Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas Júlia Garcia da Silva Duarte OS IMPACTOS DA PANDEMIA DA COVID-19 NA ATUAÇÃO DO CENTRO JUDICIÁRIO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS: ESTUDO DE CASO DO MUNICÍPIO DE ITUVERAVA/SP Franca 2023 Júlia Garcia da Silva Duarte OS IMPACTOS DA PANDEMIA DA COVID-19 NA ATUAÇÃO DO CENTRO JUDICIÁRIO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS: ESTUDO DE CASO DO MUNICÍPIO DE ITUVERAVA/SP Dissertação de mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais “Júlio Mesquita Filho” – UNESP, campus Franca, como pré- requisito para obtenção do título de Mestre em Planejamento e Análise de Políticas Públicas; Linha de Pesquisa: Instituições, Cidadania e Políticas Sociais Orientador: Prof. Dr. Marco Aurélio Gumieri Valério Franca 2023 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA O impacto potencial se dará, mais especificamente, na atuação do CEJUSC no município de Ituverava/SP, em que, por meio de ações e intervenções, passará a ter uma atuação mais transparente e próxima da população, culminando assim, em um número maior de pessoas assistidas. POTENCIAL IMPACT OF THIUS RESEARCH The potential impact will occur, more specifically, in the performance of CEJUSC in the municipality of Ituverava/SP, in which, through actions and interventions, it will have a more transparent and close to the population, thus culminating in a greater number of people assisted. Dedico a todos aqueles que me incentivaram a trilhar o caminho acadêmico, especialmente ao meu esposo, que sempre acreditou em mim; se não fosse você, talvez eu não teria chegado até aqui. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, a Deus, que me guiou até aqui, e que me proporcionou poder trilhar caminhos que jamais imaginei alcançar. Agradeço ao meu esposo e amigo de turma, João Paulo Pereira Duarte, por todo o apoio, afeto e incentivo de sempre. Agradeço aos meus pais e irmãos, por todo o carinho. Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Marco Aurélio Gumieri Valério, por todo o auxílio e dedicação. Agradeço à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca/SP, e ao Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas, todo o corpo docente e administrativo. Agradeço, por fim, ao Fórum e Cejusc de Ituverava/SP, especialmente na pessoa de seu coordenador, que me proporcionou realizar esta pesquisa. RESUMO A Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos, desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tem por objetivo a disseminação da utilização de métodos alternativos de solução de conflitos, especialmente quanto à conciliação e mediação, com a finalidade de tornar efetivo o acesso qualificado à justiça, mediante a disseminação da cultura de pacificação social. Os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs), neste sentido, atuam como mecanismos de funcionamento da política pública. Desde o ano de 2020, com a pandemia da Covid-19, o cenário pandêmico tem impactado o setor, sobretudo com as medidas de distanciamento social. Sendo assim, o presente trabalho tem por objetivo geral avaliar os impactos da pandemia na atuação do Cejusc, especialmente no município de Ituverava/SP. O desenvolvimento da pesquisa se deu, primeiramente, na discussão quanto às políticas públicas judiciárias, e a necessidade de garantia do acesso à justiça em detrimento da cultura do litígio, o que foi feito mediante uma pesquisa bibliográfica, com consulta à livros, artigos científicos, dissertações, teses e legislações. Além disso, o trabalho se dedicou a analisar como se deu a resolução dos conflitos no período da pandemia e quais eventuais modificações ocorridas; o que foi feito através de um levantamento das principais normas que regularam o Judiciário neste ínterim, inclusive no que tange ao Cejusc. Por fim, mediante uma pesquisa quantitativa e qualitativa (envolvendo questionário com o coordenador do Setor), tendo por base dados do Conselho Nacional de Justiça, bem como do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Disputas (Nupemec), e dados do próprio Cejusc de Ituverava/SP, identificou-se os impactos da pandemia no setor. Através dos referidos dados foi realizada uma análise acerca da eficácia da atuação da política pública em questão, comparando resultados anteriores à pandemia, e também no período pandêmico. Ao final da presente pesquisa, diante do resultado alcançado, propõe-se, como medida de intervenção, (i) maior publicidade à atividade realizada pelo Cejusc de Ituverava/SP, o que pode ser feito mediante divulgação de panfleto; (ii) estabelecimento de parceria entre a Faculdade de Direito de Ituverava/SP e o Cejusc; (iii) mudança da sede do Cejusc, como medida a atrair mais assistidos; (iv) atendimento híbrido pelo Setor, com possibilidade de agendamentos e de realização de audiências tanto por meio digital quanto pessoalmente, com todo o amparo tecnológico necessário àqueles que não possuem meios digitais. Palavras-chave: Políticas Públicas. Política conciliatória. Cejusc. Pandemia da Covid-19. ABSTRACT The National Judiciary Policy for the adequate treatment of conflicts, developed by the National Council of Justice (CNJ), aims to disseminate the use of alternative methods of conflict resolution, especially regarding conciliation and mediation, with the aim of making effective access qualified to justice, through the dissemination of the culture of social pacification. The Judiciary Centers for Conflict Resolution and Citizenship (Cejuscs), in this sense, act as public policy functioning mechanisms. Since 2020, with the Covid-19 pandemic, the pandemic scenario has impacted the sector, especially with social distancing measures. Therefore, the present work has the general objective of evaluating the impacts of the pandemic on Cejusc's performance, especially in the municipality of Ituverava/SP. The development of the research took place, firstly, in the discussion regarding judicial public policies, and the need to guarantee access to justice to the detriment of the culture of litigation, which was done through a bibliographical research, with consultation of books, scientific articles, dissertations, theses and legislation. In addition, the work was dedicated to analyzing how conflicts were resolved during the pandemic period and what possible changes occurred; which was done through a survey of the main norms that regulated the Judiciary in the meantime, including with regard to Cejusc. Finally, through a quantitative and qualitative research (involving a questionnaire with the Sector coordinator), based on data from the National Council of Justice, as well as from the Permanent Nucleus of Consensual Dispute Resolution Methods (Nupemec), and data from Cejusc itself of Ituverava/SP, the impacts of the pandemic on the sector were identified. Through said data, an analysis was carried out about the effectiveness of the performance of the public policy in question, comparing results prior to the pandemic, and also in the pandemic period. At the end of this research, given the results achieved, it is proposed, as an intervention measure, (i) greater publicity for the activity carried out by Cejusc in Ituverava/SP, which can be done by publicizing a pamphlet; (ii) establishment of a partnership between the Faculty of Law of Ituverava/SP and Cejusc; (iii) change of Cejusc headquarters, as a measure to attract more assisted; (iv) hybrid service by the Sector, with the possibility of scheduling and holding hearings both digitally and in person, with all the technological support necessary for those who do not have digital media. Keywords: Public Policies. Conciliatory policy. Cejusc. Covid-19 pandemic. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CNJ – Conselho Nacional de Justiça NUPEMEC – Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos CEJUSC – Centro Judiciário de Solução de Conflitos AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros FGV – Fundação Getúlio Vargas IPESPE – Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável FAFRAM – Faculdade Doutor Francisco Maeda LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Índice de confiança nas instituições ..................................................................... 34 Gráfico 2: Evolução da confiança no Poder Judiciário .......................................................... 35 Gráfico 3: Avaliação do funcionamento do Judiciário – 2019 .............................................. 35 Gráfico 4: Razões que mais desmotivam as pessoas de buscarem o Judiciário – 2019 .......... 36 Gráfico 5: Série histórica de número de casos novos por mil habitantes ............................................................................................................................ 50 Gráfico 6: Evolução histórica da quantidade de Cejuscs na Justiça Estadual ............................................................................................................................... 53 Gráfico 7: Quantidade de unidades de Cejuscs em 2020 por região ................................................................................................................................... 53 Gráfico 8. Número de habitantes por cada unidade de Cejusc por região ............................. 54 Gráfico 9: Número de habitantes por cada unidade de Cejusc por estado da região Sudeste ................................................................................................................................ 54 Gráfico 10: Quantidade de audiências recebidas, realizadas e frutíferas do período pré- pandêmico ........................................................................................................................... 69 Gráfico 11: Número total de audiências processuais e pré-processuais do período de 2015 a 2019..................................................................................................................................... 69 Gráfico 12: Número total de audiências no período pandêmico (2020-2021): processuais e pré- processuais........................................................................................................................... 70 Gráfico 13: Comparativo do número total de audiências processuais e pré-processuais de 2015 a 2021. ................................................................................................................................. 72 Gráfico 14: Comparativo do crescimento/queda de audiências pré-processuais realizadas nos Cejuscs do Estado de São Paulo e no Cejusc de Ituverava/SP do período de 2017 a 2021..................................................................................................................................... 72 Gráfico 15: Comparativo do crescimento/queda de audiências processuais realizadas nos Cejuscs do Estado de São Paulo e no Cejusc de Ituverava/SP do período de 2017 a 2021..................................................................................................................................... 73 Gráfico 16: Resultados (cível e família) do Tribunal de Justiça de São Paulo.................................................................................................................................... 74 Gráfico 17: Comparativo dos percentuais de êxito..................................................................................................................................... 75 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Número de audiências pré-processuais no período de 2020-2021 ........................... 71 Tabela 2: Percentual de êxito das audiências processuais e pré-processuais realizadas no Cejusc de Ituverava/SP .................................................................................................................... 74 Tabela 3: Índice de realização de audiências no Cejusc ........................................................ 75 Tabela 4: Índice de acordos no Cejusc ................................................................................. 76 LISTA DE FIGURAS Figura 1: Processo arbitral .................................................................................................. 46 Figura 2: Linha do tempo da disseminação da Covid-19 ..................................................... 57 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 14 1. METODOLOGIA ..................................................................................................... 18 1.1 Coleta de dados ........................................................................................................... 19 1.2 Descrição dos procedimentos de coleta de dados .......................................................... 20 1.3 Da Entrevista .............................................................................................................. 21 1.4 Análise dos dados ........................................................................................................ 23 2. POLÍTICA PÚBLICA E POLÍTICA JUDICIÁRIA NACIONAL DE TRATAMENTO ADEQUADO DOS CONFLITOS DE INTERESSES .......................... 25 2.1 Abordagem das políticas públicas .............................................................................. 25 2.2 O Judiciário e as políticas judiciárias ......................................................................... 27 2.3 O acesso à justiça e crise do Judiciário ...................................................................... 31 2.4 A política conciliatória .............................................................................................. 37 2.5 Dos meios alternativos de solução de conflitos.......................................................... 41 2.5.1 Aspectos gerais ......................................................................................................... 41 2.5.2 Da negociação .......................................................................................................... 43 2.5.3 Da conciliação e mediação ........................................................................................ 44 2.5.4 Da arbitragem ........................................................................................................... 46 2.6 Criação e implementação da política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses........................................................................................................... 48 2.7 O papel dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos ........................................... 51 3. A RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS NO CONTEXTO PANDÊMICO .............. 56 3.1 A pandemia da Covid-19 .......................................................................................... 56 3.2 O Judiciário de “portas fechadas” .............................................................................. 59 3.3 A solução digital de conflitos no âmbito judiciário .................................................... 61 4. EFEITOS DA PANDEMIA NA POLÍTICA PÚBLICA JUDICIÁRIA NACIONAL DE TRATAMENTO ADEQUADO DOS CONFLITOS DE INTERESSES..................................................................................................................... 66 4.1 O Cejusc de Ituverava/SP .............................................................................................. 66 4.2 Coleta de dados do período pré-pandêmico e pandêmico; .............................................. 68 4.3 Análise e comparação dos dados coletados .....................................................................71 4.4 Questionário ................................................................................................................... 76 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 81 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 84 ANEXOS ............................................................................................................................ 95 14 INTRODUÇÃO O conflito é elemento característico das relações entre as pessoas. A própria atividade exercida pelo Estado voltada para a justiça institucionalizada tem sua legitimidade pautada na existência do conflito. Esta atividade estatal possui, inclusive, status de garantia constitucional. No entanto, a atuação estatal na resolução dos conflitos não está ligada, tão somente, a um escopo jurídico e social, pautado na vontade concreta do direito e na pacificação social; mas também possui fundamento político, afirmador do poder estatal (DINAMARCO, 2005). Inegável, neste sentido, a concentração de poder do Estado como ente cuja pacificação social é dele emanada como forma de distribuição de justiça social; o que trouxe, por conseguinte, expectativas predominantemente estatais de solução de conflitos. Todavia, consoante crítica feita por Canotilho (2003), a forma tradicional de solução dos litígios, fundamentada através dos tribunais e mediante decisão judicial de um juiz imparcial, foi deixando de conseguir assegurar, por si só, a pacificação social e a garantia dos direitos das pessoas em tempo razoável. Essa oposição à forma autoritária do Estado de fazer a justiça, para Canotilho (2003), cresce na medida em que ela mesma representa um obstáculo à autorregulação dos litígios, que poderia dar espaço a concepção de um estado cooperativo quanto à forma de prestar a justiça. Neste mesmo raciocínio, Chiovenda (2000), inclusive, já no início do século XX, defendia que a atividade jurisdicional deveria ser considerada como uma atividade secundária, a ser utilizada após frustrada a resolução do conflito espontaneamente entre as partes, de modo a incumbir aos próprios sujeitos envolvidos o dever principal de resolução. Desde então, muito se começou a discutir sobre a denominada cultura da litigância, que para Salles (2006) representa a ideia geral de que toda e qualquer controvérsia necessita ser judicializada, ou seja, resolvida sob a forma de solução adjudicada, mediante impositiva e coercitiva decisão judicial. É nesse contexto que surge o debate acerca da disseminação de uma cultura de pacificação social, que proporcione um acesso à justiça qualificado, ou seja, que seja capaz de proporcionar o acesso à ordem jurídica considerada justa (WATANABE, 2011). Os métodos alternativos de solução de conflitos, mais especificamente os métodos consensuais de solução de conflitos (mediação e conciliação) surgem deste debate como uma também eficaz alternativa de resolução do conflito. Os fundamentos para tais métodos alternativos são tratados por Grinover (2007) como sendo três: fundamento funcional, que está diretamente relacionado com o eficienticismo; 15 fundamento social, visto que está voltado para a pacificação; e, fundamento político, pois assegura a participação. Para Grinover (2007), o eficientismo está alicerçado na própria institucionalização de métodos que busquem a autocomposição, em contrapartida aos tribunais, na medida em que tais vias conciliativas objetivam a racionalização na distribuição da justiça. A pacificação reside na possibilidade de soluções de conflitos por muitas vezes não chegam a ser analisados pelos tribunais. Por fim, a participação popular é verificada pela colaboração do que se denominou de corpo social nos procedimentos de mediação e conciliação. Neste sentido, a autocomposição, especialmente a mediação e conciliação, seria uma alternativa ao método estatal de resolução de conflitos, caracterizada pela presença de mediadores e conciliadores, que, nos dizeres de Cazzaro (2013), é operada pelos próprios litigantes, os quais buscam a solução do problema por meio do diálogo, mediante concessões recíprocas. A política pública de tratamento adequado dos conflitos de interesses surge através da Resolução n.º 125, de 29 de novembro de 2010, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como uma forma também eficiente de garantir a boa qualidade dos serviços oferecidos pelo Judiciário no que tange à resolução de conflitos, bem como à disseminação da cultura da pacificação social, em contraponto à cultura da litigância. Grinover (2007) ressalta, ainda, que entre os elementos mais notórios para o surgimento de tais métodos alternativos de solução de conflitos, destacando-se, como exemplo, a morosidade da justiça e os altos custos processuais, bem como a burocracia procedimental, a obstrução das vias de acesso à justiça, e o distanciamento dos indivíduos e o Poder Judiciário. Isso pode ficar ainda mais claro com os dados do estudo da imagem do judiciário brasileiro, feito em 2019, que quando em discussão a percepção de dificuldades para o funcionamento do Judiciário, chegou-se a constatação de que: (i) 87% dos entrevistados (pessoas da sociedade) consideram o acesso à justiça caro, beneficiando aqueles de maior poder aquisitivo; (ii) 86% entendem que os procedimentos judiciais têm excesso de formalidades e são muito burocráticos; e, (iii) 86% consideram que o Judiciário é distante da população. Acrescente-se a esses dados, ainda, a percepção da sociedade em relação ao nível de informação sobre o funcionamento do Judiciário, que nas classificações “mais ou menos informado(a)” e “mal informado(a)” representa 92% dos entrevistados. É nesse contexto que os métodos consensuais de solução de conflitos, ou seja, a conciliação e a mediação são elencadas através da política pública em questão como instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios. 16 Os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs), considerados como unidades do Poder Judiciário, foram instituídos também através da política nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses, a quem incumbe a função de realizar e gerir as sessões e audiências de conciliação e mediação, e, ainda, orientar e atender o cidadão. Os benefícios proporcionados à sociedade com a criação e funcionamento dos Cejusc são proporcionalmente inversos aos problemas apontados do Judiciário, destacando-se o acesso à justiça de forma menos burocrática e mais equânime; a celeridade na resolução dos conflitos; menores custos na tramitação dos processos; a solução dos conflitos baseada no consenso das partes, da forma que melhor lhes convém, sem imposições de terceiros, dando às partes autonomia para que consigam resolver seus conflitos (LIMA; GALVÃO; MONTE-SERRAT, 2018). Dada a importância dessas unidades judiciárias para a política pública em questão, a discussão a respeito da pandemia da Covid-19 no Brasil, iniciada a partir de 2020, mostra-se relevante para fins da presente pesquisa, na medida em que também os Cejuscs puderam experimentar seus impactos, sobretudo com a deflagração da crise sanitária e a adoção de medidas de distanciamento social. Neste contexto, para fins da presente pesquisa, pretende-se avaliar os impactos da pandemia na atuação do Cejusc, com base no estudo de caso do município de Ituverava/SP, a fim de que se possa compreender, em termos quantitativos e qualitativos, seus níveis reais de atuação e eficiência no período anterior e posterior à pandemia. Além disso, pretende-se discutir os efeitos da pandemia da Covid-19 na política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos, e, identificar as principais modificações ocorridas durante o período pandêmico no que tange à resolução dos conflitos, bem como averiguar a eficiência da atuação do Cejusc no município proposto. A importância do tema escolhido para o trabalho está atrelada à própria relevância do assunto envolvendo a política judiciária de solução adequada dos conflitos, bem como da conciliação e mediação como formas alternativas de solução dos conflitos. Isso porque, além de funcionar como importante filtro de litigiosidade (WATANABE, 2011), tais métodos visam implantar uma cultura de soluções consensuais, pois não somente a satisfação é o resultado esperado, mas, acima disso, a pacificação dos sujeitos conflitantes (DINAMARCO, 2020); e, também, para proporcionar um acesso à ordem jurídica justa, a qual não se dá pelo mero acesso aos tribunais (GRINOVER, 2000). A pesquisa é importante, outrossim, para a avaliação da própria política pública em comento, em um contexto específico de pandemia da Covid-19, que pode ter proporcionado 17 uma nova realidade para a atuação dos Cejuscs, em específico, no município de Ituverava/SP, o qual foi escolhido como parâmetro para a análise. A avaliação da política pública tem relevante papel na pesquisa porque permite, dentre outras questões, justificar as ações e decisões tomadas, sobretudo no período da pandemia da Covid-19, além de proporcionar de eventuais problemas, bem como responder se os recursos disponíveis estão conseguindo produzir os resultados esperados, e, ainda, promover o diálogo entre a pesquisa e a comunidade para quem os serviços visam atender (SEBRAE, 2008). Além disso, a pesquisa se desenvolveu por meio de quatro capítulos. O primeiro se dedica a explicar, de forma detalhada, toda a metodologia adotada na pesquisa, sobretudo com relação ao tratamento dos dados que serão utilizados. O segundo capítulo aborda a política judiciária nacional de tratamento dos conflitos de interesses, na qual foi discutido a partir do conceito das políticas públicas, a criação e implementação da mencionada política, bem como o papel do Judiciário e de suas políticas judiciárias, a fim de que se pudesse compreender desde as raízes do desenvolvimento da política até sua execução por meio, sobretudo, dos Cejuscs. O terceiro capítulo desta pesquisa, por sua vez, é destinado a analisar o contexto pandêmico brasileiro da Covid-19, principalmente no que diz respeito à resolução de conflitos pelo Poder Judiciário, com vistas à elucidação das principais modificações normativas e identificação das medidas tomadas pelo Judiciário para adequação do seu funcionamento no período de crise sanitária e distanciamento social. Por fim, o último capítulo da pesquisa tem por intuito tratar do estudo de caso do Cejusc do município de Ituverava/SP, no qual foram discutidos os resultados obtidos com os dados colhidos das audiências conciliatórias realizadas antes e durante o período pandêmico, bem como o questionário com funcionário do órgão. 18 1. METODOLOGIA Para se alcançar uma avaliação adequada de processos inerentes às políticas públicas, deve-se observar as etapas que fazem parte da política que foram concretizadas e entregues ao público de interesse (ROSSI, LIPSEY e FREEMAN, 2004). A característica da pesquisa de cunho documental, segundo Marconi e Lakatos (2003), é justamente que a fonte de coleta de dados está relacionada a documentos, baseados em três diferentes variáveis, quais sejam: fontes escritas ou não, fontes primárias ou secundárias, e contemporâneas ou retrospectivas. E dentro deste cenário, inserem-se os livros, jornais, publicações científicas, teses, dentre outros. Neste trabalho, a pesquisa teve por objeto a análise documental, a qual foi necessária para dar embasamento teórico e suporte científico à pesquisa que se desenvolveu, e que foi alcançada mediante a análise de documentos. O uso de documentos é justificado em várias áreas das ciências humanas e sociais, possibilitando a ampliação do entendimento acerca de objetos que necessitam de uma contextualização não somente histórico, mas também sociocultural (SÁ-SILVA et al, 2009). Além disso, o método de análise documental permite a observação da evolução histórica e contextualizada do indivíduo, de grupos, conhecimentos diversos, conceitos e comportamentos, práticas, dentre outros aspectos (CELLARD, 2008). Por isso, pode-se afirmar que os documentos são fontes de dados importantes tanto para pesquisas qualitativas, quanto para pesquisas quantitativas, e, ainda, como complemento da pesquisa de natureza bibliográfica, que é justamente a primeira parte do desenvolvimento deste trabalho. A pesquisa bibliográfica mostrou-se como sendo fundamental para este trabalho na medida em que se pretendeu através das diversas fontes documentais, inclusive, com base no direito comparado com outros países, entender a instituição da política pública de tratamento adequado de conflitos no Brasil, bem como o problema público que levou à sua criação. Além disso, a pesquisa bibliográfica trouxe informações importantes acerca da conciliação e mediação como métodos consensuais alternativos de solução de conflitos, e também de suas formas de aplicação através de atuação dos órgãos do Poder Judiciário. Já a última parte do trabalho foi desenvolvida mediante (i) pesquisa quantitativa, a qual tem por objeto o estabelecimento de critérios e/ou indicadores mediante dados representativos e objetivos (MUSSI et al, 2019), ou seja, com sua materialização numérica; e, (ii) pesquisa 19 qualitativa, a qual tem caráter descritivo e enfoque indutivo, porque voltada à observação (GODOY, 1995a). Tomando por base a pesquisa qualitativa, o estudo de caso se mostrou mais acertado para o resultado que se pretendeu alcançar neste trabalho, pois é um método que tem como técnicas fundamentais a observação e a entrevista (GODOY, 1995b). A justificativa da escolha do método de estudo de caso se deu justamente porque visa responder questões sobre “como” e “por quê” determinados fenômenos ocorrem, sendo imprescindível justamente diante da pouca possibilidade de controle dos eventos estudados (pandemia da Covid-19), tendo como foco de interesse, portanto, um fenômeno atual, que só pode ser analisado dentro de um contexto de vida real (GODOY, 1995b). A escolha da entrevista como procedimento para a coleta dos dados da pesquisa qualitativa se dá, principalmente, em razão do limitado número de entrevistados, além da necessidade de se obter informações amplas e detalhadas, sendo relevante, ainda, a participação ativa do pesquisador (COLOGNESE; MÉLO, 1998). Tendo em vista que o objeto da pesquisa é obter o máximo de informações possíveis, e de forma mais livre, a entrevista semi-estruturada é a modalidade que melhor se amoldou ao trabalho, pois no caso não se pretendeu apenas a descrição do acontecimento, mas também sua explicação e compreensão na totalidade (TRIVIÑOS, 1987). Foi através dessa análise de dados e informações que se chegou ao resultado para a pesquisa, a qual logrou êxito em responder a problemática em torno dos impactos da pandemia da Covid-19 na atuação dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos, com enfoque no município de Ituverava/SP. 1.1 Coleta de Dados Conforme já exposto, os dados utilizados para a realização desta pesquisa foram obtidos por meio de documentos, seja para realização da pesquisa bibliográfica, seja para realização da pesquisa quantitativa. Além disso, os resultados contaram, também, com entrevista, que trouxe informações de cunho qualitativo para o cenário analisado. Primeiramente, foi realizado um levantamento das principais obras destinadas a tratar dos métodos alternativos de solução de conflitos, com base na literatura brasileira. Referido levantamento bibliográfico está inserido dentro da pesquisa bibliográfica para possibilitar um planejamento e melhor organização das informações relevantes sobre o tema que são utilizados como embasamento teórico para o objetivo da pesquisa. 20 A partir dessas bases de dados bibliográficos, se desenvolveu a discussão acerca da política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos, como garantia de acesso à justiça justa e disseminador da cultura de pacificação social. A análise também se dedicou a abordar as principais legislações nacionais sobre o assunto, para que se pudesse entender o próprio contexto do surgimento da política pública discutida, bem como sua implementação, a fim de dar embasamento teórico para a própria análise de sua avaliação. Já para o desenvolvimento da pesquisa quantitativa, os dados numéricos, tal como ressaltado, foram primordiais para compor o próprio resultado da pesquisa, bem como de seu produto final. Foram a partir deles que se pôde concluir pela existência ou não de impactos na atuação dos Cejuscs no período da pandemia, com possibilidade, ainda, de discussão de melhorias ou criação de cenários adversos para sua atuação. Na perspectiva da pesquisa qualitativa, a realização da entrevista teve por objetivo elucidar com maior detalhamento esse cenário, e compreender o que mudou ou não com a pandemia da Covid-19, o que foi benéfico ou não, qual a necessidade atual do setor, quais os possíveis desafios em um cenário pós-pandêmico, dentre outras questões. 1.2 Descrição dos Procedimentos de Coleta de Dados Para discutir e entender os avanços dos métodos alternativos de conflitos no Brasil, bem como o surgimento e desenvolvimento da política pública de tratamento adequado dos conflitos de interesses, foram utilizados livros das áreas de ciências sociais e direito, bem como legislações, sendo as principais: a Resolução n.º 125/10 do CNJ, Lei n.º 13.105/15 (Código de Processo Civil) e Lei n.º 13.140/15 (Lei de Mediação). Além disso, teses, dissertações e artigos científicos obtidos mediante buscas na internet, também serviram de base para o desenvolvimento deste objetivo de pesquisa. A consulta a bibliotecas, tanto virtuais quanto físicas, permitiram o alcance das informações necessárias e imprescindíveis para a pesquisa. Lado outro, para analisar os efeitos da implantação das políticas públicas relacionadas à mediação e conciliação, os dados numéricos colhidos foram retirados dos relatórios disponibilizados e elaborados pelo Conselho Nacional de Justiça, bem como do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Disputas (Nupemec). Referidos relatórios feitos anualmente, contém dados de âmbito nacional e estadual acerca de todos os tribunais brasileiros. Para fins desta pesquisa, foram utilizados como bases 21 amostrais informações de variados tribunais, bem como dos Centros Judiciários, que é o âmbito de abrangência desta pesquisa. O relatório “Justiça em Números”, do Conselho Nacional de Justiça, é uma das principais fontes de estatísticas do Poder Judiciário, e desde 2004 divulga em detalhes a estrutura, bem como a litigiosidade, a fim de dar suporte à análise da gestão judiciária brasileira, através de indicadores e demais análises. Por sua vez, o relatório de atividades desenvolvida pela Nupemec no âmbito dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, existente desde 2014, também foi uma importante ferramenta para a aferição dos dados, por contemplar diversas informações relativas às conciliações e mediações realizadas, com percentuais, números, categorias, indicadores, dentre outros. O trabalho contou, também, como base de dados o Estudo da Imagem do Judiciário Brasileiro, o qual foi realizado em 2019 pela AMB, FGV e IPESPE, que possibilitou a discussão de diversas questões do âmbito do Judiciário, bem como da própria política de conciliação no país. Além disso, o trabalho contou com pesquisa in loco, junto ao Fórum Municipal de Ituverava/SP; local onde está a sede do Cejusc no município. Por meio da visita in loco foram obtidos os dados do número de audiências conciliatórias, tanto no período anterior à pandemia (2015-2019), quanto no período da pandemia (2020-2021), com especificação de quantas audiências foram recebidas, realizadas e que restaram frutíferas. Além disso, os dados contemplaram tanto as audiências denominadas de pré- processuais, que são aquelas realizadas antes de existir propriamente o processo judicial, quanto das audiências processuais, realizadas no curso de um processo judicial já em trâmite; ambas por meio de atuação do próprio Cejusc. 1.3 Da entrevista Tratando, ainda, do procedimento de coleta dos dados, é importante esclarecer nesta oportunidade determinadas questões envolvendo a entrevista (pesquisa qualitativa) que se pretende seja realizada junto ao Cejusc de Ituverava/SP. O município de Ituverava/SP foi escolhido como objeto do estudo de caso da pesquisa por se tratar do município em que a autora nasceu e tem sua residência. 22 Trata-se de uma cidade localizada no interior do Estado de São Paulo, com extensão de 705,2 Km², vizinho dos municípios de Buritizal, Guará e Aramina, com população total de 41.824 habitantes, segundo último censo realizado (CIDADE BRASIL, 2022). Não se duvida que para se pesquisar sobre uma política pública, como se pretendeu desenvolver no trabalho, a opinião e percepção dos assistidos por essa política seja de importância considerável. No entanto, justamente pela pesquisa se desenvolver em um período, ainda, de pandemia da Covid-19, e de medidas de distanciamento social, não foi possível obter dados sobre a opinião dos assistidos. Suas informações (como nome, telefone, e-mail, dentre outros) são sigilosas, conforme relatado pelo próprio coordenador do Cejusc, de modo que ficou impossibilitado o desenvolvimento da pesquisa neste sentido. Em um primeiro momento, foi realizado o contato junto ao funcionário responsável pelo Cejusc de Ituverava/SP, o qual aprovou a iniciativa para a aplicação e divulgação das informações necessárias a essa pesquisa, seja com relação aos dados numéricos seja com referência às entrevistas. Posteriormente, a autora obteve, ainda, a aprovação para desenvolvimento da pesquisa através do próprio Juiz coordenador do Setor. Neste sentido, realizou-se a entrevista mediante envio de e-mail, ao funcionário coordenador do Cejusc de Ituverava/SP, o qual trabalha no setor ativamente, inclusive, realizando às audiências de conciliação como conciliador, possuindo, portanto, relação direta com a atuação da Unidade. Neste sentido, as perguntas que se fizeram foram: 1. Qual função exerce? 2. Quando o Cejusc foi implantado em Ituverava? 3. Quantas pessoas trabalham no setor? 4. Quais as áreas do direito que o Cejusc atende? (Ex: civil, família, fiscal, etc)? 5. Como eram realizadas as audiências antes da pandemia? 6. Como foram realizadas no período pandêmico? Houve alguma mudança? 7. Como a pandemia interferiu no Cejusc (número de funcionários, verba, home office, carga horária de trabalho, acesso a documentos, atendimento ao público, resolução de problemas, etc)? 8. O Cejusc estava preparado tecnologicamente (computadores, webcam, etc) para a pandemia? 9. Houve algum treinamento proporcionado? 23 10. Eventuais mudanças ocorridas foram positivas ou negativas? 11. Houve alguma dificuldade de acesso das pessoas ao Cejusc na pandemia? Caso afirmativo, o que foi feito para a resolução dessa questão? 12. Atualmente, como está sendo realizado o atendimento no Cejusc? 13. Como acha que será o atendimento no período pós-pandêmico? 14. Tem alguma sugestão de mudança/melhoria que poderia ocorrer quanto ao acesso dos assistidos? O questionário com as perguntas foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (Plataforma Brasil) em 30/04/2022 e devidamente aprovado em 20/10/2022. Com isso, a entrevista foi realizada em janeiro de 2023. 1.4 Análise dos dados Consoante ressalta Teixeira (2003), a análise dos dados é o processo de formação, consolidação, limitação e interpretação a respeito do que o pesquisador viu e leu. Por isso, sua importância para a presente pesquisa está em direcionar as informações obtidas tanto pela pesquisa bibliográfica quanto pela pesquisa quantitativa. Na análise quantitativa, conforme esclarece Oppenheim (apud Roesch, 1996), o pesquisador tem a possibilidade de realizar cálculos com médias, porcentagens, delimitar a significância estatística, calcular correlações, a fim de extrair o conteúdo dos dados, através do teste de hipóteses, comparação dos resultados, dentre vários outros. Por isso, para a análise dos dados quanto à pesquisa quantitativa, foi utilizado um tratamento estatístico dos dados coletados, onde todos os percentuais, índices e demais dados elencados foram reunidos em tabelas e gráficos, para amostragem das audiências de conciliações ao longo do lapso temporal delimitado junto ao Cejusc de Ituverava/SP (qual seja: de 2015 e 2021). Como não se pretendeu realizar uma análise qualitativa dos acordos realizados neste âmbito, a pesquisa quantitativa se limitou a trabalhar com os conteúdos numéricos obtidos dos relatórios, para, a partir disso, chegar a um indicador do número total de conciliações recebidas, realizadas e frutíferas pelo Setor. Por outro lado, no que diz respeito ao tratamento de dados na pesquisa bibliográfica, esta se delimitou a contextualizar o tema, tendo sua análise restrita aos conteúdos que dizem 24 respeito aos métodos alternativos de solução de conflitos, e aqueles relativos à própria política pública nacional de tratamento adequado de conflitos. Para a pesquisa qualitativa, a análise das respostas obtidas com a entrevista se pautou na compreensão da realidade vivenciada pelo entrevistado durante o período pandêmico, a fim de que se pudesse entender os problemas, as percepções, bem como as expectativas com relação ao órgão em que atua e no serviço que presta à sociedade. O enfoque na análise dos dados foi indutivo. 25 2. POLÍTICA PÚBLICA E POLÍTICA JUDICIÁRIA NACIONAL DE TRATAMENTO ADEQUADO DOS CONFLITOS DE INTERESSES Para uma melhor compreensão acerca da política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses é importante discorrer, primeiro, sobre os principais aspectos das políticas públicas, a fim de que se possa demonstrar a estreita relação entre as políticas judiciárias e as políticas públicas em sentido amplo. 2.1 Abordagem das políticas públicas A política pública compreendida através do problema público envolve dois elementos fundamentais: “intencionalidade pública e resposta a um problema público” (SECHI, 2013, p. 02). Isso significa dizer que decisão acerca do estabelecimento de uma política pública pressupõe a identificação de um problema que afeta a coletividade e a necessidade de sua resolução. Há discussões doutrinárias sobre a abordagem acerca das políticas públicas que perpassam pela ideia estatista e multicêntrica do termo. Como explica Sechi (2013), a abordagem estatista ou estadocêntrica considera como protagonistas das políticas públicas os atores estatais, de tal modo que é o protagonismo estatal que define a política pública. Por outro lado, a abordagem multicêntrica ou policêntrica considera como protagonistas das políticas públicas outros atores além do ente estatal, como por exemplo, as organizações privadas e as não governamentais (SECHI, 2013). A compreensão, porém, da política pública não se limita ao Estado. A reforma do Estado ocorrida durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso permitiu o estabelecimento de políticas de parcerias, proporcionando maiores relações entre o setor público e o privado. Desta forma, os cidadãos passaram a ter papel relevante nos processos decisórios envolvendo políticas sociais, através da consolidação de uma concepção de integração entre os setores, que visa ampliar o caráter democrático e participativo da esfera pública (BRESSER-PEREIRA, 1996). Uma das críticas que é feita, porém, quanto a essa ideia, está voltada para o próprio formato institucional das organizações e, também, da estrutura do Estado, que acaba por impedir uma “maior inserção popular no processo decisório e na formulação de políticas públicas” (PAULA, 2005, p. 44). Apenas através de um Estado com características 26 participativas, segundo Paula (2005), é que estaria garantida a legitimidade das demandas populares. Para Heidemann (2010), a perspectiva da política pública limitada à perspectiva de políticas governamentais vê o governo como a única instituição à serviço da comunidade política; o empresário ou o executivo de determinada empresa privada também poderia ser agente de políticas públicas, diante de sua responsabilidade social e da produtividade dos recursos e sistemas produtivos que administra. Porém, independente da divergência das abordagens, não se pode desconsiderar que, por vezes, as decisões mais importantes são aquelas que ocorrem no seio do poder governamental, pois é o responsável pela ordem, justiça e bem comum da sociedade (DIAS; MATOS, 2012). A Constituição Federal de 1.988, inclusive, reforça esse papel do Estado ao constituir como objetivos da República Federativa do Brasil: (i) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, (ii) garantir o desenvolvimento nacional; (iii) a erradicação da pobreza e marginalização; (iv) reduzir as desigualdades sociais e reginais; e, (v) promover o bem de todos (BRASIL, 1988). É em virtude dessas prerrogativas do Estado, atribuídas pela Constituição Federal, que advém seu poder de interferir na realidade através das políticas públicas, fazendo uso da conjugação do poder de direito (competência) e do poder de fato (força) (SANTOS, 2014), legitimando, assim, a tomada de decisões. Höfling (2001) defende, inclusive, que a função do Estado frente às políticas públicas não pode ser reduzida à própria burocracia pública, na qual são os organismos estatais que concebem e implantam tais políticas. As políticas públicas seriam compreendidas, nesta perspectiva, como a responsabilidade do Estado, reforçando a ideia de que elas não podem ser interpretadas simplesmente por políticas estatais. Por sua vez, sob uma outra compreensão da política pública, Secchi (2016) considera como seu elemento essencial o problema público. Desta forma, a política pública poderia ser uma ação do Estado ou, também, de outras entidades de interesses privados, voltada para a coletividade ou para um determinado grupo, com o fim de solucionar, enfrentar ou mesmo diminuir um determinado problema público. O problema público, entendido como a própria finalidade da política pública, é a diferença entre aquela situação que se tem atualmente, dentro do recorte daquele elemento temporal e histórico, e a situação ideal possível para determinada realidade pública (SECHI, 2013); a conceituação perpassa, também, pela compreensão de que o caráter público do 27 problema deve envolver os atores políticos e, ainda, de relevância para a coletividade (SECHI, 2013). Referidos problemas públicos podem ser vários, assim como as políticas públicas podem ser encontradas em diversas áreas, como saúde, educação, transporte, meio ambiente, dentre outros setores da sociedade. Por isso, a importância de que o problema público seja identificado, para que assim possam ser tomadas as medidas necessárias para seu enfrentamento. A identificação do problema é apenas uma das fases da política pública. O chamado ciclo de políticas públicas, que é o esquema que organiza seu processo de elaboração, envolve a (1) identificação do problema, (2) formação da agenda, (3) formulação de alternativas, (4) tomada de decisão, (5) implementação, (6) avaliação, e, (7) extinção (SECCHI, 2013). Para fins do presente trabalho, a pesquisa se insere no contexto de análise da política pública, frente a uma situação atípica, imprevisível e extraordinária, da qual se pretende sejam identificados seus impactos sobre o acesso à política e sua eficiência. Trata-se de uma análise da política pública porque, conforme ressalta Rua (2009), tem como objetivo a identificação dos problemas com que se deparou, sendo a presente pesquisa voltada, também, para a busca de soluções, a fim de auxiliar na eficiência da política pública ora analisada. Tem-se, aqui, uma central preocupação não só com o conteúdo da política pública em si, mas também com o seu processo de construção, que permite a determinação de características dessa política, bem como a reflexão sobre a priorização dos problemas a serem tratados, em conformidade com o que defendem os estudiosos Serafim e Dias (2012). Segundo eles, a análise da política pública permite uma visão descritiva, que aponta o que ela é e como é, bem como uma visão explicativa e normativa, que define o porquê da política pública ser como é, e, também, como ela deveria ser. Esta é a razão pela qual se aborda, neste trabalho, todo o processo de criação da política pública analisada, bem como se identifica o problema público que a originou, para que se possa entender, no presente, o quanto ela foi afetada e modificada pela pandemia da covid-19, e quais os reflexos que essa mudança trouxe para seu funcionamento e eficiência. 2.2 O Judiciário e as políticas judiciárias Na história brasileira, o papel desenvolvido pelo Poder Judiciário, quando ainda não dotado de independência, se restringia à resolução de conflitos. Como enfatiza Boaventura 28 Souza Santos (1996), os tribunais possuíam como dependências a lei; a vontade dos cidadãos em acioná-los; e, a dependência orçamental dos poderes Executivo e Legislativo. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, surge a independência e a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário, que passa a assumir poder político, responsabilizando-se perante a sociedade na promoção da justiça social (CASTRO, 2000); como um poder que se localiza ao lado do Executivo e do Legislativo. Além disso, o Judiciário passa a representar uma alternativa para alcançar os direitos face ao novo marco constitucional (SANTOS, 2007), diante de uma população que exigia cada vez mais direitos e justiça (LIMA; CRUZ, 2011). É o próprio texto constitucional que elege a função do Poder Judiciário como sendo destinada à solução dos conflitos, conforme redação do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 1988). Montesquieu (1962) apud Nogueira (2010), quando trata da tripartição dos poderes do Estado (Executivo, Legislativa e Judiciário), lembra que a independência do Poder Judiciário é o que poderia garantir a ele a liberdade de julgar. Ou seja, quando ele pode tomar decisões de forma livre, sem interferências políticas ou pressões diversas. No entanto, conforme ressalta Renault (2005), diante de todas as instituições do Estado, o Poder Judiciário foi aquele que, até então, havia se modernizado menos, seja em razão da falta de recursos para se desenvolver, seja pela falta de compreensão de seu papel importante na sociedade como garantidor da cidadania. O que muda este cenário é a instituição do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como um instrumento para concretizar um Poder Judiciário forte e eficiente, porque atuante como um órgão de controle, tendo como principal função o planejamento estratégico. Referido órgão é instituído através da Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, que acrescentou ao artigo 92 da Constituição Federal o inciso I-A, elegendo-o como órgão oficial do Poder Judiciário, cujas competências também vieram expressamente normatizadas: (i) controle da atuação administrativo do Poder Judiciário; (ii) controle da atuação financeira do Poder Judiciário; e, (iii) controle do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (BRASIL, 1998). Neste sentido, o Conselho Nacional de Justiça é um órgão de atuação nacional, composto de 15 (quinze) membros (BRASIL, 1998), sendo que seus integrantes são de vários segmentos do Judiciário, como o Ministério Público, bem como representantes da advocacia e também da sociedade civil. Dentre suas competências, fixadas em complemento ao texto 29 constitucional pelo seu Regimento Interno, está a elaboração das chamadas “políticas judiciárias” ou “políticas públicas judiciárias”. Uma de suas funções principais é definir e fixar o planejamento estratégico, que abrange, por exemplo, os planos de metas e os programas de avaliação institucional do Poder Judiciário, “visando ao aumento da eficiência, da racionalização e da produtividade do sistema, bem como ao maior acesso à justiça”, conforme inciso XIII do artigo 4º da Resolução nº 67, de 03 de março de 2009. As políticas judiciárias atribuídas ao CNJ visam, justamente, promover esse planejamento a respeito do acesso à justiça e o fomento às boas práticas de prestação jurisdicional, ou seja, do próprio Judiciário. As políticas judiciárias se enquadram na percepção das políticas públicas porque envolvem além de diretrizes estratégicas, diretrizes também intermediárias e operacionais, consideradas na análise da política pública como sendo os programas, planos e projetos que envolvem a estruturação da política. Quem defende esta ideia de política pública é Secchi (2014), que as vê tanto como macrodiretrizes estratégicas, que respondem por políticas de Estado e sociedade global, como diretrizes intermediárias e operacionais, relacionadas, entre outras, às políticas administrativas. No contexto do CNJ, as políticas são o que balizam toda a atuação dos órgãos por ele controlados. Cada uma, no entanto, terá aspectos diferentes, seja a nível estratégico, seja intermediário ou operacional, como aquelas de caráter apenas normativo. Ressalte-se quanto a esta discussão, que o próprio CNJ, na Resolução nº 221, de 10 de maio de 2016, previu que “as políticas judiciárias têm origem em estudos e análises técnicas do CNJ a respeito das demandas de aperfeiçoamento do Poder Judiciário”, conforme artigo 6º; ou seja, definiu-se como políticas judiciárias àquelas originadas dos estudos e levantamentos do CNJ, comprovando-se nesse aspecto a estreita relação e importância estabelecida entre as políticas judiciárias e o órgão em questão. Em uma dessas iniciativas do CNJ está a criação da Estratégia Nacional do Poder Judiciário, atuante como um instrumento de gestão responsável para orientar, justamente, o desenvolvimento das políticas judiciárias. A Estratégia para o sexênio de 2021-2026, que ainda está vigente, por meio da Resolução nº 325, de 29 de junho de 2020, traz o conceito de “política judiciária nacional” como sendo uma “política instituída pelo CNJ, de caráter contínuo ou de vigência determinada, que impulsione o desenvolvimento pelos órgãos do Poder Judiciário de programas, projetos ou ações voltadas à efetivação da Estratégia Nacional do Poder Judiciário”. 30 Referida Resolução normativa ainda elenca como objetivo da Estratégia Nacional do Poder Judiciário a apresentação de políticas judiciárias pelo CNJ, conforme inciso III do artigo 17, assim como reforça que a execução do planejamento consistirá na implementação de políticas judiciárias nacionais e de programas, projetos e ações dos órgãos do Poder Judiciário, consoante artigo 7º. Mas em que realmente consistem essas políticas judiciárias? As políticas judiciárias discutidas no âmbito do CNJ estão diretamente relacionadas com as Metas Nacionais do Poder Judiciário, que são estabelecidas anualmente desde 2009, e representam o compromisso dos tribunais brasileiros com a prestação jurisdicional, para um Judiciário idealizado como mais célere, eficiente e de qualidade (CNJ, 2020). Tais metas são também tratadas como macrodesafios, porque trazem a atenção para as necessidades mais emergentes do Judiciário. Um exemplo desses macrodesafios pode ser observado das Metas Nacionais do sêxtuplo de 2015-2020, em que um de seus objetivos era “integrar a Agenda 2030 ao Poder Judiciário”, que tinha como foco os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU. Isso porque um dos objetivos da Agenda 2030 (objetivo 16) reside, justamente, em: (i) promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, (ii) proporcionar o acesso à justiça para todos e (iii) construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis (ODS, 2022). Dentro desse único objetivo tomado de exemplo se encontram vários desafios para o Poder Judiciário e suas políticas judiciárias. Um dos desdobramentos desse objetivo, que tem estreita relação com o Judiciário, é a promoção do Estado de Direito, em nível nacional e internacional, e garantia de igualdade de acesso à justiça para todos (ODS, 2022); termos estes amplos e genéricos que desafiam a elaboração e implementação dessas políticas judiciárias. Além disso, outra meta que se mostra interessante para fins da pesquisa está relacionada com o estímulo da conciliação (meta 3), cujo principal objetivo é potencializar a desjudicialização (ou seja, a não judicialização dos conflitos) através de formas alternativas de solução de conflitos; é o que se denomina de solução pacífica, autocompositiva e célere dos litígios (CNJ, 2020). Para o ano de 2022, referida meta se manteve hígida. Com efeito, uma vez definida a importância das políticas judiciárias e do papel desenvolvido pelo Poder Judiciário, sobretudo através de seu órgão de controle (CNJ), que muito mais do que um órgão de mero controle, tem o objetivo de desenvolver planejamentos estratégicos e implementar políticas que proporcionem uma prestação jurisdicional mais eficiente e de qualidade. 31 2.3 O acesso à justiça e crise do Judiciário É próprio da convivência em sociedade a conciliação de interesses entre as pessoas e a resolução de seus conflitos. Se por ventura não existisse o conflito, não haveria a preocupação do Estado em desempenhar sua função de solucionar os conflitos, aplicando a cada situação colocada à apreciação do Poder Judiciário a legislação correspondente. Por isso, pode-se afirmar que é a existência dos conflitos entre as pessoas que dá legitimidade ao que se chama de poder jurisdicional, cujo exercício necessariamente deve ser realizado por um órgão que se encontre acima dos interesses em discussão, dotado de imparcialidade e do qual emana o poder estatal. Conforme destaque feito por Carnelutti (2000): O germe da discórdia é o conflito de interesses. Quem tem fome, tem interesse em dispor do pão com que se saciar; se são dois os que têm fome, e o pão não é suficiente mais do que para um, surge o conflito entre eles. Conflito que, se tais pessoas forem não civis, se converte uma luta: em virtude desta, o mais forte se sacia e o outro continua com fome. Pelo contrário, se fossem inteiramente civis ou civilizados, dividiriam entre si o pão, não conforme suas forças, mas de acordo com suas necessidades. Mas pode se dar também um estado de ânimo do qual não surge a luta, mas do qual possa surgir de um momento para o outro: um daqueles que quer todo o pão para si e o outro se opõe para isso. Uma tal situação não é ainda a guerra entre ambos, mas contém em potência, pelo que se compreende que alguém ou algo deva intervir para evitá-la (CARNELUTTI, 2000, p. 47-48). A tutela jurisdicional nada mais é do que um sistema de proteção para solução dos conflitos, baseado na existência de três principais elementos: (i) composição de um litígio, ou seja, de um processo judicial, (ii) participação dos envolvidos, e, (iii) manifestação da autoridade estatal. Como bem destaca Bueno (2014), a tutela jurisdicional deve ser entendida como a proteção que o Estado deve prestar naqueles casos em que ele, o próprio Estado, proibiu a justiça pelas próprias mãos. Assim, a tutela jurisdicional manifesta-se como sendo a contrapartida garantida pelo Estado de atribuir direitos aos seus titulares de acordo com a necessidade desta atribuição por determinada razão. As hipóteses de autotutela, na qual os próprios indivíduos realizam a defesa de suas pretensões, assim como os meios alternativos de soluções de conflitos, tais como conciliação, mediação e arbitragem, não integram a concepção de tutela jurisdicional, visto que o conceito desta está interligado com a atuação do Estado-Juiz. Para fins deste trabalho, o conceito que mais interessa é justamente aquele não que envolve a atuação do Estado-Juiz, como ocorre com relação aos meios alternativos de solução de conflitos, que serão melhor tratados ao longo do capítulo. 32 A atribuição do Estado de solucionar os conflitos, como já mencionado, decorre de texto constitucional expresso, que muito mais do que estabelecer a função de resolver disputas conflituosas ao Poder Judiciário, consagra o acesso à justiça como garantia dos cidadãos. Este acesso à justiça é justamente o direito que cada indivíduo tem de, por exemplo, se socorrer ao Judiciário para obter uma resposta/decisão. No entanto, o conceito de acesso à justiça sofreu modificações ao longo dos anos. Conforme 2explica Cappelletti e Garth (1999), nos séculos dezoito e dezenove, por exemplo, a solução dos litígios estava voltada para uma percepção individualista dos direitos; representava apenas o direito formal do indivíduo de ingressar com um processo. Nesta época, não era uma preocupação do Estado que todos as pessoas tivessem acesso a seus direitos; por isso que Cappelletti e Garth (1999, p. 9) propõe a reflexão de que “o acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva”. Com o desenvolvimento das sociedades, começou a se discutir mais sobre os direitos humanos, e junto com essa discussão veio a percepção de que os direitos não poderiam mais ser tratados apenas de forma individual, porque muitas vezes afetavam a própria coletividade. Segundo Cappelletti e Garth (1999), essa fase do conceito de acesso à justiça possibilitou o reconhecimento dos direitos sociais, como direito ao trabalho, saúde, seguridade social, dentre outros, trazendo a percepção de que a atuação positiva do Estado é que poderia assegurar o gozo de todos esses direitos. Em outras palavras, o acesso à justiça, nesta fase, não é mais visto como um mero “proclamador dos direitos de todos”, mas também como garantidor de tais direitos (CAPPELLETTI; GARTH, 1999, p. 12). Essas fases do acesso à justiça são denominadas de ondas renovatórias e foram desenvolvidas por Carnelutti e Garth, e se relacionam (1) com a defesa e promoção de mecanismos de apoio às pessoas carentes (como através da assistência judiciária gratuita); (2) defesa judicial dos interesses difusos e coletivos; e, (3) expansão da concepção de resolução de conflitos para além dos tribunais, que se convencionou denominar de resolução alternativa de litígios (ADR). Esta última onda (terceira onda) propõe que os conflitos sejam resolvidos através de métodos adequados; por isso se diz que esta fase do acesso à justiça visa o enfrentamento dos aspectos processuais, em que “a solução normal – o tradicional processo litigioso em Juízo – pode não ser o melhor caminho para ensejar a vendição efetiva de direitos” (CAPPELLETI, 1994, p. 87). As diferenças entre os litígios, ou seja, a multiplicidade de conflitos nas suas mais diversas complexidades é o que dá ao acesso à justiça um novo enfoque na obra clássica de 33 Carnelutti e Garth. O desafio nesta terceira onda é procurar encorajar reformas dos mais diversos aspectos, a fim de evitar processos judiciais, ou, ainda, facilitar a solução deles mediante a utilização de mecanismos privados ou informais de resolução dos conflitos (CAPPELLETTI; GARTH, 1999). Nesta perspectiva, o Judiciário deixa de ser a única alternativa para se alcançar o acesso à justiça, e passa a ser mais um dos importantes instrumentos que irão contribuir para que esse acesso ocorra. Porém, isso implica necessariamente em uma mudança de mentalidade, já inclusive prevista por Cappelletti e Garth (1994), segundo os quais a conscientização da sociedade moderna deveria ser proposta para que ela encontre motivos para optar pelos meios alternativos de solução de conflitos. Na visão dos tribunais de justiça, o conceito de justiça ainda tem significado voltado para a aplicação de regras formais. No entanto, o novo enfoque do acesso à justiça tem por aspecto principal a reflexão acerca da justiça social, que não está relacionada com a simples aplicação de normas aos processos judiciais; justiça social é, pois, a busca de procedimentos que sejam conducentes à proteção dos direitos das pessoas comuns. Mas qual a origem dessa preocupação em oportunizar métodos alternativos para resolução dos conflitos, frente à uma história marcada como o Estado sendo agente centralizador da justiça e garantidor desse acesso? Essa pergunta pode ser respondida com a percepção da crise da administração da justiça. Sadek e Arantes (1994) descrevem a crise do Judiciário na sociedade brasileira a partir de três dimensões: (i) institucional, que está relacionada com a posição do Judiciário na separação dos poderes (tripartição); (ii) estrutural, referente à organização burocrática e carência de recursos humanos e materiais; e, (iii) a crise relativa aos procedimentos excessivamente formalistas, que contribuem para a morosidade do trabalho da justiça. Estudiosos mais recentes, como Calmon (2019), ressalta que a crise envolve variados fatores, [...] desde a existência de uma massa de conflitos represada pelos obstáculos econômicos, sociais, políticos e jurídicos ao acesso à justiça, até a baixa qualidade do serviço judicial, destacando-se a necessidade de se oferecer o serviço justiça da forma mais ampla possível, com a utilização dos diversos mecanismos desenvolvidos para essa finalidade (CALMON, 2019, p. 03). Tratando especificamente da percepção da sociedade sobre o Judiciário, a pesquisa desenvolvida pelo Fundação Getúlio Vargas (FGV), feita mediante levantamento estatístico em sete estados brasileiros (quais sejam, Amazonas, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Distrito Federal), demonstra através do índice de 34 confiança na Justiça Brasileira (ICJBrasil) a opinião da população em relação ao Judiciário Brasileiro. No último relatório disponível, referente às coletas realizadas entre novembro de 2020 e janeiro de 2021, verifica-se que apenas 40% da população brasileira confia no Poder Judiciário. Gráfico 1. Índice de confiança nas instituições Fonte: adaptado de Relatório ICJBrasil 2021 Para chegar a esse percentual, os entrevistados emitem sua opinião sobre 08 (oito) aspectos relevantes do Judiciário, que dizem respeito (i) à confiança; (ii) à rapidez na solução dos conflitos; (iii) aos custos do acesso; (iv) à facilidade no acesso; (v) à independência política; (vi) à honestidade; (vii) à capacidade para solucionar os conflitos levados a sua apreciação; e (viii) ao panorama dos últimos cinco anos (ICJBRASIL, 2021). Nota-se que esses aspectos tem estreita relação com os fatores que os estudiosos dizem ter contribuído para a crise Judiciária. Esse índice, no entanto, sempre oscilou, e no período de 10 (dez) anos nunca chegou ao patamar representativo de 50% (cinquenta por cento) de confiança da população, como é possível perceber do gráfico abaixo: Partidos políticos Congresso Nacional Redes sociais Presidência da República Sindicatos Emissoras de TV Igrejas evangélicas Poder Judiciário Polícia Ministério Público Imprensa escrita Grandes empresas Igreja Católica Forças Armadas 6% 12% 19% 29% 32% 34% 38% 40% 44% 45% 47% 49% 53% 63% 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 35 Gráfico 2. Evolução da confiança no Poder Judiciário Fonte: adaptado de Relatório ICJBrasil 2021 Embora o índice de confiança no Poder Judiciário ainda seja maior que o Congresso Nacional (Poder Legislativo) e o Presidente da República (Poder Executivo), como apontado no gráfico, os valores de desconfiança ainda são muito baixos em relação a países como os Estados Unidos, em que o índice de confiança alcança o patamar de 69% (GALLUP, 2020). Outro dado interessante ainda quanto ao tema está relacionado com a pesquisa desenvolvida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), FGV e Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (IPESPE), que mensuraram no ano de 2019 a percepção de funcionamento do Judiciário pela sociedade, os advogados e os defensores públicos. Nesta pesquisa, é possível verificar que mais da metade dos entrevistados (54%) consideram o funcionamento do Judiciário como sendo “mal” ou “muito mal”; e apenas 37% avaliam como “muito bem” e “bem”. Gráfico 3. Avaliação do funcionamento do Judiciário - 2019 Fonte: adaptado de Estudo da Imagem do Judiciário Brasileiro 2019 Índice de confiança 2011 2013 2015 2017 2021 4 7 % 2 9 % 3 2 % 2 4 % 4 0 % Muito bem e bem Muito mal e mal Não souberam responder ou não responderam 70% 60% 59% 54% 52% 50% 42% 40% 37% 39% 30% 20% 10% 9% 6% 2% 0% Sociedade Advogados Defensores Públicos 36 O descontentamento apresentado relaciona-se muito com o sentimento das pessoas em relação à própria atuação do Judiciário, ou seja, do próprio serviço por ele prestado. Outro levantamento feito no estudo em questão, por exemplo, conseguiu identificar quais as principais razões que desmotivariam as pessoas que buscarem o Poder Judiciário para solução de seus problemas. A razão que mais se destaca na pesquisa está relacionada com a lentidão do Judiciário e a burocracia que muitas vezes dificulta a utilização do serviço. Gráfico 4. Razões que mais desmotivam as pessoas de buscarem o Judiciário - 2019 A justiça é muito lenta e burocrática 64% Só favorece quem tem dinheiro e poder 28% Não é eficiente, os casos não são resolvidos 20% Penas muito leves para os culpados 19% Pouca informação sobre como ter acesso e o que fazer 15% As custas são altas 14% As decisões não são justas, não são imparciais 14% Dificuldade/demora em receber indenização 11% Não gosta de se envolver com a justiça 5% Não souberam responder ou não responderam 3% Fonte: adaptado de Estudo da Imagem do Judiciário Brasileiro 2019 O problema da Justiça envolvendo o congestionamento de processos junto aos Tribunais, que está relacionado com a lentidão da Justiça percebida pela sociedade, é apenas uma das questões estruturantes da crise do Judiciário, tendo raízes históricas na própria promulgação da Constituição Federal vigente. Como ressalta Said Filho (2017), a quantificação dos processos submetidos ao Judiciário é decorrência da própria democratização das relações sociais; com o reconhecimento dos direitos sociais surgem atores novos dessas relações, proporcionando que grupos diversos e diferentes classes sociais pudessem ser protagonistas de disputas. O aumento quantitativo das demandas também é resultado de uma exigência por direitos que até então não eram protegidos ou garantidos, nem mesmo políticas sociais eram oferecidas. Mas é claro que essa percepção de “maior” acesso à justiça não reflete a realidade de toda a sociedade. Santos (2007), inclusive, fala da ideia de “procura suprimida” para designar a demanda dos cidadãos que possuem consciência de seus direitos, porém se sentem impotentes de reivindicá-los. 37 Não é filantropia, nem a caridade das organizações não governamentais que procuram; apenas reivindicam seus direitos. Ficam totalmente desalentos sempre que entram no sistema judicial, sempre que contatam com as autoridades [...]. Esses cidadãos intimidados e impotentes são detentores de uma procura invisibilidade. [...] é uma ausência que é socialmente produzida, algo ativamente construído como não existente. A procura de direitos da grande maioria dos cidadãos das classes populares deste e de outros países é procura suprimida (SANTOS, 2007. p. 23-24). O acesso à justiça proposto por Cappelletti e Garth (1994) com base no novo enfoque a ele dado, representaria, nesta ideia, uma tentativa de se proporcionar uma dimensão social do Estado; é uma filosofia que aceitaria remédios e procedimentos alternativos para também fazer jus à representação e informação dos mais pobres, em uma tentativa de tornar a justiça cada vez mais equitativa e acessível. Passa-se a entender, neste momento, a relevância social desse acesso à justiça, que deve alcançar todas as classes sociais, bem como todos os segmentos da sociedade, indistintamente, e oferecer meios adequados de resolução dos conflitos, por isso, a ideia de métodos alternativos ao tradicional litígio judicial. 2.4 A política conciliatória Conforme já discutido, a concepção dos métodos alternativos de solução de conflitos surge num contexto de crise do Judiciário, e da necessidade de se proporcionar o acesso à justiça cada vez mais célere, com maior participação dos envolvidos, e de forma menos burocrática. De acordo com Didier Júnior (2015 p. 165), a autocomposição é justamente essa “solução do conflito pelo consentimento espontâneo”, “é a solução altruística do litígio”; é o “legítimo meio de alternativo de pacificação social”. Ou seja, a autocomposição é a solução pacífica do conflito pela vontade dos próprios interessados, que surge a partir da iniciativa dos próprios envolvidos em se compor amigavelmente, além de ser realizada por elas própria, muito vezes por intermédio da participação de um terceiro. Na história do Brasil, desde o século XIX, já se podia afirmar existir na legislação brasileira essa preocupação com a consensualidade dos conflitos, pois a Constituição de 1824 proibia fossem ajuizadas ações sem que antes houvesse a tentativa prévia de uma “reconciliação”. A disposição legal era clara: “sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará processo algum” (BRASIL, 1824). Essa reconciliação era feita pelos denominados Juízes de Paz. 38 Pouco tempo depois, mediante Decreto de 17 de novembro de 1824, passou-se a exigir a conciliação como etapa prévia ao ajuizamento do processo, inclusive, nas províncias que não possuíam Juízes de Paz constituídos. O interessante é que a justificava para tal Decreto foi justamente a solicitação das pessoas mais necessitadas, que diante de suas condições financeiras precárias, não podiam se utilizar do litígio judicial. De acordo com o próprio Decreto, a impossibilidade de utilização dos meios ordinários dos processos era decorrente não somente de incômodos, gravosos e tardios, mas também pelas grandes distâncias que os mais pobres tinham que percorrer para chegar à localidade da Justiça competente (BIBLIOTECA NACIONAL, 1886). Alguns anos depois, através do Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850, que regulava os processos de natureza comercial, dedicou um capítulo inteiro somente para tratar da conciliação, mantendo-se a obrigatoriedade da tentativa prévia de conciliação. Na época do Brasil República, especificamente em 1890, porém, muito influenciado pelas ideias de fortalecimento do papel do Juiz, a obrigatoriedade da conciliação prévia é derrubada, passando, agora, a ser uma faculdade, dependendo, pois, da vontade das partes em participar ou não desse tratamento de conflito, como é possível perceber do Decreto nº 359, de 26 de abril de 1890. O primeiro Código de Processo Civil só foi editado no Brasil em 1939, e como primeira legislação sobre normas processuais civis, não continha nenhum dispositivo que estimulasse entre as partes a autocomposição. Na Justiça do Trabalho, no entanto, o incentivo à conciliação era mais evidente. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943 previa a criação um órgão específico destinado à composição amigável, denominado de Junta de Conciliação e Julgamento (BRASIL, 1943). Legislações posteriores do mesmo século XX começaram, novamente, a prever em casos específicos, como de divórcio e a ação de alimentos, essa necessidade da realização de conciliação entre as partes como uma fase preliminar do litígio. É o caso da Lei nº 968, de 10 de dezembro de 1949 e da Lei nº 5.478, de 25 de julho de 19688. O Código de Processo Civil de 1973, que revogou aquele editado em 1939, por outro lado, passou a prever as “audiências de conciliação” nas causas de valor até 60 (sessenta) salários mínimos; nas causas acima desse valor, a conciliação seria tentada pelo Juiz no início da realização da audiência de instrução e julgamento. Em 1984 surgem os Juizados Especiais de Pequenas Causas, através da Lei nº 7.244, que institui como um de seus princípios basilares, justamente, a conciliação das partes. E é a partir da Constituição Federal de 1988 que esse cenário sofre ainda mais avanços, com várias modificações legislativas a respeito do tema. 39 No ordenamento jurídico brasileiro atual, se considera que seu sistema de normas foi estruturado para estimular a autocomposição, cujas espécies são a transação, na qual os envolvidos fazem concessões mútuas para resolver o conflito; e a submissão, na qual um dos conflitantes acaba por se submeter à pretensão do outro de forma voluntária, de modo a abdicar de seus próprios direitos (DIDIER, 2015). Além dessas espécies, as modalidades de autocomposição também são definidas em duas: a induzida, que é aquela em que se chega à composição através de uma terceira pessoa, denominada como conciliador ou mediador, e a espontânea, que é desenvolvida pelas próprias partes, sem intermediação de outra pessoa (DINAMARCO, 2005). Quando estudiosos como Didier Júnior (2015) considera como existente atualmente, inclusive, um princípio de estímulo da solução por autocomposição, ele assim o faz com fundamento em uma grande evolução normativa, que passou a reforçar a participação dos cidadãos no exercício do poder de solucionar litígios por eles próprios, possuindo, por esta razão, forte caráter democrático. A contribuição que existe hoje a respeito da política conciliatória, para muitos estudiosos é visto com positividade, podendo ser listadas como vantagens: [...] a) o custo financeiro do processo (taxas judiciárias, honorários de advogados, perícias, etc); b) a excessiva duração dos trâmites processuais, que muitas vezes causa a diluição da utilidade do resultado final; c) o necessário cumprimento das formas processuais, com a irracional tendência de muitos a favorecer o formalismo (DINAMARCO, 2005, p. 143). Watanabe (2012, p. 89) faz uma ressalva importante acerca do assunto, no sentido de que tais meios consensuais de conflitos não podem ser utilizados ou estimulados simplesmente com o objetivo principal de solucionar a morosidade da justiça, ou mesmo reduzir a quantidade de litígios judiciais. Deve ser, antes de qualquer eventual consequência, uma solução adequada a justa aos conflitos, de modo a proporcionar “uma forma mais ampla e correta de acesso à justiça”. Neste mesmo sentido, Bacellar (2011) entende que a justiça verdadeira só pode ser concebida através do consenso, na medida em que se busca a pacificação social do conflito; a paz não é alcançada mediante a resolução de parte do problema (controvérsia), mas quando a todas as questões que envolvem o conflito são solucionadas. O conceito de sistema multiportas ou Tribunal multiportas, surge com o professor estadunidense Frank Sander no ano de 1976, visando, justamente, apresentar alternativas para se solucionar os conflitos, a fim de proporcionar soluções congruentes às peculiaridades de cada caso de forma mais efetiva, célere e econômica. 40 De acordo com Sander (2000), o estabelecimento de um sistema multiportas de solução de conflitos pressupõe quatro bases fundamentais. A primeira está relacionada com a institucionalização dos meios alternativos de solução de conflitos. A segunda com a escolha do método que será adotado, a partir da atuação de um expert. A terceira é adequação da formação dos profissionais que irão manejar o conflito. A quarta e última é a existência de uma política pública que irá conscientizar sobre os benefícios de se adotar os meios alternativos, além da adequação da destinação de recursos, e economia a ser gerada no sistema judiciário com o incentivo à utilização de tais métodos alternativos. Neste sentido, os principais objetivos dos meios alternativos de resolução de conflitos seriam: [...] diminuir o número de processos e as despesas nos Tribunais, reduzir as despesas e o tempo para as partes, fornecer solução rápida aos litígios que possam gerar males à comunidade ou à vida das famílias das partes envolvidas, aumentar a satisfação pública para com o Sistema Judiciário, incentivar a adoção das soluções que foram adaptadas às necessidades das partes, aumentar o cumprimento voluntário das soluções, restaurar a influência dos valores de vizinhança, comunitários e proporcionar a coesão da comunidade, fornecer fóruns acessíveis às pessoas envolvidas em conflito, e ensinar o público a utilizar os meios/processos mais eficazes ao invés da violência ou da litigância para resolver seus conflitos (GOLDBERG; SANDER; ROGER; COLE, 2007, p. 8). No Brasil, entende-se que as discussões a respeito da aplicabilidade dessa teoria do Tribunal multiportas iniciou-se com a Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, que incluiu na Constituição Federal o inciso LXXVIII, garantindo a todos o direito à razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Outro marco ocorrido na mesma época é a criação do CNJ, que como já ressaltado, é responsável pela gestão do Judiciário. A política pública sobre os meios alternativos de solução de conflitos, mencionada por Frank Sander também foi desenvolvida no Brasil, porém, mais recentemente, através da Resolução CNJ nº 125/2010, que institui a política judiciária nacional de tratamento dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, que será melhor tratada no tópico seguinte. Mais recentemente, com a Lei nº 13.105/2015, mais conhecida como Código de Processo Civil de 2015, bem como com a Lei nº 13.140/2015, conhecida como Lei de Mediação, diversas normas neles introduzidas concretizam essa política conciliatória. Logo na Parte Geral, Livro I, do Código de Processo Civil, que trata das normas fundamentais do processo civil, já existe norma prevendo que o Estado deve promover a solução consensual dos conflitos, sempre que possível (artigo 3º, §2º), além, ainda, de impor 41 como dever dos juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, estimular a conciliação e a mediação, e outros métodos consensuais, inclusive, no curso do processo judicial (artigo 3º, §3º). Além disso, o Código Processual Civil inovou ao prever uma audiência prévia, destinada à tentativa de conciliação/mediação, realizada antes da apresentação da defesa pelo réu, e que tem caráter obrigatório, somente não sendo realizada quando ambas as partes conflitantes manifestarem o desinteresse na autocomposição, ou, ainda, quando o caso não admitir a autocomposição (artigo 334, §4º, incisos I e II). A seriedade da norma e do quanto nela previsto é reforçada pelo §8º do art. 334 do Código, pela imposição de multa por ato atentatório à dignidade da justiça quando o autor ou réu não comparecerem de forma injustificada na audiência, cuja penalidade pecuniária pode alcançar até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, em proveito da União ou do Estado. Ao todo, conforme ressalta Tartuce (2017), a mediação é mencionada em 39 dispositivos, a conciliação em 37, a autocomposição em 20, bem como a solução consensual em 7, num total de 103 previsões. A Lei de Mediação, neste sentido, buscou trazer regulamentação à técnica, sendo considerada um marco legal, porque dedicada exclusivamente ao meio consensual, inovando no âmbito normativo ao regular não só a mediação judicial, mas também a mediação extrajudicial (TARTUCE, 2016). As raízes de tais normas estão, também, na política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos, sendo um efeito dela, haja vista a importância dado ao tema quando de sua criação, e também de sua implementação. 2.5 Dos meios alternativos de solução de conflitos 2.5.1 Aspectos gerais A institucionalização dos métodos alternativas de solução de conflitos no Brasil, conforme reconhece Silva (2021), parte essencialmente de uma crítica à demora na resolução dos conflitos judiciais, bem como ao alto custo da jurisdição estatal. E isso não é apenas uma constatação teórica. Em discursos promovidos pelo país, especialmente por ministros do Superior Tribunal de Justiça, o incentivo às soluções alternativas vem respaldado em um 42 discurso que envolve, necessariamente, o número reduzido de magistrados e o aumento do número de processos judiciais. Cite-se, como exemplo, o discurso do ministro Humberto Martins em seminário promovido pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no qual discutiu a importância de mudança da cultura da mediação judicial frente ao excesso de ações judiciais que sobrecarregariam o Judiciário (ANDRADE, 2018). Todos esses são problemas nitidamente institucionais, o que permite concluir que a política judiciária foi criada para solucionar a crise do Judiciário, ou seja, para tentar solucionar um problema institucional. O acesso à justiça e a busca pela solução dos conflitos por meio da participação ativa das partes conflitantes mostram-se como aspectos, aparentemente, secundários; são reflexos do que a adoção da técnica pode gerar, mas não são os aspectos principais ou elementares da política tratada. Como bem ressalta Mello e Neto (2000), a celebração de acordos acabar por trazer ganhos secundários à administração da Justiça, uma vez que promove (i) o encerramento de processos; contribuindo para o desafogamento do Judiciário; e, (ii) evita a fase de execução da sentença dos processos, que é morosa e dificultosa. Neste mesmo sentido ressalta Grinover (2008), para quem o fundamento dos meios consensuais está no eficientismo, que em razão da crise do Poder Judiciário, pretende a racionalização da distribuição da Justiça, com a redução do número de demandas judiciais. Contudo, embora tais fatores estejam presentes nos métodos de solução alternativa de conflitos, é preciso ressaltar a vantagem primária da solução negociada, que “é o atendimento à reivindicação justa do litigante. Assim, a transação deve, fundamentalmente, atender aos interesses dos litigantes, e não dos advogados ou juízes” (MELLO; NETO, 2000, p. 67). Como enfatiza Lorencini (2021), os métodos alternativos de solução de conflitos envolvem o empoderamento das partes, que permite que o conflito não seja entregue a uma terceira pessoa (no caso, o juiz), mas sim seja resolvido espontaneamente entre as próprias partes conflitantes. Nos métodos alternativos, é possível, com maior ou menor grau de liberdade, escolher o método, seu funcionamento, a lei aplicável, o procedimento e até o terceiro encarregado de encaminhar ou solucionar o conflito; em suma, é possível construir a solução. [...] Daí o lugar-comum de que os métodos alternativos contribuem para o empoderamento, já que ninguém sair o mesmo depois de passar por um conflito, como também a solução de um conflito tem a capacidade de transformar e empoderar uma pessoa (LORENCINI, 2021, p. 61). Como bem relembra Cappelletti (1994), os conciliateurs, por exemplo, que são caracterizados como particulares (não são juízes) nomeados pelo presidente do Tribunal, 43 responsáveis por se encontrarem com as partes e verificar a possibilidade de realização de acordo, foram introduzidos em toda a França desde 1978. Outra instituição francesa, o médiateur, surge de um projeto de 1990, através do qual as partes em Juízo são remetidas ao auxiliar do juiz (médiateur), que assume a função mediadora, visando, logo no início do processo, promover um acordo (CAPPELLETTI, 1994). Já no Brasil, a primeira iniciativa que se teve a respeito do modelo europeu da mediação ocorreu em 1998, com o projeto de lei nº 4.827, porém, somente se institucionalizou no ordenamento jurídico brasileiro com a recente Lei de Mediação, datada de 2015. A comparação é pertinente porque demonstra não só a demora no reconhecimento da importância de tais métodos no Brasil, mas também respalda a conclusão de que, no Brasil, foi necessário primeiro reconhecer a necessidade de se utilizar de tais sistemas para amenizar o problema do assoberbamento de demandas judiciais, para somente após reconhecer sua importância como instrumento eficaz e democrático de acesso à justiça. Mas não só a mediação foi institucionalizada no país, como também outros métodos alternativos de conflitos, que auxiliam no processo longo de mudança de cultura da judicialização para a cultura de pacificação social. 2.5.2 Da negociação O conceito da negociação, assim como de outros termos, também passou por uma evolução histórica. Baseado na ideia do conflito de interesses e, muitas vezes, na ideia de judicialização, no qual se tem uma parte que ganha e a outra que perde, por muito tempo a negociação também foi atrelada à essa concepção. Esse modelo de negociação baseado na concepção de disputa é denominado de negociação competitiva (GABBAY, 2021), de modo que cada um defende individualmente seu interesse próprio, sem se preocupar com concessões ou, mesmo, com o objetivo maior da negociação, que é a formalização do acordo. Outra forma de negociação é a chamada negociação colaborativa, que tem como escopo principal a relação entre as partes e o esforço conjunto, a fim de buscar uma solução mais vantajosa para ambas as partes (GABBAY, 2021). Nos Estados Unidos, a negociação tomou um novo enfoque quando da criação do método de negociação baseada em princípios, desenvolvida pelo Projeto Negociação de Harvard, que sugere que as partes envolvidas busquem ganhos mútuos, e que, havendo conflito 44 de interesses, seu resultado teve ter por prioridade padrões justos, independentes da vontade de cada um dos lados (ROGER, 2014). Na negociação baseada em princípios, é possível identificar os seguintes aspectos básicos: (i) separação das pessoas e dos problemas; e, (ii) negociação por interesses, e não por posições; (iii) criação de opções baseadas em ganhos mútuos; e, (iv) utilização de critérios objetivos (ROGER, 2014). Quaisquer das concepções apresentadas de negociação permite compreender que o ato de negociar envolve tempo, diálogo, troca de informações, escuta ativa das informações sobre os interesses das partes, e criação um campo de opções de acordos possíveis. Diferente de outros métodos, considera-se que a negociação é uma forma direta de autocomposição entre as partes, que, assim como outros métodos, envolve todo um procedimento, que tem início desde a fase de preparação até a obtenção da transação. No percurso da negociação, tem-se, ainda como fases, a abertura, que é quando se dá início à negociação propriamente dita, a fase de apresentação dos objetivos, prognósticos e soluções; e, a fase dos esclarecimentos do próprio procedimento (SCAVONE JÚNIOR, 2020). A negociação difere da conciliação, da mediação e da arbitragem na medida em que não exige a presença de um terceiro em seu procedimento, uma vez que são as próprias partes conflitantes as protagonistas do acordo que vier a ser celebrado, estando sempre baseado no diálogo mútuo. 2.5.3 Da conciliação e mediação Tanto a mediação como a conciliação têm por objetivo auxiliar pessoas a construírem consenso sobre um determinado impasse. Para entender melhor o que seriam esses métodos alternativos e consensuais de conflitos (conciliação e mediação), é preciso estabelecer a diferença de cada qual, que reside basicamente no papel desenvolvido pelo intermediador. Isso porque, na mediação, o intermediador não sugere ou propõe uma solução. Sua atividade é exercida sem poder decisório, tendo a atribuição, apenas, de auxiliar e estimular as partes “a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia” (artigo 1º, parágrafo único, da Lei nº 13.140/2015). Na conciliação, por outro lado, o intermediador tem uma participação mais ativa na solução do conflito, podendo sugerir soluções, sendo indicada para aqueles casos que não há vínculo anterior entre as partes (DIDIER JR, 2016). Em outras palavras, o mediador age como um veículo de comunicação entre as partes, possibilitando que elas próprias identifiquem as soluções consensuais; enquanto o conciliador 45 pode sugerir as soluções possíveis do conflito, tendo as partes influência ativa do conciliador na tomada de decisão. Essa diferenciação veio, inclusive, expressa no Código de Processo Civil vigente, que reconhecidamente adotou a teoria do sistema multiportas, enaltecendo a estimulação da conciliação e da mediação, bem como de outros métodos de solução consensual dos conflitos, como é possível perceber de seu artigo 3º, §2º e § 3º, os quais preveem que: §2º. O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual de conflitos. §3º. A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. A mencionada legis trouxe uma seção específica para tratar dos conciliadores e dos mediadores judiciais, elencando os princípios básicos que regulam tais métodos consensuais como sendo a independência, a imparcialidade, a autonomia da vontade, a confidencialidade, a oralidade, a informalidade e a decisão informada (artigo 166 do Código de Processo Civil). É nesta seção específica que inclusive é tratada a diferenciação entre o mediador e conciliador, estabelecendo-se que a atividade do conciliador está preferencialmente voltada para os casos em que não existir vínculo anterior entre as partes, e a atividade do mediador nos casos em que houver esse vínculo, como nos casos envolvendo direito de família (artigo 165, §2º e §3º, do CPC). Há quem considera como diferença entre a conciliação e a mediação, ainda, os escopos de cada qual, tal como defende Almeida (2015): A mediação propõe uma mudança paradigmática no contexto da resolução de conflitos: sentar-se à mesa de negociações para trabalhar arduamente no atendimento das demandas de todos os envolvidos no desacordo. Na conciliação, as partes sentam- se à mesa em busca, exclusivamente, do atendimento de suas demandas pessoais. A conciliação guarda ainda uma sintonia com o paradigma adversarial que rege toda disputa, recebendo partes voltadas a encontrar uma solução que melhor as atenda, sem se importar ou, ao menos, considerar o nível de satisfação que o outro lado venha a ter. Algumas vezes, até, os sujeitos das mesas de conciliação entendem como ganho a insatisfação que o resultado possa provocar na outra parte. As pessoas envolvidas nas mesas de mediação são convidadas, antes mesmo do início do processo (pré- mediação), a trabalharem em busca de satisfação e benefício mútuos. Por se tratar de instrumento recente, e pautado na autonomia da vontade, a mediação é antecedida por uma etapa universalmente chamada de pré-mediação – que esclarecerá sobre os procedimentos e os princípios éticos, assim como sobre as mudanças paradigmáticas propostas pelo instrumento (ALMEIDA, 2015, p. 87). Como visto acima, na mediação entende-se que o interesse individual de cada qual não se sobrepõe ao interesse de todos os envolvidos, sendo também considerado de fundamental importância, na mediação, que sejam solucionadas as controvérsias de todos os interessados, 46 porque busca primar pela pacificação do conflito em si, com um resultado que seja considerado justo por todos. Na conciliação, por sua vez, o conflito fica mais em evidência, ou seja, as partes estão polarizadas, não raras vezes sequer estão se importando com a pacificação do conflito, porque visa cada envolvido o seu interesse pessoal. O que é consenso tanto com relação à mediação quanto à conciliação, é que em ambas as partes têm a possibilidade de serem protagonistas na resolução de seus conflitos, não tendo aqui a figura de um terceiro para, imparcialmente, atribuir o direito a quem o tem. 2.5.4. Da arbitragem A arbitragem se trata de outro técnica alternativa de solução de conflitos, que foi instituída no Brasil pela Lei nº 9.307/96, que dispõe sobre todo o procedimento da arbitragem, seus fundamentos, dentro outros. Pelo que se infere do texto legal, a arbitragem se posiciona como um método privado de solução de conflitos, que pode ser acordada entre as partes quanto a conflitos que envolvam direitos patrimoniais disponíveis, que são aqueles que possuem expressão econômica e de que as partes podem livremente dispor, bem como que não sejam regidos por norma de caráter cogente, visando resguardar os interess