p ROBERTA STUBS PARPINELLI A/R/TOGRAFIA DE UM CORPO-EXPERIÊNCIA: arte contemporânea, feminismos e produção de subjetividade Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutora em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientador: Fernando Silva Teixeira Filho ASSIS 2015 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Parpinelli, Roberta Stubs P258a A/r/tografia de um corpo-experiência: arte contemporânea, feminismos e produção de subjetividade / Roberta Stubs Parpi- nelli. - Assis, 2015 276 f. : il. Tese de Doutorado - Faculdade de Ciências e Letras de Assis- Universidade Estadual Paulista. Orientador: Prof. Dr. Fernando Silva Teixeira Filho. 1. Arte contemporânea. 2. Produção de subjetividade. 3. Cor- po como suporte da arte. 4. Devir (Conceito filosófico). 5. Femi- nismo e arte. I. Título. CDD 157.9 701.15 AGRADECIMENTOS Ao meu professor Dr. Fernando Silva Teixeira Filho que me deu liberdade criativa para fazer dessa pesquisa um processo quase experimental de produção de conhecimento. Obrigada pelo carinho, pelas trocas que tivemos, por sempre ter acreditado em mim e pela orientação. À banca de qualificação que deu uma direção mais potente para minha pesquisa. Prof. Drª. Tânia Mara Galli de Fonseca e Prof. Drª. Angela Donini, muito obrigada. À banca de defesa composta por: Prof. Dr. Wiliam Siqueira Peres, Prof. Drª. Angela Donini, Prof. Drª. Dolores Galindo, Prof. Drª. Luana Saturnino Tvardovskas. Aos professores suplentes Drª. Margareth Rago, Drª. Patricia Lessa e Dr. Leonardo Lemos. Ao Prof. Dr. Wiliam Siqueira Peres pela amizade e pelas subversivas conversas. Aos professores do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unesp-Assis., por terem proporcionado ricas discussões e debates em sala de aula. À secretaria do programa de Pós-graduação em Psicologia da Unesp-Assis, pelo suporte e pela prontidão no atendimento e resolução de problemas. Ao meu amado companheiro Ademir Kimura que me deu suporte, tranqüilidade, amor e condições afetivas para que essa pesquisa pudesse ser desenvolvida. Obrigada pelo carinho, pelo companheirismo e por sua presença em minha vida. À minha família que sempre está do meu lado acompanhando e comemorando cada conquista. Obrigada pai Jair Parpinelli, irmãos Rejane, Rafael e Carolina, tia Natalina e minha sobrinha Natalia. Amo muito todos vocês. Aos meus amigos queridos que acompanharam minha escrita, minhas dúvidas e ansiedades. Rozilda das Neves, Aline Sanches, Ana Elisa Penha, Rogério Felipe, Elizabeth Moro, Sheila Martins, Marco Antonio, Tatiana Gabas, Gislaine Pagotto, Carolina Pera, Saulo Luders, Gabriela Marques, muito obrigada! À Mayara Blasi pelas palavras, pelo bom humor e pela amizade. Aos colegas da pós e do grupo de pesquisa, Sandra Sposito, Rogério Melo, Bruno Pereira, Anna Paula Oliveira, Juliana Bessa, Marcos Klipan, Guilherme Elias Silva e Ednéia Zaniani. À Fernanda Magalhães pela gentileza de me receber em sua casa, de me ceder uma entrevista, pelas trocas e amizade. Ao meu cachorro Shoyú que vez ou outra fica do meu lado enquanto escrevo. Aos meus ex e futuros alunos. À minha mãe Doralice Stubs Parpinelli in memoriam. À FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) que possibilitou que eu me dedicasse totalmente à pesquisa. Obrigada pelo suporte e por dar condições para a participação em eventos e cursos deveras importantes. PARPINELLI, S. Roberta. A/r/tografia de um corpo-experiência: arte contemporânea, feminismos e produção de subjetividade. 2015. 276 f. Tese (Doutorado em Psicologia). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis-SP, 2015. RESUMO A partir da minha experiência como psicóloga e artista visual me propus nessa pesquisa a criar intercessores entre psicologia e arte contemporânea para pensar e produzir modos de subjetivação afeitos ao devir e às multiplicidades. Acreditando na relevância ética, estética e política de se investir na produção de subjetividades plurais e pós-identitárias, o objetivo dessa pesquisa é explorar a arte como um vetor de subjetivação capaz, potencialmente, de enriquecer e singularizar nossos campos de experiências. Positivando as diferenças enquanto alteridade, tal enriquecimento pressupõem tanto a desconstrução de valores e normas que nos são dados como prontos e imutáveis, quanto à assunção de um gosto pela vida sem distinção de raças, gêneros, classes, etnias ou espécies. Falamos, pois, da arte como meio para resignificar nossas relações com o mundo e conosco, como via para criar outros modos de pensar e viver nossas práticas, desejos e valores. Nessa perspectiva, em interface com os feminismos no que eles têm de força transformadora, subversiva e inventiva, utilizei recursos imagéticos e literários para criar outras figuras de subjetividade, outras figurações para o corpo e para o sujeito. Figurações nômades, ciborgues e híbridas convocadas para pensarmos modos de subjetivação múltiplos e pós-identitários, menos atados a essencialismos e naturalizações que justificam hierarquias de poder. Utilizando a A/r/tografia como método, pude aqui falar de arte fazendo arte. Nesse percurso, ao explorar algumas de minhas proposições, assim como a de vários outros artistas, tracei um trajeto repleto de marcas, memórias e referências que foram cartografadas para fazer ver os mapas intensivos que moveram a pesquisa. São essas intensidades que apontam para o plano das forças moleculares e micropolíticas implicadas no percurso do pesquisar. A/r/tografar essas forças foi o modo que encontrei para dar forma a alguns gestos de resistência à lógica biopolítica que anestesia e dociliza nossos corpos e subjetividade. Gestos que se materializaram em proposições artísticas movidas por um desejo intenso de escapar e criar saídas às forças que segregam a vida e nos capturam por todos os lados, nos subjetivando por dentro e por fora. Combinando arte, feminismos e psicologia, busquei experimentar e produzir um conhecimento crítico e sensível, capaz de mobilizar em nossos corpos e subjetividade um poder de afetar e ser afetado. Sob outro umbral de sensibilidade é possível dar passagem aos fluxos minoritários da vida e nos experimentarmos enquanto outro. Talvez assim, como corpo sensível e aberto às forças do mundo, podemos pensar uma arte de viver que afirme a vida em sua exuberância e multiplicidade. palavras-chave: figurações pós-identitárias. produção de subjetividade. arte contemporânea. devir. feminismos PARPINELLI, S. Roberta. A/r/tografy of a body-experience: contemporary art, feminisms, and production of subjectivity: 2015. 276 f. Thesis (PHD in Psychology)– Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis-SP, 2015. ABSTRACT Using my experience as a psychologist and visual artist, with this research I come up with the proposal to create intercessors between art and psychology in order to think and produce forms of subjectivity affected to becoming and multiplicities. Believing in the ethic, aesthetic and political relevancy in investing in the production of plural and post-identitarian subjectivities, this research explores art as a vector potentially capable of enriching and singularizing our experience fields. The differences are been positivated as alterity, and this enrichment assumes, at the same time, the deconstruction of values and rules that sets us as ready and immutable, and the assumption of a new taste for life without any distinction of gender, ethnicity, species or class. We are talking, therefore, about art as means to remean our relations with ourselves and with the world, as a route to create new ways of thinking and living our practises, desires and values. In this perspective, in interface with the feminisms in what they have of transforming, subversive and inventive power, I used imagetic and literary resources to create other figures of subjectivity, other figurations for the body and the subject. Nomads, ciborgue and hybrid figurations are assembled as a device for us to think about multiple and post identitarian forms of subjectivization which are less tied up to essentialisms and naturalizations that justify hierarchies of power. Using a/r/tography as a method, I could hereby talk about art doing art. While exploring some of my propositions, and also various artists’ propositions, I depict a track full of impressions, memories and references that were charted in order to envision the intensive maps that propelled this work. These intensities lead to the plan of molecular and micropolitic forces that are implied in the course of researching. Adopting a/r/tography to better understand these forces was the way that I found to shape some resistance gestures to the biopolitic logic responsible for deaden and docilizate our bodies and subjectivity. Gestures are materialized into artistic propositions moved by an intense desire of creating new exit points to escape from the forces that segregate life; the forces that capture us all around, subjectivizating our inner and outer self. Combining art, feminisms and psychology I have tried to produce a critical and sensitive knowledge capable of mobilizing in our bodies and subjectivity a power to affect and being affected. Under another threshold of sensitivity it is possible to allow minority flows of life to surge, and experience ourselves while others. And perhaps, being a sensitive body opened to the forces of the world will depict an art of living that affirms life in its exuberance and multiplicity. Key-words: post identitarian figurations. production of subjectivity. contemporary art. becoming. feminisms Lista de ilustrações Fig. 1, Roberta Stubs, frames do vídeo Passos, 2011..........................................................................46 Fig. 2, Roberta Stubs, frames do vídeo Passos, 2011..........................................................................48 Fig. 3, Roberta Stubs, frames do vídeo Passos, 2011..........................................................................49 Fig. 4, Roberta Stubs, Hoje eu encontrei uma vida, 2012.....................................................................50 Fig. 5, Roberta Stubs, Hoje eu encontrei uma vida, 2012.....................................................................51 Fig. 6, Roberta Stubs, Das coisas que esquecemos de lembrar, 2012.................................................53 Fig. 7, Roberta Stubs, Um bom lugar para memórias, 2011.................................................................54 Fig. 8, Roberta Stubs, vídeo Flor em vermelho luz, 2011.....................................................................55 Fig. 9, Roberta Stubs, frames do vídeo Hoje eu acordei e quis sair correndo, 2011............................56 Fig. 10, Roberta Stubs, frames do vídeo estético-movement, 2011......................................................57 Fig. 11, Frames do vídeo Inscrição em Pele de plástico-orgânico, 2011..............................................60 Fig. 12, Foto da Instalação Pele, realizada na Unesp-Assis, 2012.......................................................61 Fig. 13, Roberta Stubs, Corpo poroso, 2012.........................................................................................62 Fig. 14, Corpos-casulos, oficina de emplastificação, 2012....................................................................63 Fig. 15, Roberta Stubs, Instalação plástica-orgânica de multiplicação de eu's, 2011...........................64 Fig. 16, Roberta Stubs, Entre-corpos, 2013-2014.................................................................................66 Fig. 17, Roberta Stubs, Um mesmo outro corpo, 2012-14....................................................................67 Fig. 18, Roberta Stubs, Cortes em vermelho luz, 2015.........................................................................68 Fig. 19, Roberta Stubs, Sem título, 2015...............................................................................................70 Fig. 20, Yves Klein, O salto no vazio, 1960...........................................................................................78 Fig. 21, Baroness Elsa von Freytag, God, 1917, Marcel Duchamp, Fonte, 1917..........................79 Fig. 22, Roberta Stubs, Estado transitório da vida, 2011......................................................................81 Fig. 23, Roberta Stubs, Sem Título, 2014.............................................................................................83 Fig. 24, Roberta Stubs, E disse isso a ela com carinho, 2010..............................................................85 Fig. 25, Roberta Stubs, Hoje eu encontrei uma vida, 2011...................................................................87 Fig. 26, Sophie Calle, Cuide de você, 2007..........................................................................................90 Fig. 27, Roberta Stubs,Salto alto, 2013.................................................................................................92 Fig. 28, Rosana Palazyan, Coleção de sementes Daninhas , 2014.....................................................92 Fig. 29, Rosana Palazyan, Rosa daninha?, 2013.................................................................................93 Fig. 30, Leticia Parente, Preparação I, 1975.........................................................................................97 Fig. 31, Leticia Parente, In, 1975...........................................................................................................98 Fig. 32, Leticia Parente, Made in Brasil, 1975.......................................................................................99 Fig. 33, Roberta Stubs, Das coisas que esquecemos de lembrar, 2011.............................................102 Fig. 34, Mathew Barney, Cremaster, 1994-2002.................................................................................108 Fig. 35, Roberta Stubs, Exposição P.L.Á.S.T.I.C.O.S, 2013...............................................................112 Fig. 36, Lygia Clark, Objetos Relacionais, 1966..................................................................................118 Fig. 37, Lygia Clark, estruturação do self, 1976-88.............................................................................120 Fig. 38, Roberta Stubs, Um mesmo outro corpo, 2012-2014..............................................................122 Fig.39, Roberta Stubs, Entre-corpos, 2013-2014................................................................................124 Fig. 40, Ana Mendieta, Silhueta, 1970.................................................................................................125 Fig. 41, Ana Mendieta, Silhueta, 1976.................................................................................................126 Fig. 42, Marta Soares, Vestígios, 2008...............................................................................................127 Fig. 43, Marta Soares, Vestígios, 2008...............................................................................................127 Fig. 44, Fernanda Magalhães, A natureza da vida,.2011-2015 .........................................................131 Fig. 45, Fernanda Magalhães, A natureza da vida,Performance realizada na UEM, 2014................131 Fig. 46, Luana Navarro, Micro -resistência, 2008-2011.......................................................................132 Fig. 47, Roberta Stubs, Sem título, 2014.............................................................................................136 Fig. 48, Roberta Stubs, Corpos Intensivos, 2014................................................................................137 Fig. 49, Felix Gonzalez-Torres, Untitled(For Stockholm) 1992............................................................138 Fig. 50, Lygia Pape, T-téia n°1, 2002..................................................................................................139 Fig. 51, Roberta Stubs, Um mesmo outro, 2014................................................................................140 Fig. 52, Roberta Stubs, Sem título, 2015.............................................................................................141 Fig. 53, Roberta Stubs, Sem título, 2015.............................................................................................143 Fig. 54, Francis Alys, Quando a fé move montanhas, 2002................................................................159 Fig. 55, Félix Gonzalez-Torres, Untitled, 1992....................................................................................161 Fig. 56, Félix Gonzalez-Torres, Perfect Lovers, 1987.........................................................................162 Fig. 57, Félix Gonzalez-Torres, Untitled "Placebo", 1991....................................................................162 Fig. 58, Judy Chicago, The dinner party, 1974-79...............................................................................173 Fig. 59, The dinner party, detalhe da obra...........................................................................................173 Fig. 60, Mary Beth Edelson, Some living american women artists / Last supper, 1971......................174 Fig. 61, Mary Beth Edelson, A morte do patriarcado / A lição de anatomia de A.I.R, 1976................175 Fig. 62, Rembrandt, A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, 1632..............................................................175 Fig. 63, Cartaz produzido pelas Guerrilla Girls, 1989..........................................................................180 Fig. 64, Cartaz produzido por Barbara Kruger, 1989...........................................................................181 Fig. 65, Barbara Kruger, We won't play nature to your culture, 1983..................................................181 Fig. 66, Cindy Sherman, Untitled Film Still n.54, 1980........................................................................187 Fig. 67, Cindy Sherman, Untitled 355, 2000........................................................................................188 Fig. 68, Cindy Sherman, Untitled 468, 2008........................................................................................188 Fig. 69, Robert Morris, Sem título, 1965..............................................................................................197 Fig. 70, Carolee Schneemann, Rolo Interior, 1975.............................................................................200 Fig. 71, Hannah Wilke, Super-T-Art, 1974..........................................................................................201 Fig. 72, Lygia Clark, Os Bichos, 1960-64; Lygia Pape, Divisor, 1968; Hélio Oiticica, Parangolés,1965-1969.................................................................................................................205 Fig. 73, Joana Corona, Floema, 2011.................................................................................................210 Fig. 74, Cecily Brown, Couple, 2003/4................................................................................................220 SUMÁRIO PRÉLUDIO..............................................................................................................................................................11 APRESENTAÇÃO..................................................................................................................................................16 PARTE 1 - DEVIRES: A ESCRITA DE UM CORPO EM EXPERIÊNCIA .............................................................43 Como costurar estrelas enquanto flores crescem em meu peito. ........................................................45 Um mesmo outro corpo..............................................................................................................................59 PARTE 2 - (IM)PERMANÊNCIAS: PISTAS E LINHAS DE COMPOSIÇÃO..........................................................72 Um novo gosto pela vida............................................................................................................................75 Coeficiente artístico / coeficiente vida.......................................................................................................77 Da matéria bruta à matéria sensível.........................................................................................................80 Poéticas do cotidiano................................................................................................................................83 Sobre derivas e nomadismos....................................................................................................................85 Heterotopias de proximidades .................................................................................................................87 A escrita de si...........................................................................................................................................89 O pessoal é político..................................................................................................................................94 Uma poética de vestígios.........................................................................................................................99 Das coisas que esquecemos de lembrar................................................................................................101 De corpo aberto para o mundo.................................................................................................................105 Sobre a subjetividade ciborgue, um híbrido pós-identitário....................................................................107 O plástico como intercessor para experiências de sensibilização: por uma clínica das sensações......111 Corpo/experiência/sensação, Lygia Clark e a arte como proposição.....................................................116 Corpo em devir........................................................................................................................................122 Um corpo que se despe e se refaz.........................................................................................................129 Corpos intensivos....................................................................................................................................136 Margens em dissolução, a desmaterialização do corpo. .......................................................................139 PARTE 3 - ENSAIOS ACADÊMICOS...................................................................................................................145 Um pouco de /im/possível senão eu sufoco..........................................................................................146 Como falar de coisas que não existem: o /im/possivel como categoria estética...................................152 Heterotopias e a arte como interstício social.........................................................................................157 Corpos, gêneros, subversões e resistências: sobre estéticas feministas nas artes visuais...........165 Por uma estética feminista.....................................................................................................................166 As mulheres recontam a história da arte...............................................................................................170 A que mulheres nos referimos quando falamos de mulheres? ............................................................177 O corpo como campo de batalhas..........................................................................................................179 Nem mulheres, nem homens: somos múltiplos, somos multidão...........................................................183 Por uma política do sensível: arte, corpo e experiência.......................................................................193 Arte e experiência singular.....................................................................................................................193 Experiência estética para além da percepção visual..............................................................................196 O corpo como conceito expandido.........................................................................................................198 A arte como proposição e o público como participador..........................................................................203 A lógica das sensações..........................................................................................................................206 A aventura de criar-se..............................................................................................................................214 Alargamentos rizomáticos......................................................................................................................219 Modos singulares de subjetivação.........................................................................................................224 Algumas formas de captura: armadilhas biopolíticas e identitárias...................................................231 Corpos ortopédicos e subjetividades dóceis..........................................................................................232 Um estado de alienação autônoma: sobre o controle de fluxos e devires............................................236 As capturas identitárias..........................................................................................................................239 O jogo implícito na afirmação da identidade..........................................................................................245 Por uma afirmatividade sem negatividade.............................................................................................249 Pós-escritos (conclusão).......................................................................................................................................253 Referencias bibliográficas.....................................................................................................................................260 Anexos..................................................................................................................................................................273 SUMÁRIO PRÉLUDIO..............................................................................................................................................................11 APRESENTAÇÃO..................................................................................................................................................16 PARTE 1 - DEVIRES: A ESCRITA DE UM CORPO EM EXPERIÊNCIA .............................................................43 Como costurar estrelas enquanto flores crescem em meu peito. ........................................................45 Um mesmo outro corpo..............................................................................................................................59 PARTE 2 - (IM)PERMANÊNCIAS: PISTAS E LINHAS DE COMPOSIÇÃO..........................................................72 Um novo gosto pela vida............................................................................................................................75 Coeficiente artístico / coeficiente vida.......................................................................................................77 Da matéria bruta à matéria sensível.........................................................................................................80 Poéticas do cotidiano................................................................................................................................83 Sobre derivas e nomadismos....................................................................................................................85 Heterotopias de proximidades .................................................................................................................87 A escrita de si...........................................................................................................................................89 O pessoal é político..................................................................................................................................94 Uma poética de vestígios.........................................................................................................................99 Das coisas que esquecemos de lembrar................................................................................................101 De corpo aberto para o mundo.................................................................................................................105 Sobre a subjetividade ciborgue, um híbrido pós-identitário....................................................................107 O plástico como intercessor para experiências de sensibilização: por uma clínica das sensações......111 Corpo/experiência/sensação, Lygia Clark e a arte como proposição.....................................................116 Corpo em devir........................................................................................................................................122 Um corpo que se despe e se refaz.........................................................................................................129 Corpos intensivos....................................................................................................................................136 Margens em dissolução, a desmaterialização do corpo. .......................................................................139 PARTE 3 - ENSAIOS ACADÊMICOS...................................................................................................................145 Um pouco de /im/possível senão eu sufoco..........................................................................................146 Como falar de coisas que não existem: o /im/possivel como categoria estética...................................152 Heterotopias e a arte como interstício social.........................................................................................157 Corpos, gêneros, subversões e resistências: sobre estéticas feministas nas artes visuais...........165 Por uma estética feminista.....................................................................................................................166 As mulheres recontam a história da arte...............................................................................................170 A que mulheres nos referimos quando falamos de mulheres? ............................................................177 O corpo como campo de batalhas..........................................................................................................179 Nem mulheres, nem homens: somos múltiplos, somos multidão...........................................................183 Por uma política do sensível: arte, corpo e experiência.......................................................................193 Arte e experiência singular.....................................................................................................................193 Experiência estética para além da percepção visual..............................................................................196 O corpo como conceito expandido.........................................................................................................198 A arte como proposição e o público como participador..........................................................................203 A lógica das sensações..........................................................................................................................206 A aventura de criar-se..............................................................................................................................214 Alargamentos rizomáticos......................................................................................................................219 Modos singulares de subjetivação.........................................................................................................224 Algumas formas de captura: armadilhas biopolíticas e identitárias...................................................231 Corpos ortopédicos e subjetividades dóceis..........................................................................................232 Um estado de alienação autônoma: sobre o controle de fluxos e devires............................................236 As capturas identitárias..........................................................................................................................239 O jogo implícito na afirmação da identidade..........................................................................................245 Por uma afirmatividade sem negatividade.............................................................................................249 Pós-escritos (conclusão).......................................................................................................................................253 Referencias bibliográficas.....................................................................................................................................260 Anexos..................................................................................................................................................................273 Aqueles que não tem imaginação buscam refúgio na realidade, resta saber se o não- pensamento contamina o pensamento. (Jean Luc Godard) Prélúdio manifesto ético-estético-político-espistemológico Você entrou, e isto é uma ficção real de coisas da minha própria vida. Já de aviso, minha própria vida às vezes não tem nome próprio e os fatos reais são sempre narrativas, uma ficção da minha memória, sem passado, presente ou futuro, e com tudo isso junto. Por isso minha escrita é um exercício imaginativo mais ou menos autobiográfico. Aqui serei uma testemunha modesta1 da minha própria experiência como psicóloga, artista e alguém que se propõe a produzir subjetividade e novas relações com a vida - ou que pelo menos está disposta a isso. Num tempo onde podemos ter longo alcance, desaprendemos a realizar o impossível e não acreditamos que podemos ainda fazer a revolução. Eu acredito nessa revolução, e essa é minha proposta ética-estética-política para pensar a produção de subjetividade no contemporâneo. Não posso mais olhar o mundo em linha reta, só vejo contornos e uma (des)ordenação dos nossos afetos, desejos, práticas e fluxos gerais. Como eles variam e funcionam? Que quebras e aberturas conseguimos localizar? Nessa ficção étíca-estética-política, meu pensamento inquieto não se basta em interpretações/representações sobre o real. Ele quer se (in)completar na experimentação de palavras, conceitos e proposições que possam fazer algum sentido para este agora. Faço parte de meu tempo e uma forma de ser coerente com este presente é experimentando-o e tensionando-o em seus limites e em minhas limitações dentro dele. Sou uma testemunha modesta de cada escolha, direção e dúvida que me trouxeram até aqui. Não me lembro de todas, outras eu realmente desconheço; mas de vez em quando eu penso nisso, e sei que elas estão todas em mim. Por isso resolvi ligar meu corpo com meu pensamento e me atentei a experimentar. Falar e fazer, pensar e agir, logo viraram pares. Tomada por algumas linhas de pensamento falo sobre arte, estética, gêneros e modos inventivos de subjetivação, e isso me fez entrar num espaço que é sempre descoberta. Acredito que nesse espaço, minhas linhas talvez virem movimento puro, se combinem, se (des)organizem e passem a funcionar em função do amplo. Uma variação de pequenas ênfases que ganham formas e funcionamentos diversos em minhas práticas. Falo de uma espécie de substrato a partir do qual costuro proposições e pensamentos que tomam forma de textos diversos, vídeos, instalações, fotografias, oficinas e afins. Nesse substrato, tem gente que me vira a cabeça há tempos: Deleuze, Guattari, Foucault, Nietszche, Espinosa, Bergson, Albert Camus, Dostoiévski, Blanchot, Duchamp, Yves Klein, Miranda July, Godard, Emir Kusturica, Hilda Hilst, Jvankmajer, Lygia Clark, Frida Khalo, Miró, Bjork, Tom 1 Termo extraído do livro: HARAWAY, Donna. Testigo_Modesto@Segundo_Milenio. HombreHembra©_Conoce_ Oncoratón®. Barcelona: Editorial UOC, 2004. 12 York... Desses, alguns são figuras centrais, outros são marcas e sombras, pistas e volumes. Recentemente, mais precisamente em 2011, quando percebi claramente que lugar bom é aquele que me faz crescer e produzir, conheci uma gente nova que virou minha cabeça outra vez: Donna Haraway, Judith Butler, Beatriz Preciado, Rosi Braidotti, Teresa D'Laurets, Glória Anzaldua. Toda uma bibliografia feminista com alto coeficiente transformativo e revolucionário, dentre outras referências: Ana Mendieta, Ana Maria Maiolino, Rosana Paulino, Cindy Sherman, Felix Gonzalez- Torres, Fernanda Magalhães, Manoel de Barros, David Linch, Ana Barboza, Leticia Parente, Marcia X, Barbara Kruger, Mulheres Creando, Francis Alys... A soma desses vários múltiplos se transformou numa ferramenta ilimitada que me possibilita utilizar a atualidade do pensamento para comentar a própria atualidade, um amplo background filosófico, epistemológico, artístico, político e cultural. Tendo em mãos várias lentes, tentei criar uma ontologia do presente2 toda encorpada de um pertencimento micropolítico, minoritário, fronteiriço, localizado, híbrido e aberto em um mundo em vias de se fazer. O que faço nessa órbita? Tento exercer meu pensamento de maneira inventiva e, quiçá, gerar pequenos vetores críticos, criativos e pululantes de subjetivação. Tenho uma atração pelo que vibra e faz vibrar. Gosto de pensar no pequeno movimento das coisas, esse que diz dos ruídos, dos silêncios, dos rumores e dos relevos de sombra e curvas. Para que esse infinitamente pequeno seja próximo e passível de experimentação com o corpo todo basta uma conexão. Sinto-me forte quando crio essa ficção, me acredito capaz de fazer a revolução e até ser uma revolução em meu pequeno/grande território de vida. É com algumas linhas na mão que tento bordar pequenos gestos, estruturar pequenos blocos que possam gerar ressonâncias microscópicas/infra/extraordinárias no território que habito. Primeira linha: pensar a produção de subjetividade é também produzi-la e pensar a produção de modos inventivos de subjetivação é experimentar e propor outras maneiras de ser e estar no mundo. É buscar outros modos de existir que assumam um posicionamento ético-estético-político de problematização dos binarismos e fascismos que limitam e cortam nossas vidas criando, ao mesmo tempo, saídas e fugas para este estado de coisas. Dentro de mim uma força grita e pede passagem: todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas.3 Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Essa é a direção dos meus fluxos desejantes: é preciso entrar para, então, multiplicar saídas. Segunda linha: inventar não é reproduzir, é resistir. Em meu pensamento essa é uma das imagens mais claras: práticas de vida inventivas tendem a ser mais difíceis de serem capturadas pela lógica do controle biopolítico. No entanto, não podemos esquecer que vivemos num contexto no qual a 2 FOUCAULT, Michel. O que é o Iluminismo. Michel Foucault: o dossier. Rio de Janeiro: Taurus, 1984b. 3 ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Estação Liberdade, 2007. 13 reprodução de valores, pensamentos, posturas, gostos, desejos, opções e afins são todos encapados por uma maquiagem que reluz autonomia, individualidade e, como não poderia deixar de ser, uma fé inabalável numa suposta relação criativa e livre com o mundo. Por isso vou gritar bem alto: "não somos inocentes”.4 Não vou acreditar na arte e na criatividade como única entrada possível, redentora e capaz de nos salvar da pobreza subjetiva e da lógica impotente da reprodução. Seria ingênuo demais. Não quero a ingenuidade de um pensamento puro, repleto de verdades e promessas de salvação. Prefiro um pensamento cheio de dúvidas e incertezas que às vezes não sabe direito onde irá parar, mas sente um como, uma maneira pra seguir. Arte e produção de subjetividade são minhas armas e, sem ingenuidade, é com elas que irei resistir e criar espaços de vida. Terceira linha: o território mais potente em produção e resistência é aquele que está mais próximo. É na intimidade de cada ato, de cada escolha e percepção, que posso fazer a revolução. São em meus gestos menores, infraordinários, desimportantes e quase irrelevantes aos macro-olhos da transformação que preciso reafirmar meu posicionamento ético-estético- político; uma luta diária e intermitente contra as forças que me cortam por dentro, tamanha naturalização. É nesta dimensão micropolítica do poder - esta que tenta capturar meus fluxos desejantes - que combato meu ego, meu individualismo, meus fechamentos irrefletidos, minha fome por poder e todas as forças que me segregam e me colonializam. É nessa dimensão micropolítica que resisto e crio forças para resignificar meu cotidiano, meu presente e minhas relações. O macropolítico-metafísico-metanarrativo é repleto da promessa de um futuro ideal, e é por isso inalcançável. O micropolítico diz do presente, da força produtiva desse instante-agora no qual engendramos nossa vida, e é nele que eu estou e estou viva. Quarta linha: somos todos multidão5. Somos múltiplos e vastos, um território em contínua desterritorialização. Somos compostos de muitas linhas que se cruzam e se (re)criam incessantemente. Sou movida por forças que me aumentam e me fazem desejar viver. Não quero o poder, quero a potência. Não quero o uno, tampouco uma identidade fixa. Quero a multiplicidade que me lança sem raízes em territórios híbridos, mestiços e repletos de reentrâncias, curvas, velocidades e lentidões. Sou muitas, sou vasta, contenho multidões em meu peito. Somente sendo multidão consigo exercer uma política de abertura para a vida em sua alteridade infinita. Somente enquanto multidão, vários outros me constituem. Somente sendo multidão posso criar modos de existência ou possibilidades de vida que não cessam de se recriar e insurgirem novos.6 4 HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. UNICAMP, Cadernos PAGU, n°. 5,1995, p.14. 5 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. Rio de janeiro: Ed. 34, 2007. PRECIADO, Beatriz. “Multidões queer: notas para uma política dos ‘anormais’”. In: Revista Estudos Feministas, v. 19, n. 1, p. 11-20, jan./abr. 2011. 6 (DELEUZE, 2006, p. 116) DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2006.os 14 Quinta e última linha: não pensamos só com a cabeça. Pensamos, sentimos e experimentamos com o corpo inteiro; pensar é experimentar. Por isso não quero o pensamento que interpreta, tampouco o pensamento- representação. Ambos estão carregados demais pelo saber/poder que hierarquiza, esquadrinha e organiza as coisas na lógica do colonizador. Somente um pensamento/experimentação é capaz de se livrar dos binarismos e universalismos que caducam nossos modos de pensar ao viciá-los em atalhos e simplificações. É preciso ter a imaginação no poder7. É essa potência imaginativa do pensamento que o faz ultrapassar-se a si mesmo e reinventar-se em outras medidas. Gosto desse tipo de pensamento que ainda não tem imagem, que se faz de pé ao desejar o impossível. O que nos importa aqui é um pensamento guiado por uma razão sensível8, conectado às intensidades que ainda não possuem nome, mas vibram e transbordam vida. Tendo todas essas coisas numa caixa de ferramentas9, comecei a escrever textos, imagens, sons, movimentos, repetições, sombras, nuances e afins. Lembro-me de Rolnik10 quando diz que a escrita é conduzida e exigida por marcas, e que, na verdade, são as marcas que escrevem quando produzem em nós uma necessária transformação, seja consciente, inconsciente, física, imagética, etc. Vou tentar localizar algumas das minhas marcas recuperando sua imagem, seu tempo, suas reverberações, suas intenções, suas limitações, receios e disposições. Vou escrever com minhas memórias vários gigas de fotos, imagens, textos, pensamentos, vídeos, sonoridades, pedaços de tempo e do meu corpo. Já inerentes a essas marcas estão também artistas e obras que me influenciaram e geraram aberturas. Tentarei mapeá-las e sinalizá-las como pontos de passagem e permanência em meu corpo-subjetividade. 7 Essa é uma das frases escritas nos muros de Paris durante Maio de 68 8 GUATTARI, Félix. & ROLNIK, Suely. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes. 1999. 9 DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2006. 10 ROLNIK, Suely. "Pensamento, Corpo e Devir. Uma Perspectiva Ético/Estético." Política no Trabalho Acadêmico, In.: Cadernos de Subjetividade. Núcleo de Estudos e Pesquisas em Subjetividade. Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, PUC-São Paulo (1993). Apresentação Yo prefiero ficcionalizar mis teorías, teorizar mis ficciones y practicar la filosofia como una forma de creatividad conceptual. Rosi Braidotti A concepção dessa pesquisa foi movida por um desejo intenso de escapar e criar saídas às forças de poder e saber que segregam a vida e nos capturam por todos os lados, nos subjetivando por dentro e por fora. Assim como Pelbart, acredito que vivemos na atualidade "um estrangulamento biopolítico que pede brechas, por minúsculas que sejam, para reativar nossa imaginação política, teórica, afetiva, corporal, territorial, existencial." (PELBART, 2013, p. 13). É por acreditar na força inventiva e de resistência que habita as brechas que essa pesquisa ganhou forma, dando vazão a visualidades, afetos, corporalidades e figurações mais conectadas ao múltiplo, às diferenças e ao devir. Foi entre-brechas que tentei explorar algumas fendas e espaços mais livres à experimentação, capazes de produzir linhas de subjetivação dispostas ao sim, donas de uma força que afirme a vida sem restrição de classes, gêneros, etnias, medidas ou volumes. Vale dizer que a vida que nos interessa aqui é aquela que diz dos fluxos, dos devires, das forças menores que escapam às classificações. Uma vida, como diria Deleuze (1997), é a potência de um impessoal, "uma singularidade no mais alto grau: um homem, uma mulher, um animal, um ventre, uma criança." (p. 13). Sabemos também que todo devir é minoritário, devir-mulher, devir-criança, devir- animal, devir-molecular (DELEUZE e GUATTARI, 2002), sempre em processo de fazer-se, desfazer-se e refazer-se. Como expressão minoritária, o devir é da ordem da aliança e se faz por heterogênese, um movimento que ganha forma por comunicações transversais e entre blocos sem aparente filiação. Nesse sentido, é 17 "'entre' os termos postos em jogo, e sob as relações assinaláveis" (DELEUZE e GUATTARI, 2002, p. 19) que os devires seguem experimentando a vida em diferentes estratos, sempre num inconcluso processo de criação de outras possibilidades de existências. É nesse campo de intensidades, fluxos e devires que podemos pensar num território de lutas micropolíticas11 que não se deixa atravessar pelas forças que impedem a expansão da vida. É nesse campo que lançamos nosso olhar ao plano movente das forças que correspondem ao plano de imanência12 ou ao plano do instituinte (LOURAU, 1995). O que ganha relevo neste olhar são as relações entre diferentes forças: “relações de movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão, entre elementos não formados, relativamente não formados, moléculas ou partículas levadas por fluxos." (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 108). É neste mesmo lugar que habitam as virtualidades, o a-significante, as visibilidades invisíveis a “olho nu”; é aqui que vibra a possibilidade de linhas de fuga. Nesse plano molecular vivem as brechas e frestas que tanto me interessam, justamente por definirem a sociedade à medida que desafiam e ultrapassam suas proibições13. Sempre vaza, escapa ou foge alguma coisa, e são para esses transbordamentos às regras que iremos nos deter aqui. Tenho um gosto por transbordamentos e minha atração por brechas, fendas e entre-lugares é antiga, tem a ver com uma simpatia pela abundância de vida que existe para além das coisas que costumamos dar nome, definir. O que me encanta é saber que nesses entre-lugares minoritários as margens se encontram e fazem festa, as diferenças se combinam em heterogênese e as dissidências ganham voz e passagem sem a sombra da negação que julga e exclui. Não há linha reta, nos dizia Deleuze, e o entre é um local ampliado onde mapeamos a passagem "dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a 11 Segundo Deleuze e Guattari (1999, p.90), toda a sociedade, a política, a cultura, etc., são cortadas por duas linhas; uma molar/macropolítica e outra molecular/micropolítica. No primeiro plano, vivem as forças de saber/poder/prazer que reproduzem a lógica dominante de reprodução do mesmo e limitação/docilização das nossas forças desejantes. O segundo plano é definido pelas forças moleculares que tensionam o plano molar por dizer dos fluxos de diferenciação. 12 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs (1980). Tradução Suely Rolnik. São Paulo: 34, 2002. v. 4. 13 Segundo Deleuze e Parnet, "de um ponto de vista micropolítico, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que são moleculares." (1998, p. 94) 18 vida nas coisas." (DELEUZE, 1997, p. 12). As brechas dizem, portanto, de espaços e interstícios que escapam às classificações, desafiam nossas definições prêt a porter e nos obrigam a abrir nosso pensamento para outras formas de viver, sentir e cartografar o mundo e as relações. De acordo com Grosz (2001, p. 91), o espaço do entre-lugar é o local para as transformações culturais e sociais, "é o único lugar - o lugar ao redor das identidades, entre as identidades - onde se realiza, se abre à futuridade, supera o ímpeto conservador por reter a coesão e a unidade". Acrescentamos ainda que esses espaços, ainda sem nome, colocam em movimento e ação nossa capacidade imaginativa, fazendo funcionar uma força inventiva que não teme o novo nem a desorganização própria de um processo criativo. Estabelecer vizinhanças entre áreas e disciplinas que aparentemente não dialogam é uma das brechas exploradas nessa pesquisa, na qual arte contemporânea14 e psicologia se aproximam para então formar um campo híbrido de pesquisa e criação. Um campo híbrido que problematiza a dimensão disciplinar que muitas vezes a psicologia assume ao se colocar a serviço da lógica biopolítica de docilização e assujeitamento de corpos e subjetividades. Tal lógica é pautada em concepções psicológicas acerca “do sujeito”15 e da subjetividade que “apontam para um núcleo, um centro da ‘consciência’, da ‘personalidade’, da ‘identidade’, que pressupõe certa regularidade, previsibilidade e permanência – quando não, ‘essência’ e ‘interioridade’." (PRADO FILHO, 2007, p. 16). Neste modelo, a subjetividade é concebida sob o crivo de dissociações binárias que separam o interno do externo, o objetivo do subjetivo, a mente do corpo, “o sujeito” do objeto, etc.. Essas dissociações naturalizam os lugares do "dentro" e do "fora", eliminando conversações entre as partes ou as determinando a partir de um pólo ou de outro. Fundado em um território epistêmico-político-filosófico, este modelo de pensamento binário, conhecido como pensamento moderno ocidental, se perfila da seguinte maneira:: a) dualista, posto que separa para melhor compreender; b) essencialista, 14 A arte contemporânea é entendida aqui como um modo de produção artística plural que se vale de inúmeros meios de expressão como fotografia, instalação e performance para conjugar arte e vida através de proposições artísticas abertas a resignificações. Dentre as tendências da arte contemporãnea exploradas nessa pesquisa citamos: o uso do corpo como superfície de inscrição/sensação e meio de problematização política; a inserção do "público" como participador e parte da obra; e a resignificação do cotidiano como estratégia de criação e resistência micropolítica. 15 A partir de um posicionamento feminista que contesta o modo como a própria linguagem enfatiza e prioriza o gênero masculino, optei nessa tese por escrever as palavras “o sujeito” ou “do sujeito” sempre entre aspas, gerando uma pequena fenda para a reflexão e hesitação sobre os termos. 19 visto que acreditar na essência imutável das coisas confere maior estabilidade às mesmas e favorece um estatuto de verdade irrevogável; c) totalizador, pois absolutiza uma verdade e a generaliza para evitar e eliminar dissonâncias. Marcada que está por este modelo de racionalidade16, a psicologia cunha um modo de conceber a subjetividade como algo estritamente interno. Essa concepção carece de processualidade e favorece o aprisionamento do campo de experimentação “dos sujeitos” em referências investidas de moralidade, restringindo assim, ações, percepções, sensações e emoções a lugares já demarcados. A premissa da subjetividade fundada em uma interioridade, ao invés de “fazer passar fluxos sob os códigos sociais que os querem canalizar, barrar” (DELEUZE, 2006, p. 30), acaba por circunscrever o campo de experiências “do sujeito” em espaços estanques, esvaziando-o de suas virtualidades e delimitando a distância entre as coisas, não enquanto movimentação caótica de diferenças e dissonâncias, mas como campo pré-formatado ordenado pela lógica do “sempre-igual”. Ao criar um campo híbrido entre psicologia e arte, meu objetivo foi fugir desse sistema de captura e esvaziamento investindo na produção de modos de subjetivação dispostos a se experimentarem enquanto prática de liberdade (FOUCAULT, 1984a). A proposta aqui foi colocar a arte contemporânea a favor de uma psicologia crítica/inventiva, enquanto operadora de aberturas e produtora de subjetividades plurais e sensíveis às diferenças. Numa combinação entre ciência, arte e filosofia, visei criar intercessores "fictícios ou reais" para gerar cortes e rupturas em nossos modos de pensar, intervir e experimentar o pensamento na psicologia17. Intercessores que dêem passagem para fluxos menores e minoritários, que gerem aberturas e provoquem bifurcações para o plano das singularidades, para novas sensibilidades, encontros e acontecimentos. Cortes que corram em sentido oposto das ficções políticas pré-estabelecidas, estas que remetem sempre ao discurso do colonizador 16 "Não por acaso nossa formação psi tem sido atravessada pelas crenças em uma verdade imutável, universal e, portanto, a-histórica e neutra; numa apreensão objetiva do mundo e do ser humano; em uma natureza específica para cada objeto, em uma identidade própria de cada coisa e nas dicotomias que, por acreditarem nas essências, produzem exclusões sistemáticas [...] Tais crenças que atravessam, constituem e estão presentes em nossas práticas cotidianas, ao mesmo tempo estão sendo fortalecidas e atualizadas por essas mesmas práticas. Por isso são tão frequentes no mundo e, em especial no psi, os binarismos que opõem objetos, conceitos, territórios como teoria e prática, saber e poder, indivíduo e sociedade, macro e micro, interior e exterior, psicologia e política, dentre outros". (COIMBRA e NASCIMENTO, 2001, p. 247). 17 Para Deleuze: "O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. [...] Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores." (2006, p. 156) 20 (DELEUZE, 2006). Positivando as linhas fronteiriças entre psicologia e arte, meu convite é para uma aventura inventiva que se define no próprio processo de fazer-se. Uma aventura de praticar um conhecimento psi que ganha contornos na medida em que aciona uma sensibilidade à criação de estratégias e ações que vão ao encontro das novas demandas da subjetivação e de uma escuta ampliada (FONSECA et al, 2010, p. 172). Nesse sentido, a criação de intercessores em vizinhança, principalmente com as artes visuais, se perfila nessa pesquisa como um disparador de linhas de subjetivação que nos desterritorializam e nos lançam em devir-outro, deixando em nossa pele marcas intensivas carregadas de novos olhares e sensações. Numa perspectiva ética-estética-política, a arte pode cavar em nossas vidas uma disposição e uma abertura para a alteridade. Ela é capaz de provocar a irrupção de linhas de subjetivação carregadas de um ímpeto crítico/inventivo diante do que nos chega pronto, resistindo e se dispondo a inventar novas formas de ser, estar, amar e se relacionar com o mundo. A arte, portanto, pode potencialmente produzir modos de subjetivação éticos-estéticos-políticos que respeitem as diferenças em sua pluralidade, criem novas suavidades no mundo e resistam às forças que segregam a vida. É nessa perspectiva que o encontro entre a psicologia e a arte contemporânea se configura aqui como um potente território de resistência e criação. Com consciência e insatisfação quanto à insuficiência das referências/verdades que nos oferecem como prontas, meu percurso/convite é para a ativação de nosso ímpeto imaginativo a favor da criação de um outro mundo no mundo18 que dê espaço para as pequenas variações intensivas e sensíveis nisso que chamamos de vida. Para isso, uso como referencial o pós-estruturalismo francês de Gilles Deleuze, Felix Guattari e Michel Foucault. Aproprio-me, principalmente, das discussões sobre os modos de subjetivação na contemporaneidade em seus contextos de captura biopolítica de corpos, práticas e desejos e, diante disso, de necessária abertura às políticas das diferenças. 18 Segundo Varela, "O mundo não é algo que nos foi entregue: é algo que emerge de como nos movemos, tocamos, respiramos e comemos" (VARELA, F., 1996, p. 15) 21 O que me interessa nesses autores é o modo como eles apontam saídas e sinalizam que, num tempo de esgotamento e anestesiamento de nossas forças produtivas, nossa tarefa ética-estética-política é ultrapassar o existente e inventá-lo outro. Para os autores, ao invés de restringir nosso pensamento a uma crítica muitas vezes estéril, o mais importante é criar alternativas e fugas, inventando inclusive outras figuras de pensamento, ferramentas conceituais e intercessores. Podemos dizer que a filosofia desses pensadores é movida por uma afirmatividade que não teme as contradições e ambivalências de nosso tempo, ao contrário, extrai delas uma potência inventiva, condição necessária para criar outras relações intensivas com o mundo. Rosi Braidotti (2011, p. 283), ao refletir sobre o poder da afirmação em Deleuze, comenta que o autor "[...] rejects the phantoms of negation, putting thought at the service of creation. In this perspective, we shall call philosophy all that expresses and enriches the positivity of the subject as an intensive, affective thinking entity". Ainda sobre esse aspecto, a autora segue dizendo que, na filosofia de Deleuze, o exercício do pensamento consiste "in the act of creation of new forms of thought and of collective experiments with ways of actualizing them (p. 271). Criar outras formas de praticar o pensamento e exercê-lo de modo a afirmar a vida foram questões discutidas no curso Critical Theory Beyond Negativity: the Ethics, Politics and Aesthetics of Affirmation - curso de verão ministrado em agosto de 2014 por Rosi Braidotti na Utrecht University (Holanda) do qual participei. Participar desse momento, debater essas questões, ouvir Braidotti discorrer sobre o poder da afirmação no pensamento de Deleuze e Guattari, e pensar sobre a pertinência desta afirmatividade para a atualidade foi determinante para os rumos do meu processo de pesquisa. Como criar estratégias e táticas que afirmem o pensamento e a vida sobre outras medidas? Como pensar outras posições de “sujeito”, outras formas de experimentar e viver os fluxos da vida? Como fazer da crítica proposições inventivas? Como estabelecer vizinhanças entre partes que aparentemente não combinam? Essas foram algumas das questões e dos desafios lançados e debatidos na ocasião. Esses foram também os desafios que me lancei enquanto desenvolvia minha pesquisa. A arte foi apresentada no curso como um dos horizontes apontados como território de experimentação e transformação, e foi nesse território que investi para explorar outras formas de afirmar a vida e o pensamento. 22 Levantando esses questionamentos, Braidotti chama a nossa atenção para a necessidade de, diante da crise da racionalidade moderna19, criarmos novas formas de pensar e experimentar o pensamento. Foi o que fez Deleuze ao criar inúmeras imagens de pensamento20 como corpo sem órgãos, rizoma, devir, dobras, fluxos, somente para citar alguns. Em Deleuze, criar outras imagens de pensamento ou um pensamento sem imagem é estratégia para recuperar o pensamento no que ele tem de potência criadora. Em oposição ao pensamento representacional que tem como primado a identidade, o mesmo e a recognição, a ideia é criar imagens de pensamento que não se encaixem nessa lógica. Imagens destituídas de pressupostos, um pensamento sem imagem que nos surpreenda, que cause arrombamentos e nos desestabilize com novos signos (DELEUZE, 1987). O mesmo autor afirma que o pensamento enquanto força criativa nasce da contingência "de um encontro com aquilo que força a pensar, a fim de erguer e estabelecer a necessidade absoluta de um ato de pensar, de uma paixão de pensar." (DELEUZE, 2009, p. 203). Para ele, tanto a criação quanto a crítica tem como condição a "destruição da imagem de um pensamento que pressupõe a si próprio, gênese do ato de pensar no próprio pensamento." (Ibid, p. 203) Afirmando o pensamento em sua força inventiva, Deleuze toma de assalto nosso pensamento às vezes reto e linear, mobilizando em nós um ato de pensar, uma potência imaginativa para que possamos visualizar e cartografar esses conceitos em sua total complexidade. Feito isso, ele nos desafia a retirar nosso pensamento de um lugar acostumado a acreditar e reproduzir metanarrativas inquestionáveis, lançando- nos à tarefa de ressignificar o pensamento sobre outras bases, experimentando-o em outras medidas. É importante pontuar que não se trata de uma proposta inocente e idealista. Trata-se de uma perspectiva ética-estética-política cuja estratégia é virar o niilismo do nosso tempo ao avesso, atravessando-o à medida que, jogando com as 19 Segundo Braidotti (2011, p. 296), "Both Foucault and Deleuze are critical of rationality as the dominant vision of the subject and as a human ideal, but they also reject the pitfall of cognitive and moral relativism by stressing that the crisis of classical subjectivity is not a catastrophe, but rather the expression of the irrepressible vitality of thought.” 20 Para Braidotti (2011), a filosofia de Deleuze "results in a project that aims at alternative figurations of human subjectivity and of its political and aesthetic expressions. Rhizomes, bodies-without-organs, nomads, process of becoming, flows, intensities, and folds are part of this rainbow of alternative figurations that Deleuze throws our way”. (p. 282) 23 condições do nosso momento histórico, afirmamos outros modos de nos relacionar com o mundo. Deleuze diz ser necessário um pensamento que afirme a vida no lugar de um conhecimento que se opõe a ela. A vida, por sua vez, seria “a força ativa do pensamento, e o pensamento seria o poder afirmativo da vida. Ambos iriam no mesmo sentido, encadeando-se e quebrando os limites, seguindo-se passo a passo um ao outro, no esforço de uma criação inaudita." (1976, p. 48). Pensar, portanto, significa descobrir e inventar novas possibilidades de vida. É na afirmação de outras práticas de pensamento, outro modos de ser, estar, desejar e se relacionar, que imprimimos no mundo outras marcas, que inauguramos nele outros possíveis para nosso agora. Ou seja, é pela positivação da vida em sua afirmatividade incondicional, independente de classes, gêneros, etnias ou espécies, que se pode ultrapassar, resistir e criar outros contornos para nosso agora. Para tanto, Deleuze tem como estratégia inventar saídas, conceitos e figuras de pensamento como forma de resistência inventiva aos endurecimentos e capturas que nos cercam e subjetivam. O que fica claro para nós é que em Deleuze a ideia de resistir ao presente está ligada à construção de possíveis; que ganham forma enquanto desdobramentos virtuais da dimensão afirmativa contida na atualidade do presente21. Recai sobre esta força afirmativa o substrato criativo da agenda filosófica de Deleuze e Guattari, agenda que nos lança na tarefa radical de desconfiar das verdades absolutas para adentrar num processo de desconstrução de um agora ainda em vias de criação. Com Deleuze, Guattari e Foucault somos convidados a viver inventivamente a crise da subjetividade que acompanha a necessária desconstrução da ideia moderna de ‘sujeito” e sua lógica identitária. Para Braidotti (2011), essa crise da subjetividade também pede por uma política de formação de outras posições de “sujeito” como forma de edificar uma confiança na possibilidade de um outros possíveis para este agora. É diante dessa tarefa radical que Deleuze se 21 Segundo Braidotti (2011, p. 296) "In a Spinozist-Deleuzean political terms, this sustainable idea of endurance is linked to the construction of possible futures, insofar as the future in the virtual unfolding of the affirmative aspect of the present. An equation is therefore drawn between the radical politics of desidentification, the formation os alternatives subject positions, and the construction of social hope in the future. This equation rests on the strategy of transformations of negative passions into affirmative and empowering modes of relation to the conditions of our history." 24 vale da afirmatividade como via de empoderamento e criação de outros modos de viver as condições de nosso tempo histórico. Na esteira do pensamento de Deleuze e Guattari, entendo que subjetividade é um campo de experiências repleto de passagens, permanências, aberturas e fechamentos. Nesse sentido, podemos pensar num processo de subjetivação pulsátil todo composto de linhas que se fazem e se desfazem constantemente. Essa processualidade, se a marcarmos com uma positivação afirmativa das diferenças, pode impulsionar a criação de linhas de subjetivação em direção ao que aumenta a potência de viver. É esta disposição à criação de outros modos de subjetivação que me interessa por demais. Reconheço aqui uma potência revolucionária no sentido de resistência e produção de outras possibilidades e saídas ao que não corresponde a vida em sua positividade. É neste espaço de infinitas possibilidades que se localizam minhas inquietações. Como ocupá-lo com aberturas, encontros, bifurcações, desdobramentos e conexões que surpreendam nosso pensamento e aumentem a inventividade e a potência de viver? Foi seguindo essa pista que conheci algumas teóricas feministas que assumem sem ressalvas essa afirmatividade como projeto político, posto que se valem de um processo ativo de inventar novas imagens de pensamento para afirmar outros modos de ser mulher, de viver e gestar a própria vida. Retomando a afirmação de Beauvoir ao dizer que ninguém nasce mulher, mas torna-se, Butler (2006, p. 59) acrescenta que "mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e re- significações". Nesse sentido, se à mulher atribuiu-se um não-lugar irrepresentável (IRIGARAY, 1984), um lugar de subalternidade (SPIVACK, 1988) ou de outro- excluído (BEAUVOIR, 1949) por vezes enredado numa ficção biopolítica de suposta autonomia, os feminismos em geral sempre problematizaram e criaram outros espaços de expressão diante desse contexto. Nesse sentido, concordamos com Braidotti (2000, p. 70) quando diz que entende o feminismo como uma prática e um impulso criativo movido por uma força que afirma a vida em suas diferenças e multiplicidades. Por carregar a marca da exclusão e do não-lugar, as mulheres, assim como outros grupos minoritários, carregam enquanto forma de existir e resistir 25 uma força afirmativa de vida, uma disposição para inventar e reinventar constantemente os territórios existenciais. É preciso, portanto, inventar novas relações no e com o mundo, novas suavidades e contornos para o real; relações intensivas e potentes que dêem passagem às diferenças e à multiplicidade que pulsa e faz pulsar nossos territórios de vida. Nesse sentido, falamos de um posicionamento crítico que não se limita ao jogo das oposições binárias e das disputas de saber e poder. Falamos de uma crítica inventiva que incorpore a afirmação das diferenças enquanto multiplicidade possível realizada através de um processo "activo, afirmativo, de inventar nuevas imagenes de pensamiento." (BRAIDOTTI, 2000, p. 118). É nessa perspectiva que podemos pensar em algumas figurações pós-metafísicas e pós-identitárias de “sujeito” e de subjetividade. Figurações nômades, rizomáticas, híbridas e mestiças que não correspondem, nem tampouco se encaixam, aos mecanismos de serialização subjetiva que tentam capturar a potência da diferenciação22. Essa crítica radical “do sujeito” do feminismo e da filosofia ocidental pede a criação de novas figuras de pensamento e ferramentas conceituais para criar uma nova ideia de “sujeito” e de subjetividade. Esse processo foi denominado por Donna Haraway (2013) de ‘figuração’. Para a autora, pensar e criar figurações para a subjetividade contemporânea é tanto uma maneira de exercitar a imaginação para visualizar novos contornos à subjetividade, quanto uma forma de situar essa figura da subjetividade em determinado espaço-tempo social. Segundo Braidotti (2000, p. 28), a criação de novas figurações para a subjetividade diz de um comprometimento radical com a tarefa de subverter as representações e perspectivas convencionais acerca da subjetividade humana. 22 De acordo com Preciado (2011), estamos diante de um movimento de desontologização “do sujeito” da política sexual: "Nos anos 1990, uma nova geração emanada dos próprios movimentos identitários começou a redefinir a luta e os limites do sujeito político "feminista" e "homossexual". No plano teórico, essa ruptura inicialmente assumiu a forma de uma revisão crítica sobre o feminismo, operada pelas lésbicas e pelas pós-feministas americanas, apoiando-se sobre Foucault, Derrida e Deleuze. Reivindicando um movimento pós-feminista e queer, Teresa de Laurettis, Donna Haraway, Judith Butler, Judith Halberstam (nos Estados Unidos), Marie-Hélène Bourcier (na França), mas também as lésbicas chicanas como Gloria Andalzua ou as feministas negras como Barbara Smith e Audre Lorde, atacarão a naturalização da noção de feminilidade que havia sido, inicialmente, a fonte de coesão do sujeito do feminismo. A crítica radical do sujeito unitário do feminismo, colonial, branco, proveniente da classe média alta e dessexualizado foi posta em marcha. (p. 4) 26 Sem temer a desconstrução e as ambivalências de nosso tempo, os feminismos entendem que muitas das referências que nos subjetivam são excludentes e discriminatórias, e não se calam diante disso. É nesse contexto que a criação dessas figurações híbridas é uma estratégia política, epistemológica e imaginativa de abandonar as identidades fixas como um local "sedentário, que produz paixões reativas tais como ganância, paranóia, ciúme edipiano e outras formas de constipação simbólica." (BRAIDOTTI, 2002, p. 13). Ainda segundo a autora, essas figurações são comuns a algumas teorias feministas que tem produzido poderosas ficções políticas para desontologizar “o sujeito”, como nos disse Preciado (2011), e refigurar a mulher não enquanto outro do homem, mas como o outro em sua imensa diversidade. Nesse sentido, partindo de uma crítica radical “do sujeito” (tradicionalmente masculino, heterossexual, branco e europeu) e dos modos de subjetivação na contemporaneidade que não contemplam a processualidade e o devir, aprendemos com os feminismos a visualizar novos contornos à subjetividade num exercício político e imaginativo. A ideia é abandonar uma única e imutável referência identitária, ou uma única forma de desejar e praticar a vida, para alcançar uma pluralidade de possíveis que podem ser vestidos, travestidos e criados por cada um ao seu modo. É nessa perspectiva que podemos pensar numa possível estética feminista que se vale de uma força inventiva/afirmativa enquanto estratégia ética/estética/política de subversão, resistência e criação de possibilidades de vida. Essa estratégia encontra, na reapropriação do corpo/experiência/subjetividade, um modo de contestar e inventar outras formas de viver23. É enquanto exercício imaginativo sem restrição de gêneros, com alto teor de resistência, subversão e inventividade, que uma estética feminista nos interessa aqui. Um posicionamento que não se detém a responder o que somos, mas sim a criar condições para o que queremos e podemos ser. É nesse horizonte que podemos pensar novas figuras de pensamento, novas figurações para a subjetividade como ferramenta que tenta dar corpo e visualidade às mutações, mudanças, transformações e ambivalências próprias do nosso momento histórico. 23 Como bem aponta Rago (1998), muitas mulheres, independente de serem artistas, mas principalmente aquelas que se identificam como feministas, tem criado "novos padrões de corporeidade, beleza e cuidados de si, propondo outros modos de constituição da subjetividade, ou o que bem poderíamos chamar de estéticas feministas da existência." (p. 8) 27 Foi apostando nesse recurso imaginativo e na afirmatividade dos feminismos e da filosofia de Deleuze e Guattari que tentei tensionar os limites do nosso pensamento criando alguns intercessores entre psicologia e arte. Fotografia, vídeo, instalações e literatura foram os meios que encontrei para dar corpo a algumas figuras e imagens de pensamento com o propósito de gerar deslocamentos e aberturas em nossos territórios subjetivos. As figuras não temem a experiência de criar-se e não se amedrontam diante das dobras, redobras e desdobras que enriquecem nossos processos de subjetivação. As figurações e imagens híbridas exploram a potência das margens e dos interstícios para fazer transbordar possibilidades e combinações inauditas. Na verdade, trata-se de esboços e traçados do que essas figuras poderiam ser. Esboços e traçados dos meus próprios movimentos enquanto psicóloga/artista/educadora que busca experimentar o pensamento em suas aberturas e possibilidades. Minha proposta se alinha a de Lygia Clark, artista que se autodenomina uma propositora de experiências que se colocam para ser vividas e atualizadas infinitamente por aqueles que forem afetados por suas proposições artísticas. Posiciono-me, também, enquanto propositora de experiências que investe na potência ético-estético-política de gestos que geram pequenos descentramentos no universo de referências que temos como pronto em nosso corpo/subjetividade; pequenas brechas nos endurecimentos que se instalam e perpassam nossos modos de ver, viver, sentir, criar e compartilhar o mundo. Minha aposta foi numa perspectiva que acredita que todo conhecimento é parcial, situado e corporificado (HARAWAY, 1995), capaz de produzir uma visão objetiva ligada mais ao presente da experiência do que às promessas metafísicas de verdades absolutas. Para isso, investi num horizonte ético de pesquisa que favorece a experiência e se coloca contrário aos mecanismos de totalização e generalização que eliminam as dúvidas, as dissonâncias e os fluxos de diferenciação. Assim, mapeando alguns gestos, ficcionando a teoria, esboçando metáforas visuais e algumas figurações para a subjetividade, voltei-me para minha própria experiência em conexão com meus processos de pesquisa e criação. Voltar-me para minha própria experiência foi uma decisão permeada de incertezas e dúvidas. Como é sabido, fomos educados para separar a razão do 28 corpo, o subjetivo do objetivo e “o sujeito” pesquisador do objeto de pesquisa. Romper com essas questões é ousar contrariar a tradição do pensamento moderno que busca a neutralidade científica – e para tanto separa, classifica e mensura o conhecimento em bases objetivas e generalizáveis. De início, minha pesquisa também se alinhava ou tentava se alinhar a esses procedimentos. Minha proposta primeira era entrevistar duas artistas, Fernanda Magalhães e Cindy Sherman, para localizar em seus processos criativos as dúvidas e incertezas que acabavam por dar novas direções às suas obras. Mais do que as obras acabadas queria perceber o percurso dos seus processos criativos e ver também como as questões de gêneros apareciam ali. No entanto, meus objetivos foram mudando de figura. Para além da proposta de falar sobre processo criativo e sobre modos inventivos de subjetivação, comecei a me experimentar nesse contexto não somente como pesquisadora, mas também como artista. Criar novas imagens de pensamento, experimentar outras posições para “o sujeito”, produzir um conhecimento sensível e explorar outras figurações para os corpos e para a subjetividade passou a ser meu desejo maior, sendo a expressão artística um meio para materializar esse novo projeto. Ao me deparar com os feminismos e visualizar que a reapropriação do corpo/experiência é uma via de resistência e produção de novas relações com o mundo, não tive dúvidas em me lançar nessa seara de corpo todo. Conforme Haraway afirma, o único meio de encontrar uma visão mais ampla é situando-se em algum lugar em particular. Esta concepção abre todo um campo de conversações ao possibilitar aberturas inesperadas, visto que contempla a perspectiva de “pontos de vista, que nunca podem ser conhecidos de antemão, que prometem alguma coisa extraordinária, isto é, conhecimento potente para a construção de mundos menos organizados por eixos de dominação.” (HARAWAY, 1995, p. 24). É enquanto porta-voz de um conhecimento encarnado em minha pele que problematizo o pensamento e tento ultrapassá-lo, que retomo minha experiência em sua singularidade como política de localização (RICH, 1980) e estratégia de resignificação do presente. No entanto, é importante enfatizar que mais que “o sujeito” da experiência, é o processo criativo que nos interessa aqui. Segundo Foucault, citado por Pelbart (2013, p. 209), uma experiência somente se fará plena "na medida em que escapará 29 à pura subjetividade e que outros poderão, não digo retomá-la exatamente, porém ao menos cruzá-la e atravessá-la de novo"24. É nesses cruzamentos que podemos pensar os fluxos e devires com suas forças e intensidades. Não “o sujeito”, mas as sensações, os afetos, as transformações e metamorfoses na "relação com as coisas, com os outros, consigo mesmo, com a verdade." (PELBART, 2013, p. 207) Desse modo, minha experiência é invocada como um constante devir-outro25 que tem a dessubjetivação como condição para um processo de subjetivação composto de aberturas éticas com o mundo. A dessubjetivação entra aqui como um caminho para a invenção de outros modos de se relacionar, desejar e amar a vida. Como uma forma de desconstruir nossos endurecimentos, desarmar o ego, afogar o narcisismo, mandar o individualismo para o passado, esvaziar o corpo de representações para fazê-lo outro. Me dessubjetivando em outras bases sou multidão e posso fazer do que fizeram de mim qualquer coisa. Mais do que um eu- sou, minha experiência é a performance de um eu-somos, de um sujeitx que se escreve no plural e sem ponto final. Enquanto eu-somos minha intenção foi convocar um processo de outramento em sua infinita alteridade. Horizonte para o qual a teoria queer aponta radicalmente, sinalizando inclusive que o queer não é ponto de chegada, mas percurso sempre inconcluso26. Manter-se em contínua inconclusão foi um dos aspectos discutidos no Seminário We have never been queer, realizado em setembro de 2014 no Centre Pompidou em Paris que teve como debatedoras Beto Preciado e Jack Halberstam. Em diálogo com esses dois grandes nomes da teoria queer, durante cinco dias eu e cerca de dez pessoas de várias partes do mundo discutimos os rumos que o termo queer tem ganhado na contemporaneidade. Rumos que apontam para capturas 24 A noção de experiência é tomada aqui tal como Foucault, na esteira de Blanchot e Nietzsche a compreende. Pelbart afirma que para Foucault a experiência "não remete a um sujeito fundador, mas desbanca o sujeito e sua fundação, arranca-o de si, abre-o à própria dissolução [...] um empreendimento de dessubjetivação." (2013, p. 208) 25 Nos diz Pelbart: "Por exemplo, um devir, o que é? Dessubjetivação, certamente, na medida em que arrasta os indivíduos dados para fora de sua identidade constituída, desmanchando ademais fronteiras entre as esferas humana e não humana, animal, vegetal, mineral, mítica, divina, mas a partir desses devires imperceptíveis nascem sujeitos larvares, múltiplos eus, subjetivações outras." (Ibid, p. 228) 26 A teoria queer se propõe a recusar todos e quaisquer atributos identitários que possam alinhar, classificar e organizar “os sujeitos” em binarismos de gênero incorporando as dissidências, os desvios e a pluralidade em sua infinita alteridade. Desse modo, a teoria queer encampa uma crítica radical “ao sujeito” tradicional para pensar na produção de subjetividades abertas e múltiplas. A teoria queer será melhor apresentada e desenvolvida no item 3.2 dessa tese. 30 identitárias, esvaziamentos políticos e até burocratizações. Rumos que apontam também para formas de resistência e criação cada vez mais radicais como o pornoterrorismo ou a pós-pornografia, por exemplo. Foi unânime o entendimento de que ao queer não se deve aplicar definição. É termo em contínua resignificação, sendo o devir a experimentação e a ruptura radical com tudo o que nos aprisiona em quaisquer sistemas binários, as únicas vias para a reapropriação política do corpo/experiência/subjetividade. Ao participar do seminário e compartilhar desse debate com quem vive no coração da questão, visualizei na experimentação de si enquanto outro uma via de resistência micropolítica. Vi no corpo um território político que encontra na resignificação de si forças para romper padrões, para experimentar-se em sua pluralidade e para exercer o desejo além e aquém de atalhos binários. Enquanto dizia dos fluídos e hormônios que alimentam a indústria farmacopornográfica e nos subjetivam por dentro e por fora, Beto Preciado iniciou sua fala no seminário passando testosterona em gel em sua pele. Em seu livro Testo Yonqui27 e ali naquele momento, ela se reapropriou do seu corpo na medida em que o experimentou como superfície encarnada para uma performance de vida para além de atributos identitários. Foi também numa perspectiva encarnada que meu corpo/experiência se tornou parte fundamental do conhecimento que produzi - substrato teórico e prático dos rumos que esta pesquisa foi ganhando. Meu corpo/experiência se tornou ponto de localização para uma política de dessubjetivação. É nesse horizonte que assumo aqui a parcialidade e a localização limitada do meu conhecimento para, então, alçar voo rumo à produção de um saber aberto que pode ser invocado e multiplicado em outras localizações possíveis, sem nunca generalizar ou anular as singularidades. Valendo-me da potência afirmativa da filosofia de Deleuze e Guattari, e também da força imaginativa das feministas pós- estruturalistas como Rosi Braidotti, Glória Anzaldua, Donna Haraway, Beto Preciado, etc., me pus a exercitar minha imaginação combinando recursos teóricos e conceituais com expressões artísticas. Fiz dos conceitos caixa de ferramentas (DELEUZE e PARNET, 1998) para falar sobre arte fazendo arte, para problematizar os modos de subjetivação na contemporaneidade produzindo outras figurações para 27 Esse gesto de Preciado assim como a importância do livro Testo Yonqui será melhor desdobrado no item 3.2 dessa tese. 31 o corpo/sujeito/subjetividade. Enquanto metodologia, optei pela Pesquisa Baseada nas Artes (PBA), um desdobramento da Pesquisa Educacional Baseada nas Artes (PEBA) cujo foco maior é o aspecto educacional28. Iniciada na década de 80, a PBA é uma forma de investigação que proporciona maior conhecimento das atividades humanas via diferentes meios artísticos: música, teatro, dança, artes visuais e plásticas, performances e literatura (IRWIN, 2013). Compreendendo que toda atividade artística envolve um processo de investigação teórico, estético e prático, esta metodologia me interessa porque pressupõe não apenas o falar e pensar sobre a arte, mas também falar e pensar fazendo arte. Incluindo o fazer artístico no campo de investigação, a PBA envolve tanto a investigação e interpretação sobre a arte quanto o processo de criação propriamente dito. Combinando pesquisa teórica, pesquisa estética e produção artística visual, desenvolvi esse trabalho me valendo de duas das três tendências contempladas pela PBA (HERNANDEZ, 2013). Entre as tendências literária, artística e performativa, optei por priorizar as duas primeiras. A primeira tendência utiliza formas literárias de expressão como a poesia e a mistura de histórias reais com ficção para contar a experiência de quem fala, ao mesmo tempo em que gera uma fenda para os leitores refletirem e preencherem com suas próprias experiências e histórias. Partindo da metodologia da Pesquisa Narrativa de Clandinin e Connelly (2000), o pesquisador ou narrador não só coleta histórias, mas é alguém que está dentro da narrativa, um personagem vulnerável e em crise. A ideia geral da pesquisa narrativa e seu desdobramento na perspectiva literária da PBA se baseia em: "contar uma história que permita a outros contar(se) a sua. O objetivo não seria somente apreender a realidade, mas produzir e desencadear novos relatos." (HERNÁNDEZ, 2013, p. 47). Ainda segundo o autor, a investigação narrativa possibilita: deixar espaços que possam ser preenchidos pelos leitores; evitar uma maneira unívoca de retratar e representar a realidade; e proporcionar sentidos alternativos ao trajeto da investigação. Por fim, esta 28 Como há pouco material sobre PBA traduzidos para o português, vale conhecer as terminologias utilizadas em inglês e espanhol. PEBA equivale a Arts Based Educacional Research (ABER); PBA equivale a Arts based Research (ABR) e Investigación Baseada en las Artes (IBA). 32 perspectiva determina a incorporação do leitor na própria escritura do texto através da ativação de sua própria experiência de vida via resignificação de sentidos e abertura à reflexão sobre si e sobre o outro. A base da perspectiva artística utiliza representações artísticas visuais como pinturas, fotografias e imagens em geral, e instaura com freqüência uma relação entre a imagem e o texto. Nessa relação é importante pontuar a necessidade de que ambos tenham certa consistência e autonomia, que se sustentem separadamente, pois só assim a complementaridade entre os dois se dará de forma mais completa. Enquanto pistas de um corpo em experiência, nessa pesquisa as imagens ganham destaque como registros de momentos e parte da narrativa, abrindo um campo de significados e sensações ligados à imagem. As imagens, portanto, são utilizadas tanto como registros de histórias e proposições artísticas quanto como disparadoras de narrativas e produtoras de linhas virtuais de subjetivação. Escrevendo em primeira pessoa assumi uma posição de narradora que está dentro da narrativa, em vulnerável experimentação. Enquanto narradora, me pus a contar histórias que possam ser recontadas pelos outros a partir de suas próprias experiências. Narrativas que vão gerar fendas que os leitores e interlocutores possam preencher com suas próprias memórias, histórias, acontecimentos, encontros e imaginação. Como parte do texto, utilizei imagens e proposições artísticas visuais, incluindo minha própria produção como artista visual, que complementam o texto enquanto registro de momentos e ilustrações que abrem campos de significados e sensações ligados à própria imagem ou à narrativa. É como memória visual e recuperação do gesto criativo que a imagem dá visualidade a novas figuras de pensamento, podendo servir como provocadoras de outras experiências. Como resultado do processo de criação, texto e imagem se sustentam separadamente para então se complementar. Sobre essa combinação entre imagem e texto, encontrei na a/r/tografia uma metodologia que "privilegia tanto o texto (escrito) quanto a imagem (visual) quando eles encontram-se em momentos de mestiçagem ou hibridização." (DIAS, 2013, p.24). A a/r/tografia, por sua vez, é uma metodologia que se desdobra da PBA e que incorpora o método cartográfico para tratar de um conhecimento situado, parcial e corporificado, procedendo de modo rizomático para criar circunstâncias e produzir 33 novos conhecimentos, significados, sentidos e visualidades. A palavra A/R/Tography ou A/R/Tografia é uma metáfora para A= artist (artista), R= researcher (pesquisador), T= teacher (professor) e graphy | grafia= escrita/apresentação. Trata- se de uma metodologia comprometida com a "criação de circunstâncias que produzam conhecimento e compreensão através de processos artísticos." (IRWIN, 2013, p. 144). Circunstâncias que possam dar passagem para as coisas que vibram nos entre-lugares, nas brechas e margens; situações, encontros e acontecimentos com algum coeficiente artístico29 que possa ser intensificado; pequenos blocos espaço-temporais engajados com a resignificação do presente. Para a a/r/tografia a teoria está viva na experiência praticada no dia a dia, nos valores, crenças e convicções que se afirmam na prática diária. Sendo o a/r/tógrafo alguém que, com a consciência de um conhecimento encarnado, teoriza sobre a própria experiência e se compromete com a própria capacidade reflexiva para então ser um(a) autor(a) dessa experiência (BRITZMAN, 2003, p. 64-65). Nesse sentido, por ter como território criativo o próprio campo de experiência, o processo de pesquisar passa, necessariamente, pelo corpo de sensação do pesquisador. Foi partindo desse entendimento que dei passagem não somente a reflexões e interpretações teóricas, mas ao que senti e percebi enquanto pesquisadora. Ao que criei e produzi a partir das forças que me afetavam. Para a a/r/tografia, saber (theoria), fazer (praxis) e criar (poesis) são três formas de pensamento importantes (LEGGO, 2001; SULLIVAN, 2000) porque se configuram como formas rizomáticas de mapear o mundo, interessadas em criar circunstâncias para produzir conhecimento através de processos artísticos (IRWIN, 2013, p. 144). Em contínuo engajamento e disposição reflexiva quanto ao andamento da pesquisa, encontrei na a/r/tografia um método para abrir conversações e gerar redes de conexões, ao invés de somente informar resultados. Num processo de ininterrupta abertura e criação tentei gerar cortes, rupturas e blocos de pensamento que podem ser ocupados por outros processos de pesquisa, outras possibilidades a/r/tográficas. Enquanto me experimentava como corpo imerso em um território de pesquisa e criação, minhas inquietações teóricas, artísticas, sensíveis, éticas e políticas foram aos poucos ganhando forma e expressão. Como ar/t/ógrafa, 29 O termo coeficiente artístico foi desenvolvido por Duchamp e será melhor desenvolvido em outro momento do texto: DUCHAMP, Marcel. Duchamp du signe: écrits. Paris: Flammarion, 1975. 34 mergulhei nas intensidades do presente para dar língua aos afetos que pediam passagem (ROLNIK, 2007, p. 23). Gravei, fotografei, bordei, escrevi com imagens. Fiz uma pequena coleção de gestos e movimentos que, aos poucos, se abriram para novos campos de significados/sensibilidades, novas sociabilidades e espaços afetivos alinhados ao que Bourriaud (2009) denominou estética relacional. Na organização desse campo expressivo, o método cartográfico me ajudou a desenhar um mapa de forças com suas ondulações estéticas, conceituais, políticas e artísticas. Como sabemos, o mapa é aberto30 e ganha forma a partir dos deslocamentos e impasses que definem uma trajetória. Ao lançar um olhar para minha experiência de pesquisadora e artista, a intenção é perceber se dessa trajetória podemos extrair "indicadores de novos universos de referência suscetíveis de adquirirem uma consistência suficiente para revirar uma situação." (GUATTARI apud DELEUZE, 1997, p. 76). Além de cartografar esse percurso em sua extensão e possível força transformadora, o registro dos meus gestos criativos diz também de uma constelação afetiva e sensível, um mapa de intensidades e densidades que preenchem o espaço do trajeto (DELEUZE, 1997, p. 76). De corpo aberto para as forças que nos afetam, cartografar é conectar os afetos que nos surpreendem, é extrair do sensível suas durações suprasensíveis, a virtualidade dos acontecimentos (POZZANA, 2013). Nesse sentido, Rolnik (2007, p. 66) afirma que o cartógrafo se define por uma certa sensibilidade às intensidades que busca expressar. Deleuze complementa que "é o mapa de intensidade que distribui os afetos, cuja ligação e valência constituem a cada vez a imagem do corpo, imagem sempre remanejável ou transformável em função das constelações afetivas que a determinam." (1997, p. 77). A cada imagem formada e passível de ser remanejada, identificamos um devir minoritário. "O devir é o que subtende o trajeto, como as forças intensivas subtendem as forças motrizes. [...] É o devir que faz, do mínimo trajeto ou mesmo de uma imobilidade no mesmo lugar, uma viagem." (DELEUZE, 1997, p. 77). No encontro e na sobreposição entre trajetos e intensidades cartografei alguns devires, alguns encontros sensíveis em relação aos fluxos que me cortavam. E nesse mapa 30 Retomaremos a discussão sobre o mapa na parte 3.4 dessa tese, no momento em que discutimos o conceito de rizoma desenvolvido por Deleuze e Guattari (2007a). 35 é possível localizar pequenos relevos que tanto apontam para os encontros e intensidades que marcaram meus territórios de vida e experiência, quanto sinalizam possíveis aberturas naqueles que se deixaram afetar por essa pesquisa que se sabe inacabada. Para ordenar minha pesquisa, resolvi estruturar a tese em três grandes blocos. No primeiro bloco, Devires: a escrita de um corpo em experiência me valho de uma escrita mais literária para criar uma espécie de ficção autobiográfica na qual utilizo algumas de minhas proposições artísticas para criar uma complementaridade entre imagem e texto. Como diz o filósofo Jacques Rancière, "o real precisa ser ficcionado para ser pensado”. No mesmo sentido, “a política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem 'ficções', isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer." (2005, p. 58-59). É através desses rearranjos que outros regimes de sensibilidade podem ser evocados, outras visualidades, modos de ser, de viver e de experimentar no mundo. Com a pretensão de mobilizar outras artes de viver, a escrita de um corpo em experiência diz de alguns devires minoritários que culminam aqui numa literatura menor dividida em duas paragens: como costurar estrelas enquanto flores crescem em meu peito e um mesmo outro corpo. Apostando num conhecimento sensível, essas paragens convidam o leitor para uma experiência literária e imaginativa, na qual os conceitos se desligam de um rigor acadêmico ao ganhar nuances poéticas. Como costurar estrelas enquanto flores crescem em meu peito é uma inquietação que ganha respostas à medida que dou ao meu cotidiano outros contornos; à medida que reconheço em minha rotina pequenos pontos que podem ser intensificados. Enquanto caminho, tento dar passagem ao