UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Campus de São José do Rio Preto AMANDA TREMURA DA SILVA A EXPRESSÃO DO SABER E DO DEVER DO FALANTE POR MEIO DE CONSTRUÇÕES MODALIZADORAS EM OBRAS DE AUTOAJUDA EM ESPANHOL PARA MULHERES São José do Rio Preto 2025 AMANDA TREMURA DA SILVA A EXPRESSÃO DO SABER E DO DEVER DO FALANTE POR MEIO DE CONSTRUÇÕES MODALIZADORAS EM OBRAS DE AUTOAJUDA EM ESPANHOL PARA MULHERES Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestra em Estudos Linguísticos. Área de Concentração: Análise Linguística Orientadora: Profª. Drª. Sandra Denise Gasparini Bastos São José do Rio Preto 2025 S586e Silva, Amanda Tremura da A expressão do saber e do dever do falante por meio de construções modalizadoras em obras de autoajuda em espanhol para mulheres / Amanda Tremura da Silva. -- São José do Rio Preto, 2025 129 f. : il., tabs. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto Orientadora: Sandra Denise Gasparini Bastos 1. Linguística. 2. Funcionalismo. 3. Modalidade (Linguística). 4. Autoajuda. 5. Mulheres. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). AMANDA TREMURA DA SILVA A EXPRESSÃO DO SABER E DO DEVER DO FALANTE POR MEIO DE CONSTRUÇÕES MODALIZADORAS EM OBRAS DE AUTOAJUDA EM ESPANHOL PARA MULHERES Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestra em Estudos Linguísticos. Área de Concentração: Análise Linguística Data da defesa: 13/12/2024 Banca Examinadora: ______________________________________ Profª. Drª. Sandra Denise Gasparini Bastos UNESP - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - Campus de São José do Rio Preto ______________________________________ Profª. Drª. Anna Flora Brunelli UNESP - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - Campus de São José do Rio Preto ______________________________________ Prof. Dr. Juliano Desiderato Antonio UEM - Universidade Estadual de Maringá ______________________________________ Prof. Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves UNESP - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - Campus de São José do Rio Preto ______________________________________ Prof. Dr. Michel Gustavo Fontes UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. A Deus, por me guiar. À minha família, por me ensinar os valores da vida e me incentivar em todos os meus sonhos. Ela foi a luz que me guiou até aqui. Agradeço à minha mãe, Cláudia, por ter feito o que podia e, até mesmo, o que não podia para me ver feliz. Agradeço, também, à Palmira, a melhor avó que eu poderia ter e que sempre esteve ao meu lado para tudo o que precisei, uma segunda mãe. Não poderia esquecer, jamais, meus tios, Carlota e José Rubens, os quais foram como pais, dando-me todo o amor que precisei. Agradeço aos meus primos, Ana Paula e José Ricardo, por serem os irmãos que nunca tive e me acompanharem nesta jornada. À minha orientadora, Sandra Denise Gasparini Bastos por me acolher e me guiar na jornada acadêmica, desde a Iniciação Científica à pós-graduação. Obrigada por acreditar na minha capacidade, por dedicar sua confiança em mim, por ser paciente e por seu carinho. Estes últimos anos não foram fáceis, mas nos reinventamos e continuamos aqui. Nela, além de uma ótima orientadora, eu encontrei uma amiga. Se hoje sou uma linguista melhor, devo a ela. Ao Ibilce, por ser a minha segunda casa durante todos os anos de graduação e pós-graduação. Durante estes anos, conheci pessoas que sempre estarão comigo em meu coração. Aos meus amigos, em especial à Ketilin, Brenda, Giovana, Emily, Isabelle e Cris, que compartilharam comigo maravilhosos momentos. “Não precisamos que nos deixem em paz. Precisamos realmente ser incomodados de vez em quando. ” (Fahrenheit, 2020, p. 74). RESUMO A partir de uma perspectiva funcional da linguagem (Dik 1997a; 1997b), este trabalho tem por objetivo descrever e analisar os elementos modalizadores presentes em duas obras de autoajuda de autoria feminina, escritas em língua espanhola e voltadas ao público feminino, a fim de verificar como tais elementos atuam na qualificação do saber e do dever da falante/escritora em sua estratégia de convencimento da ouvinte/leitora. Para este propósito, é adotada a classificação de modalidade proposta por Hengeveld (2004), que serve de referência para o tratamento das modalidades na Gramática Discursivo-Funcional (GDF). A modalidade, enquanto categoria semântica, insere-se dentro do Nível Representacional da GDF, incidindo sobre diferentes unidades neste nível. Esta pesquisa considera quatro dos subtipos modais propostos por Hengeveld (2004): a modalidade facultativa (relacionada a capacidades e habilidades), a modalidade deôntica (relacionada a obrigações e permissões), a modalidade epistêmica (relacionada aos conhecimentos e crenças) e a modalidade volitiva (relacionada à expressão dos desejos). Considera, ainda, os alvos possíveis da avaliação modal (participante, evento ou proposição). Além do objetivo geral, a pesquisa compreende os seguintes objetivos específicos: a) verificar como os modalizadores epistêmicos indicadores de certeza contribuem para a expressão do saber e da convicção da falante/escritora; b) verificar de que maneira os modalizadores deônticos contribuem para a expressão do dever e para a construção da autoridade da falante; c) verificar como a orientação da modalidade (participante, evento, proposição) pode interferir no (des)comprometimento da falante com relação ao conteúdo veiculado; d) verificar os efeitos de sentido provocados pela coocorrência de elementos modalizadores de domínios semânticos iguais ou diferentes. Para alcançar os objetivos propostos, são selecionados os seguintes critérios de análise: a classe gramatical a que o modalizador pertence; a pessoa gramatical e a referência do sujeito; o alvo da avaliação modal; as unidades do Nível Representacional, no modelo da GDF, que estão sob o escopo dos modalizadores; as possibilidades de coocorrência de elementos modalizadores. Os resultados obtidos no levantamento feito nas duas obras mostram que a modalidade epistêmica é a mais frequente, seguida das modalidades facultativa, deôntica e volitiva. Na análise de cada obra individualmente, os valores modais permanecem com a mesma frequência, porém com diferenças em relação aos demais critérios de análise. Na obra La mujer interior: ¿eres consciente del poder que tienes? , a maior frequência da modalidade epistêmica orientada para o evento mostra o descomprometimento da falante e o seu distanciamento, não comprometendo a sua qualificação; na obra A mi amada , o emprego de modalizadores epistêmicos orientados para a proposição é mais recorrente, acentuando o comprometimento da falante com o valor de verdade de seus enunciados. Pode-se entender esses resultados com base em duas cenografias diferentes, respectivamente: uma mãe aconselhando a filha e uma amiga conversando com outra amiga. Em relação à coocorrência modal, foi possível observar o reforço da convicção ou o reforço da dúvida (coocorrência de epistêmicos), o reforço da autoridade (coocorrência de deônticos) e a construção da convicção da falante para destacar a capacidade do ouvinte (coocorrência de epistêmicos e facultativos). Palavras–chave: funcionalismo; modalidade; expressão do saber; expressão do dever; autoajuda; língua espanhola. ABSTRACT Grounded in a functional approach to language (Dik, 1997a; 1997b), this study aims to describe and analyze the modal elements identified in two Spanish-language self-help books, written by women and aimed at a female audience. Our objective is to investigate how these elements shape the speaker's (writer's) expressions of “knowledge” and “obligation” in their strategy to persuade the addressee (reader). To this end, we adopt the classification of modality types proposed by Hengeveld (2004), which serves as a reference for addressing modality within Functional Discourse Grammar (FDG). In FDG, modality is treated as a semantic category at the Representational Level, with the potential to scope over different units within it. In this study, we focus on four modality types classified by Hengeveld (2004): facultative modality (related to capacities and abilities), deontic modality (related to obligations and permissions), epistemic modality (related to knowledge and beliefs), and volitive modality (related to the expression of desires). We also consider participants, events, and propositions as the potential targets of modal evaluation. Our specific objectives are: a) to analyze how epistemic modal markers expressing certainty contribute to the speaker's expressions of knowledge and conviction; b) to investigate how deontic modal markers contribute to the expression of obligation and to the construction of the speaker's authority; c) to evaluate how modality oriented towards participants, events, or propositions affects the speaker's level of (un)commitment; d) to determine the effects of meaning arising from the co-occurrence of modal elements from the same or different domains. To achieve the objectives of this study, the following analysis criteria are considered: the grammatical class of the modal marker; the grammatical person and the reference of the subject; the target of modal evaluation; the units of the Representational Level in FDG scoped by modal markers; and the co-occurrence patterns of modal elements. The results indicate that epistemic modality is the most frequently employed in both books, followed by facultative, deontic, and volitive modalities. When examining each book individually, the frequency of modal values remains the same; however, differences emerge in all other criteria. In La mujer interior: ¿eres consciente del poder que tienes? , the predominance of event-oriented epistemic modality indicates the speaker's detachment and non-commitment. In contrast, A mi amada presents a higher frequency of proposition-oriented modal markers, reflecting the speaker's high commitment to the truth of the proposition. These findings suggest two distinct enunciation scenes: one resembling a mother offering advice to her daughter and the other resembling a friend engaging in dialogue with another friend. We also found that the co-occurrence of modal elements indicates different strategies: reinforcement of certainty or uncertainty (through co-occurrence of epistemic elements); reinforcement of authority (through co-occurrence of deontic elements); and construction of the speaker’s conviction to emphasize the listener’s capacities (through co-occurrence of epistemic and facultative elements). Keywords: functionalism; modality; expression of knowledge; expression of obligation; self-help; Spanish. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Continuum entre o certo e o possível 31 Figura 2 – Valores sêmicos da modalidade deôntica 35 Figura 3 – Arquitetura geral da GDF 43 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Quadro 1 – Relação entre o alvo da avaliação e o domínio semântico 30 Quadro 2 – Relação entre as camadas da Gramática Discursivo-Funcional e as modalidades 48 Quadro 3 – Relação entre as camadas da GDF e as modalidades deôntica e epistêmica 65 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Número de modalizadores identificados no corpus 68 Tabela 2 – Modalizadores epistêmicos e classes gramaticais 70 Tabela 3 – Relação entre domínio semântico epistêmico e pessoa gramatical do sujeito 72 Tabela 4 – Modalidade epistêmica e alvo da avaliação modal 74 Tabela 5 – Certeza e dúvida em LMI 76 Tabela 6 – Certeza e dúvida em AMA 79 Tabela 7 – Modalidade epistêmica e as unidades do Nível Representacional 82 Tabela 8 – Modalizadores facultativos e classes gramaticais 86 Tabela 9 – Relação entre domínio semântico facultativo e pessoa gramatical do sujeito 87 Tabela 10 – Modalidade facultativa e alvo da avaliação modal 89 Tabela 11 – Modalidade facultativa e as unidades do Nível Representacional 91 Tabela 12 – A modalidade deôntica e as classes gramaticais 92 Tabela 13 – Relação entre domínio semântico deôntico e pessoa gramatical do sujeito 95 Tabela 14 – Modalidade deôntica e alvo da avaliação modal 98 Tabela 15 – Modalidade deôntica e as unidades do Nível Representacional 101 Tabela 16 – Modalizadores volitivos e classes gramaticais 102 Tabela 17 – Relação entre domínio semântico volitivo e pessoa gramatical do sujeito 103 Tabela 18 – Modalidade volitiva e alvo da avaliação modal 105 Tabela 19 – Modalidade volitiva e as unidades do Nível Representacional 106 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AMA A mi amada C Controle D Evento (e) Estado de Coisas (ep) Episódio (f) Propriedade Configuracional F Força GDF Gramática Discursivo-Funcional GF Gramática Funcional L Referência temporal LMI La mujer interior: ¿eres consciente del poder que tienes? NR Nível Representacional P Factualidade do evento (p) Conteúdo Proposicional (x) Indivíduo SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO………………………………………………………………… 14 2 MODALIDADE E FUNCIONALISMO……………………………………… 18 2.1 A modalidade e seu percurso: da lógica à linguística………………………….. 18 2.2 Formas de expressão da modalidade……………………………………………. 23 2.3 Classificação das modalidades segundo Hengeveld (2004).................................. 25 2.3.1 Alvo da avaliação modal……………………………………………………….... 26 2.3.2 Domínio semântico da modalidade……………………………………………… 28 2.4 A modalidade epistêmica e a qualificação do saber………………………..…... 30 2.5 A modalidade deôntica e a expressão da autoridade…………………………... 33 2.6 A Gramática Discursivo-Funcional (GDF)........................................................... 41 2.6.1 O Nível Representacional e as modalidades…………………………………..… 44 2.6.1.1 Conteúdo Proposicional (p)................................................................................. 46 2.6.1.2 Estado de Coisas (e)............................................................................................ 46 2.6.1.3 Propriedade Configuracional (f)......................................................................... 48 2.7 Ethos discursivo e cenas da enunciação……………………………………..….. 48 3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS………………………………..… 52 3.1 Sobre o corpus de pesquisa………………………….…………………………… 52 3.2 Critérios de análise…………………………………………………..…………… 57 3.2.1 As classes gramaticais…………………………………………………………… 57 3.2.2 A pessoa gramatical……………………………………………………………... 59 3.2.3 O alvo da avaliação modal………………………………………………………. 63 3.2.4 As unidades do Nível Representacional da GDF………………………………... 64 3.2.5 A coocorrência de modalizadores……………………………………………..… 66 3.2.6 Ethos discursivo e cenas de enunciação………………………………………… 66 4 A EXPRESSÃO DO SABER E DO DEVER DO FALANTE………………. 68 4.1 Modalidade epistêmica………………………………………………………..… 69 4.2 Modalidade facultativa…………………………………………………………. 85 4.3 Modalidade deôntica……………………………………………………………. 91 4.4 Modalidade volitiva………………………………………………………….….. 102 4.5 A coocorrência de modalizadores………………………………………………. 106 4.6 Ethos discursivo e cenas de enunciação………………………………………... 110 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………...………………………………. 119 REFERÊNCIAS…………………………………………………………………. 124 14 1 INTRODUÇÃO A partir de uma visão funcionalista da linguagem, a modalidade pode ser entendida como uma forma de manifestação da subjetividade do falante em relação aquilo que ele enuncia, ou seja, a sua atitude perante o enunciado produzido. A modalidade é tema de estudos em diferentes línguas e sob diferentes perspectivas teóricas (Lyons, 1977; Perkins, 1983; Palmer, 1986; Heine, 1995; Silva-Corvalán, 1995; dentre outros) que contribuem para a expansão do tema e como ponto de partida para outras investigações. Em língua portuguesa, os estudos de Neves (1996, 2000a, 2021, dentre outros) servem de referência a muitos trabalhos sobre o tema (Dall’aglio-Hattnher, 1996; Casseb-Galvão, 1999; Castilho, 2000; Prata; Nogueira, 2017; Oliveira, 2020). Também em língua espanhola, língua analisada neste trabalho, a modalidade tem sido objeto de investigação a partir de uma perspectiva funcionalista da linguagem, como mostram os trabalhos de Ferrari (2009), Olbertz e Gasparini-Bastos (2013), Rinaldi (2015), Durigon (2015), Olbertz e Dall’Aglio-Hattnher (2018), Oliveira, Nogueira e Prata (2017), dentre outros. Alguns trabalhos mostram a análise de elementos modais servindo como base para investigações em outros referenciais teóricos, como por exemplo a Análise do Discurso de linha francesa, o que pode ser observado no trabalho de Brunelli (2004). Nesse mesmo cenário, insere-se o trabalho de Brunelli e Dall’Aglio-Hattnher (2009) e outros semelhantes, voltados tanto para a descrição de elementos modalizadores do português (Brunelli; Gasparini-Bastos, 2008; Verni; Brunelli; Gasparini-Bastos, 2019), como do espanhol (Brunelli; Gasparini-Bastos, 2011, 2012; Gasparini-Bastos; Brunelli, 2019). O que todos esses últimos trabalhos comentados têm em comum é o fato de analisarem elementos modalizadores extraídos de obras de autoajuda, escritas tanto em português como em espanhol, comprovando que as obras de autoajuda se configuram como um material rico para a análise de ocorrências da modalidade. O nosso interesse pelo estudo de elementos modalizadores teve início em Estágio realizado em nível de Iniciação Científica, que se voltou para a análise de casos de coocorrência de verbos, adjetivos e advérbios modais em uma obra de autoajuda espanhola dirigida ao público esportista. 1 O alto número de modalizadores presentes na obra fez-nos, posteriormente, seguir com o interesse pela investigação de elementos modais em obras de autoajuda escritas em língua espanhola, resultando na presente investigação, que se volta para 1 Entrénate para la vida , de Patricia Ramírez (2012). 15 a análise de duas obras de autoajuda em espanhol. Diferente do público-alvo da pesquisa desenvolvida em Estágio de Iniciação Científica, na presente pesquisa, preferimos nos ater ao público mais específico, o público feminino. A escolha de um corpus mais específico, justifica-se nos diferentes papéis que os elementos modalizadores podem apresentar em um contexto específico, no caso, a autoajuda para mulheres. Quando analisamos discursos específicos, observamos comportamentos distintos de discurso para discurso. Sendo assim, a análise de produções específicas também apresenta a sua importância. O interesse pelo trabalho com autoajuda dirigida a mulheres também teve como ponto de partida o trabalho de Verni (2019) 2 , realizado sob perspectiva da Análise do Discurso. Em sua pesquisa, Verni (2019) observou, em seu corpus , o caráter autoritário do enunciador, criando, assim, uma atmosfera intimidadora e conservando estereótipos femininos presentes na sociedade. A partir dos resultados de sua pesquisa, decidimos voltar o olhar a obras em língua espanhola dirigidas ao público feminino para verificar se é possível encontrar elementos que se assemelhem aos dados descritos por Verni (2019). Assim, este trabalho tem por objetivo analisar os elementos modalizadores presentes em duas obras de autoajuda espanholas dirigidas ao público feminino, A mi amada , de autoria de María M. Vásquez, e La mujer interior: ¿Eres consciente del poder que tienes? , de autoria de Zulma Reyo Martínez, a fim de verificar de que maneira se dá a qualificação do saber e do dever do falante/escritor, ou seja, de que maneira o falante (escritor) emprega elementos modalizadores para formular seus aconselhamentos destinados ao seu ouvinte (leitor). Tal objetivo principal desdobra-se nos seguintes objetivos específicos: a) verificar como os modalizadores epistêmicos indicadores de certeza contribuem para a expressão do saber e da convicção do falante; b) verificar de que maneira os modalizadores deônticos contribuem para a expressão do dever e para a construção da autoridade do falante; c) verificar como a orientação da modalidade (para o participante, para o evento ou para a proposição) pode interferir no (des)comprometimento do falante com relação ao conteúdo por ele veiculado; 2 O trabalho de Verni (2019) teve como objetivo descrever o ethos discursivo de obras de autoajuda para mulheres, voltadas especificamente para finanças. Para isso, analisou as diferentes formas de expressão da modalidade presentes nessas obras e como elas contribuíram para construir o ethos da mulher no mundo dos negócios. 16 d) verificar os efeitos de sentido provocados pela coocorrência de elementos modalizadores de domínios semânticos iguais ou diferentes. O trabalho apoia-se no modelo teórico de orientação funcionalista da Gramática Discursivo-Funcional (GDF), proposto por Hengeveld e Mackenzie (2008), que contempla quatro níveis hierárquicos de análise: Nível Interpessoal (que abriga as relações pragmáticas), Nível Representacional (que abriga as relações semânticas), Nível Morfossintático e Nível Fonológico. Os quatro níveis de análise se organizam a partir de uma estrutura descendente ( top down ), que parte da intenção do falante em direção à articulação das formas linguísticas. As modalidades são descritas dentro do Nível Representacional, integrado por diferentes unidades de análise (Conteúdo Proposicional, Episódio, Estado de Coisas, Propriedade Configuracional). O modelo incorpora a classificação de modalidade proposta por Hengeveld (2004), que relaciona dois parâmetros principais: o domínio semântico da avaliação modal, ou seja, os subtipos modais, e o alvo da avaliação modal, ou seja, a parte do enunciado modalizada. Com relação ao domínio semântico, são considerados, na análise, quatro dos cinco subtipos modais propostos pelo autor: modalidade facultativa, modalidade deôntica, modalidade volitiva e modalidade epistêmica. 3 Com relação à orientação da modalidade, considera-se a possibilidade de que a modalidade esteja orientada para o participante, para o evento ou para a proposição. Para alcançar os objetivos propostos, adotamos alguns critérios de análise: a classe gramatical dos modalizadores (verbo, adjetivo em posição predicativa, advérbio/locução adverbial), pessoa gramatical e referência do sujeito (no caso dos verbos modais), alvo da avaliação modal, as unidades do Nível Representacional que os modalizadores tomam por escopo e a coocorrência de modalizadores. Com vistas a ampliar nosso escopo de análise, buscamos apoio em outro referencial teórico, a Análise do Discurso, para que fosse possível associar a análise dos modalizadores a outros conceitos como ethos discursivo e cenas de enunciação, que também serão considerados na descrição e na análise dos dados. Este trabalho é composto por 5 capítulos: no capítulo 1, presente introdução, apresentamos nosso objeto de análise e a justificativa de seu estudo. No Capítulo 2, 3 O quinto subtipo modal proposto por Hengeveld (2004) é a modalidade evidencial. Esse subtipo modal, tratado em trabalhos mais recentes como “evidencialidade”, é excluído da categoria da modalidade (Hengeveld e Hattnher (2015)). Por isso, a evidencialidade, no presente trabalho, não é abordada. 17 apresentamos o conceito de modalidade, sua trajetória nos estudos lógicos e linguísticos, suas formas de expressão, bem como a classificação de modalidade proposta por Hengeveld (2004). Apresentamos a relação da modalidade epistêmica e a qualificação do saber do falante e a relação da modalidade deôntica e a autoridade do falante. Ainda no Capítulo 2, apresentamos os pressupostos teóricos da Gramática Discursivo-Funcional (Hengeveld; Mackenzie, 2008), em especial as unidades que integram o Nível Representacional, no qual as modalidades podem ser localizadas. No Capítulo 3, abordamos os objetivos do trabalho, o corpus selecionado para o estudo e os critérios de análise que norteiam a pesquisa. O Capítulo 4 é destinado à análise dos dados coletados, que caracterizam a qualificação do saber e do dever do falante. Nas Conclusões, Capítulo 5, apresentamos os resultados obtidos com o desenvolvimento da pesquisa. Por fim, relacionamos as referências bibliográficas que serviram como base para o trabalho. 18 2 MODALIDADE E FUNCIONALISMO Neste capítulo, tratamos da modalidade na lógica clássica e na linguística contemporânea, apresentando, sobretudo, o ponto de vista funcional da linguagem, além de apresentarmos o aparato teórico utilizado neste estudo. Em 2.1, apresentamos a modalidade nos estudos modais lógicos e dos estudos linguísticos, com ênfase em uma visão funcionalista. Na seção 2.2, abordamos as diferentes formas de expressão que as modalidades podem assumir. Em 2.3, apresentamos a classificação de modalidade proposta por Hengeveld (2004). Em seguida, discorremos sobre a modalidade epistêmica e a qualificação do saber do falante, em 2.4, e sobre a modalidade deôntica e a autoridade do falante, em 2.5. Em 2.6, descrevemos sucintamente o modelo teórico utilizado nesta pesquisa, a Gramática Discursivo-Funcional, com destaque para a classificação de modalidades de Hengeveld (2004) incorporada ao modelo. Em 2.7, apresentamos sucintamente dois conceitos da Análise do Discurso de linha francesa que serão incorporados à análise dos modalizadores: ethos discursivo e cenas da enunciação. 2.1 A modalidade e seu percurso: da lógica à linguística A modalidade, de maneira geral, pode ser entendida como a manifestação da atitude do falante com relação a seu enunciado. Os primeiros estudos modais surgiram com a Lógica Clássica, a partir de um quadrado lógico pensado por Aristóteles, que reconheceu três modalidades: a modalidade alética (relacionada à verdade de uma proposição), a modalidade epistêmica (relacionada ao eixo do conhecimento) e a modalidade deôntica (relacionada ao eixo da conduta) (Neves, 2021). Dentre as três modalidades reconhecidas pela Lógica, a modalidade alética é considerada central frente às modalidades epistêmicas e deônticas, porque lida apenas com as condições de verdade de uma proposição, independentemente da intenção comunicativa do enunciador. Mesmo lidando apenas com as noções de verdade ou falsidade das proposições, a modalidade alética não é considerada como tipo que se assenta em uma verdade absoluta localizada em um continuum que vai do necessário ao possível. Nem mesmo uma verdade universal científica, como em (1), pode ser considerada absolutamente verdadeira, pois, de acordo com Kerbrat-Orecchioni (1977, apud Coracini, 1991), ela só pode ser considerada verdade dentro de um universo de crenças de uma sociedade: 19 (1) A Terra gira ao redor do Sol. Ao enunciar (1), o falante, mesmo que não faça o uso de marcadores modais em sua fala, está neutralizando a proposição e, por consequência, acaba por se comprometer com aquilo que enuncia (Kerbrat-Orecchioni, 1977, apud Coracini, 1991). Por essa razão, o enunciado abaixo não pode ser considerado “neutro”, mesmo não apresentando marcadores modais. Afirmar que a Terra gira ao redor do Sol significa que essa proposição provém de um conhecimento, de um saber. Para Alexandrescu (1966, apud Koch, 1993) toda enunciação é subordinada à modalidade do crer e do saber . Sendo assim, as modalidades do crer e do saber sempre estão presentes nas proposições, pois todo ato de enunciação requer informação advinda do locutor e deve ser compatível com as suas outras enunciações (Koch, 1993). A partir da modalidade alética, as modalidades epistêmica e deôntica são definidas. A modalidade epistêmica está localizada no eixo do conhecimento, e a deôntica no eixo da conduta (Neves, 2021). Como exemplos dessas duas classificações, é possível parafrasear a asserção dada em (1) das seguintes maneiras: (1a) É óbvio que o planeta Terra gira em torno do Sol. (1b) Necessariamente a Terra gira em torno do Sol. Em ambas as paráfrases, tem-se a marcação explícita de elementos modais constituídos por um adjetivo epistêmico em posição predicativa ( é óbvio ) e um advérbio deôntico ( necessariamente ). Em (1a) a proposição expressa possibilidade/probabilidade em algum mundo real de que o planeta Terra gire ao redor do Sol; e em (1b), a obrigação de que em algum mundo a volta que o planeta Terra dá ao redor do Sol deve ser obrigatória. Ao contrário dos estudos de natureza lógica, os estudos linguísticos consideram a intenção do enunciador e colocam as modalidades epistêmica e deôntica como mais relevantes do ponto de vista da comunicação. Conforme aponta Neves: [...] a modalidade alética é dificilmente detectada nas línguas naturais, já que o comprometimento da modalização alética com a verdade relacionada a mundos possíveis torna pouco claros no discurso comum casos de sentenças que sejam apenas aleticamente modalizadas. É muito improvável que um conteúdo asseverado num ato de fala seja portador de uma verdade não filtrada pelo conhecimento e julgamento do falante. (Neves, 2021, p. 159-160) 20 A modalidade epistêmica – localizada no eixo da crença e do conhecimento – pode ser definida como a necessidade e a possibilidade de um acontecimento no mundo real e está relacionada com o conhecimento e as convicções de mundo do falante. Já a modalidade deôntica – localizada do eixo da conduta – está relacionada com a obrigação e permissão do falante. Segundo Maingueneau (1990, apud Neves, 2002), mesmo que a conceitualização da modalidade na lógica e na linguística seja diferente, é importante destacar que os eixos da conduta e do conhecimento podem se relacionar com as funções básicas da linguística. Levando em consideração a linguística, é possível conceituar a modalidade como “a relação que se estabelece entre o sujeito da enunciação e seu enunciado” (Maingueneau, 1990, p. 8, apud Neves, 2002, p. 172) e que apresenta a dicotomia dictum/modus , na qual dictum está relacionado ao conteúdo do pensamento do falante e o modus à atitude do falante em relação ao dictum . De acordo com Ilari e Basso (2008), ao explicar a dicotomia, o modus está relacionado à maneira como a informação dada está disposta dentro de uma sentença, que, dependendo da intenção comunicativa do falante, pode ser organizada de diferentes modos. Já o dictum diz respeito ao conteúdo proposicional, ou seja, a mensagem passada pelo falante, que não se altera, independentemente da organização no interior da sentença. As modalidades, por estarem relacionadas à intenção comunicativa do falante, são facilmente identificadas em contextos reais de uso da língua. Por essa razão, estudos voltados para a modalidade encontram respaldo na abordagem teórica funcionalista, que investiga os fenômenos linguísticos a partir do funcionamento da língua. O conceito de modalidade, de acordo com Neves (2021), varia a depender da orientação teórica, dos significados das expressões modalizadoras e do sentido que expressam em um domínio conceptual. A partir de um ponto de vista pragmático da linguagem, Koch (1993) considera as modalidades como atos de fala ilocucionários, pois carregam a atitude comunicativa do falante, ou seja, [...] elas constituem, segundo Parret (1976), atos ilocucionários constitutivos da significação dos enunciados, sendo motivadas pelo jogo da produção e do reconhecimento das intenções do falante e, como os demais atos de linguagem, classificáveis e convencionalizadas. (Koch, 1993, p. 75) Em relação à marcação modal dos enunciados, Koch (1993) afirma que não há enunciados neutros, pois todo enunciado apresenta uma opinião e que a não marcação é 21 devida a uma “retórica do neutro” (Koch, 1993, p. 84), na qual o locutor oculta a sua enunciação para convencer o seu interlocutor daquilo que diz ser verdade. Coracini (1991), ao estudar a modalidade nos discursos científicos, afirma que ela faz parte da subjetividade do enunciador, ou seja, de seu ponto de vista. De acordo com a autora, a modalidade pode estar implícita, quando o enunciador não utiliza marcas modais, ou explícita, quando o enunciador faz uso de modalizadores. Quando implícita, a modalidade acaba por contribuir com uma maior força argumentativa daquilo que enuncia, e quando explícita, diminui a força argumentativa do enunciador. Coracini (1991) também afirma que a situação discursiva deve ser levada em consideração para a melhor compreensão do valor semântico que a expressão modal utilizada pelo enunciador pode significar. Palmer (1986) considera que a modalidade está relacionada ao julgamento e à atitude do falante, estando associada à semântica e à gramática. O autor subdivide a modalidade em modalidade proposicional e modalidade de evento. A modalidade proposicional diz respeito ao julgamento do falante, enquanto a modalidade de evento diz respeito a eventos que têm um potencial de ocorrer. Sendo assim, a modalidade epistêmica, que se refere ao julgamento do falante diante da verdade enunciada na proposição, está alocada na modalidade proposicional, e a modalidade deôntica, que diz respeito aos fatores que são externos ao falante, como, por exemplo, obrigações e permissões, está alocada na modalidade de evento (Palmer, 1986). Dentre as várias formas de expressão de modalidade, grande parte dos estudos privilegiam os verbos auxiliares dever e poder , pela carga polissêmica modal que lhes é intrínseca. Silva-Corvalán (1995), ao investigar os verbos poder e deber em espanhol, afirma que tais verbos são monossemânticos e, para isso, leva em consideração que ambos têm um significado “puro” quando atuam sozinhos, porém, ao serem inseridos em determinados contextos, assumem diferentes significações, como, por exemplo, permissão, habilidade, mitigação, possibilidade, necessidade e obrigação. Neves (2000a), com base no trabalho de Silva-Corvalán (1995), reafirma a polissemia dos verbos modais em português, sobretudo dos verbos poder e dever . Para a autora, tais verbos são polissêmicos e, por isso, dependem de fatores intra e extralinguísticos para a sua interpretação. A autora afirma, ainda, que uma proposição pode ter uma leitura preferível, ou seja, em um enunciado há a possibilidade de leitura de dois ou mais valores semânticos distintos, os quais são propiciados pelo contexto. Observemos um exemplo com o verbo poder: (2) Augusto pode cozinhar. 22 No exemplo, o verbo poder , a depender da situação comunicativa em que é empregado – por quem e para quem –, pode ter significados distintos. É possível parafrasear o exemplo dado anteriormente das seguintes maneiras: (2a) Augusto tem a capacidade/habilidade para cozinhar. (2b) Augusto tem a permissão para cozinhar. (2c) É possível que Auguto cozinhe. Em (2a), o enunciado diz respeito a um valor semântico de capacidade adquirida pelo falante e associada a conhecimentos culinários. Em (2b), tem-se o valor semântico de permissão, sendo que para que isso ocorra é necessário admitir um falante que tenha autoridade perante o ouvinte para proferir tal enunciado. Já em (2c), tem-se um valor semântico de possibilidade de algum fato acontecer, levando em consideração aquilo que é conhecido pelo falante. Outro ponto que também se considera ser importante para a conceituação da modalidade é a distinção entre modalidade de frase e modalidade . Cervoni (1989) propõe que as modalidades de frases sejam excluídas da categoria da modalidade. Elas seriam sempre a máxima dos enunciados que fazem parte do ilocutório, ou seja, as modalidades de frase, para o autor, seriam atos de linguagem. Hengeveld (2004), com base em uma visão funcionalista da linguagem, define as noções de modo , ilocução e modalidade . Para o autor, o termo modo vem sendo usado em semântica como um termo amplo, e comporta uma divisão em ilocução – relacionada com as modalidades de frases – e modalidade – relacionada com a modificação de atos de fala. Expandindo a conceituação de ilocução, Hengeveld (2004) apresenta de que maneira ela está presente nas línguas. A ilocução está relacionada à modalidade da frase, ou seja, ao tipo de sentença, como, por exemplo, declarativa (asserção), interrogativa (questão) e imperativa (comando): (3) I will have it. ‘Eu vou tê-lo.’(Hengeveld, 2004, p. 1191, tradução nossa) (4) Did they see us? ‘Eles nos viram?’(Hengeveld, 2004, p. 1191, tradução nossa) (5) Eat! 23 ‘Coma!’(Hengeveld, 2004, p. 1191, tradução nossa) O exemplo (3) representa a modalidade de frase declarativa, a qual está associada à asserção; o exemplo (4) representa uma modalidade de frase interrogativa, associada a uma pergunta; e o exemplo (5) representa a modalidade imperativa, associada ao comando. Em razão de as línguas terem uma determinada organização, a ilocução também leva em consideração a ordem dos elementos que compõem os enunciados, os marcadores morfológicos e a entonação. Ainda em relação à ilocução, Hengeveld (2004) também esclarece a distinção entre declarativo versus indicativo. Segundo o autor, a modalidade de frase declarativa pode operar junto com marcadores modais. Já o indicativo é um modo, ou seja, ele pode ser usado em conjunto com orações subordinadas, mas pode causar um conflito ao lados dos marcadores modais (Hengeveld, 2004). Como exemplo, temos: (6) Maybe he’s there. ‘Talvez ele esteja lá.’ (Hengeveld, 2004, p. 1191, tradução nossa) No exemplo (6), tem-se a modalidade de frase declarativa operando ao lado de um marcador modal, mais precisamente um advérbio epistêmico de dúvida ( talvez ), que expressa a atitude do falante. Aqui observamos o emprego de uma ilocução declarativa para expressar a dúvida do falante. A declaração feita pelo falante não está relacionada à verdade propriamente dita (Hengeveld, 2004). Nesta pesquisa, assumimos a modalidade como expressão da atitude e da subjetividade do falante perante o enunciado por ele produzido. Assumimos, também, que todos os enunciados, explícita ou implicitamente, apresentam a intenção comunicativa do falante, sendo que a preferência por omitir ou não um determinado modalizador acaba por ser um recurso utilizado para expressar aquilo que se defende e se acredita, havendo ou não comprometimento por parte do falante, a depender da maneira como foi enunciada a proposição. Além disso, consideramos que o contexto e informações extra contextuais são fundamentais para desfazer a ambiguidade de determinados valores modais. 2.2 Formas de expressão da modalidade 24 Neves (2021), ao estudar a manifestação da modalidade em língua portuguesa, explica que ela pode acontecer por meio de substantivos, adjetivos em posição predicativa, advérbios, verbos plenos e verbos auxiliares modais, além de categorias gramaticais, que podem expressar diferentes significados semânticos, como apresentados, respectivamente, nos exemplos abaixo, fornecidos pela autora: (7) O homem não deve pensar muito, esta é minha opinião . (Neves, 2021, p. 168) (8) É impossível que o Brasil tome conhecimento de outra aberração. (Neves, 2021, p. 167) (9) Esse exame propicia a visualização de vários dados, que devem ser obrigatoriamente pesquisados. (Neves, 2021, p. 167) (10) Acho que por humilhação maior jamais passaram. (Neves, 2021, p. 167) (11) Esse casarão deve ser ideal para o reumatismo de minha tia Margherita. (Neves, 2021, p. 167) (12) E a discussão ficaria nisso. (Neves, 2021, p. 167) O substantivo opinião (7) e o adjetivo em posição predicativa ( é ) impossível ( que ) (8) expressam um valor semântico epistêmico de certeza e de incerteza, respectivamente, que dá ao enunciador uma maior convicção sobre aquilo que enuncia (7) ou o seu descomprometimento (8). Em (9), tem-se o advérbio obrigatoriamente servindo à expressão da modalidade deôntica, relacionada ao que é necessário. Já o verbo pleno achar (10) expressa o valor semântico modal epistêmico de dúvida 4 , assim como o verbo auxiliar dever em (11). Em (12), tem-se o futuro do pretérito do verbo ficar indicando uma possibilidade. Especificamente com relação aos advérbios, Castilho (2000) afirma que os advérbios que servem à expressão da modalidade estão no grupo dos chamados advérbios predicativos, capazes de modificar uma proposição (em oposição ao grupo que o autor chama de não-predicativos). Para Castilho (2014), com base na classificação que propõe, os advérbios modalizadores podem ser classificados em (i) epistêmicos, quando relacionados à certeza (chamados pelo autor de asseverativos) (como em (13)) ou à incerteza (denominados de quase-asseverativos) (como em (14)); (ii) deônticos, quando relacionados à permissão e à 4 O verbo achar pode apresentar valores que variam entre modalidade epistêmica e evidencialidade, conforme mostram alguns trabalhos de natureza funcionalista, como o de Casseb-Galvão (1999) e Parreira (2014). 25 obrigação (como em (15)); e (iii) pragmáticos, quando relacionados ao sentimento do enunciador (como em (16)): 5 (13) eu tenho vontade de ir lá [...] porque realmente é um espetáculo bonito. (Castilho, 2014, p. 287) (14) agora outro tipo de escola que talvez não tenha esse objetivo. (Castilho, 2014, p. 293) (15) toda e qualquer manifestação que a gente for procurar vai ter que estar necessariamente ligada a esta preocupação vital. (Castilho, 2014, p. 295) (16) felizmente ainda não começaram [aquela fase mais difícil]. (Castilho, 2014, p. 296) Como apontado por Neves (2002), a unipessoalização e a apassivação, recursos sintáticos, também podem ser consideradas formas de modalidade. A unipessoalização está relacionada com o distanciamento e o não comprometimento do falante, como, por exemplo, o que ocorre no emprego de adjetivos em posição predicativa. Já a apassivação está relacionada com a construção interna de sentenças. A autora lembra, ainda, que os recursos prosódicos, como, por exemplo, a entonação durante a conversação, também são formas de indicar a modalidade. Os mesmos recursos expressivos sugeridos por Neves (2021) para a expressão da modalidade em português podem ser identificados também em espanhol. Dentre as diversas formas de expressão da modalidade nos restringimos à análise de algumas expressões linguísticas lexicalizadas em espanhol: verbos auxiliares modais (como poder e deber , por exemplo), os verbos modais plenos (como saber, pensar e creer ), os adjetivos em posição predicativa (como es necesario que , es posible que ) e os advérbios modais (como posiblemente , ciertamente , probablemente , necesariamente ). 2.3 Classificação das modalidades segundo Hengeveld (2004) Uma vez que as modalidades estão diretamente relacionadas às intenções do falante, é importante que elas sejam analisadas em contextos reais de produção linguística. Desse modo, 5 A inclusão de elementos como felizmente e infelizmente na categoria dos advérbios modalizadores deve-se à definição mais abrangente de modalidade proposta por Castilho (2000, 2014). 26 a abordagem funcionalista se mostra perfeitamente adequada para os estudos sobre modalidade. A classificação das modalidades adotada neste trabalho segue a proposta de Hengeveld (2004), que é a base para a classificação de modalidade prevista no modelo teórico da Gramática Discursivo-Funcional (GDF), de Hengeveld e Mackenzie (2008), vertente teórica que nasceu a partir do modelo de Gramática Funcional proposta por Dik (1997a, 1997b). Hengeveld (2004) propõe uma classificação baseada em dois parâmetros: o alvo da avaliação modal , que diz respeito à parte do enunciado que é modalizada, e o domínio semântico , que diz respeito ao valor semântico do subtipo modal. O alvo da avaliação permite a distinção entre modalidade orientada para o participante , modalidade orientada para o evento e modalidade orientada para a proposição . O domínio semântico classifica as modalidades em modalidade facultativa , modalidade deôntica , modalidade volitiva , modalidade epistêmica e modalidade evidencial . Embora a classificação se mostre bastante adequada, faz-se necessário uma ressalva: os estudos sobre evidencialidade mais atuais, feitos no aparato teórico da Gramática Discursivo-Funcional, como Hengeveld (2011), Hengeveld e Hattnher (2015), excluem a evidencialidade da categoria da modalidade. Dessa forma, adotamos a classificação de Hengeveld apenas para tratar dos outros quatro subtipos modais: modalidade facultativa, modalidade deôntica, modalidade volitiva e modalidade epistêmica. A seguir, explicamos e exemplificamos os dois parâmetros de análise propostos pelo autor. 2.3.1 Alvo da avaliação modal Como mencionado anteriormente, Hengeveld (2004) propõe três alvos de avaliação para a modalidade: participante, evento e proposição. A modalidade orientada para o participante consiste na relação entre o participante do evento e a potencial realização desse evento (Hengeveld, 2004), como mostrado em (17): (17) ‘John quer ser jovem de novo.’ John wants to be young again. (Hengeveld, 2004, p. 1194, tradução nossa) (18) ‘John tem que nadar.’ John has to swim. (Hengeveld, 2004, p. 1193, tradução nossa) 27 Nos exemplos em (17) e (18), o verbo wants (querer) e o verbo has to (ter que) expressam um tipo de modalidade orientada para o participante. Em (17), observa-se o desejo do participante no evento de “voltar a ser jovem”, e em (18), observa-se a obrigação do participante no evento de “nadar”. A modalidade orientada para o evento afeta a descrição do evento no enunciado, fazendo com que a força modal seja interpretada como algo genérico (Hengeveld, 2004), como se pode observar em (19) e em (20): (19) ‘Eu não pude terminar de ler o livro porque ficou muito escuro.’ I couldn’t finish reading the book because it got too dark .(Hengeveld, 2004, p. 1195, tradução nossa) (20) ‘Implorar é proibido.’ Begging prohibited . (Hengeveld, 2004, p. 1195, tradução nossa) No exemplo (19), o verbo couldn’t (poder) diz respeito à impossibilidade de se realizar a ação de ler por conta de circunstâncias externas ao falante, no caso “porque ficou muito escuro”. No exemplo (20), tem-se a proibição deôntica para ocorrência de um evento, porém a orientação não recai sobre um participante específico, mas sobre o próprio evento “implorar”, pois se trata de uma orientação geral, ou seja, “ninguém pode implorar”. A modalidade orientada para a proposição afeta o conteúdo proposicional (aquele que apresenta os pontos de vista e as crenças do falante) da sentença e a especificação do grau de comprometimento do falante com relação à proposição que ele está apresentando (Hengeveld, 2004): (21) ‘Nós provavelmente morreremos por falta de água.’ We’ll probably die for lack of water. (Hengeveld, 2004, p. 1196, tradução nossa) (22) ‘Certamente ele deve ter esquecido.’ Certainly he may have forgotten. (Hengeveld, 2004, p. 1194, tradução nossa) Em (21), o advérbio modal probably (provavelmente) , que expressa a subjetividade do falante e seu comprometimento com a verdade do enunciado, está orientado para a proposição. No caso, em (21), o falante apresenta a sua incerteza acerca de “nós morreremos por falta de água”. No exemplo (22), o advérbio modal certainly (certamente) também 28 expressa a subjetividade do falante e o seu comprometimento com a verdade, mas, neste caso, expressando sua certeza. 2.3.2 Domínio semântico da modalidade A classificação do domínio semântico proposta por Hengeveld (2004) é dividida em cinco subtipos modais (modalidade facultativa, modalidades deôntica, modalidade volitiva, modalidade epistêmica, modalidade evidencial), dos quais quatro são considerados neste trabalho: modalidade facultativa, modalidade deôntica, modalidade volitiva e modalidade epistêmica. A modalidade facultativa diz respeito às capacidades do participante, que podem ser físicas ou intelectuais. Ela pode ser orientada para o participante (23) – quando o predicado designa o envolvimento do participante na ação –, ou para o evento (24) – caracterizando as condições circunstanciais ou físicas para a ocorrência desse evento (Hengeveld, 2004): (23) ‘Eu não sou capaz de trabalhar.’ I am not able to work. (HENGEVELD, 2004, p. 1194, tradução nossa) (24) ‘Pode levar três horas para chegar lá.’ It can take three hours to get there. (HENGEVELD, 2004, p. 1195, tradução nossa) Em (23), a modalidade facultativa orientada para o participante, por meio do adjetivo em posição predicativa able (capaz) , expressa uma incapacidade física ou intelectual do próprio falante para a realização de um evento. Já em (24), o verbo can ( pode ), um caso de modalidade facultativa orientada para o evento, não diz respeito às capacidades do participante, mas sim às condições circunstanciais ou físicas para que o evento ocorra. A modalidade deôntica refere-se às obrigações, permissões e necessidades legais, sociais ou morais do participante. Ela pode estar orientada para o participante (25) – quando expressa as obrigações ou permissões do participante –, ou para o evento (26) – quando expressa uma obrigação ou permissão de ações dentro de um conjunto de regras ou de leis (Hengeveld, 2004): (25) ‘Eu devo comer.’ I must eat. (HENGEVELD, 2004, p. 1194, tradução nossa) (26) ‘Alguém tem que tirar os sapatos dele daqui.’ 29 One has to take off his shoes here. (HENGEVELD, 2004, p. 1195, tradução nossa) Em (25), o verbo auxiliar modal must ( devo ) expressa uma obrigação orientada para o participante, pois ela recai sobre um participante específico, no caso I (eu) . Já em (26), a expressão has to ( tem que ) se configura como um caso de modalidade deôntica orientada para o evento, pois a obrigação não recai sobre nenhum participante específico, mas tem caráter geral. De acordo com Dall’Aglio Hattnher (2009), o uso da modalidade deôntica voltada para o evento não atribui a responsabilidade de ordens, leis ou obrigações a determinados indivíduos, o que acaba por proteger a face do falante. Palmer (1986) explica que a modalidade deôntica está relacionada a eventos futuros, ou seja, a eventos que no momento da enunciação ainda não ocorreram, mas que têm um grande potencial de acontecer, como se pode ver nos exemplos anteriores. Além disso, o autor relaciona a modalidade deôntica à autoridade do falante: para que a permissão/obrigação possa existir, deve-se haver uma hierarquia entre o falante e o ouvinte, assumindo-se, assim, uma diferença de poderes entre ambos. A modalidade volitiva diz respeito ao que é desejável. Ela pode ser orientada para o participante, quando expressa a vontade ou o desejo do participante engajado no predicado (cf. 27), ou para o evento, quando expressa desejos e vontades caracterizados pelo próprio evento (cf. 28): (27) ‘Nós queremos ir embora.’ We want to leave. (HENGEVELD, 2004, p. 1194, tradução nossa) (28) ‘Seria ruim se eu quebrasse isso.’ It would be bad if I broke it. (HENGEVELD, 2004, p. 1195, tradução nossa) Em (27), o desejo do participante é expresso na sentença pelo verbo pleno want (queremos) . Em (28), tem-se o auxiliar would ( seria ruim ) servindo à expressão da modalidade volitiva orientada para o evento e a inexistência de um participante específico. Hengeveld (2004) também propõe a modalidade volitiva orientada para a proposição, existência eventualmente questionável nas línguas naturais, conforme apontado por Olbertz e Gasparini-Bastos (2013). A modalidade epistêmica refere-se à possibilidade de ocorrência de um evento no mundo. Ela pode ser orientada para o evento (29) – quando a possibilidade está relacionada com o que se sabe sobre o mundo – ou para a proposição (30) – quando o falante se compromete com o que disse (Hengeveld, 2004): 30 (29) ‘Pode chover.’ It may rain (HENGEVELD, 2004, p. 1196, tradução nossa) (30) ‘Provavelmente morreremos por falta de água.’ We’ll probably die for lack of water (HENGEVELD, 2004, p. 1196, tradução nossa) Quando a modalidade epistêmica é orientada para o evento, ela pode ser considerada modalidade epistêmica objetiva (Palmer, 1986), pois o participante expressa possibilidades ou dúvidas sem se comprometer com a responsabilidade do que é dito, como em (29), em que o verbo may (pode) expressa a possibilidade de um fato acontecer em um mundo possível. Já quando orientada para a proposição, é considerada como modalidade epistêmica subjetiva, pois o falante expõe explicitamente a sua atitude comunicativa, expressando o seu ponto de vista, como no exemplo (30), em que a modalidade epistêmica está expressa pelo advérbio de dúvida probably ( provavelmente ), que acaba por expor a incerteza do falante (Hengeveld, 2004). Considerando a relação entre domínio semântico e orientação da modalidade, Hengeveld (2004) propõe o seguinte quadro, que mostra a combinação dos dois parâmetros: Quadro 1 – Relação entre o alvo da avaliação e o domínio semântico Domínio semântico Participante Evento Proposição Facultativo + + - Deôntico + + - Volitivo + + + Epistêmico - + + Fonte: Adaptado de Hengeveld (2004) As possibilidades combinatórias previstas pelo autor correspondem aos valores modais possíveis de serem encontrados nas línguas naturais. 2.4 A modalidade epistêmica e a qualificação do saber Segundo Nuyts (2001), todo julgamento feito pelo falante é baseado em uma evidência. Quando a evidência é baseada nas crenças e conhecimentos do falante, tem-se a modalidade epistêmica. A depender da intenção comunicativa, o falante pode apresentar a evidência na qual se baseou, sendo ele a própria fonte de informação, ou pode omiti-la (Dall’Aglio-Hattnher, 1996). 31 Ao se apresentar como a própria fonte da informação, o falante assume a responsabilidade sobre aquilo que proferiu e pode ser questionado pelo seu ouvinte. A essa descrição, associa-se a modalidade epistêmica subjetiva, relacionada ao julgamento do falante. Quando opta por omitir a fonte de informação, o falante não assume a responsabilidade pelo que diz, criando um distanciamento. A essa descrição, associa-se a modalidade epistêmica objetiva, relacionada à possibilidade da ocorrência de um Estado de Coisas acontecer dentro de um mundo possível. Neves (2021) apresenta os valores semânticos que a modalidade epistêmica, como um todo, engloba e diz que dentro de um continuum esse valor modal se estende de um ponto do possível a um ponto da certeza, transitando entre a possibilidade, probabilidade e dúvida. Ainda de acordo com a autora, os epistêmicos localizados no extremo da certeza manifestam a certeza do falante, ou seja, tem-se o “enunciador que avalia como verdadeiro o conteúdo de seu enunciado, apresentando-o como uma asseveração (afirmação ou negação), sem espaço para dúvida e sem relativização” (Neves, 2021, p. 172), enquanto os epistêmicos localizados no extremo da possibilidade expressam a imprecisão, a falta de conhecimento do falante. Ao estudar os modalizadores epistêmicos e a qualificação do saber nos discursos do ex-presidente Fernando Collor de Mello, Dall’aglio-Hattnher (1995) reitera que não há uma divisão severa no que diz respeito aos modalizadores epistêmicos de certeza e de dúvida. A autora faz o cruzamento dos valores semânticos da modalidade epistêmica (objetiva e subjetiva) com o comprometimento do falante, apresentando o continuum do possível ao certo, conforme figura abaixo: Figura 1 – Continuum entre o certo e o possível Fonte: Dall'aglio-Hattnher, 1995, p. 93. O esquema, baseado na Gramática Funcional de Simon Dik (1997a; 1997b), apresenta, em sua linha horizontal, os diferentes graus manifestados pela modalidade epistêmica, e em 32 sua linha vertical, de cima para baixo, o comprometimento do falante de uma maneira crescente. Nos quadrantes superiores, tem-se a objetividade (modalidade orientada para o evento) e nos quadrantes inferiores, a subjetividade (modalidade orientada para a proposição) (Dall’aglio Hattnher, 1995). Tanto a modalidade epistêmica objetiva (orientada para o evento) quanto a modalidade epistêmica subjetiva (orientada para a proposição) estão relacionadas à qualificação do saber e podem expressar, a depender da intenção comunicativa do falante, certeza, dúvida, incerteza, possibilidade ou probabilidade. Dall’aglio-Hattnher (1995) observa, nos dados investigados referentes aos discursos do ex-presidente Collor, uma alta frequência de elementos ligados à possibilidade. Em princípio, tais elementos poderiam indicar insegurança do presidente sobre suas afirmações, mas na verdade eles servem para criar um distanciamento com a verdade expressa, transformando-se em uma estratégia comunicativa, na qual o falante se furta de sua responsabilidade. A estratégia comunicativa vista por Dall’aglio Hattnher (1995) também foi identificada por Nagamura (2011), ao estudar a expressão da modalidade em obras de autoajuda genérica e em obras de autoajuda voltadas para a área da saúde. O autor constatou que no discurso de autoajuda da área de saúde, o uso de epistêmicos objetivos de possibilidade, orientados para o evento, foi bastante frequente em seu corpus , o que não seria esperado, pois como explica Brunelli (2004), a presença de modalizadores epistêmicos de possibilidade, probabilidade e dúvida não apresentam uma grande representação na autoajuda em comparação com os elementos de certeza, dado que o enunciador do discurso de autoajuda não costuma manifestar dúvidas. Ao empregar tais elementos de possibilidade, o falante “furta-se de responsabilidade sobre essas avaliações, indicando apenas que, de acordo com o conhecimento de mundo disponível, algo é possível ou não.” (Nagamura, 2011, p. 63). Observamos os exemplos oferecidos pelo autor: (31) Em momentos que requeiram decisões, essa pessoa pode facilmente entrar em depressão. (Nagamura, 2011, p. 59) (32) É o caso de uma pessoa comunicativa passar a censurar sua expressão, tornando-se calada. Isso pode causar doenças na garganta. O mesmo acontece com as crianças que são constantemente repreendidas na expressão verbal; geralmente elas apresentam inflamações na garganta. (Nagamura, 2011, p. 60) No exemplo (31), ao utilizar o modalizador epistêmico pode , tem-se a descrição de algo que pode acontecer em um mundo possível, no caso, a pessoa entrar em depressão. No 33 exemplo (32), o mesmo modalizador, pode , tem o valor de possibilidade de que um Estado de Coisas aconteça, no caso uma doença (Nagamura, 2011). Além disso, Nagamura (2011, p. 60) afirma que o falante, ao evitar o comprometimento com a avaliação, seja ela de possibilidade ou de certeza, “torna-se menos parcial, fazendo com que seu discurso se aproxime mais do discurso científico, no qual a parcialidade é uma característica rejeitada.” De acordo com Nuyts (1993) e conforme exemplificado por Nagamura (2011), a modalidade epistêmica subjetiva tem graus diferentes de subjetividade, independentemente de os modalizadores expressarem certeza ou dúvida por parte do falante. O uso de advérbios e locuções adverbiais, por mais que estejam relacionadas ao julgamento do falante, acabam por ocultar a subjetividade (cf. exemplos (33) e (34)), pois não apresentam marcas de pessoa como no caso dos verbos, que quando conjugados na 1ª pessoa denotam maior subjetividade (cf. (35)): (33) Certamente nós conseguiremos alcançar a meta deste mês. (de nossa própria autoria) (34) Provavelmente ele não tirou uma boa nota na prova. (de nossa própria autoria) (35) Acho que se nós só pensarmos em coisas negativas, sempre vamos atraí-las. (de nossa própria autoria) Ao fazer uso dos advérbios certamente e provavelmente , tem-se um disfarce da subjetividade do falante, enquanto o emprego do verbo acho , em 1ª pessoa do singular, mostra maior subjetividade do falante. 2.5 A modalidade deôntica e a expressão da autoridade Austin (1990), em seus estudos da Teoria dos Atos de Fala, a partir de uma visão pragmática da linguagem, faz a distinção entre enunciados constativos, aqueles que descrevem o acontecimento de algum evento, e enunciados performativos, que têm o poder de realizar ações apenas por serem ditos. A partir disso, Austin (1990) divide os enunciados em três diferentes níveis de ação linguística: (i) atos locucionários; (ii) atos ilocucionários; e (iii) atos perlocucionários. Os atos locucionários estão relacionados à ação do dizer. Os atos ilocucionários estão relacionados à intenção comunicativa sobre aquilo que foi dito, refletindo o posicionamento do falante. Já os atos perlocucionários estão relacionados às consequências 34 causadas pelo ato ilocucionário no ouvinte. Ainda de acordo com o autor, os atos ilocucionários performativos estão relacionados a condições de felicidade , ou seja, tais enunciados performativos não podem ser avaliados em termos de verdade. Como exemplo de um ato ilocucionário performativo está o rito do casamento, no qual apenas um juiz pode enunciar a clássica frase “eu vos declaro marido e mulher” e concretizar o casamento. Isso significa dizer que não é o valor de verdade do enunciado que está sendo considerado, mas sim a autoridade do falante de alterar uma realidade ao enunciar “eu vos declaro marido e mulher”. Se o mesmo enunciado for proferido por qualquer outra pessoa, o matrimônio não poderia ser validado, resultando em um ato performativo sem eficácia, por não atender uma condição de felicidade . Uma das maneiras de persuadir o ouvinte e ao mesmo tempo expressar autoridade é o emprego de elementos modalizadores (Gonçalves, 2011). Diferentemente da modalidade epistêmica, na qual o falante tenta persuadir o ouvinte a partir do seu próprio ponto de vista, como visto na seção anterior, a modalidade deôntica apresenta um maior domínio do falante sobre o ouvinte. De acordo com Palmer (1986), para que uma modalização deôntica seja eficaz é necessário assumir a existência de uma hierarquia entre o falante e o ouvinte, a qual diz respeito às condições de poder entre ambos, como, por exemplo, a relação entre pais e filhos, políticos e população, médico e paciente, entre outras. Para Lyons (1977), quando um indivíduo aceita a ordem que lhe foi dada é porque assume que alguém detém o poder de obrigá-lo ou de lhe permitir a fazer algo. Sendo assim, pode-se dizer que a modalidade deôntica está relacionada à autoridade. Heine (1995), ao estudar a modalidade orientada para o agente 6 e a modalidade epistêmica na língua alemã, elabora critérios que distinguem a modalidade orientada para o agente da modalidade epistêmica. São elas: força (F), controle (C), evento (D), referência temporal (L) e factualidade do evento (P) (Heine, 1995). Considere o exemplo do autor em (36): (36) ‘Ele tem que vir.’ He has to come. (Heine, 1995, p. 29, tradução nossa) Em (36), o falante apresenta uma força (F). Para Heine (1995), a força de um enunciado está relacionada ao que é desejado ou não desejado pelo falante. Olbertz (2016), 6 Modalidade orientada para o agente pode ser entendida como modalidade deôntica. 35 em seu estudo de modalizadores não epistêmicos na língua espanhola, situa a modalidade deôntica dentro de um domínio volitivo, pois a ordem (permissão ou proibição) parte do desejo do falante de que alguém a cumpra. Com isso, podemos dizer que a ordem expressa em (36) está relacionada ao desejo do falante somado à sua autoridade diante do ouvinte. O controle (C) está relacionado à controlabilidade que o participante tem sobre o evento, ou seja, a sua capacidade/poder de realizar a ação expressa pelo verbo principal, que, consequentemente, está relacionado a eventos dinâmicos (D), ou seja, que envolvem a manipulação do participante (Heine, 1995). Neves (2000a), também assume que o controle está relacionado ao poder do agente sobre o Estado de Coisas descrito e também à dinamicidade do verbo principal. Ao enunciar (36), supõe-se que o falante está em um nível hierárquico mais elevado do que o ouvinte. Com respeito à referência temporal (L) e à factualidade do evento (P), Heine (1995) associa a modalidade orientada para o agente a um evento futuro e a um evento não factual, como observado em (36), em que o evento ainda não aconteceu. Dentre todos os critérios, o autor afirma que a força (F) e o controle (C) são decisivos para a distinção entre a modalidade orientada para o agente e a modalidade epistêmica, pois estariam relacionados à autoridade do falante. Para expressar essa autoridade, o falante pode fazer o uso de diferentes modalizadores. Em seu estudo sobre a categoria da modalidade em português, Almeida (1986) atesta que a modalidade deôntica pode ser expressa pelos verbos poder , dever , haver de/que e ter de/que . Dentro do continuum da modalidade deôntica, o uso de um ou outro modalizador pode apresentar diferentes valores. Almeida (1986) propõe o esquema abaixo, que organiza diversos valores sêmicos expressos pela modalidade deôntica, mais especificamente pelo verbo poder : Figura 2 –Valores sêmicos da modalidade deôntica Fonte: Almeida, 1988, p. 21. Os valores de sugestão, concessão e autorização estão situados dentro da permissão, ou seja, apresentam diferentes graus de permissão. A sugestão relaciona-se ao menor grau da 36 permissão, uma atenuação, enquanto a autorização está relacionada a um maior grau de permissão. Carrascossi (2003), que estudou verbos modais em português, recorda que o verbo poder está associado ao valor de permissão deôntica e o verbo dever ao valor de necessidade deôntica, que pode ser interna ou externa. De acordo com a autora, a necessidade interna refere-se a questões da própria consciência humana. Já a necessidade externa refere-se a uma obrigação externa ao falante, ou seja, a uma fonte externa. Entre a necessidade interna e externa, a necessidade externa contribui com uma maior imposição (Carrascossi, 2003). Os valores descritos para o português encontram também correspondência no espanhol. Ao estudar o verbo modal poder no espanhol, Rinaldi (2015) aponta a existência de um valor semântico de permissão (exemplo (37)) e um valor semântico de proibição (exemplo (38)) quando tal verbo serve à expressão da modalidade deôntica, como é possível observar nos exemplos discutidos pela autora: (37) No entiendo qué está haciendo el mechón de Moctezuma en el museo de Londres, o el Códice Vaticano en el Vaticano. ¿Por qué no lo regresan? ¿No hay un diplomático que lo pueda pedir? (Rinaldi, 2015, p. 101) ‘Não entendo o que a madeixa de Moctezuma está fazendo no museu de Londres, ou o Código Vaticano, no Vaticano. Por que não devolvem? Não há um diplomata que possa pedir?’ (38) Noten, amigos y amigas, que si yo fuese un hombre no podría decir lo guapa que es mi entrevistada, porque ustedes me llamarían machista, pero al ser una mujer tengo barra libre. (Rinaldi, 2015, p. 113) ‘Percebam, amigos e amigas, que se eu fosse um homem não poderia dizer o quão bonita é minha entrevistada, porque os senhores me chamariam de machista, mas, ao ser uma mulher, tenho carta branca.’ Em (37), o verbo poder expressa a permissão que um diplomata tem para a solicitação de medidas relacionadas às questões culturais e sociais. Já em (38), tem-se uma proibição, a partir da negação anteposta ao verbo modal podría , imposta ao falante de mencionar a beleza da sua entrevistada se fosse homem. Durigon (2015), ao estudar o verbo deber no espanhol, o associa, quando expressa a modalidade deôntica, a valores de necessidade (exemplo (49)), de obrigação (exemplo (40)) e de proibição (exemplo (41)): (39) I.: Y que todo esto, pues lógicamente, en los momentos necesarios, pues que te den la respuesta que aquello necesita E.: Uhum 37 I.: Además con la eficacia que debe tener E.: Uhum. (Durigon, 2015, p. 98) ‘I.: Logicamente, nos momentos necessários, que te deem a resposta que aquilo necessita. E.: Aham. I.: Além disso, com a eficácia que deve ter.’ (40) I.: Yo he dado muchos paseos por toda España ¡y lo sucios que somos los malagueños! Verdaderamente yo veo, en las ciudades, la gente tirando las cosas a las papeleras. ¡Yo no sé! Eso es una cosa que los malagueños debíamos de entonar un mea culpa porque, verdaderamente, la gente es sucia, porque se ve en las playas, que acabas de limpiar la playa, que han pasado la máquina que han pasado esto ¡y a los dos minutos, la mayoría de los plásticos que están en la en el agua son plásticos de gente que los ha tirado. (Durigon, 2015, p. 98-99) ‘Eu dei muitos passeios por toda a Espanha. E como nós malaguenhos somos sujos! Eu vejo, nas cidades, as pessoas jogando as coisas na lixeira. Eu não sei, isso é uma coisa que nós malaguenhos devíamos reconhecer a própria culpa porque as pessoas são sujas. Vê-se nas praias que acabam de limpá-la, que passam a máquina, que passam isto e, em dois minutos, a maioria dos plásticos que está na água são plásticos que as pessoas jogaram.’ (41) I.: Una vez salimos, y ¡claro!, como yo estaba en la tienda y digo “¡bueno! ¡voy a arreglarme un poco!” mi padre “¡no debes de salir! porque ¡hay qué ver!”. (Durigon, 2015, p. 99) ‘Uma vez saímos, e, claro, como eu já estava na loja, disse “vou me arrumar um pouco” e meu pai “você não deve sair porque vai ver só”.’ De acordo com Durigon (2015), a necessidade expressa pelo verbo deber apresenta uma menor força da modalidade deôntica, pois está associada, na maioria dos casos, a participantes não específicos, genéricos. Com isso, o falante acaba por se eximir da responsabilidade, como em (39). A obrigação (40) está relacionada a uma maior autoridade do sujeito quando expressa aquilo que ele acredita ser obrigatório. Já a proibição, exemplificada em (41), como menciona Durigon (2015), apresenta uma maior imposição do falante, proibindo seu ouvinte de realizar alguma ação. As perífrases verbais tener que/tener de e haber que/de , na língua espanhola, também podem servir à expressão da modalidade deôntica, mais especificamente com valores de obrigação (42) e de necessidade (43), como apontado por Nogueira (2019) e por Olbertz (2016): (42) le hice yo la pregunta y cuántos años tienes tú y me dijo veintiuno y le contesté ¡ah! [...] eres de mi eda(d) digo pues mira y mm la verda(d) es que no estoy de acuerdo contigo y tú lo único que tienes que hacer es limitarte a tu trabajo (Nogueira, 2019, p. 81, grifos da autora) ‘Eu fiz a pergunta a ele: ‘e quantos anos você tem?’. Ele me disse: ‘vinte e um’. E eu respondi: ‘ah, [...] você é da minha idade. Olha, a verdade é que eu não concordo com você e a única coisa que você tem que fazer é se limitar ao seu trabalho’ 38 (43) lo hicieron para el presente no para el futuro ¿sabes? que lo_que hay que mirar también es el futuro no es el presente/ hay que mirar el presente ¿me entiendes? pero también el futuro. (Olbertz, 2016, p. 10, grifos nossos) ‘Fizeram-no para o presente e não para o futuro, sabe? que o que se tem que olhar também é o futuro, não o presente, tem que olhar o presente, entende? mas também o futuro.’ 7 No exemplo (42), tem-se a modalidade deôntica expressando uma obrigação imposta pelo falante ao seu ouvinte. Neste caso, há o desejo do falante de que o ouvinte se atente apenas ao seu trabalho (Nogueira, 2019). Já em (43), tem-se uma necessidade deôntica de que se perceba e aprecie não apenas o futuro, mas também o presente no qual se vive (Olbertz, 2016). A depender do contexto comunicativo, o falante pode optar por um ou outro elemento modalizador para expressar a sua autoridade perante o ouvinte. Com isso, o falante lança mão de estratégias comunicativas que irão contribuir para a persuasão que deseja. Essas estratégias comunicativas vão da escolha de um determinado modalizador à escolha de fatores internos, como, por exemplo, a pessoa gramatical do verbo, o tempo verbal, dentre outras possibilidades. Tais estratégias servem para atenuar ou fortalecer a ordem imposta pelo falante. Como apontado por Neves (2021), a modalidade deôntica tende a ser encontrada frequentemente com sujeitos gramaticais de 1ª e 2ª pessoa, tanto no singular quanto no plural, e, assim, ser distinguida, na maioria dos casos, da modalidade epistêmica. Muitas vezes, a escolha entre 1ª e 2ª pessoa contribui para atenuar ou fortalecer uma ordem, permissão ou obrigação expressa pela modalidade deôntica. Observem-se os seguintes exemplos: (44) Você deve limpar seu quarto antes de sair. (45) Nós devemos gastar menos água neste mês. Em (44), tem-se o verbo dever que, neste caso, expressa uma obrigação. O falante ordena a uma segunda pessoa (você) que limpe o quarto antes de sua saída . No exemplo (45), também tem-se o verbo dever servindo à modalidade deôntica que igualmente expressa o valor de obrigação, no caso, gastar menos água durante o mês . Ambos os exemplos apresentam modalizadores deônticos que expressam a obrigação de se realizar uma ação, porém a intensidade da obrigação em (44) é fortalecida, enquanto em 7 Serão oferecidas traduções de própria autoria para os exemplos em língua espanhola, a fim de facilitar a compreensão do leitor não proficiente. 39 (45) é atenuada. A diferença dessa intensidade se deve à fonte. Em (44), a fonte da enunciação e o sujeito que deve realizar a ação de limpar o quarto são distintos. Já no exemplo (45), a fonte da enunciação e o sujeito que deve economizar água são os mesmos, ou seja, a fonte (falante) se inclui na obrigação imposta. Ao estudar a modalidade deôntica em discursos de posse presidenciais, Dall´Aglio-Hattnher (2009) conclui que ao se incluir em uma obrigação a partir do uso da 1ª pessoa do plural, o falante atenua a ordem dada, e que a junção da 1ª pessoa do plural e a atenuação “promovem uma diminuição natural da força da qualificação deôntica, na medida em que neutralizam momentaneamente a posição hierarquicamente superior da fonte deôntica” (Dall´Aglio-Hattnher, 2009, p. 162). Além disso, de acordo com Casimiro (2007), ao se fazer uso da 1ª pessoa do plural, o enunciador se descompromete com a qualificação deôntica e divide a responsabilidade com o seu ouvinte, o que se configura como uma estratégia comunicativa de diluição da responsabilidade. Se por um lado há a divisão de responsabilidades ao se fazer uso da 1ª pessoa do plural, por outro há o reforço da obrigação e um aumento da autoridade e qualificação do falante ao se usar a 2ª pessoa do singular. Ela cria um maior distanciamento entre o falante e o ouvinte, aumentando, também, o nível hierárquico entre ambos, no qual o falante se encontra em uma posição superior à do ouvinte. Outra maneira de atenuação da modalidade deôntica é a indeterminação do sujeito, como podemos ver nos exemplos abaixo: (46) Na cultura oriental, deve-se colocar os sapatos na porta antes de entrar dentro de casa. (47) É necessário que ocorra a preservação do planeta Terra. A impessoalização em (46) foi expressa por um verbo modal que não apresenta um sujeito explícito, e em (47), por um adjetivo em posição predicativa com cópula “ser” conjugada na 3ª pessoa do singular. Em ambos os casos, a impessoalização do sujeito contribui para a não atribuição de responsabilidades de ordens, leis ou obrigações ao falante, protegendo sua face e, ao mesmo tempo, fortalecendo a sua ordem (Dall´Aglio-Hattnher, 2009). 8 8 Esses casos correspondem aos casos descritos por Hengeveld (2004) como casos de orientação para o evento. 40 A determinação do sujeito, em contraste com a indeterminação, causa um efeito de autoridade maior ao falante, pois tem-se a fonte que se dirige a um participante específico, diferente do que ocorre com a impessoalização. A escolha de um determinado tempo verbal também pode ser uma estratégia do falante, como o futuro do pretérito do indicativo. O futuro do pretérito pode fazer uma referência a um acontecimento passado ou a um acontecimento futuro (valor hipotético). O seu uso contribui para a atenuação de ordens, obrigações, permissões impostas pelo falante e, ao mesmo tempo, protege sua face (Carrascossi, 2003): 9 (48) eu acho que nós somos muito ricos nesse material do a/ do ator...direções ótimas...mas às vezes textos indigentes...apelativos...então eu fiquei muito tempo sem ir ao teatro...ah::ultimamente de coisas boas que eu tenho visto...ah::...deixa eu ver...eu (não)...quer dizer eu não poderia dizer assim a rigor porque muitos espetáculos me escaparam...um deles que eu gostei...mas que não é um espetáculo brasileiro...porque::...foi todo adapTAdo do...do musical...americano...foi o ̀Dom Quixote'...com a Bibi Ferreira... (Carrascossi, 2003, p. 64) Os elementos modalizadores deônticos podem ter o valor de obrigação reforçado pela ocorrência com formas do modo imperativo, que enquanto modalidade de frase está associado a obrigações. Nesse caso, o enunciador deve estar em um posto de autoridade mais alto do que o de seu ouvinte. Ueda (2014), que investigou o efeito dos elementos modalizadores em obras de autoajuda dirigidas para a terceira idade, mostra que o enunciador desse tipo de texto é comumente alguém conhecedor e detentor de saberes em relação ao enunciatário. Nos dados analisados pela autora, as ocorrências de imperativo junto aos modalizadores deônticos ajudam a reforçar o tom de autoridade. Observemos um exemplo: (49) Você deve praticar algum tipo de exercício físico, seja uma simples caminhada ou um treino de karatê, a depender do seu estado de saúde. Faça o que seu corpo aguentar, mas mantenha-se ativo. (UEDA, 2014, p. 77, grifos nossos) No exemplo (49), a presença dos verbos no modo imperativo ( faça , mantenha-se ) junto ao modalizador deôntico deve , reforça a obrigação imposta pelo falante de que o ouvinte pratique algum tipo de atividade física. Por outro lado, a coocorrência de modalizadores deônticos com modalizadores epistêmicos pode causar a passagem de um valor modal a outro, conforme observado por 9 As observações feitas sobre o emprego dos tempos verbais em português também se aplicam ao espanhol. 41 Gasparini-Bastos e Brunelli (2019), em obras de autoajuda no português. Vejamos o exemplo oferecido pelas autoras: (50) E, pior, o isolamento pode se transformar em depressão e, definitivamente , você não precisa de mais uma questão para lidar. (Gasparini-Bastos; Brunelli, 2019, p. 269, grifos dos autores) Em (50), há a presença de um modalizador epistêmico de dúvida ( pode ) seguido de um modalizador epistêmico de certeza ( definitivamente ) e de um modalizador deôntico ( não precisa ). Conforme apontam as autoras, na ocorrência, a “proximidade desses elementos revela o ‘deslizar’ de uma modalidade a outra e a construção de um tom de convicção” (Gasparini-Bastos; Brunelli, 2019). Como podemos observar, o falante lança mão de estratégias comunicativas para ora reforçar ora atenuar sua ordem, permissão, proibição, protegendo a sua face e se descomprometendo ou não com o que foi dito. 2.6 A Gramática Discursivo-Funcional (GDF) A classificação de modalidade adotada para a presente investigação (Hengeveld, 2004) insere-se dentro do quadro teórico da Gramática Discursivo-Funcional, modelo teórico proposto por Hengeveld e Mackenzie (2008), representante do Funcionalismo de linha holandesa. Por essa razão, e também considerando que alguns critérios de análise associam-se às unidades que integram a arquitetura do modelo, faz-se necessário apresentá-lo, ainda que sucintamente. A Gramática Discursivo-Funcional (doravante GDF), é um modelo teórico estrutural-funcional: estrutural por apresentar uma organização top down descendente, e funcional por analisar os elementos linguísticos a partir da interação entre os falantes e entender a língua como uma instrumento de interação social. Dentro do continuum dos tipos de funcionalismo linguístico, a GDF é considerada uma teoria moderada, o que significa dizer que se encontra no centro desse continuum funcional, diferenciando-se de uma teoria funcional radical que nega “a realidade da estrutura, e considera que as regras se baseiam internamente na função, não havendo, pois, restrições sintáticas.” (Neves, 1997, p. 56) e de uma teoria funcional conservadora, que aponta “a inadequação do formalismo ou do estruturalismo, sem propor uma análise da estrutura.” 42 (Neves, 1997, p. 55). A GDF, além de mostrar a inadequação presente no formalismo linguístico, propõe “uma análise funcionalista da estrutura.” (Neves, 1997, p. 55). A Gramática Funcional (doravante GF), proposta por Dik (1997a; 1997b) foi a base para a criação da GDF. Assim como a sua sucessora, a GF apresenta uma organização da oração em níveis estruturais associados a tipos de entidades linguísticas (ato de fala, fato possível, estado de coisas, indivíduo, propriedade) (Dik, 1997a). Tais níveis e entidades apresentam uma hierarquia entre si e fazem parte da clause (oração), objeto de análise da GF. A principal diferença entre a GF e a GDF são os seus objetos de análise básica. Enquanto o objeto de análise da GF é a clause , o da GDF é o Ato Discursivo . Por mais que a GF de Dik tenha contribuído para os estudos linguísticos, o seu objeto de análise não contemplava unidades importantes de análise maiores ou menores que a oração. Hengeveld e Mackenzie (2008), mantendo a ideia de estruturação em camadas prevista no modelo de Dik, apresentam um modelo teórico que tem como unidade básica de análise o Ato Discursivo , que pode se constituir de unidades menores que a oração, como vocativos, respostas a perguntas, ou frases convencionalizadas, ou até mesmo de unidades maiores que a oração, nas quais o contexto discursivo deve ser levado em consideração para que tais unidades consigam ser explicadas (Keizer, 2015). A estrutura descendente do modelo teórico da GDF é composta por componentes pragmáticos, semânticos, morfossintáticos e fonológicos, que estão organizados hierarquicamente em níveis e camadas, como podemos observar na figura 3: 43 Figura 3 – Arquitetura geral da GDF Fonte: Traduzido de Hengeveld e Mackenzie, 2008, p. 13. O modelo é composto por quatro componentes: Componente Conceitual, Componente Gramatical, Componente de Saída e Componente Contextual. O componente Conceitual está relacionado à intenção comunicativa do falante a partir de contextos extralinguísticos formulados em sua mente, que, por esses motivos, constitui-se como o componente responsável pela força motriz do Componente Gramatical. O Componente Gramatical é responsável pela gramática da língua e é considerado a própria GDF. O Componente de Saída realiza as representações acústicas ou escritas advindas do Componente Gramatical. O Componente Contextual é uma descrição do conteúdo, ou seja, do contexto comunicativo, que traz informações relacionadas às relações sociais entre os participantes de um evento (Hengeveld; Mackenzie, 2008). Os Componentes Conceitual, Contextual e de Saída são não-gramaticais e interagem com o Componente Gramatical através dos processos de Formulação e de Codificação, como é possível verificar na figura anterior. Além da interação com os componentes da GDF, os 44 processos de Formulação e de Codificação também interagem com os níveis de análise do modelo teórico, que estão representados no Componente Gramatical. São eles: Nível Interpessoal, Nível Representacional, Nível Morfossintático e Nível Fonológico. O processo de Formulação interage com os Níveis Interpessoal e Representacional através das “regras que determinam aquilo que constitui representações semânticas e pragmáticas subjacentes válidas em uma língua.” (Hengeveld; Mackenzie, 2012, p. 44). Já o processo de Codificação interage com os Níveis Morfossintático e Fonológico, através de “regras que convertem essas representações semânticas e pragmáticas em representações fonológicas e morfossintáticas.”. (Hengeveld; Mackenzie, 2012, p. 44). O Nível Interpessoal tem relação com a pragmática, sendo responsável pelas estratégias mentais do falante antes de formular enunciados. O Nível Representacional, por sua vez, é um nível semântico encarregado da codificação do que é processado no Nível Interpessoal, oferecendo às representações uma roupagem para as suas designações no mundo real. Já o Nível Morfossintático é responsável pelas estruturas e formas de uma unidade linguística. O último nível, o Nível Fonológico, é responsável por todos os aspectos de codificação não englobados pelo Nível Morfossintático, recebendo, também, o input dos outros três níveis para o Componente de Saída (Hengeveld; Mackenzie, 2008). Os dois últimos níveis juntos (Nível Morfossintático e Nível Fonológico) cuidam da codificação das distinções interpessoais e representacionais. Considerando que o interesse do presente trabalho é a análise de elementos modais, que na arquitetura do modelo se alojam no Nível Representacional, apresentamos, na sequência, um detalhamento apenas deste nível. 2.6.1 O Nível Representacional e as modalidades A GDF assume a classificação de modalidade proposta por Hengeveld (2004), porém com alguns ajustes necessários ao modelo teórico, levando em consideração a organização hierárquica das camadas. As modalidades, dentro da GDF, por se configurarem como uma categoria semântica, atuam no Nível Representacional (NR). Nas palavras de Keizer (2015), o Nível Representacional é o responsável por preencher com um conteúdo semântico o que advém do Nível Interpessoal, ou seja, “com descrições de entidades que ocorrem em algum mundo não-linguístico” (Keizer, 2015, p. 103) 10 . 10 No texto original: [...] with descriptions of entities as they occur in some non-linguistic world . 45 As entidades do NR podem pertencer a diferentes categorias ontológicas, como, por exemplo, objetos (contáveis e incontáveis), eventos (ação e estado), propriedades, lugares e tempo (Keizer, 2015). As quatro categorias semânticas mais importantes para a análise de elementos no NR são: Conteúdo Proposicional (p), Estado de Coisas (e), Propriedade Configuracional (f) e Indivíduo (x). Tais categorias são classificadas como “ordens de entidades” (Lyons, 1997, p. 442-77 apud Keizer, 2015, p. 105). O NR é composto pelas seguintes camadas: Conteúdo Proposicional (p), Episódio (ep), Estados de Coisas (e) e a Propriedade Configuracional (f), composta por Indivíduos (x) – objetos concretos, localizados no tempo e espaço – e pelas Propriedades Lexicais (f) – avaliadas em termos de aplicabilidade, não tendo uma existência independente. (Hengeveld; Mackenzie, 2008). O Conteúdo Proposicional (p), unidade mais alta do Nível Representacional, é definido como um construto mental, tais como crenças, desejos ou conhecimentos do falante (Hengeveld; Mackenzie, 2008), não podendo ser tocado, ouvido ou visto, apenas avaliado em termos de verdade, sendo considerado uma entidade de terceira ordem. Os Conteúdos Proposicionais podem ser classificados como factuais – relacionados a conhecimentos, crenças ou desejos sobre o mundo real – ou não-factuais – relacionados a desejos e crenças de um mundo imaginário. El