e das mais variadas motivações F́ısica e pintura: dimensões de uma relação e suas potencialidades no ensino de f́ısica 4402-3 acadêmicas e/ou profissionais. Meu obje- tivo central é atingir aqueles alunos que, no formato tradicional do ensino, não se sentem motivados ao estudo da f́ısica. E não precisamos nos basear em nenhum so- fisticado levantamento de opiniões para sa- ber que esses alunos representarão a grande maioria de nosso alunado do ensino médio. [2, p. 1-2] 3. F́ısica-pintura assim como espaço- tempo: relações entre f́ısica e pintura O poeta faz das palavras o som, a visão e a imaginação de suas ideias e filosofia, assim como um músico que, de sete notas musicais, cria melodias que podem nos fazer vagar pelo devaneio e pela reflexão, ou ainda, um pin- tor, com suas pinceladas agressivas ou suaves, alegres ou tristes, em uma profusão de cores e formas, pode despertar em nós algo que nem mesmo sabemos ter... das pinceladas de uma vivência emergem então os es- tados de esṕırito... Ora, tudo isso é arte! Pode-se dizer que arte é a manifestação de ideias e filosofias, a representação do mundo da forma como cada um o vê, utilizando um talento peculiar e indivi- dual. A f́ısica, sendo uma das ciências mais antigas da história humana, também é arte!... Ela tem o talento de escrever e pintar como o universo funciona, através de sua própria essência, ao transmitir leis e conceitos da natureza, instigando-nos a interagir com ela e a en- tendê-la. Sem dúvida, o ińıcio da pintura remonta à pré-história, entre os peŕıodos paleoĺıtico superior (30.000 a.C) e o neoĺıtico (10.000 a.C), quando os Homo sapiens pintavam figuras dos animais que caçavam [5, 6]. Essas pinturas representavam mais uma questão mı́stica do que propriamente algo relacionado ao “belo”. Os animais eram desenhados de forma que parecessem feridos e frágeis, condição que lhes seria então “trans- ferida”, para que o caçador pudesse caçar com maior segurança, sabendo que teria uma vantagem f́ısica so- bre o animal. Quando o homem consegue dominar e produzir o fogo, que por sinal é uma das maiores desco- bertas da humanidade, ele se fixa em um local e começa a construir a civilização e a socializar-se com seus seme- lhantes. Esse fato é fortemente representado na pintura neoĺıtica [5]. A partir dáı passa a representar, através da pintura, o cotidiano e as tarefas da civilização, como, por exemplo, a agricultura. Observa-se na pintura desse peŕıodo uma preocupação com o movimento, mostrado pelas figuras com formas leves, em linhas curvas, soltas e rápidas. A questão do movimento é interessante e intrigante, porque tal fenômeno pertence de forma intŕınseca tanto ao homem quanto à natureza. Talvez a discussão mais antiga da filosofia natural esteja relacionada ao movi- mento. Perguntava-se porque as cousas na terra e no céu se movimentam? O céu sendo um ente que per- tencia às artes, à religião e à ciência, foi o responsável pelo fato de haver desavenças entre os homens, mas também, por fazer com que esses ramos do conheci- mento humano coexistissem no próprio homem. Desde a Grécia Antiga os filósofos observavam o céu, sendo que os estudos sobre os movimentos dos astros foram o ponto de partida para as primeiras formulações con- ceituais do tempo que, aliadas com os conhecimentos geométricos, deram origem à cinemática [7]. No século IV depois de Cristo, vigorava no meio pictórico-cultural a pintura bizantina, que se caracteri- zava pela forte representação da religião, considerando imperadores e sacerdotes como representantes de Deus na Terra, com poderes espirituais e temporais. Diferen- temente da pintura neoĺıtica, não há preocupação com o movimento, e as dimensões de espaço e tempo terre- nos são “desvalorizadas”, atribúıdas às pessoas comuns. Dessa forma, o tempo na pintura bizantina é eterno, sendo ainda representado pelo céu dourado, a que so- mente a “realeza divina”, detentora do ouro e com sua essência celestial, teria acesso, ou seja, o céu era um lu- gar sagrado, a casa de Deus, inatinǵıvel para o homem comum, até mesmo para sacerdotes e imperadores que, no entanto, estavam mais próximos de Deus [5, 6]. Os valores da pintura bizantina, como a religião, o céu sagrado e a representação de Deus na Terra, nas fi- guras de imperadores e sacerdotes venerados como san- tos, são fortemente afetados pelas pinturas feitas por volta de 1300. Um dos pintores mais importantes dessa época foi o italiano Giotto di Bondone (1266-1337), que além de representar santos com forma e aparência hu- manizadas, também se tornou responsável por introdu- zir duas revoluções na pintura: a tridimensionalidade e o azul do céu [8, 9]. O poeta italiano Bocaccio (1313- 1375) considera Giotto o precursor da pintura renas- centista devido à grande inovação de seus trabalhos. Da análise das obras do pintor depreende-se que ele re- presenta um elo entre a pintura bizantina, medieval e renascentista. A tridimensionalidade implica o domı́nio do espaço pelo homem, permitindo representar o espaço real em que vivemos em um espaço plano de duas dimensões, além do que, a partir de então, o espaço antes fi- nito passa a ser infinito, quebrando com o conceito de “espaço celestial”, sustentado pela pintura bizantina. Pintar o céu de azul também é considerado uma re- volução na arte e na cultura porque, ao fazer isso, Gi- otto questiona o conceito de “céu sagrado” ao qual o homem não tem acesso. O afresco (Fig. 1) que pintou para a Capela Arena por volta de 1305, em Pádua, na Itália, demonstra essa postura [10, p. 38]. 4402-4 Gomes et al. Figura 1 - Entrada em Jerusalém, 1304-06, Giotto di Bondone. O céu deixa de ser sagrado e passa a ser objeto de estudos cient́ıficos, prova disso é que Leonardo da Vinci (1452-1519) tenta explicar fisicamente o azul do céu, quando observa que a luz, ao passar através da fumaça vinda da madeira em brasa, produz uma som- bra com tons de azul e roxo. Na mesma época, acirram- se as discussões entre defensores do modelo geocêntrico e do modelo heliocêntrico. No entanto, a religião tinha ainda grande influência sobre a produção do conheci- mento posteriormente denominado cient́ıfico, como se observa nos estudos astronômicos de Johannes Kepler (1571-1630), aos quais chamou de f́ısica celeste, em que mesclou racioćınio e argumentos religiosos,hoje conhe- cida também como mecânica celeste [7]. Na época de da Vinci, o modelo da luz era o de um feixe retiĺıneo, ideia sustentada por explicar diversos fenômenos f́ısicos como, por exemplo, os eclipses e as sombras dos objetos, e a óptica geométrica e a perspec- tiva eram ramos unidos, segundo o filósofo e historiador da ciência, Pierre Thuillier (1927-1998) [11]. A pers- pectiva poderia ser considerada como a representação da propagação retiĺınea da luz pelo espaço. Da Vinci também percebeu que fontes de luz pequenas produ- ziam sombras delimitadas e bem escuras, no entanto, quando a fonte de luz era o sol, havia a formação de uma sombra colorida, com tons de roxo, vermelho e azul, além de penumbras nas bordas da sombra. Ele então desenvolve uma técnica pictórica, chamada sfu- mato, para representar essas penumbras, bem como ou- tras, para a coloração de superf́ıcies escuras. Na ver- dade, da Vinci passa a pintar o fenômeno f́ısico da dis- persão da luz [9], um exemplo dos tantos que o transfor- maram no homem que representou na pintura boa parte da ciência que produziu, imortalizada também em seus quadros e desenhos. Outro estudioso que aliou arte pictórica e ciência foi o f́ısico italiano Galileu Galilei (1564-1642). Ao tomar conhecimento de um tubo com um sistema de lentes que podiam aumentar o tamanho dos objetos, chamado luneta, rapidamente a aprimorou e suas observações te- lescópicas, feitas no inverno de 1609, contribúıram para mudar a visão de mundo até então vigente. Quando olhou para o céu através da luneta, Galileu observou que a lua tinha crateras, que havia muito mais estre- las do que as que se viam a olho nu, que Júpiter tinha satélites, e que Vênus tinha fases. A partir de suas ob- servações, escreveu um livro em Veneza, em março de 1610, chamado O Mensageiro Celeste (Sidereus Nun- cius) [12]. Suas descobertas foram tão importantes que 2009 foi declarado o Ano Internacional da Astronomia, em comemoração à passagem de 400 anos dessa data. Naquele ano, tanto Galileu, na Itália, quanto Tho- mas Harriot (1560-1621), na Inglaterra, fizeram ob- servações astronômicas, principalmente sobre o astro mais brilhante daquelas noites escuras, a lua. Os conhe- cimentos pictóricos de Galileu foram-lhe extremamente preciosos na interpretação de suas observações. A par- tir de seus conhecimentos sobre perspectiva e óptica geométrica, pôde reproduzir os padrões de luz e sombra projetados na superf́ıcie lunar, deduzindo corretamente que as “manchas” observadas no satélite eram na ver- dade montanhas e crateras, para as quais Galileu forne- ceu estimativas do diâmetro e profundidade. Já Harriot interpretou que a superf́ıcie da lua não era totalmente sólida, e que as manchas negras observadas eram vapo- res inexplicáveis [13]. A grande diferença entre as duas interpretações está no conhecimento pictórico. Naquela época, a Itália era a detentora de todas as áreas do conhecimento humano, principalmente artes, arquite- tura e ciência, enquanto na Inglaterra, o conhecimento pictórico não era difundido. Isso proporcionou a Ga- lileu uma visão de mundo mais ampla, que, aliada à ciência, resultou em grandes descobertas. Uma das entidades que de fato mesclou a pintura e a f́ısica foi a luz. Os f́ısicos queriam saber qual era a natureza cient́ıfica da luz, e os pintores buscavam a natureza da cor para poder utilizá-la em seus traba- lhos. Diante disso, cria-se uma aproximação dessa arte com a ciência.Um dos primeiros f́ısicos a estudar a na- tureza da luz foi Sir Isaac Newton (1642-1727), a quem se atribui a célebre experiência de fazer um raio de luz do sol incidir num prisma, decompondo-a em suas co- res básicas. Esse fato levou à compreensão de que a luz branca é formada por inúmeras cores, explicando, por exemplo, a formação do arco-́ıris. Além disso, Newton verificou que das sete cores principais, apenas os raios de luz vermelho, azul e verde não podiam ser decompos- tos por um prisma, e que o amarelo se decompunha em um raio de luz vermelho e outro verde. Com essa des- coberta, ele define o vermelho, o azul e o verde como cores fundamentais, ideia que contrariava os conheci- mentos pictóricos, pois, na pintura, o vermelho, o azul e o amarelo eram tidos como as cores primárias, res- ponsáveis pela formação de todas as outras. Esses ex- perimentos e observações são descritos detalhadamente em seu livro Opticks, publicado em 1704. Para Newton, a luz era formada por sete tipos de F́ısica e pintura: dimensões de uma relação e suas potencialidades no ensino de f́ısica 4402-5 part́ıculas e cada uma, de tamanho diferente, era refe- rente a uma cor. A cor do objeto seria, assim, a reflexão de um raio de luz (várias part́ıculas), o qual era formado pela união das sete cores, em diferentes proporções, e que incidem no olho [14]. Então, por exemplo, um ob- jeto verde iria refletir apenas o raio de luz verde, e os outros raios de luz seriam absorvidos pela superf́ıcie, mas, se objeto fosse marrom, seriam então refletidas todas as setes cores, mas em proporções diferentes, e a junção dessa quantidade de part́ıculas diferentes forma- ria como raio resultante a cor marrom, que incidiria em nosso olho, provocando a percepção dessa tonalidade. A teoria de Newton elucidava alguns fenômenos f́ısicos, mas não explicava outras questões como, por exemplo, por que exatamente sete part́ıculas, ou como seria o processo da quantidade de movimento se a luz tem sete part́ıculas diferentes. No ano de 1801, Thomas Young (1773-1829), f́ısico e médico fisiologista, baseia-se em sua teoria tricromática da luz para dar explicações sobre como percebemos as cores. Young defendia a teoria ondulatória da luz e, ao estudar a fisiologia do olho, descobriu que existem três grupos de células senśıveis a três determinadas cores, que afirmou serem o vermelho, o azul e o verde. Com seus estudos, ele mostrou que os raios de luz incidem de forma independente no olho e, pelo fato de ser a pupila do olho uma lente convergente, esses raios de luz se en- contram num ponto de intersecção no fundo da retina, estimulando de forma independente, e com diferentes frequências, cada um dos três grupos de células fotos- senśıveis [15]. Dessa forma, o est́ımulo resultante em forma de impulso elétrico é então enviado ao cérebro, que o interpreta como uma percepção da cor do ob- jeto, ou seja, Young afirma que, de alguma forma, o olho contribui para a formação das cores, contrariando Newton, para quem as cores incidem prontas no olho. No entanto, a teoria tricromática de Young não foi va- lorizada, em parte por ele considerar a luz como uma onda, e em parte devido ao prest́ıgio de Newton e de suas teorias. Outro estudo realizado sobre cores, mas totalmente emṕırico, foi feito por Michel Eugene Chevreul (1786- 1889), um qúımico francês, em 1839. Ele enunciou a sua lei dos contrastes simultâneos, na qual se demons- tra que algumas cores podem ser consideradas frias e outras quentes, quando justapostas, e que existe um par único de cores que se complementam simultanea- mente, isto é, uma realça a outra. Esses estudos são muito importantes na área da psicologia da cor, tendo em vista que o ser humano manifesta sensações ao visu- alizar as cores, associando-as a algum tipo de emoção, por exemplo, o branco, com a paz e o azul, com a tran- quilidade [16-18]. Paralelamente a esses estudos cient́ıficos da luz, al- guns pintores estavam fazendo experiências pictóricas, assim como uma nova reflexão sobre os conceitos da pintura. Por um lado, para criticar o movimento do re- alismo que vigorava na época, o qual tratava a arte com a frieza de retratar a realidade sem sentimentos, e por outro, porque queriam encontrar a essência das cores. Eles passam então, de forma emṕırica, cient́ıfica e emo- cional, a estudar a luz e as cores em suas telas, a fim de trazer de volta o sentimentalismo e a expressividade das cores à pintura. Conhecidos como pintores da luz, que posterior- mente passaram para a história da arte como impres- sionistas, eles fizeram a primeira revolução na pintura ao mostrar que, na verdade, ao invés do amarelo, do azul e do vermelho, as cores primárias são o magenta, o amarelo de cádmio, e o azul cyan. É muito interessante a relação que existe entre as cores primárias de Newton e as dos impressionistas, pois elas são correlacionadas pela irreversibilidade das cores: as cores primárias de Newton são secundárias para os impressionistas, e as cores primárias destes são secundárias para ele. Sendo assim, definiram-se dois grupos de cores: a cor-luz, que provém da interação das cores dos raios de luz, e a cor- pigmento, que provém da interação das cores em forma de tintas [16, 18, 19]. Os impressionistas iniciam trabalhos que reúnem os conhecimentos sobre as cores pigmento e cores luz, a lei dos contrastes de Chevreul, e a ideia de que as co- res são misturadas nos olhos, pois eles acreditavam na teoria tricromática de Young devido a suas próprias experiências realizadas na pintura. De fato, a união desses conceitos originou uma grande potencialidade na pintura, proporcionando luminosidade e, por con- sequência, uma expressividade das cores jamais vista antes. Os pintores, para expressar algum tom de azul cyan, por exemplo, inseriam na tela pinceladas de tons diferentes de verde, justapostos a tons diferentes de azul, dependendo do tipo de sensação ou sentimento que eles queriam passar através das cores. Como cada cor reflete um raio de luz, que incide no olho conver- gindo no fundo da retina, pela teoria de Young, os im- pressionistas faziam com que as cores de suas pinturas fossem misturadas nos olhos, e não de suas palhetas para as telas. Dessa forma, produziam cor pigmento das palhetas para as telas, e cor luz das telas para os nossos olhos, os quais se incubem de misturar os raios de luz incidentes, dando-nos a percepção de cores muito luminosas e expressivas [19]. Joseph Mallord William Turner (1775-1851) foi um pintor romântico londrino, considerado o precursor do impressionismo, cujas obras retratam uma luminosi- dade estonteante e uma habilidade incomparável na justaposição das cores [5, 19]. As pinturas impressio- nistas de Turner inspiraram o f́ısico Hermann L.F. Von Helmholtz (1821-1894), médico e f́ısico alemão, que pas- sou a estudar a teoria tricromática da luz e comprovou que Young estava certo. Helmholtz mostra que os olhos possuem células senśıveis às luzes cujas frequências es- tejam na região do vermelho, do verde e do azul. Hoje em dia esta teoria é largamente aplicada na tecnologia 4402-6 Gomes et al. de monitores de TV e de computadores, pelo sistema RGB (do inglês red-green-blue). No final do século XIX, emerge uma gama de pin- tores impressionistas, como por exemplo, Claude Mo- net (1840-1926), Édouard Manet (1832-1883), Jacob C. Pissarro (1830-1903), Pierre A. Renoir (1841-1919), este último, considerado por Pablo Picasso (1881-1973) como O dedo de Deus. Esses e outros pintores mudam toda a visão e concepção do mundo sobre a pintura, pois, além do intenso estudo da natureza da luz e da percepção das cores, eles e, paralelamente, os f́ısicos, passam a se envolver com a questão do tempo e do espaço. Em 1891, Monet, ao investigar a dimensão do tempo na pintura, diz que “para recriar a essência de um objeto, o mesmo deve ser pintado em função do tempo.” Isso porque a luz incidente no objeto e refle- tida por ele em direção aos nossos olhos nunca será a mesma em tempos diferentes, e como o tempo é um fluxo cont́ınuo, os objetos e as paisagens nunca terão cores iguais, implicando que são únicos no tempo e no espaço [19, 20]. Com essa filosofia, o estilo impressio- nista se caracteriza por pinturas ao ar livre, com rápidas pinceladas, e uma captação da luminosidade das paisa- gens e objetos, de forma a trazer para a pintura uma expressividade única. Monet pintou diversos quadros em que repetia o mesmo tema, mas mudava o instante em que pintava. Numa de suas várias séries, ele pintou montes de feno em diferentes épocas do ano, e em ou- tra, denominada Catedral de Rouen (Fig. 2), de 1893, pintou a fachada do templo em diferentes horas do dia [8, 20]. A partir desse momento, a temporalidade é incorporada à pintura, uma vez que as paisagens não existiam apenas no espaço, mas também no tempo, e eram únicas. Esse elemento é então considerado um parâmetro importante na captação da cor dentro do espaço, e assim, da essência dos objetos e paisagens. Na verdade, toda a noção de espaço e tempo estava passando por profundas mudanças. A geometria eu- clidiana começava a ser questionada, deixando de ser absoluta, e a exploração dos espaços curvos não podia ser mais negada, dáı o surgimento de teorias da geome- tria não euclidiana, desde Gauss (1777-1855), em 1824, passando por Lobachevski (1792-1856), Bolyai (1802- 1860) e Riemann (1826-1866), estes em 1854. As novas noções sobre o espaço trouxeram mudanças significati- vas para a compreensão do universo. Utilizadas pelos f́ısicos da época, permitiam-lhes explicar fenômenos até então incompreenśıveis [21]. Nas pinturas de Édouard Manet observam-se ele- mentos das geometrias de espaços curvos. Em sua tela Le déjeuner sur l’herbe, de 1887, ele criou um grande incômodo no observador, pelo fato de introduzir a re- presentação de uma mulher que se banha, fora de pers- pectiva e de proporcionalidade em relação ao restante da obra. Além da distorção do espaço, há também uma questão que causa impacto quanto à iluminação sobre a mulher retratada, pois, ao se fazer os estudos de pers- pectiva, que nada mais é do que o caminho retiĺıneo de propagação da luz, conclui-se que para ela estar ilumi- nada daquela forma, a luz deve percorrer uma trajetória curva! No seu quadro Música nas tulherias, de 1862, Manet apresentou uma cena caótica, sem foco. Não há uma caracteŕıstica central a partir da qual o observa- dor possa começar a construir uma visão coerente e a hierarquia dos sujeitos é esquecida. Para aumentar o es- tresse visual, ele eliminou a perpendicularidade: todas as árvores são curvas, todos os chapéus masculinos são inclinados. O espaço não é mais euclidiano [8, 20, 22]. Figura 2 - Catedral de Rouen, 1893, Claude Monet. F́ısica e pintura: dimensões de uma relação e suas potencialidades no ensino de f́ısica 4402-7 Paul Cézanne (1839-1906) foi um pintor que revo- lucionou a forma de ver objetos e o espaço. Sua re- flexão é de poucas palavras, mas de um impacto extra- ordinário. Para ele, como dizia, o espaço não está vazio, “não se pode pintar um objeto sem fazê-lo interagir com o espaço ao seu redor”. No seu quadro Natureza Morta com Cesta de Frutas (Fig. 3), mostrou como os objetos em uma pintura interagem consigo e com o espaço onde se encontram, e como são por ele afetados, além de dis- torcer o espaço, criando na mesma paisagem diferentes pontos de fuga. Figura 3 - Natureza morta com cesta de frutas, 1888-1890, Paul Cézanne. Em 1905, Albert Einstein (1879-1955) sistematiza na teoria da relatividade aquilo que, de certa forma, ha- via sido representado na pintura através das inovações quanto à percepção do espaço e do tempo [20]. Percebe-se que no final do século XIX, f́ısica e pin- tura transitam por um território comum. Ambas ques- tionam as representações clássicas em cada um dos cam- pos, propondo novas formas de abordagem, com grande proximidade entre as áreas. Para a f́ısica, o questiona- mento se dá, resumidamente, nas seguintes linhas: • a insuficiência da mecânica clássica; • a valorização da teoria ondulatória da luz (Young); • a radiação do corpo negro; • a unificação da óptica e da eletrodinâmica por Maxwell; • o efeito fotoelétrico; • as raias espectrais; • a aplicação da geometria não-euclidiana; • a teoria de Planck; • o ińıcio da f́ısica moderna. Já para a pintura, as questões são: • a reação contra o realismo e a fotografia; • o estudo cient́ıfico da luz; • os estudos sobre a teoria fisiológica das cores de Young; • o uso da lei dos contrastes de Chevreul; • a interação entre cor-luz e cor-pigmento; • a criação da “pintura óptica”; • a incorporação da temporalidade e a interação da matéria com o espaço; • o ińıcio da arte moderna. Tanto a f́ısica como a pintura sáıam de sua era clássica para entrar na era moderna. No ińıcio do século XX, a cultura da Europa passava por profundas trans- formações, a humanidade se encontrava num mundo de complexidade crescente, eram grandes as incerte- zas poĺıticas e as descobertas cient́ıficas ocorriam em todas as áreas, inaugurando novos campos do conhe- cimento. Como exemplo da produção daquele ińıcio de século, podemos citar os trabalhos de Freud (1856- 1939), Einstein e Picasso. Essa efervescência na cultura geral e na ciência em particular, oferecia aos pintores motivos, inspiração e novas visões, que deram origem a novos movimentos. O primeiro desses movimentos art́ıstico-culturais foi o cubismo, que teve Picasso como seu maior repre- sentante. Ao introduzir a idéia central da simulta- neidade, Picasso apresenta, no quadro Les Demoiselles d’Avignon (1907), caracteŕısticas de pinturas eǵıpcias, maias e incas. A questão de simultaneidade é uma das bases da teoria da relatividade de Einstein. Ao trans- por os planos das imagens, Picasso passa a produzir figuras duplicadas, inserindo outro importante conceito f́ısico em seus quadros, a dualidade da luz [23]. Outro grande movimento, que teve Salvador Dali (1904-1989) como seu maior representante, foi o surrealismo, cuja caracteŕıstica era retratar o subconsciente humano, o irreal, a imaginação, o misticismo e a religião, estando presentes os sonhos e o humor sat́ırico. [21, 24, 25]. Nessa época surgem as primeiras idéias da f́ısica quântica, a partir dos questionamentos feitos por Max Planck (1858-1947). Os novos conceitos sobre a quan- tização da energia, totalmente repudiados pelos f́ısicos da época, explicavam elegantemente a distribuição da radiação do corpo negro, e em menos de dez anos constitúıram o novo paradigma na interpretação dos fenômenos atômicos. Novos prinćıpios, como o da in- certeza, traziam simultaneamente a frustração da ina- cessibilidade do mundo quântico, mas também novas possibilidades para o mundo imaginado, criação do ho- mem. O surrealismo, incorporando e representando a seu modo esses novos elementos e perspectivas, abria uma porta de acesso às novas possibilidades da ciência. Salvador Dali se inspira na f́ısica quântica e, ao mesmo tempo em que une a arte e a f́ısica, também tenta trans- parecer, com tintas e pinceladas, esse mundo misteri- oso, esse mundo quântico de relógios moles. No ińıcio da década de 1940, sua obra passa a ter alguns toques clássicos, com temas sobre ciência, religião e história. Com base em seus próprios estudos da f́ısica, cria re- presentações cient́ıficas em suas obras, tentando inter- pretar as informações a que tem acesso por meio de re- vistas, livros e conversas com alguns cientistas amigos seus. Em 1931, cria a obra A persistência da memória, que faz referência direta à teoria da relatividade tra- 4402-8 Gomes et al. zendo pela primeira vez o relógio mole, elemento pre- sente em vários de seus quadros. [23, 24]. Seu interesse pela teoria quântica de Planck o faz escrever um artigo na revista O Uso da Palavra, em fe- vereiro de 1940, intitulado As ideias luminosas, onde desenvolve uma teoria que se apoia no conceito dos quanta. Nesse artigo, Dali se revela conhecedor dos trabalhos sobre a luz, de Newton a Einstein. Nos anos 50, começa a fase de sua pintura corpuscular, quando desenvolve os prinćıpios do Misticismo nuclear, retra- tando sua visão metafórica da f́ısica. Suas pinturas se inspiraram nas teorias da relatividade, quântica e de força atômica, bem como conceitos da mecânica on- dulatória, entre outros assuntos da f́ısica. Algumas pinturas dessa fase são: A Desmaterialização do Na- riz de Nero (1947)(Fig. 4a), Equiĺıbrio Intra-Atômico de uma Pluma de Cisne (1947), Galátea de Esferas (1952), Cruz Nuclear (1952), A Desintegração da Per- sistência da Memória (1952-54) (Fig. 4b), Oposição (1952), Cena Religiosa em Part́ıculas (1958) e Santo Rodeado por Três Mésons pi (1956) [23, 25, 26]. No quadro A Desintegração da Persistência da Memória (1952-54), Dali realiza a junção da teoria quântica - representada pelo chão em blocos - com a te- oria da relatividade - representada pelos relógios moles, que significam a fluidez do tempo através do espaço. Outro quadro importante é A Desmaterialização do Nariz de Nero (1947), cujo foco está na romã dentro de um grande bloco de concreto, com sementes em sua volta, representando, a fruta, a bomba atômica, e o bloco, a humanidade, ou seja, o domı́nio do homem sobre essa arma poderosa. Ressalta-se que o mundo to- mou conhecimento da bomba atômica em 1945 e esta obra foi pintada em 1947 [27]. Essa profusão de conceitos, perspectivas e movi- mentos, tanto na f́ısica quanto na pintura no ińıcio do século XX, deixa claro que ocorria uma transição, de um “mundo a descrever” para “um mundo a construir”. 4. F́ısica e arte: aspectos técnicos de sua relação Um outro ângulo sob o qual as relações entre f́ısica e arte também podem ser examinadas é o da sua aplicação tecnológica. Nas últimas três décadas, a ar- queometria tem se estabelecido, com ampla utilização de métodos atômico-nucleares para análise, caracte- rização, conservação e restauração de obras de arte, ob- jetos arqueológicos e de bens do patrimônio cultural em geral. As técnicas anaĺıticas nessas áreas da f́ısica estão na interface entre a ciência pura e as aplicações diretas para a caracterização de bens culturais, permitindo um estudo detalhado dos objetos de arte e arqueologia, com a participação de historiadores da arte, arqueólogos e f́ısicos, o que cria uma enorme potencialidade de es- tudo e preservação do patrimônio cultural. Dentre as várias metodologias empregadas para o estudo de ob- jetos arqueológicos e obras de arte, as que mais se des- tacam são as não destrutivas, como a fluorescência de raios X (EDXRF), emissão induzida de radiação X por part́ıculas (PIXE) e emissão induzida de radiação gama por part́ıculas (PIGE), sendo que estas duas últimas técnicas utilizam os feixes iônicos provenientes de ace- leradores nucleares [28-30]. Figura 4 - (a) A Desmaterialização do Nariz de Nero, 1947, e (b) A Desintegração da Persistência da Memória, 1952-1954, ambas de Salvador Dali. F́ısica e pintura: dimensões de uma relação e suas potencialidades no ensino de f́ısica 4402-9 Sabe-se que um grande problema relacionado ao mundo das artes é a falsificação de pinturas, haja vista que o mercado ilegal de obras art́ısticas é um dos mais lucrativos do mundo. Diante desse fato, f́ısicos e his- toriadores da arte procuram métodos para prevenir ou denunciar a falsificação pictórica. Recentemente uma nova técnica aplicada por f́ısicos tem levado à redução desse crime. Ela se baseia em padrões magnéticos en- contrados nas pinturas, porque em quase todas as pin- turas antigas, as tintas a óleo são compostas por mine- rais - o vermelho chinês, por exemplo, é composto por ferro. Em outros termos, as pinturas podem apresentar uma magnetização intŕınseca, e, portanto, um padrão magnético gerado no momento em que foram criadas. A “imagética” (imagem magnética) de uma pintura a óleo consiste na medição do fluxo magnético, relacio- nado com a magnetização da pintura. Essa técnica pos- sibilita a catalogação e a identificação das obras de arte por companhias de seguros e museus, dificultando sua falsificação [31]. 5. Implicações para o ensino Após esse breve mergulho no tempo e no espaço, ana- lisando a aproximação entre a f́ısica e a pintura, fare- mos uma também breve discussão sobre posśıveis im- plicações das relações apresentadas acima no ensino de f́ısica. Consideramos, a prinćıpio, que uma proposta didática não deve necessariamente se adequar às condições existentes, especialmente quando falamos do ensino de f́ısica, considerando as condições de traba- lho, a formação de professores, o número de aulas, a extensão dos conteúdos, a evasão nas licenciaturas, variáveis que pesam muito no desenvolvimento de um bom trabalho pedagógico. Lembramos que no Brasil apenas 9% dos professores de f́ısica em atuação possuem formação espećıfica na área. Assim, lamentavelmente, concordamos com Zanetic [1] quando afirma que, se há alguns anos falávamos da necessidade de ensinar na es- cola a f́ısica do século vinte antes que ele acabasse, hoje se tornou necessário ensinar qualquer f́ısica, antes que ela, a escola, acabe. Uma nova proposta, porém, deve sempre conter uma dose de otimismo, de utopia, e apontar possibilidades mesmo que para um futuro distante. As condições para o desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar in- cluem entre outras, tempo para preparação conjunta de aulas, planejamento e estudo coletivos e conhecimento dos conteúdos básicos desenvolvidos nas diferentes dis- ciplinas de uma série por parte de todos os professores. Nossa proposta está em consonância com as pro- postas oficiais quando elas sugerem a organização de projetos como procedimento pedagógico para o trata- mento de conceitos, ou a seleção de temas geradores de estudos a partir da realidade. Nesse sentido, muitas intersecções podem ser busca- das na escola, como por exemplo, do professor de f́ısica com o de história, e mesmo com o de arte ou litera- tura. O objeto de estudo deixaria de ser o conceito es- pećıfico de cada disciplina, passando a ser um momento da história, uma escola de pensamento, transformando assim os conceitos das disciplinas envolvidas em instru- mentos para a interpretação e a solução de problemas. As propostas oficiais dos últimos dez anos contem- plam uma abordagem mais ampla dos conteúdos da f́ısica, propondo interações com outras disciplinas. A partir dos dois documentos de maior abrangência, os Parâmetros Curriculares Nacionais [32, 33], fica clara a necessidade de quebrar o isolamento dos conteúdos em cada disciplina, buscando um diálogo amplo com a cultura: Compreender a f́ısica como parte integrante da cultura contemporânea, identificando sua presença em diferentes âmbitos e seto- res, como, por exemplo, nas manifestações art́ısticas ou literárias, em peças de teatro, letras de músicas etc., estando atento à con- tribuição da ciência para a cultura humana. [32, p. 68] Ao mesmo tempo, a f́ısica deve vir a ser reconhecida como um processo cuja cons- trução ocorreu ao longo da história da hu- manidade, impregnado de contribuições cul- turais, econômicas e sociais, que vem resul- tando no desenvolvimento de diferentes tec- nologias e, por sua vez, por elas sendo im- pulsionado. [32, p. 59] A história é também história do conheci- mento cient́ıfico-tecnológico e matemático, e ainda história da cultura, em todos os sentidos dessa palavra, desde cultura da alimentação, do vestuário e de regras de conv́ıvio, até cultura literária, art́ıstica e hu- manista. [32, p. 18] A f́ısica percebida enquanto construção histórica, como atividade social humana, emerge da cultura e leva à compreensão de que modelos explicativos não são únicos nem finais, tendo se sucedido ao longo dos tempos, como o modelo geocêntrico, substitúıdo pelo heliocêntrico, a teoria do calórico pelo conceito de calor como ener- gia, ou a sucessão dos vários modelos ex- plicativos para a luz. O surgimento de te- orias f́ısicas mantém uma relação complexa com o contexto social em que ocorreram. Perceber essas dimensões históricas e soci- ais corresponde também ao reconhecimento da presença de elementos da f́ısica em obras literárias, peças de teatro ou obras de arte. [33, p. 27] 4402-10 Gomes et al. Nessa nova compreensão do ensino médio e da educação básica, a organização do apren- dizado não seria conduzida de forma so- litária pelo professor de cada disciplina, pois as escolhas pedagógicas feitas numa disci- plina não seriam independentes do trata- mento dado às demais, uma vez que é uma ação de cunho interdisciplinar que articula o trabalho das disciplinas, no sentido de pro- mover competências. [32, p. 13] As influências mútuas entre a f́ısica e a arte têm no ensino médio amplo campo de desenvolvimento, pois elas favorecem uma melhor compreensão da realidade, porque iluminada pelos conceitos disciplinares, e permi- tem igualmente uma melhor apreensão desses conceitos, constrúıdos a partir de situações de aprendizagem car- regadas de sentidos. Por fim, cabe ressaltar que o estudo dessas relações, assim como o da f́ısica com outras dimensões da cul- tura, deveria ser mais enfatizado nos cursos que formam bacharéis e licenciados em f́ısica, com o objetivo de am- pliar sua formação e até, eventualmente, o seu próprio horizonte profissional. Referências [1] J. Zanetic, História, Ciências, Saúde - Manguinhos 13, 55 (2006a). [2] J. Zanetic, Pro-Posições 17, 49 (2006b). [3] Brasil, Parâmetros Curriculares Nacionais: En- sino Médio. Parte 1. Bases Legais (MEC/SEMTEC, Braśılia, 2000). [4] Brasil, Ciências da Natureza, Matemática e suas Tec- nologias. Orientações Curriculares (MEC/SEMTEC, Braśılia, 2006), 135 p. [5] Maria das Graças Vieira Proença dos Santos, História da Arte (Ática, São Paulo, 2002). [6] Ernst Hans Gombrich, História da Arte (LTC, São Paulo, 2000). [7] Mário Schenberg, Pensando a F́ısica (Landy, São Paulo, 2001). [8] J.C. Reis, A.Guerra e M. Braga, História, Ciências, Saúde - Manguinhos 13, 71 (2006). [9] G.C. 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