UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação Curso de Arquitetura e Urbanismo TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO VILAS FERROVIÁRIAS EM BAURU: A Essência de Uma Cidade. Orientanda: Karla Garcia Biernath Orientadora: Norma Regina Truppel Constantino Co-orientador: Nilson Ghirardello Bauru Novembro/2010 2 À minha avó e fada madrinha, Isabel Santa Fosta Garcia (in memorian) pelo imenso amor e pelo apoio a tudo que eu sempre realizei. 3 AGRADECIMENTOS A minha orientadora, a Profª.drª. Norma Truppel Constantino pelo carinho com esse trabalho, pela paciência, dedicação e pelos ótimos conselhos. Ao meu co-orientador, Nilson Ghirardello, por sua dedicação e pelo carinho com esse trabalho. À querida Cynthia do arquivo do centro de memória da RFFSA, que não mediu esforços para me ajudar com a pesquisa. À Daniele do arquivo do centro de memória Unesp/RFFSA, pelo apoio à pesquisa. Ao Paulo e Sérgio Losnak, do Museu Histórico Municipal de Bauru, pela gentileza e ajuda com mapas e levantamentos das vilas. À Karin Bizzarro, Diretora Técnico administrativa do Complexo Fepasa, que possibilitou minha pesquisa aos acervos da biblioteca do Museu da Cia. Paulista em Jundiaí. À Francisca e ao prof. Marcos Santos Nascimento, funcionários do Museu da Cia. Paulista em Jundiaí, que também não mediram esforços para ajudar na pesquisa. Ao pessoal da DEPLAN-Bauru, pelo apoio e pela consideração com este trabalho. À Maria Helena Rigitano pelo apoio e pelos esclarecimentos atenciosamente prestados. À minha chefe Roberta, pela compreensão. Ao Nei Lima, pelos livros e pelas questões pertinentes que me fizeram refletir. Ao Sr. Adelmo Bertussi, pela grande ajuda e pelas histórias de um grande conhecedor da Noroeste e de Bauru. Aos ferroviários aposentados e familiares que gentilmente concederam as entrevistas: Sr. Vivaldo Pitta, Sr. Toninho, Senhores Antônio e Eda Lokman, e a Senhora Vera Lúcia. Aos amigos que não estiveram fisicamente presentes, mas que torceram por mim. As minhas amigas Letícia, Fabiana, Danielle, Camila e Joana pelo apoio, carinho e por estarem sempre presentes. Ao Leandro e João Felipe, por abrirem meus horizontes. Aos meus veteranos, Anderson, Rafael, Bruna, Marcela, Giovana, Aline, Raquel, Ellen, Sheila, Mônica, Mariana e Marília pelo aprendizado. À minha mãe, pelo amor e pela dedicação dispensados há 25 anos e por dividir os bons e maus momentos comigo. Ao meu irmão Beto pelo amor e pelo apoio em tudo. E finalmente ao meu pai, que esteve presente em todos os momentos da pesquisa, acreditando nesse trabalho, em mim e mostrando o seu amor e sua cumplicidade em todas as ocasiões possíveis. 4 SUMÁRIO Resumo.................................................................................................................... 04 Introdução................................................................................................................ 04 I. COMO TUDO COMEÇOU EM BAURU 1.1.A Chegada da Ferrovia na Cidade de Bauru..................................................... 07 1.1.1. A Sorocabana................................................................................................ 07 1.1.2. A Noroeste.................................................................................................... 09 1.1.2. A Paulista..................................................................................................... 11 1.2. O Progresso Através do Trem......................................................................... 14 1.2.1. As Avenidas................................................................................................. 16 1.3. A Ferrovia é uma Forma de Company Town?................................................ 19 II. A INSERÇÃO DAS VILAS NA CIDADE...................................................... 24 2.1.Conceituação Vilas e Colônias......................................................................... 26 2.2. A implantação das Vilas em Bauru................................................................. 26 2.3. Como as Vilas se Implantaram em Bauru....................................................... 27 2.4. Vilas da Companhia Paulista em Bauru.......................................................... 30 2.4.1 Vila da Cia. Paulista - Rua Agenor Meira..................................................... 31 2.4.2 Vila de Triagem............................................................................................. 34 2.5. Vilas da Sorocabana em Bauru........................................................................ 36 2.5.1. Casas de Turma da Sorocabana.................................................................... 37 2.5.2. Casas Rua Célio Daibem.............................................................................. 38 2.6. Vilas da Noroeste em Bauru............................................................................ 40 2.6.1 Vila Noroeste................................................................................................. 41 2.6.2 Vila Dutra...................................................................................................... 45 III. SOBRE A NOROESTE 3.1. Antecedentes da Ferrovia no Brasil................................................................. 49 3.2. A Noroeste do Brasil....................................................................................... 51 5 3.3. Assistências praticadas pela Noroeste – Políticas higienistas / comida-casa- saúde- lazer......................................................................................................................... 57 IV. DENTRO DE CASA 4.1. A Casa Mediadora dos Espaços.................................................................... .68 4.2. Análise das Casas das Vilas da Noroeste....................................................... 70 4.3 A Casa de uma vila Operária/Ferroviária.............................................................................................. 83 V. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 90 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................. 95 ANEXOS............................................................................................................... 96 6 Resumo A pesquisa propõe-se a listar, relacionar e analisar a partir de documentos, manuscritos e relatos orais, de que forma se constituíram os meios e modos de habitação das vilas ferroviárias em Bauru até meados do século XX. Como a ferrovia trouxe consigo uma infra-estrutura necessária ao seu funcionamento, busca-se estabelecer as relações entre a chegada da ferrovia e a cidade de Bauru, e de que forma essa estrutura interferiu na lógica urbanizadora. Assim, pretende-se resgatar a memória da cidade de Bauru relacionando-a a chegada da ferrovia, através do período que compreende os primeiros cinqüenta anos do século vinte abrangendo a chegada dos três ramais ferroviários que serviram à cidade, sua ascensão (fase na qual encontram-se a maioria dos edifícios estudados) e o seu declínio. Para ser implantada em uma cidade, a ferrovia precisava ter uma infra-estrutura básica, necessária ao seu funcionamento, como os armazéns, as estações, as oficinas, os pátios, inclusive as moradias construídas para os funcionários. Esse conjunto é denominado “complexo ferroviário”. Durante o presente trabalho, tem por objetivo aprofundar-se nos estudos das residências construídas pelas companhias ferroviárias. Segundo Eva Blay, vila é o conjunto de casas construídas no interior de um terreno. Mas será que todas as vilas construídas pela mesma Companhia ferroviária possuem o mesmo padrão arquitetônico? Ou o mesmo padrão de loteamento? Como era a arquitetura das casas nas vilas? Através de pesquisas, procuramos responder a esses e outros questionamentos. Como estão hoje as vilas? Quem são seus moradores? Aconteceram alterações na arquitetura das vilas? 7 Introdução A região onde hoje se situa a cidade de Bauru, até meados do século XIX era conhecida como “terras inóspitas ou devolutas”, pouco explorada e quase totalmente habitada por várias tribos indígenas. Parte das terras do no Oeste Paulista só começou a ser explorada no início do século XX. A história de Bauru começa em meados dos anos de 1800, mais precisamente em 1856 quando a primeira propriedade é registrada no cartório de Botucatu e de posse do Senhor Felicíssimo Antônio Pereira. O Patrimônio foi criado em 1884 por meio de uma doação de terras do Sr. Antônio Teixeira do Espírito Santo e sua esposa, que doam parte de sua fazenda adquirida em 1885 e em 1893, recebendo através de outra doação, aproximadamente mais 134 hectares de terra, de Veríssimo Antônio Pereira, filho de Felíssimo e sua esposa. As primeiras casas foram construídas junto a estrada que ligava o Patrimônio a Espírito Santo da Fortaleza e Lençóis, mais tarde chamada Rua Araújo Leite. Nessa época, Patrimônio pertencia ao extinto município de Espírito Santo de Fortaleza. Em 1896 a Vila de Bauru foi elevada a município e dentro de dez anos, chegariam duas grandes companhias ferroviárias a Bauru, sendo a cidade, o ponto de partida de uma delas. Segundo Ghirardello, apenas a partir do estabelecimento da ferrovia em Bauru, é que os fazendeiros começam a fazer investimentos na cidade, antevendo o solo urbano como um bom tipo de investimento imobiliário. Importante ressaltar também que as primeiras “melhorias” na infra–estrutura urbana, como a instalação de telefones em 1907, são feitas pela iniciativa privada. 8 Fig. 1 - Mapa de Bauru- séc. XIX. As quadras em laranja representam a primeira doação de terras (1884) e as quadras em rosa representam a segunda doação (1893). Desenho de Karla Biernath a partir de Ghirardello, 1992. Sabe-se que a ferrovia foi de grande importância para o desenvolvimento e até o surgimento de muitas cidades. Em Bauru não foi diferente, após a chegada da ferrovia, a população aumentou de modo exorbitante, passando de 600 habitantes em 1905 para 3.000 habitantes em 1910. “A instalação quase imediata da Sorocabana e do complexo da CEFNOB altera dramaticamente a vida local. Milhares de trabalhadores dirigem-se a Bauru em busca de ocupação nas obras.” (GHIRARDELLO, 2001:82). Para seu pleno funcionamento, a ferrovia necessitava de mão de obra especializada pronta para sanar problemas que pudesse ocorrer a qualquer momento. Assim as companhias deveriam manter alguns funcionários sempre de prontidão e próximos às estações. Para tal, eram construídas vilas de casas, próximas aos entroncamentos ferroviários para abrigar esses funcionários. Havia também outras formas de fazer com que o funcionário estivesse sempre presente, como é relatado no depoimento do Sr. Getúlio Imaisumi, engenheiro aposentado pela Cia. Paulista, em entrevista publicada no livro “Nos Trilhos da Memória”: 9 Como a ferrovia é 24 horas, a gente tinha um esquema de plantão, era o seguinte: os envolvidos em plantões tinham telefones da própria Companhia em casa, telefones fixos pagos pela Companhia, que poderiam ser chamados nesse período de plantão. Assim durante o plantão, ficava em casa pra disposição de receber um telefonema para qualquer eventualidade. E esse plantão não era remunerado, ele só foi remunerado depois que eu fui trabalhar em São Paulo. (LOSNAK, 2003:344) Segundo Müller (2006), há outros fatores que justificam as construções das vilas tanto as operárias quanto as ferroviárias, como o déficit de habitações populares no início do século XX. Esse déficit gerava a inconstância dos aluguéis e sua consequente alta e instabilidade, permitindo que os ferroviários reivindicassem melhores salários. Dessa forma, as companhias preferiam construir habitações para seus funcionários e cobrar uma taxa de aluguel simbólico como forma de salário não-pago. Em suma, podemos destacar os dois principais fatores que justificam as construções das casas próximas aos entroncamentos ferroviários: a falta de moradia encontrada em muitas cidades e a manutenção do aparelho ferroviário através da mão-de-obra disponível 24 horas por dia. Vale ressaltar também que assim como em muitas indústrias, as companhias ferroviárias não alojavam todos os seus funcionários, mas apenas aqueles que fossem essenciais a manutenção da sua máquina. 1. COMO TUDO COMEÇOU EM BAURU 1.1. Chegada da Ferrovia na Cidade de Bauru 1.1.1. A Sorocabana Fundada em 1870, a Sorocabana nasce de um grupo dissidente de acionistas da Companhia Ituana de Estradas de Ferro, fundada no mesmo ano. A Companhia é a primeira a chegar a Bauru em 1905, fruto do ramal de São Manoel que ligava a estação de Capão Bonito (mais tarde Rubião Júnior), logo após Botucatu, visando chegar à 10 nascente e bem-sucedida cidade de Bauru. Para tal, foi necessário fazer algumas desapropriações e dessa forma, a Sorocabana solicita primeiro, uma área particular e depois solicita à Câmara uma área que pertencia à Igreja1. Garantidas pelo direito de passarem onde fosse melhor, por isso escolhem áreas planas das baixadas, evitando desníveis no percurso que encareceriam as obras. A ferrovia é bem recebida pelas autoridades, devido sua extrema importância para uma cidade nova como era Bauru. Segundo Ghirardello, os trilhos se instalam junto ao ribeirão Bauru em uma área de difícil aproveitamento residencial por serem alagadiças, por isso o terreno mais barato, e protegidas pelo relevo natural em forma de vale. Os trilhos situam-se ao sul longe do patrimônio, não atrapalhando o crescimento deste, embora isolasse através de seus pátios a construção de futurosbairros na área oeste da cidade. 1 Ver Ghirardello, 1992: 86- 87 Fig.2 - Estação da Sorocabana em Bauru em 1906. Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/b/bauru- efs.htm, acessado em 26/09/2010. Fig.3 - Estação da Sorocabana em Bauru em 27/07/1999. Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/b/bauru- efs.htm, acessado em 26/09/2010. 11 1.1.2. A Noroeste Sobre a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, falaremos com mais detalhes no capítulo 3. Das três estradas, a Noroeste era a única que tinha Bauru como seu ponto de partida. É o produto da necessidade de ligar as várias regiões do Brasil e estabelecer uma ligação ferroviária entre os Oceanos Atlântico e Pacífico através do estado do Mato Grosso e da Bolívia. Fora fundada em 1904 com capital brasileiro e franco-belga e sua instalação deu-se em Bauru em 1906. Instalou-se em Bauru próxima à pequena estação da Sorocabana a fim de facilitar os transportes e aproveitando-se da mesma região plana. Para tal foi necessária também uma desapropriação das terras da Fábrica da Matriz do Espírito Santo. Foi adquirida uma área de 83.537 metros quadrados só escriturados oficialmente em 1915. (GHIRARDELLO, 1992, p. 90) Fig.4- Área adquirida da Fábrica da Matriz do Espírito Santo pela Noroeste, extraído da escritura de compra e venda de 10/11/1915. Fonte: Escritório RFSA. 12 Ainda segundo Ghirardello, (1992:91) os trilhos que corriam paralelos ao córrego da Grama reforçarão a separação dos vários bairros futuramente criados, dificultando as conexões dentro da própria cidade. Fig.6- A Estação de Bauru, inaugurada na década de 30. Fonte: Revista Ferrovia, n°290,1960. Fig.5- Vista aérea de Bauru na década de 50 onde se vê a estação, o pátio de manobras e a Praça Machado de Mello. Fonte: Lembranças de São Paulo: O interior paulista nos cartões- postais e álbuns de lembranças. 13 1.1.3. A Paulista Devido à urgente necessidade de escoar a produção de café, nasce a primeira Companhia brasileira de estrada de ferro em 1868, sob liderança do então presidente da província de São Paulo, Saldanha Marinho. Chamada de Companhia Paulista de Estradas de Ferro começou a operar o seu trecho inicial entre Jundiaí e Campinas em 1872 e tem sua estação inaugurada em Bauru em 1910 como ponta do ramal de Bauru. Suas instalações ficam no que seria a primeira quadra da Rua Agenor Meira, ligadas às da Noroeste e da Sorocabana. A área ocupada pela Paulista é menor que das outras, já que não há a necessidade de um pátio de manobras. Algumas ruas são fechadas para a sua implantação e dessa forma reforça-se a separação de algumas áreas da cidade. “Das 3 ferrovias aqui instaladas, é a Paulista que ocupa áreas mais densas e nobres, completando a cisão da cidade em 2 partes principais: norte/oeste, sul/leste.” (GHIRARDELLO, 1992, p.93). “Afinal, Bauru e não Agudos foi o ponto escolhido para inicio da ferrovia, numa antevisão de todas as vantagens que, para o futuro, a cidade poderia oferecer. Curioso, observar que, em 1904, quando a firma empreiteira da Noroeste mandou para Bauru a primeira comissão de engenheiros para proceder aos necessários estudos, a cidade não havia sido ainda alcançada pela ferrovia. Só no ano seguinte chegaria ali a Sorocabana e só em 1910 a Paulista. É o caso de dizer-se que a função ferroviária de Bauru começa antes da própria ferrovia.” (MATOS, 1974, p.131) Fig.6-Estação da Paulista em Bauru- 12/06/2010. Foto de Karla Garcia Biernath Fig.5-Estação da Paulista em Bauru - déc. 1910. Fonte: http://estacoesferroviarias.com.br/b/fotos/bauru_cp10.jpeg, acessado em 26/09/2010. 14 Bauru possui um dos mais importantes entroncamentos ferroviários da América do Sul. Formado por três grandes ramais ferroviários, a cidade, na primeira década do século XX viu-se de uma situação de “boca do sertão” para uma situação de grande progresso e expansão devido ao impulso dado pelas ferrovias. Segundo Matos, o fato de Bauru e não Agudos ser escolhida para as obras da Noroeste foi através de uma previsão de todas as vantagens que a cidade poderia oferecer, já que na época em que os primeiros engenheiros chegaram para realizar os levantamentos necessários, não se sabia ao certo o retorno que a Companhia teria de investir. O pioneirismo foi a principal característica da Noroeste, como veremos mais profundamente no capítulo 3, à medida em que funda novas cidades ao longo do percurso dos seus trilhos. Assim, a função ferroviária que Bauru exerce desde o começo de sua história é fundamental para promover seu desenvolvimento como pólo econômico da região. Em suma, a ferrovia, teve papel fundamental no começo do século XX, definindo o grau de desenvolvimento das cidades em que passava. O primeiro trecho ferroviário é inaugurado no Brasil na década de 1850. Cinqüenta anos depois, a ferrovia chega a Bauru, que era considerada boca de sertão, mas de posicionamento estratégico para a implantação das linhas ferroviárias. A cidade assim, assume seu papel de importante metrópole no sertão, indo além de sua função inicial relacionada à ferrovia e adaptando-se a novas funções, como centro comercial, como relata Pierre Monbeig: Mas a antiga metrópole do sertão, com seus 33.500 habitantes, continua bem viva. Isto em virtude da sua função ferroviária, pois que se tornou o entroncamento das linhas que servem a margem esquerda do Tietê: a Sorocabana ali se une à linha da Paulista e aos trilhos da Noroeste que estão para alcançar a Bolívia... Continua, pois, a velha capital da Noroeste, a participar da expansão do povoamento, participação que se vai tornando cada vez mais perceptível. Derivada da função primitiva, a função nova tem outras razões de ser. Se deixassem de estender-se as regiões novas, tal fato muito pouco se refletiria sobre Bauru. (MONBEIG, 1984, p. 353) Antes da implantação da ferrovia em Bauru, toda a produção cafeeira da região ia direto para Jaú para ser transportada pela Companhia Paulista que havia sido inaugurada na cidade em 1887. Quando se têm a notícia de que a ferrovia realmente 15 estaria chegando a Bauru, a feição da cidade começa a se transformar, já que é um grande privilégio para uma região pouco explorada tornar-se um encontro das linhas de onde partiam caminhos que levariam as diversas regiões, uma delas chegando inclusive até os limites com a Bolívia. Além da ferrovia trazer muitos trabalhadores, foi responsável pelas novas funções urbanas que a cidade começara a adotar. Segundo Ghirardello, o período entre 1905 e 1911 (período ferroviário) é definitivo para a cidade de Bauru, já que a chegada das ferrovias muda sua aparência e seu traçado urbano definitivamente. Sabe-se também que nesse período há muitas obras na cidade, já que o poder local para recuperar o tempo perdido e vender sua imagem de “boa administração”, edita leis e códigos de postura a fim de organizar as construções e mostrar uma boa imagem da cidade. A chegada da ferrovia não só diminuía distâncias, como era responsável pelo escoamento do café e era o símbolo do progresso e da civilização. Em 1889 o Brasil tornava-se um país governado por republicanos e estes almejavam elevar o país a um outro nível a fim de equiparar-lo aos países desenvolvidos. Para tal, era necessário ‘modernizar’ o país de várias formas, sendo importante integrar várias regiões através de um sistema viário eficiente, tornando-nos modernos e eliminando cada vez mais os elementos que nos faziam ser uma instituição política, agrária e colonial. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento das ferrovias também deveria atender aos interesses políticos e econômicos de cada região. Em julho de 1905, chega em Bauru a Companhia União Sorocabana e Ituana de Estrada de Ferro, no mesmo ano, começa a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil com destino ao estado do Mato Grosso, que inaugura seu primeiro trecho entre Bauru e Jacutinga (hoje Avaí) em 27 de setembro de 1906. E em 1910 é inaugurado o trecho Pederneiras – Bauru através da Companhia Paulista de Estradas de Ferro2. 2 Dados obtidos através do site http://www.bauru.sp.gov.br/prefeitura/conteudo.php?cat=4&action=ler&news_id=8&acao=cat, acessado em 28/04/2010. 16 1.2. O Progresso Através do Trem A ferrovia era vista como sinônimo de progresso. Após a chegada das três ferrovias em Bauru, a dinâmica econômica, social e espacial mudou drasticamente em um curto espaço de tempo. Para se ter uma idéia, na primeira década do século XX, Bauru já contava com certa infra–estrutura urbana, como iluminação pública, que havia sido inaugurada em 1911, substituindo os lampiões a querosene. Em 1908 a Câmara passa a ter prédio próprio, é fundada a Beneficência Portuguesa em 1914, e dá-se a instalação do Banco do Brasil em 1918 (embora o primeiro banco, o Banco de Custeio Rural, já tivesse sido inaugurado em 1910). Em 1925, “devido às estradas de ferro (a cidade) tem m movimento diário de população adventícia de 300 pessoas, existindo 40 hospedarias”... além dos cinemas,existentes desde 1910, como o Bijou Théâtre de Eduardo Coutinho e o Bauru Cinema 3. 3 POSAS, Lidia Maria Vianna. Mulheres, trens e trilhos, Bauru, Edusc, 2001, p.165. Fig.8- População urbana de Bauru. Fonte: Dissertação de mestrado de Nilson Ghirardello, 1992. Fig.7- Prédios da cidade Bauru. Fonte: Dissertação de mestrado de Nilson Ghirardello, 1992. 17 Em 1937, o Hospital Salles Gomes é construído pela NOB no Jardim Bela Vista e mantido durante anos pela mesma, para servir aos ferroviários e à população4. Assim, a cidade sofreu melhorias por parte das próprias companhias ferroviárias e tornou-se atraente para receber investimentos e mão-de-obra, devido ao seu privilegiado setor de transportes. É possível encontrar uma rápida análise feita por Losnak sobre o desenvolvimento da economia local com a chegada da ferrovia: Graças às ferrovias, a cidade sofreu um direcionamento mais acentuado do seu perfil econômico, com a predominância do setor terciário da economia. (...) Nesse período, a economia da cidade fortaleceu-se no setor de comércio, serviços e transportes, embora pequenas fábricas também surgissem para atender às novas demandas. (LOSNAK, 2004, p.62). Além de intervir nas relações econômicas da cidade, a ferrovia também intervém nos modos de ocupação e como conseqüência, na morfologia de Bauru, delimitando áreas de loteamento da cidade, como é explicado por Lidia Maria Vianna Possas: A ferrovia interferiu ainda, de maneira contundente, na forma de pensar e definir o seu traçado pelo espaço urbano, bem como as vias de acesso à principal estação da cidade, por meio das inúmeras regulamentações do Código de Posturas Municipais e das construções das estações ao longo da linha. (POSSAS, 2001:194). Antes da chegada da ferrovia, as casas e comércio situavam-se próximos a estrada que ligava Bauru a Fortaleza e Agudos, hoje conhecida como Rua Araújo Leite. Com a ferrovia estabelecendo sobre a cidade uma nova porta de entrada, era vantajoso na época ter casas de comércio, hospedarias, cinemas e até habitações próximas as estações. 4 Dado fornecido pela Profª. Ms. Ludmilla Tidei de Lima Pauleto, no I Simpósio Patrimônio Histórico de Bauru, em Maio de 2010. 18 Vale ressaltar que após a chegada da ferrovia, os terrenos urbanos foram altamente valorizados, o que também foi responsável, entre outros fatores como os elementos geográficos, por exemplo, por nortear a ocupação territorial em Bauru, conforme citado em um artigo por Norma Constantino: A vinda para Bauru das três estradas de ferro entre os anos de 1905 e 1910, ao mesmo tempo que acelerou o crescimento da cidade, também valorizou rapidamente os terrenos urbanos, estes sob o aformaneto da Fábrica da Matriz do Divino Espírito Santo. A valorização impedia a ocupação dos terrenos por parte daqueles que não dispunham de posses. Como reflexo imediato, surgiram os bairros operários, além das linhas férreas, loteados por antigos proprietários rurais. A ocupação territorial foi ocorrendo através de sucessivos fracionamentos da terra e pela forma de transmissão de suas parcelas. (CONSTANTINO, 2008, p.26) Também é possível notar que, algumas ruas da cidade ganham destaque após a chegada da ferrovia, como as Ruas Primeiro de Agosto, Batista de Carvalho e Araújo Leite e a Avenida Rodrigues Alves. Grande parte dessas ruas e avenidas são consideradas importantes eixos até hoje. 1.2.1. As Avenidas As grandes avenidas surgem em Bauru através da ferrovia. A primeira delas é proposta pela Sorocabana como nome de Avenida Sorocabana, atual Pedro de Toledo. Essa avenida possuía quase 25 m de largura, o que era grande para a época, mas necessário para manter as residências afastadas a uma distância segura dos trilhos, além de proporcionar acesso fácil de cargas e descargas à estação e destacar as suas instalações. A Avenida Sorocabana é implantada na diagonal em relação às demais ruas da cidade, “interrompendo” o desenho da malha “xadrez”. Essa avenida direcionava o foco, a perspectiva para a ferrovia. Fronteava a estação, enriquecendo-a. Em julho de 1935, o nome da avenida é mudado para Pedro de Toldo, devido a uma homenagem póstuma ao governador de São Paulo, durante a Revolução de 1932. Atualmente existe uma avenida com o nome de Sorocabana no bairro “Vila Dutra”, onde se situa uma vila ferroviária da Noroeste. 19 Em 1909, é proposto um plano para uma avenida que prolongasse a Avenida Sorocabana. Assim nascia a Alfredo Maia - nome dado em homenagem ao então superintendente da Sorocabana e ex-Ministro dos Transportes no governo Campos Sales. Para a implantação dessa avenida, as nove quadras da Rua Batista de Carvalho foram deslocadas 20 m ao Norte, e sua largura era de 26m, o que era uma grande dimensão naquele tempo. Segundo Ghirardello, a avenida, centralizava-se aos portões da ferrovia, e fazia às vezes de uma praça. Em muitas cidades, era uma praça que fronteava a estação, marcando sua entrada. Mas a implantação desta avenida, poderia estar dentro do contexto dos grandes bulevares (moda em muitas cidades da época, principalmente nas capitais). A Alfredo Maia também pode ter sido uma tentativa de criar um eixo de ligação entre a ferrovia a um outro elemento urbano. Fig.9- Avenida Rodrigues Alves, antiga Alfredo Maia, por volta de 1920. Fonte: Lembranças de São Paulo: O Interior Paulista nos Cartões Postais e Álbuns de Lembranças. 20 Fig.10- Trecho da batista de Carvalho, por volta de 1920. Fonte: Lembranças de São Paulo: O Interior Paulista nos Cartões Postais e Álbuns de Lembranças. Fig.11-Vista panorâmica de Bauru por volta de 1920, onde se vê o pátio de manobras e a antiga estação da NOB. Fonte: Lembranças de São Paulo: O Interior Paulista nos Cartões Postais e Álbuns de Lembranças. 21 1.3. A Ferrovia é uma Forma de Company Town? Primeiramente, antes de esclarecer se os pontos que aproximam ou distanciam a ferrovia das Company Towns, se faz necessário uma breve explicação sobre o que são e de que forma se deram essas formas de organização das chamadas cidades-empresas (Company Towns) em torno do binômio habitar-trabalhar. Segundo Issao Minami, nos Estados Unidos, no século XIX, através da economia industrial foi possível o surgimento das “factory town”, aglomerados urbanos produzidos pelas indústrias, com características modelares, por isso chamados de “Model Company Town”. Eram gerenciados por organizações denominadas “single- enterprise”, empresas que exploravam uma única atividade, como por exemplo, indústrias que se dedicavam somente a tecelagens, beneficiadoras de algodão, etc. Ainda, de acordo Minami, da segunda metade do século XIX ao começo do século XX, devido ao desenvolvimento internacional dos meios de transporte, foi possível ao Brasil aperfeiçoar métodos mais eficazes de escoar a produção do café. Afirmando assim as exportações para o comércio internacional através do nosso principal produto de mercado e permitindo o surgimento da “single-enterprise” ferroviária. Conforme seu desenvolvimento gerado pelo café, o Brasil começou a receber muitas Companhias ferroviárias que trouxeram consigo novas técnicas herdadas da Revolução Industrial além de deixaram fortes marcas não só em nossa economia, como em nossa forma de urbanizar, construir, organizar os espaços (objeto de nossos estudos), importando materiais, costumes e culturas alheias a grande parte da nossa sociedade. De acordo com o Dicionário de Arquitetura e Construção, encontramos o significado do termo Company Town, (também conhecido como cidade-empresa) como: “uma comunidade cujos habitantes dependem predominantemente de uma única empresa para o seu emprego e para muitas de suas necessidades pessoais e familiares. A empresa pode possuir e fornecer habitações, escolas, estabelecimentos comerciais, de lazer, bem como a igreja e instalações da biblioteca para os seus trabalhadores e suas famílias.”. Podemos dizer que a principal função de uma cidade-empresa é viabilizar o progresso do empreendimento a qual se está vinculada, dando continuidade a sua unidade produtiva, inclusive na esfera social, marcando as relações entre os 22 trabalhadores fora da empresa. No Brasil, houve muitos empreendimentos que seguiram esse modo de organização, dentre eles podemos destacar: a Vila Martim Smith, no Alto da Serra de propriedade da Companhia Ferroviária "The São Paulo Railway Company Ltd." e a Vila Maria Zélia de propriedade de um industrial descendente de austríacos chamado Jorge Street, dono de uma grande fábrica de tecelagem. As cidades–empresa carregam consigo também a idéia de modernidade, a partir do momento em que “fundam” novas estruturas urbanas, necessárias ao seu funcionamento, assim como as companhias ferroviárias que também possuíam esse papel, como representantes da modernidade e do progresso. Segundo Rodrigues (2002, p. 114 apud Lima, 2008, p. 02), a reconstrução do fenômeno urbano gerado por essas cidades–empresa nega as estruturas urbanas já existentes (as cidades espontâneas), pois a idéia de company town demonstra ser uma continuidade da unidade produtiva, tanto na relação econômica quanto nas relações sociais, tendendo a configurar-se como um modelo produtivo. Essa racionalização da dinâmica espacial e social das cidades-empresas foi necessária à sua manutenção e à realização de seu maior objetivo: garantir sua efetivação econômica. De acordo com Medeiros (2004, p. 167), a cidade-empresa encaixa-se no tipo de organização propostos pelo taylorismo e pelo fordismo, a partir do momento em que o empresário poderá controlar e vigiar a vida de seus empregados, além de estabelecer laços afetivos com os mesmos, quando oferece equipamentos coletivos de reprodução e efetiva sua manutenção. Medeiros em sua pesquisa, ainda cita elementos que vinculam esse processo de dominação-subordinação, como: altos salários para manter um funcionário na cidade, moradia gratuita oferecida pela empresa ou com aluguéis baixos, transporte, saúde, educação formal, clubes, etc. Vale ainda ressaltar, que no interior dos empreendimentos eram disseminadas ideologias propostas pelos patrões como forma de mantê-las presentes dentro das “cidades”. Segundo Gramsci (1978, p.328 apud Medeiros, 2004, p.164) “os novos métodos de trabalho são indissoluvelmente ligados a um certo modo de vida, a uma certa maneira de pensar e de sentir a vida; não se pode obter sucessos num campo sem obter resultados tangíveis no outro.” 23 As indústrias (single - enterprises) compravam terrenos fora do perímetro urbano para suas instalações, muitas vezes pelo seu preço ser inferior aos da cidade. Por ser distante da cidade, fazia-se necessário construir novas estruturas para manter o seu funcionamento, entre elas, as vilas de casas para a fixação de mão-de-obra especializada. Segundo Blay (1985:32), “... observa-se a instalação de indústrias perto das estações ferroviárias, ou a instalação de ramais especiais que ligam as linhas principais as indústrias”. Embora as linhas ferroviárias se instalem no Estado de São Paulo, no século XIX devido à necessidade de transportar o café, muitas indústrias se beneficiam desse novo meio de transporte. Esses aglomerados urbanos que ficavam bem distantes dos centros eram muitas vezes ligados a estes apenas pelos trilhos. Devido aos “inchamentos” das cidades, muitas Company Towns foram pouco a pouco sendo absorvidas tornando-se parte do tecido urbano. Enquanto as vilas ferroviárias seguiam o mesmo modo de organização, constituindo grandes infra-estruturas que pudessem manter o funcionamento de sua máquina, tinham seu modo de ocupação dentro da malha urbana, organizada de forma diferente. Amparadas pela Lei, as ferrovias poderiam construir seus trilhos onde melhor lhe conviessem. Enfocando o caso de Bauru, objeto de nosso estudo, podemos destacar que as ferrovias situam-se junto ao Ribeirão Bauru e Córrego da Grama à noroeste da malha urbana. Dessa forma, as vilas situavam-se adjacentes aos trilhos para que seus funcionários estivessem sempre próximos do trabalho para qualquer emergência. Ao contrário das Company-Towns, as vilas ferroviárias localizam-se dentro da malha urbana. Podemos dessa forma, comparar dois casos de vilas ferroviárias: A Vila Martin Smith, de propriedade da Companhia Ferroviária "The São Paulo Railway Company Ltd.", um típico exemplo de Company Town e as vilas ferroviárias de Bauru que embora tenham sido construídas pelos mesmos motivos não se caracterizam por Company Towns, já que se situavam dentro da malha urbana da cidade. Mesmo a Vila Curuçá (atual Vila Dutra) situando-se nos limites de Bauru, não era caracterizada como uma Company Town, já que não foi necessária nenhuma estrutura complementar para a sua manutenção e seus moradores não eram totalmente dependentes de uma única fonte para suas necessidades pessoais. Sabe-se que as vilas ferroviárias não foram implantadas fora da malha urbana, pelo contrário, situavam-se perto das estações e dos trilhos por questões práticas. Mas também não foi necessária por parte das Companhias Ferroviárias uma instalação tão 24 complexa como no caso das Company Towns, pois a cidade possuía uma estrutura modesta, As Companhias investiram na estrutura já existente também a fim de sanar suas necessidades mais básicas, desta forma a cidade de Bauru incrementou sua acanhada estrutura graças aos investimentos privados, como podemos ver em dois trechos a seguir: “As ferrovias necessitarão urgentemente, de infra-estrutura básica e forçarão o município à abertura de concorrências públicas para este fim. As comunicações, especialmente, eram fundamentais; os telefones são instalados nas cidades em 1907, pela iniciativa privada. Seus primeiro assinantes são as estações, os comerciantes, Câmara, cadeia e as fazendas das redondezas. A ligação das sedes dos latifundiários com a cidade se tornava importante devido a sua transformação gradual em centro político e econômico.” (GHIRARDELLO, 2008:41). Em outro trecho, também é possível observar como os profissionais trazidos pelas Companhias, principalmente pela Noroeste atuam sobre a cidade: “O início dos anos 10 vê, além da instalação da comarca de Bauru, a instalação da iluminação elétrica, substituindo os lampiões a querosene. Vê ainda, a prefeitura executar os primeiros serviços de abastecimento de água e esgotos da cidade, estudados e planejados pelo engenheiro Silvio Saint-Martin, na época integrante da equipe de técnicos encarregados da construção da NOB. Num de seus relatórios sobre a ferrovia, Saint-Martin observa que a então pequena vila de Bauru começa a tomar, rapidamente, grande incremento, com “amplas ruas alinhadas, abauladas e arborizadas”. (AGROQUISA, 1988, P. 69) Com esses exemplos, pretendemos demonstrar de que forma uma Company Town e uma vila se diferenciam através da sua localização dentro da malha urbana que, por sua vez, leva em conta fatores sociais econômicos e funcionais de cada região a qual foram implantadas. 25 Fig. 12- Croqui esquemático, onde se vê a esquerda o modelo de implantação das Company Town’s e a direita o das vilas ferroviárias. Desenho de Karla Garcia Biernath. Fig.13-Vista aérea da Vila de Paranapiacaba, um exemplo clássico de Model Company Town no Brasil. Fonte: http://www.ecodreams.com.br/mapas_e_dicas.html, acessado em 26/09/2010. 26 Fig.14- Vista da Vila de Paranapiacaba, no 8° Festival de Inverno de Paranapiacaba onde se vê ainda algumas casas do século XIX. Fonte: http://guiadoviajante.com/438/8-festival-de-inverno- de-paranapiacaba/, acessado 26/09/2010. 2. A INSERÇÃO DAS VILAS NA CIDADE 2.1. Conceituação de Vilas e Colônias. Para um melhor entendimento, optou-se por conceituar os termos vila e colônia dentro do contexto do presente trabalho, já que foram observadas referências a essas tipologias de moradias tanto como “vilas ferroviárias” e “colônias de ferroviários”. Ainda existem as vilas operárias, mais conhecidas na literatura do que as vilas ferroviárias. Ambas possuem muitas semelhanças, desde sua forma de concepção, seguindo interesses capitalistas, até semelhanças no modo de construção, inclusive inaugurando novas formas de se pensar e construir habitações populares. A diferença se dá basicamente no capital empregado para as construções, seja o capital das companhias ferroviárias ou das indústrias. As palavras vila e colônia possuem diferentes significados em nossa língua, passando pelo campo da arquitetura até da biologia. 27 Conforme Francis Ching (2003), a vila é o como conjunto de três ou mais residências isoladas, de um pavimento e unifamiliares, organizadas com equipamentos e acessórios comuns, de propriedade comum. Segundo Filho e Aragão (1999), as antigas vilas caracterizam-se por serem conjuntos de residências ao redor de um pátio, localizados no interior das quadras, ligados à rua por uma via estreita, cujas casas possuem um estilo arquitetônico predominante. Projetadas também para atender a demanda por habitação das classes operárias e construídas em bairros pouco valorizados da cidade. No trecho do livro Higienópolis e arredores, de Sílvio Soares de Macedo, são colocados os conceitos de vilas e vielas. 5 “São espaços organizados à semelhança das ruas, mas encontrados dentro das quadras, onde predominam espaços de uso particular. Essa situação lhes confere uma característica de espaços semipúblicos, pois seu uso se restringe, praticamente aos seus moradores. (...) Vielas - ruas estreitas, cujo comprimento total não é superior ao de uma quadra (...). Funcionam quase como pequenas vilas, delas se diferenciando pela volumetria construída, constituída geralmente de edificações de dimensões e arquitetura variadas, e pelo tratamento de seus espaços igual ao das ruas, enquanto as vilas se organizam ao redor de pequenos pátios e corredores. (...) “Vilas – consistem, basicamente, em ruas estreitas que, adentrando o quarteirão, se abrem em um ou mais pátios, ao longo dos quais se edificam pequenas casas e sobrados geralmente destinados a aluguel.” (MACEDO,1987, 211-18) 5 Trecho do livro citado no artigo “As antigas e as Novas Vilas de São Paulo”, de Carlos Alberto da Silva Filho e Solange Moura Lima de Aragão, 1999. 28 De acordo com o dicionário Aurélio da língua portuguesa, podemos definir: Colônia sf 1. Grupo de pessoas que se estabeleceram em terra ou região estranha. 2. Lugar onde se estabeleceu um desses grupos. 3. Região pertencente a um Estado e fora de seu âmbito geográfico principal; possessão. 4. Biol. Conjunto de organismos da mesma espécie e que vivem juntos. Vila1 sf 1. Povoação de categoria superior à de aldeia ou arraial e inferior à de cidades. 2. Conjunto de pequenas casas parecidas, dispostas de modo que formam rua ou praça interior; avenida. Vila2 sf Mansão cercada de jardins. De acordo com a pesquisa realizada, o termo mais correto para tratar esse tipo de habitação seria a denominação de vila por apresentar as características que as aproximam das vilas operárias com as ressalvas mencionadas anteriormente. 2.2.A Implantação das Vilas em Bauru Para Blay (1985, p.32) possivelmente um dos primeiros setores produtivos que adotou o procedimento de construir vilas operárias tenha sido o das ferrovias. Segundo Müller (2006, p.42), a necessidade de construção das vilas era grande em cidades que eram pontos estratégicos para a companhia ferroviária, como o caso de Bauru que possuía um dos maiores entroncamentos da América Latina, devido à importância operacional que essas estações desempenhavam em relação às malhas ferroviárias. Esse fato explica, não só o desenvolvimento das vilas próximas aos trilhos como o desenvolvimento de bairros ferroviários, como a Vila Falcão. As vilas também têm sua importância dentro do contexto histórico urbano como representantes de um estilo arquitetônico de uma época. 29 “Os bairros operários, as vilas ferroviárias e as residências dos engenheiros próximas ao local de trabalho, formando um complexo arquitetônico expressivo no centro da cidade, garantindo a presença da mão-de-obra especializada e do trabalho diário.” (POSAS, 2001:194). Como já citado anteriormente, era necessário para o pleno funcionamento das operações ferroviárias a presença de alguns funcionários que deveriam fazer reparos ou manutenções a qualquer hora do dia ou estar presentes para qualquer tipo de emergência. Para tal, era imprescindível mantê-los por perto. Dessa forma, as Companhias ferroviárias loteavam terras próximas aos trilhos, e ali construíam casas para os seus funcionários que iam morar com suas famílias. Como não havia casas para todos, para se ter acesso a casa, era necessário ocupar uma posição social dentro da Companhia ou que se fizesse necessário estar sempre presente. Mas moradia não era para todos, não, você tinha que fazer o pedido e ficava registrado, mas eles davam pra sujeito que era encarregado de serviço, que tinha classe um pouquinho mais elevada. Que nem agente de estação, feitor de linha, o feitor de armazém de mercadoria, conferente de primeira tinham dois, três que moravam lá na colônia. (LOSNAK, 2004,p.85) No trecho acima, o ferroviário aposentado Alberto Biancosini que trabalhava como conferente na Cia. Paulista narra como eram conseguidas as casas na vila (ou colônia, como muitos empregados se referiam) em Bauru. Devido a sua importância como entroncamento ferroviário, Bauru possui grande quantidade de vilas ferroviárias. Cada Companhia construiu pelo menos duas vilas para seus trabalhadores. 2.3. Como as Vilas se Implantaram em Bauru As vilas operárias, próximas às zonas industriais em razão da instalação das Oficinas da NOB em 1921, não só absorveram os novos contingentes populacionais como impuseram a necessidade de construir habitações mais populares que margearam os trilhos da ferrovia. (POSAS, 2004, p.153-154) 30 Seguindo o mesmo traçado das cidades do oeste paulista, Bauru não foge à regra, apresentando sua malha urbana reticulada, com quadras de dimensão de 88m x 88 m, como relata Monbeig: Repete-se infatigavelmente o plano geométrico, pois é o que melhor satisfaz as exigências do loteador, bem como as condições topográficas. Se o patrimônio se desenvolve, é fácil prolongar as ruas todas retas, em detrimento das terras de lavoura que recuarão sem ônus, em face da valorização dos terrenos. (1984, p.344) A ferrovia com seus pátios, leitos e edifícios interfere de maneira incisiva nessa dinâmica urbana, cortando o patrimônio e deformando algumas quadras, já que a implantação do conjunto ferroviário dá-se de forma única seguindo seus interesses. Mesmo assim, a ferrovia exerce influência sobre a configuração da cidade sendo responsável pelos bairros ferroviários, alguns fundados por iniciativa da própria ferrovia, e outros por iniciativa dos próprios empregados que iam comprando suas casas o mais próximo possível do seu local de trabalho. Também muitas indústrias compravam grandes lotes próximos às estações para diminuir os custos com o transporte de suas mercadorias. Provêm outras variantes da forma não tanto das condições topográficas, como das circunstâncias históricas da fundação. A linha da estrada de ferro, que percorre o espigão, muitas vezes assinala um limite entre propriedades. Dispõe então o fundador do patrimônio unicamente das terras situadas de um lado só da ferrovia. O proprietário acaba entrando no empreendimento, ainda a tempo de aproveitar-se da valorização das terras, porém já muito tarde para forçar mudança muito sensível na direção do crescimento da cidade. Vê-se então surgirem alguns estabelecimentos industriais e galpões que se aproveitam da proximidade da estação, bairros excêntricos, habitados sobretudo por gente pobre, que não encontra mais lugar na vertente valorizada, em que crescera o patrimônio. Fica assim, desequilibrada a cidade, relativamente ao eixo ferroviário. (MONBEIG, 1984, p. 344) 31 Fig. 15 - A esquerda está um trecho do leito ferroviário e a direita pode-se ver como o leito corta as quadras que o margeiam. Fonte: Google Earth, 2010. Dessa forma, a ferrovia interrompe ao interromper traçado urbano, é responsável por gerar uma dinâmica na malha urbana ao mesmo tempo em que valoriza os terrenos próximos a ela, enquanto a estação é a principal porta de entrada da cidade. Na figura a seguir estão localizadas as principais vilas ferroviárias de Bauru, onde podemos notar a proximidade das vilas ao longo das linhas ferroviárias. Fig. 16 - Localização das vilas ferroviárias dentro da malha urbana de Bauru. Fonte: Google Earth, 2010. 32 2.4 Vilas da Companhia Paulista em Bauru Em Bauru, a Companhia Paulista construiu duas vilas ferroviárias: uma que se tem o seu portão na Rua Agenor Meira, que diziam ser para os funcionários mais graduados, e outra construída próxima à estação de Triagem. Segundo dados da FEPASA, a Paulista construiu em Bauru 115 casas para funcionários, além da própria estação e dos armazéns. A seguir, encontra-se a Tabela6 1 com alguns dos maiores núcleos ferroviários paulistas, incluindo algumas cidades do oeste paulista, que reuniam diversas funções, abrigando muitas moradias em seus territórios, como forma de suporte às atividades ferroviárias. TABELA 1 Cidade Companhia Atividade Ferroviária N° de casas Araraquara EFA Escritório e oficinas 118 Araraquara CP Armazéns do IBC, interligação entre a CP a EFA. 67 Rincão CP Armazéns do IBC 54 Marília CP Armazéns 40 Bauru CP Armazéns, interligação entre a CP e a CM. 115 Campinas CP Armazéns, entroncamento que interligava a CP a Noroeste e a RFSA. 73 Campinas CM Armazéns, oficinas e escritórios. 74 Itirapina CP Armazéns, pátio de manobras, entroncamento ferroviário. 90 Dois Córregos CP Armazéns, pátio de manobras, entroncamento ferroviário. 91 Botucatu EFS Armazéns, oficinas 128 Itapetininga EFS Entroncamento e armazéns São Paulo EFS Armazéns, pátio de manobras, entroncamento ferroviário e escritórios, ponto final das estações de passageiros. 160 6 Dados obtidos da Dissertação de Mestrado, Marcelo de Moraes, 2002, p.104 apud relatório FEPASA/SA, 1986. 33 Mairinque EFS Última estação antes da descida da serra e presença de armazéns. 175 2.4.1. Vila da Cia. Paulista - Rua Agenor Meira. Fazendo parte do complexo ferroviário da Cia. Paulista, seu portão de entrada situa-se no que seria a “primeira quadra” da Rua Agenor Meira. É composta pela estação, plataforma, armazém, barracão metálico (usado para manutenção ferroviária), portarias e guaritas de acesso a Rua Rio Branco e Virgílio Malta, a casa do diretor da Companhia sita à Rua Rio Branco, atual sede da SEMEL e 27 casas de madeira e alvenaria, margeadas pela linha férrea, sendo que 25 destas casas estão do mesmo lado da estação e 2 casas situam-se no lado oposto. Nesta vila, moravam inspetores, chefe de estação, etc. Segundo o depoimento dado pelo Sr. Alberto Bianconcini: “Em Bauru, a colônia era no centro da cidade, ao lado da estação da Paulista, no início da Rua Agenor Meira. Tem o prédio do INSS, prá lá um poço, era cheio de casas até lá na estação, do lado do armazém de mercadorias. Na estação velha, a primeira estação da Paulista. Os trens de passageiros antigamente chegavam lá, só até ali. Depois que fez a estação da Noroeste, na Praça Machado de Mello, é que o trem ia até lá, mais ou menos em 1940.”7 7 LOSNAK, Célio José. Nos Trilhos da Memória: Trabalho e Sentimento – Histórias de Vida de Ferroviários da Companhia Paulista e Fepasa, Bauru, 2003. 34 Fig 17 - Casas da vila. Na foto nota-se a presença de casas de alvenaria ao lado das de madeira. Foto: Karla Biernath, 2010. Fig 18 –Um exemplar da casa da vila. Fonte: Museu Municipal de Bauru. Fig 19 –Casas de madeira da vila. Fonte: Museu Histórico Municipal de Bauru. 35 Fig 21 e fig 22 –Casa do diretor da Paulista, atual SEMEL. Fonte: Museu Histórico Municipal de Bauru. Fig 20 – Casa da vila, do outro lado da linha. Foto: Karla Biernath,2010. 36 2.4.2. Vila de Triagem Segundo informações dadas pelo Sr. Toninho8, ferroviário aposentado pela Companhia e antigo morador de Triagem, onde residiu de 1961 a 1968, a vila era composta por 72 casas, 1 escola para as crianças pequenas, 1 salão (para encontros e recreação dos funcionários), 2 campos de bocha, 2 campos de malha, 1 campo de futebol de salão e um campo de futebol com grama. A vila situava-se próxima à estação de Triagem. As casas eram simples, pré-montadas de madeira de apenas três cômodos: quarto, sala, cozinha e banheiro, mas o banheiro era independente. “Só que o banheiro era independente, né? O banheiro tinha que fazer de tijolo. Mas a casa era montadinha assim, com parafuso, bem feitinha” (LOSNAK, 2003: 256). Interessante notar que as casas da vila de Triagem, eram desmontáveis, portanto a vila era “móvel”, ela poderia ser montada e/ ou desmontada de acordo com as necessidades de locomoção que a ferrovia estabelecia aos seus funcionários. Ainda segundo o Sr. Toninho, a vila de Triagem, veio acompanhando os trilhos, passando por Itirapina, Pederneiras para estabelecer-se em Bauru onde ficou até o final da década de 1980, quando foi efetivamente desmontada. Na estação de Triagem também havia 6 casas onde residiam os zeladores. Hoje junto à estação desativada, só existem 4 casas. Ainda de acordo com o Sr. Toninho, todas as casas de Triagem possuíam água encanada, luz elétrica e o telhado era composto por telhas francesas. 8 Entrevista realizada pela autora com o Sr. Antonio Domingues no dia 09/06/2010. 37 Fig. 21 - Casas ao lado da estação de Triagem. Foto: Karla Biernath, 2010. Fig.22 – Tipologia de uma das casas de triagem. Foto: Karla Biernath, 2010. 38 Fig.23 - Croquis esquemáticos das casas de Triagem, segundo relatos de ex-moradores. Desenho: Karla Biernath, 2010. 2.5. Vilas da Estrada de Ferro Sorocabana. De todas as vilas presentes na cidade, as que menos se têm informações são as vilas da Sorocabana, talvez por ter sido a Companhia com o menor número de funcionários em Bauru. Esse fato é curioso, porque a Sorocaba foi a Companhia que mais investiu em habitações populares. Recentemente, através dos funcionários do Sindicato da Cia. Paulista, descobrimos que na Rua Célio Daibem, no centro, próxima a Avenida Pedro de Toledo, existem ainda três casas construídas pela Companhia, além das casas de turma, próximas a Estação da Sorocabana. 39 2.5.1. Casas de Turma da Sorocabana São 3 casas feitas de tijolo à vista e na lateral consta a data de 1933, mas não foi possível identificar se essa data é a real data da construção destas casas ou de uma possível reforma. Esse conjunto de casas situa-se próxima à estação, com acesso através de uma escada, já que está em uma cota inferior, a partir da Avenida Pedro de Toledo, na altura da rua Sete de Setembro. Atualmente, essas casas continuam sendo usadas para moradia, mas aos poucos estão sendo descaracterizadas através de construções precárias que vão sendo incorporada ao corpo principal da edificação pelos seus moradores. Fig. 24 – Entrada pela Avenida Pedro de Toledo para as casas de turma. Foto: Karla Biernath, 2010. Fig .25 – Casas de turma da Sorocabana. Foto: Karla Biernath, 2010. 40 2.5.2. Casas da Rua Célio Daibem Na Rua Célio Daibem, próxima a Avenida Pedro de Toledo constatamos quatro casas que foram construídas pela Sorocabana, sendo 3 em alvenaria e uma em madeira. Todas sofreram algum tipo de intervenção embora, uma das casas ainda conserve o estilo original. Funcionavam no mesmo esquema das outras vilas, com o pagamento de aluguel simbólico, sendo dada preferência aos funcionários que precisariam estar disponíveis para emergências, e assim que fosse demitido ou se aposentasse o funcionário deveria deixar a casa. Uma moradora relatou-nos9 que a sua casa havia sido oferecida pela empresa e comprada pelo seu marido que havia trabalhado na FEPASA e que a casa possuía várias reformas, como a troca do piso e das esquadrias. 9 Informações concedidas à autora por uma moradora de uma das casas, no dia 12/06/2010. Fig. 26 - Detalhe da casa, onde pode-se ver acima do símbolo da Companhia o ano de 1933 e abaixo escrito “Turma – BU”. Foto: Karla Biernath, 2010. 41 Fig.28 – Outra casa na mesma rua e bastante modificada. Foto: Karla Biernath, 2010. Fig .27 – Casa da Rua Célio Daibem, construída pela Sorocabana, mas bem modificada. Foto: Karla Biernath, 2010. 42 2.6. Vilas da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil Em Bauru, a Noroeste construiu 5 vilas entre nas primeiras 5 décadas do século XX. Cada uma, construída em um momento e possuidora de características únicas. Através de relatos, acredita-se que a primeira construção de residência para ferroviários da Noroeste tenha sido no Bairro da Bela Vista. Depois foram construídas as casas de turmas I, II e III, para trabalhadores que cuidavam da manutenção e/ou construção da via. A seguir, temos a Vila Noroeste, localizada na quadra situada entre às ruas Nobile Fig.29 – Casa da Rua Célio Daibem,. De todas as casas, essa é a que apresenta menos modificações. Foto: Karla Biernath, 2010. Fig.30 – Casa de madeira construída pela Sorocabana. Foto: Karla Biernath, 2010. 43 di Piero, 1° de Agosto, Presidente Kennedy e Azarias Leite, e por último, a Vila Dutra. Além dessas vilas, sabe-se que a Noroeste construiu casas para vender aos seus funcionários que tinham mais posses. Um exemplo disso, são alguns lotes da Rua Monsenhor Claro que a NOB comprou, há aproximadamente 60 anos e construiu para vender para os trabalhadores do setor administrativo. De acordo com o relato do Senhor Orlando Ortolan10, funcionário aposentado da NOB, a primeira vila que a NOB construiu para os seus trabalhadores, foi aproximadamente em 1908 e situava-se próximo ao Fórum, na Bela Vista. Quando o Fórum foi construído na década de 40, essas casas foram transferidas para o Km 01, na Vila Falcão. Já de acordo com o Sr. Vivaldo Pitta, outro funcionário aposentado da NOB, a primeira vila a ser construída pela Companhia foi em 1921, situada à Rua Nobile Di Piero. 2.6.1. Vila Noroeste Das vilas de Bauru, é a que possui maior valor arquitetônico devido à sua diversidade. Mesmo sendo uma vila destinada aos trabalhadores graduados, geralmente do setor administrativo, constatou-se que várias classes ali habitaram. Na mesma quadra podemos encontrar as casas para os trabalhadores com a fachada para a Rua Nobile di Piero, casas para engenheiros com a fachada para Rua Presidente Kennedy e a casa do inspetor na Rua Primeiro de Agosto, vendida hoje para um empresário da cidade. 10 Entrevista realizada pela autora com o Sr. Orlando Ortolan, no dia 26/05/2010. Fig. 31 - Vista aérea da quadra e os trilhos à esquerda. Fonte: Google Earth, 2010. 44 Vale lembrar que a Rua Presidente Kennedy era sem saída quando da construção das casas, por isso o movimento de carros e pedestres era bem menor, reforçando a idéia de vila para os funcionários da ferrovia com edifícios exclusivos da CEFNOB. Essa quadra possui um grande valor para a nossa pesquisa, pois reúne em si a hierarquia presente na Companhia. Essa hierarquia revela-se desde a implantação dos lotes até o partido arquitetônico das construções refletindo a estética e um estilo que representava a modernidade trazida pela ferrovia, formando um conjunto rico no centro de Bauru. Fig. 32 Croqui esquemático da implantação da Vila Noroeste. Desenho: Karla Biernath. 45 Fig. 34 – Festa de inauguração do 1° trecho em Bauru. À direita aparecem os telhados das casas da Vila Noroeste. Fonte: Centro de Memória Unesp/RFFSA. Fig. 35 –Vista da Rua Nobile di Piero, na Vila Noroeste. Foto: Karla Biernath, 2010. Fig. 33 – Antigas oficinas em Bauru. A direita, pode-se ver as casas da Vila Noroeste em 1905. Fonte: Centro de Memória Unesp/RFSA 46 Fig. 36 – Vista da Rua Presidente Kennedy, na Vila Noroeste. A direita está a Gare e o leito ferroviário e a esquerda estão as casas dos engenheiros Foto: Karla Biernath, 2010. Fig. 37 – Vista da Rua Presidente Kennedy. Foto: Karla Biernath, 2010. Fig. 38 – Casa do diretor da NOB que hoje funciona um escritório. Foto: Karla Biernath, 2010. 47 2.6.2. Vila Dutra O loteamento onde hoje se encontra a Vila, fora doada à NOB por Salvador Filardi, um grande proprietário de terras de Bauru. A Vila Dutra foi construída a 5 km da estação de Bauru na década de 1940, com a finalidade de abrigar os trabalhadores da Noroeste. Inicialmente foi chamada de Vila Curuçá, pois já existia uma pequena estação com esse nome. Anos mais tarde, a Vila Curuçá passou a ser denominada Vila Dutra. Há várias tipologias das casas da Vila a qual trataremos no capítulo 4. Há basicamente dois tipos: casas geminadas e casas com os dois recuos laterais. Desses tipos, ainda existem casas com dois ou três dormitórios, como explica Alberti: Especificando esse quadro, tem-se ainda uma cifra que, com suas 139 casas, 100% corresponde às casas independentes (com três dormitórios), 44,4% corresponde às casas independentes (com dois dormitórios) e 55,6% corresponde às casas dependentes (com dois dormitórios). (ALBERTI, 1995, p. 96) Ainda em outro trecho, há uma descrição pontual sobre a organização dos espaços da Vila: Fig. 39. Vista aérea da Vila Dutra que está demarcada em vermelho. Fonte: Google Earth, 2010. 48 Nesse interior, o sistema viário da Vila apresenta uma rede ortogonizada, onde a Alameda General Alfredo Malan D’ Angrogne exerce a função de via principal e, como tal, reparte essa responsabilidade com a Alameda Campo Grande e principalmente com a Avenida São Paulo, formando um anel em torno de um conjunto de equipamentos públicos centralizados nessa área. A partir desse ponto, a rua da capela, no meio desse anel, e as demais vias (Alameda Ponta Porã, Alameda Corumbá, Alameda Aquidauana, Alameda Pirajuí, Alameda Três Lagoas e Rua de Acesso) acabam por definir nesse velho assentamento, duas ruas, cinco alamedas e uma avenida, num total de dez logradouros. A fusão do texto com as coordenadas desse traçado viário chama a atenção de uma grelha rígida por suas funções de circulação e habitação, geradoras de uma funcionalidade social que lhe é exigida. (ALBERTI, 1995, p. 96-97) Segundo o depoimento contido no livro “Nos Trilhos da Memória” (pág. 105), o Sr. Adelmo Veloso, um ferroviário aposentado, menciona que na década de 1970 a Vila tinha aproximadamente 120 casas. Segundo esse mesmo ferroviário – inquilino, os moradores não pagavam aluguel, nem luz, nem água. Pagavam uma taxa simbólica que vinha descontada no salário. As casas eram feitas em alvenaria de tijolos, com pé direito de 3,00 m na parte interna da casa e 2,40 na varanda e possuía cobertura de telhas francesas sobre estrutura de madeira peroba. O tamanho da casa era variável. A Vila possuía um parquinho infantil, uma escola e uma Igreja. Todos os serviços e mercadorias eram adquiriras no centro da cidade. Como a Vila fora implantada longe do Fig. 40. Croqui esquemático da Vila Dutra. Desenho: Karla Biernath. 49 centro, a Companhia possuía um trem apelidado de “Coreinha” que levava os moradores à cidade11 gratuitamente. Segundo o depoimento do Sr. Vivaldo Pitta12, a Vila Dutra possui 138 casas, e começou a ser construída na década de 40, mais precisamente em 1947, pelo Coronel José de Lima Figueiredo, sendo o primeiro candidato de Bauru a ser eleito deputado federal. Ainda segundo o Sr. Pitta, uma das casas da Vila possuía uma pequena estação de rádio para a comunicação dos funcionários da ferrovia. No livro “Nos Trilhos da Memória” (pág.318), a Vila Dutra é descrita como: Bairro construído no início dos anos 50 pela Estrada de Ferro Noroeste do Brasil à beira da Estação Curuçá, fora da área urbana da cidade, no sentido leste. As residências eram alugadas aos funcionários, que pagavam pequena taxa pelo uso. Atualmente muitas das casas da vila foram modificadas, algumas tornando-se irreconhecíveis. Essas mudanças se deram a partir de 1987, quando todos os bens patrimoniais da “Eurico Gaspar Dutra” passaram para a Prefeitura e as casas foram vendidas aos seus moradores, que trabalhavam na Noroeste. Dessa forma, posteriormente, mais casas foram vendidas para pessoas fora do núcleo ferroviário. Mesmo assim, até hoje o bairro conserva sua essência ligado às tradições ferroviárias. Dentro desse processo de alterações do bairro, muitas casas foram transformadas em mercadinho, Igreja e outras funções, já que inicialmente a Vila era constituída apenas pelas casas, por uma Igreja e duas escolas que serviam os filhos dos ferroviários. Esse é o processo natural de um lugar. O edifício vai se modificando para abranger novos usos de acordo com as necessidades que são sentidas pelos seus usuários. Devido à distância do centro e depois que o único meio de transporte gratuito oferecido pela Companhia que os conectava à cidade já não existia mais, foi necessário um comércio local que suprisse as necessidades básicas de seus moradores. Assim são construídos os mercadinhos, padarias, bares, incorporando-se à identidade local. 11 Quando o morador se refere à cidade, quer dizer, o centro da cidade de Bauru, já que a vila situava-se a extremo leste, nos limites do município. 12 Entrevista realizada pela autora com o Sr. Vivaldo Pitta, no dia 09/06/ 2010. 50 Fig. 41. Detalhe do projeto de uma das casas da Vila Dutra. Fonte: Centro de Memória Unesp/RFFSA. Fig. 42. Casas da Vila Dutra que não sofreram muitas alterações. A casa da direita é geminada e a da esquerda é independente. Foto: Karla Biernath, 2010. Fig. 43. Comércio na Vila Dutra. Uma locadora à esquerda e um mercado a direita. Ambos os comércios foram casas da vila, inicialmente. Foto: Karla Biernath, 2010. 51 3.1.1.ANTECEDENTES DA FERROVIA NO BRASIL “E ainda, o trabalho industrial em si mesmo, na sua estrutura e organização característica, e a urbanização a vida nas cidades que cresciam rapidamente eram certamente as formas mais dramáticas da vida nova; nova porque mesmo a continuação pura e simples de alguma ocupação local escondia mudanças de longo alcance.” (HOBSBAWM, 2007:292). A sociedade caminhava para novos rumos. O século XIX fora o século que as indústrias consolidaram-se, gerando um reflexo direto sobre a economia da sociedade e refletindo também no desenvolvimento dos meios de transportes, inclusive do setor ferroviário. Segundo Castro (1993), a segunda metade do século XIX quando as Companhias se firmaram pelo mundo como grandes empreendimentos e começavam a se formar no Brasil se caracterizou pelo grandioso espetáculo de exibições de mercadorias, além das aspirações humanas de ultrapassar fronteiras entre os territórios, dominando a natureza desafiadora e ir aos lugares mais distantes e desconhecidos. Contudo, esses motivos devem ser levados em conta ao se investir em um meio de transporte que correspondesse tais expectativas, como os trens. Dessa forma, ainda segundo Castro, para entender a implantação das ferrovias no Brasil, é necessário ir além dos motivos aparentes de ordem econômica, no que dizia a modernização das produções (principalmente a do café, considerado carro chefe da ferrovia) e iriam abordando outros aspectos mais complexos sobre outro prisma, como os que foram citados há pouco. A fundação das Estradas de Ferro no Brasil insere-se em um contexto mundial de progresso gerado pelas técnicas do homem sobre seu meio e financiadas pelo capital, fruto das grandes transformações econômicas que o mundo passava desde o século XVII. Também se faz importante ressaltar a simbologia que a ferrovia carregava consigo. Em 1889, temos o primeiro governo republicano no Brasil. Desejando romper com tradições consideradas arcaicas herdadas do Império, os representantes do novo governo viam na ferrovia uma forma latente do progresso, a chance de modernizar o país e inaugurar uma nova forma de governar, e através da companhias já existentes, pretendiam unir os distantes territórios brasileiros, atuando também como forte agente 52 “modificador” da paisagem e transformador dos “chãos”, sendo responsáveis não só pelo desenvolvimento como pelo surgimento de várias cidades. No Brasil, a primeira tentativa de implantar uma via férrea foi em 1836 através do “Plano Grandioso de Viação”, estudado pela Assembléia Provincial de São Paulo que estudava um sistema combinado de estradas de ferro, canais e rodovias, mas esse plano nem chegou a se transformar em lei e acabou por não sair do papel. Apenas a partir de 1850 é que o Brasil começará mais adepto para receber projetos tão modernos quanto as ferrovias representavam para a época. Primeiro porque sua situação política tornara-se mais estável, com o fortalecimento da ordem pública interna e também porque a extinção do tráfico de escravos através da Lei Eusébio de Queiróz, deixara livre capitais que até então eram empregados no comércio de escravos. O primeiro trecho ferroviário no Brasil começou a funcionar em 1854, compreendendo pouco mais de 14 km, sendo iniciativa do Barão de Mauá13. As próximas Companhias a serem fundadas, a grande maioria fruto de capital misto, sendo a maioria ingleses, propiciou a entrada de capitais estrangeiros no país. Fig. 44 - Locomotiva Baroneza, foi oficialmente a primeira locomotiva a trafegar no Brasil, em 1854. Fonte: http://wiki.worldflicks.org/museu_do_trem.html#coords=%28-22.895143,- 43.291884%29&z=19, acessado em 13/10/2010. 13 Antes da inauguração do primeiro trecho, houve várias tentativas para a implementação da ferrovia, dentre elas a mais significativa, a Imperial Companhia de Estrada de Ferro, organizada pelo inglês Thomas Cockrane, mas sem sucesso. Suas tentativa durou de 1840 a 1842, sem êxito, mas deixou um grande legado de que precisávamos de grandes mudanças em nosso país para garantir o sucesso desse novo tipo de empreendimento. 53 Rodriguez, ao falar sobre a implantação das ferrovias no Brasil, diz que: “Podemos dizer que as ferrovias foram agrupadas da seguinte forma: a do café iniciada no Rio de Janeiro, com a construção da Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1858, que permitiu uma importante redução dos custos de transporte do produto até o final do século XIX, quando ocorreu grave crise na economia fluminense, deslocando a produção do café para o oeste paulista e acarretou imensos déficits nas ferrovias baseadas na cultura desse produto; as ferrovias de cana-de-açúcar, localizadas principalmente no nordeste, destacando-se a Recife and São Francisco Railway Company, construída em 1855; e aquelas de integração ou estratégicas, construídas em torno de 1900.” (RODRIGUEZ, 2004:09) 3.1.2. A NOROESTE DO BRASIL Desde o governo imperial já haviam propostas para ligar as várias partes do território brasileiro, e essa necessidade ficou mais evidente após a Guerra do Paraguai. As comunicações com o oeste brasileiro eram demasiadamente precárias e a região de Mato Grosso vivia praticamente isolado do litoral brasileiro e já em medos do século XIX começou-se a discutir um meio rápido e seguro de ligar tais regiões. Em maio de 1890, foi nomeada pelo Governo provisório da República, uma comissão de engenheiros para organizar um plano de Viação Geral da República, onde eram introduzidos os aperfeiçoamentos necessários para melhorar a comunicação dentro do território brasileiro. Nesse plano, podemos destacar as seguintes linhas no que se refere à comunicação com o Mato Grosso: (Ferrovia. S/cidade: Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, n°290, jan.1960). 54 1. Barra Mansa a Catalão e Mato Grosso, passando pela cidade de Goiás; 2. Uberaba a Coxim; 3. Paranaguá a Miranda e Corumbá, seguindo os vales do Ivaí, Paraná, Ivineima e Brilhante; a princípio mista, mas destinada a transformar-se para o futuro em linha contínua. Através do decreto N° 862 de outubro de 1890, foram feitas várias concessões de estradas de ferro e navegação fluvial que entrariam no Plano Geral. Entre essas concessões foi outorgado ao banco União de São Paulo privilégio de zona e garantia de juros de 6% para a linha que partiria do ponto mais conveniente entre Uberaba e São Pedro de Uberabinha e terminasse na Vila de Coxim, no estado do Mato Grosso. Fig. 45 – Mapa do Plano Geral de Viação. Fonte: Brasil, 1973, apud FINGER, 2009. Após a discussão de vários traçados possíveis para a ferrovia, em 1903, o engenheiro Emílio Schoonor publicou um estudo onde, analisando o traçado da futura ferrovia sob vários pontos de vista, chegou a conclusão de que o melhor traçado seria partindo de São Paulo dos Agudos-Itapura-Miranda-Rio Paraguai. 55 De todos os traçados estudados esse possuía muitas vantagens, já que possuía indiscutível situação estratégica, pela importância política de facilitar a ligação da Bolívia ao Atlântico, além de representar uma alternativa em caso de guerra ou de grande tráfego, ter duas linhas independentes entre o ponto de início e São Paulo. Em 1904, para explorar a concessão obtida pelo Banco União de São Paulo, foi formada no dia 21 de Junho uma companhia tendo como presidente o engenheiro João Teixeira Soares denominada Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil,tendo recebido a transferência da concessão da estrada de Uberaba no estado de Minas Gerais ao Coxim em Mato Grosso, assim nascia a NOB. Ainda em 1904, de acordo com o decreto N° 5.349 de 18 de outubro, o traçado da estrada foi alterado de modo a partir de Bauru, prevendo as vantagens que a cidade ofereceria futuramente, e não mais de São Paulo dos Agudos, no prolongamento da Sorocabana, que oferecia a vantagem da igualdade da bitola, e deveria terminar na cidade de Cuiabá. Matos (1974) coloca alguns dispositivos deste contrato como: • Privilégio por 60 anos para a construção, uso e gozo das respectivas linhas férreas; • Direito de desapropriações; • Juros de 6% durante trinta anos sobre o capital de 30:000$000 por quilômetro; • Criar campos de experiências destinados à educação de operários agrícolas no manejo de instrumentos agrários e na prática de cultura de plantas nacionais e exóticas; • Entrega ao governo, após a inauguração de trechos em tráfego, de uma linha telegráfica, zelando pela sua conservação. Em 1905, iniciaram-se as construções em Bauru, que na época era uma vila com aproximadamente 600 habitantes. A companhia contratou os serviços de construção da Compagnie Generále de Cheminsde Fer et des Travaux Publiques, que contratou no Brasil os serviços do empreiteiro Joaquim Machado de Melo. Em setembro de 1906, foram inaugurados e abertos ao tráfego provisório os primeiros 48 quilômetros, até a estação de Jacutinga, depois denominada Avaí. Muitas das estações situadas na nova região em meio a floresta mais tarde se transformariam em futuras cidades. Em 1907, 56 com a presença do presidente da república Afonso Pena, Miguel Calmon, ministro da Viação e Albuquerque Lins, presidente de São Paulo, foram inaugurados mais 110 quilômetros até a estação de Miguel Calmon, atual Avanhandava. Nesse trecho, os principais núcleos de povoamento são Cafelândia, Lins e Promissão. Em 1908, mais 80 quilômetros são inaugurados passando pelas estações de Glicério, Penápolis e Birigui e chegando até a estação de Araçatuba, que mais tarde seria a maior cidade de toda a zona Noroeste. Dessa forma, a Noroeste assume seu importante papel na história das ferrovias paulistas como ferrovia pioneira, já que seus trilhos precediam as próprias cidades que eram formadas a partir das estações ou até mesmo doas acampamentos de trabalhadores, além de transcontinental, fazendo a ligação do Brasil com a Bolívia. “A Noroeste do Brasil, partindo de Bauru põe todo o sul do Mato Grosso em contato com São Paulo, resolvendo, como já se afirmou o velho problema das comunicações terrestres com aquele estado. Prolongando-se até Corumbá, onde se articulou com uma ferrovia boliviana, tornou-se a Noroeste o elo principal de mais um grande sistema transcontinental.” (MATOS, 1974:162) A conclusão dos trabalhos da Noroeste, foi a mais rápida da história das ferrovias no Brasil, sendo executados 450 quilômetros até a margem do Rio Paraná onde chegou em 1910 e em novembro do mesmo ano, chegou ao lugar onde seria construída a estação de Três Lagoas, primeira cidade do mato grosso a receber os trilhos da companhia.Mas tamanha rapidez resultou em algumas falhas, como a do trecho entre Araçatuba e Jupiá, onde em vez de levar os trilhos para o espigão divisor, como de costume, a companhia desviou os trilhos para a margem do Rio Tietê, em uma Fig.45 -. Vagão de inspeção e trem de passageiros em Bauru. Fonte: Cardz, postais publicitários, 2010. 57 região precária, o que maximizou o problema, já que os trilhos da Noroeste, como dito anteriormente, através da sua função desbravadora, passariam por regiões inóspitas que mereciam apurados levantamentos. A extensão dos trilhos adiante de Araçatuba direcionou a estrada à margem do rio Tietê,que é alcançada no km 336, por regiões pantanosas e insalubres, fazendo muitas vítimas, principalmente através das febres e das moléstias, além dos ataques indígenas que os trabalhadores sofreram durante a construção da estrada, ceifando muitas vidas e fazendo parte de um capítulo triste na história da Noroeste. Apenas na década de 1920, foi construída uma variante entre Araçatuba e Jupiá. “Procedido o necessário reconhecimento da região, tiveram início as obras de construção da nova linha, que alcançou Guararapes em 1929, Diabase (atualmente Bento de Abreu) em 1931, Valparaíso em 1932, Aguapeí em 933, Lavínia em 1935, Mirandópolis em 1936 e Andradina em 1937 para, em fins desse mesmo ano, entroncar-se com a linha velha em Jupiá. Esta, com a construção do novo trajeto e o extraordinário desenvolvimento que alcançaram as cidades nele situadas, foi perdendo a sua função, a ponto de boa parte de seus trilhos ser retirada, restringindo-se a linha ao percurso de Araçatuba a Lussanvira, transformando-se, portanto, de tronco a simples ramal.” (MATOS, 1974:137) Em fevereiro de 1937 inicia-se a construção do ramal Campo Grande a Ponta Porã, cidade que faz fronteira com o Paraguai, cuja inauguração ocorre em abril de 1953 com uma extensão de 304 quilômetros. E em 1968 é inaugurada a estação internacional de Corumbá. Em março de 1957, o governo de Juscelino Kubitschek, através da Lei 3.115 cria a Rede Ferroviária Federal S.A., incorporando todas as estradas de ferro pertencentes à União, dentre elas a Noroeste do Brasil que fica subordinada à Coordenadoria Regional de São Paulo. A 30 de outubro de 1969, a diretoria da Rede Ferroviária Federal S.A.extingue as Coordenadorias Regionais e cria quatro Sistemas Regionais, as quais passam a integrar as Unidades de Operação Ferroviária da RFSA. A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, subordinada ao Sistema Regional Centro Sul (SPR), com sede em São Paulo, passa a ser denominada 10ª Divisão-Noroeste. E em março 1996, a Superintendência Regional de Bauru da RFSA é concedida à iniciativa privada, através de uma privatização feita pelo governo federal e em 1° de julho de 1996, a antiga Estrada de 58 ferro Noroeste do Brasil passa a ter sua razão social de Ferroviária Novoeste, constituindo-se em uma empresa privada. Fig. 47 - Linha tronco Noroeste partindo de Bauru em vermelho, 1935. Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/ramais/nobtronco.jpg Fig.46- Primeira estação de Bauru. S/d. Fonte: Revista NOB, n° 290, 1960. 59 3.1.3. ASSISTÊNCIAS PRATICADAS PELA NOROESTE - POLÍTICAS HIGIENISTAS / COMIDA – CASA – SAÚDE - LAZER “Já para as casas operárias, a lei entrava em detalhes internos, propondo um modelo baseado na idéia de cubagens mínimas de ar e iluminação por habitante, através da qual derivava uma série de exigências arquitetônicas. A idéia de intervir no desenho das casas dos trabalhadores partiu da correlação entre condições sanitárias e o alastramento de epidemias pela cidade naquele tempo.” (ROLNIK, 1997:37) Nesse trecho, Raquel Rolnik cita as intervenções ocorridas na cidade de São Paulo, no final do séc. XIX e início do séc. XX, a fim de ordenar o espaço público e criar uma nova imagem para a cidade, as que se relacionavam às moradias dos trabalhadores sob o pretexto das políticas higienistas de organizar a cidade, promovendo o bem estar social e a melhora da saúde da população. Com esse tópico, pretendemos demonstrar como aqui em Bauru essas práticas foram utilizadas pela Noroeste, devido ao problema de insalubridade enfrentado pela ferrovia ao penetrar em algumas regiões e as péssimas condições de trabalho que acabaram por afastar muitos trabalhadores e a forçou a adotar práticas assistencialistas. E adiante, o modelo de pensamento das políticas higienistas/sanitaristas adotada Fig.48- Interior das oficinas em Bauru. S/d. Fonte: Cardz, postais publicitários, 2010. 60 por alguns de seus diretores, influenciaram os modos de organização da Noroeste no que diz respeito a relação com seus funcionários e as práticas auxiliares relacionas à saúde, moradia, alimentação e lazer adotadas pela mesma. Como foi dito anteriormente, as condições de trabalho na construção da estrada, eram péssimas. Muitos trabalhadores foram mortos por ataques indígenas, sofreram com as várias doenças adquiridas nas regiões nas quais a estrada passou, como a febre amarela, malária e a úlcera de Bauru. Essas condições só afastavam os trabalhadores, desfalcando a mão-de-obra e gerando prejuízos para a Estrada. Devido a isso, foram necessários investimentos em medidas profiláticas. No início, a companhia quase nada fez para conter os males que tanto acometiam os trabalhadores, seus médicos não possuía quase nenhum recurso, restringindo-se apenas a cuidar dos que já estavam enfermos. Segundo Queiroz (2004), o serviço sanitário da Noroeste começou a funcionar apenas em 1919, e para tal, foi reformado um hospital que existira em Aquidauana, construído um hospital em Araçatuba, inaugurado em 1921, construído um posto médico em Três Lagoas e havia um médico em Bauru e em cada uma das residências da Estrada. Parece, na década de 20, que esse tipo de serviço começa a se organizar. Em 1925 propunha-se a fiscalização e uniformização desse tipo de serviço mediante a subordinação dos postos e hospitais a um “diretor geral médico”. Esse serviço continuou a cuidar da inspeção das doenças endêmicas, distribuindo sais de quinino e vacinas, e dispondo nos hospitais e postos médicos da Estrada um serviço permanente de vacinação antivariólica. Ainda na década de 20, a Estrada busca dividir esses encargos com a recém-criada Caixa de Aposentadorias e Pensões dos trabalhadores da ferrovia. Os primeiros hospitais da Estrada localizavam-se em Aquiduana – Hospital Adolpho Luts, e em Araçatuba – Hospital Dr. Francisco Barbosa. Outro hospital fora inaugurado em Bauru, em outubro de 1941, denominado Sanatório Sales Gomes, que tinha por fim tratar a tuberculose, já que a Estrada estava sofrendo muitas baixas, pois muitos funcionários estavam padecendo daquele mal, “principalmente do pessoal jornaleiro”, funcionários que se ocupavam de trabalhos manuais. 61 Fig. 49 - Hospital da NOB em Aquidauana, sem data. Fonte: Fonte: Centro de Memória Unesp/RFSA Ainda um quarto hospital começou a ser construído em Bauru no fim da década de quarenta, denominado Sanatório Noroeste. “Todavia, ao que parece, esse estabelecimento não pertencia propriamente à Estrada, como os demais, tendo sido construído, em um terreno pertencente à NOB, pelo Serviço Nacional da Tuberculose (R49, p. 75). A partir de 1952 essa nova instituição parece haver assumido as funções antes cumpridas pelo Sales Gomes...” (QUEIROZ, 2004, p.101). Nessa mesma época, o próprio Sales Gomes, após ter sido quase extinto em 1952, passou por uma mudança de suas funções, a qual deveria transformá-lo em um “moderno e bem equipado hospital para clínica geral, alta cirurgia e perfeito serviço de acidentes de trabalho”, sendo a sua inauguração prevista para 1957. 14 A Companhia também expandiu sua rede de postos médicos, a partir da década de 40, inclusive contando com postos odontológicos em várias cidades e segundo Queiroz, em 1953 foi criado um carro com “gabinete volante” para chegar até as áreas da Noroeste que não possuíam tais recursos. Ainda segundo Queiroz, os trabalhadores pagavam pelos serviços feitos pelos gabinetes da Estrada, que representava aproximadamente 27% do que custaria esse esmo serviço caso fosse particular. Pode-se dizer que a Estrada começou a tomar medidas visando a melhora da saúde de seus funcionários que tiveram em um primeiro momento uma motivação de ordem econômica, pois foram grandes as baixas no serviços devido as doenças contraídas pelos operários, além, de afastar futura mão-de-obra pelo medo das péssimas condições de trabalho. Segundo Queiroz, sobre este episódio: 14 Ver QUEIROZ, 2004,p.102. 62 “Nessas circunstâncias, o diretor declara ser necessário iniciar-se um plano objetivo e permanente de combate à malária e outras endemias”. (QUEIROZ, 2004, p. 103, grifo meu). Em 1946 chega à região um médico sanitarista que depois de realizar alguns estudos sobre o caso, inicia uma campanha de saneamento e forte combate à epidemia “com assistência domiciliar aos enfermos e profilaxia dos locais de trabalho e das residências dos servidores não afetados – sendo que, para tanto, a estrada admitiu guardas-chefes e 11 guardas sanitários” (QUEIROZ, 2004, p.103) A Noroeste não exercia práticas assistenciais apenas na área da saúde, e sim nas áreas de alimentação, moradia e lazer. No que diz respeito as práticas em relação à alimentação, a Estrada dispunha de armazéns em várias estações que facilitavam o pagamento das compras dos funcionários além da instalação de postos de alimentação, oferecendo refeições gratuitas aos funcionários. “O objetivo, diz ele (o diretor Lima Figueiredo), era “abolir a marmita”, que traz a refeição feita na véspera, às vezes pela madrugada”, e da qual o trabalhador “se serve no almoço, por vezes fria, e no jantar quase sempre azeda”; “o homem que trabalha”, prossegue Figueiredo, “deve sentar-se para comer e deve ter prazer de se alimentar, palestrando ao redor da mesa, como ocorre universalmente.” (relatório da Noroeste n°47, p. 54 apud QUEIROZ, 2004: 105). Segundo Queiroz, essa medida tinha além de seu significado político, um sentido prático também, já que eram corriqueiras as intoxicações alimentares, que além de afastar o funcionário de suas atividades normais, era necessária a concessão de licença médica para seu tratamento. Em 1947, haviam 15 desses postos de alimentação, sendo 9 localizados no Mato Grosso.15 Esse serviço parece ter sido limitado a partir de 1951, quando os funcionários em serviço alimentavam-se nos próprios carros restaurantes, com as refeições custeadas pela própria Companhia. 15 Ver Relatório Noroeste 47, p. 54 apud Queiroz, p. 105. 63 Ainda havia os armazéns, que faziam parte das cooperativas de consumo da Noroeste, sendo fruto de uma organização autônoma dos trabalhadores e ao mesmo tempo, possuía vínculos com a administração da Companhia. “Outra ajuda ao ferroviário foi a Cooperativa. Ela era muito boa, muito bem sortida e atendia bem. E tudo artigo de primeira! Tinha um movimento tremendo e era grande pra caramba. Além dos secos e molhados, havia farmácia, alfaiataria. E não era só em Bauru, não. Tinha também ao longo da linha.” 16 A diretoria da Companhia acabou por patrocinar a formação pelos próprios empregados de uma “Sociedade Cooperativa para o fornecimento de gêneros alimentícios e de uso comum”, iniciando-se em maio de 1919, atendendo seus cooperados com dois armazéns, o já existente em Bauru (já adquirido pela sociedade) e outro em Aquidauana (começando a funcionar em 1/05/19) e serviriam os associados residentes nos trechos Bauru-Jupiá e Jupiá-Porto Esperança. 17 Em 1942, havia armazéns em Bauru, Três Lagoas Aquidauana e Campo Grande, em 1949 um armazém fora instalado em Araçatuba e no mesmo ano, mais um armazém foi instalado em Bauru, na vila Falcão e ainda um “vagão-loja”. 18 Mas, segundo alguns depoimentos de ferroviários, em Bauru, o serviço da cooperativa acabou por má administração. “A Cooperativa tinha tudo para dar certo, mas o problema é que ela foi mal administrada por um tempo... Mas o fato é que tinha muito problema e a Cooperativa acabou falindo.” (LOSNAK, 2004, p.169) 16 Depoimento do Sr. Adelmo Veloso concedido à Célio Losnak para o livro Nos Trilhos da memória V. 2, p. 106. 17 Ver Queiroz, p. 106 18 Queiroz, p. 106 apud (R46, p. 29; R49, p. 31) 64 Fig.50 - Tipo de armazém na sua época de construção. Fonte: Centro de Memória Unesp/RFSA. A Noroeste também cuidava do lazer de seus funcionários. Em um trecho de uma publicação da Companhia, podemos ver: “ Os desportos são hoje parte integrante de todas as estradas de ferro, pois, men sana in corpore sano... Realmente o homem fisicamente forte está apto para enferntar as maiores dificuldades, pois o seu moral não se deixa abater como soi acontecer com os indivíduos alquebrados pela fadiga ou pela longa inatividade dos músculos, e assim pensando, é que a Administração da N.O.B. Vem incentivando os desportos na Estrada, favorecendo a criação de núcleos atléticos numerosos e perfeitamente organizados, como se pode ver por exemplo em Baurú e Três Lagoas.” ( revista da NOB, n°290, jan. 1960) 65 Em Bauru, a N.O.B. possuía um grande complexo esportivo, iniciado na gestão do General Marinho Lutz, contando com o Estádio do Esporte Clube Noroeste e o ginásio, popularmente conhecido como “Panela de Pressão”, contando com campos de futebol com arquibancada, quadras de tênis, basquete e piscinas, tanto voltadas para o lazer como para competições. Na mesma publicação, cita-se que é um dos maiores empreendimentos do gênero no Brasil, sendo superado apenas pelos estádios do Maracanã, Pacaembu e do S. Paulo F.C., também em obras. Em Três Lagoas também havia outro estádio denominado “Dr. Ubaldo Medeiros”, homenagem feita ao Diretor da NOB, sendo um pouco menor que o complexo de Bauru, mas “possuindo todos os setores correlatos a uma praça de esportes moderna”. Fig. 51- Vista do estádio da Noroeste, o ginásio e o conjunto de piscinas. S/d. Fonte: Revista NOB, n° 290,1960 Fig. 52 - Vista do ginásio da Noroeste. Foto: Karla Biernath, 2010. 66 Outra assistência importante da Estrada era a construção das casas dos ferroviários, a qual é o foco deste trabalho. Havia várias residências em quase todas as estações da NOB. Em uma publicação da própria ferrovia, menciona-se que cada “tipo arquitetônico” era construído em conformidade com a região em que as mesmas eram edificadas. Em outro trecho da mesma publicação podemos ver: “A N.O.B., há muito vêm cuidando carinhosamente da localização de seus funcionários, oferecendo-lhes moradias confortáveis ao longo de suas linhas.” (revista da NOB, n°290, jan. 1960). Podemos ver através dos dois trechos acima, a “preocupação” da Companhia ao se construir “boas residências” para seus trabalhadores levando em conta a região a qual será construída e também havia a preocupação em acomodar a numerosas famílias dos funcionários. Vale ressaltar que as casas eram alugadas a preços simbólicos descontados em folha de pagamento e as casas não eram para todos os funcionários, apenas os que necessitavam “estar a disposição 24 horas por dia” da Companhia. Queiroz cita o trabalho de Gomes sobre as assistências praticadas pela Noroeste: Fig. 53 - Vista do estádio da Noroeste “Dr. Ubaldo Medeiros” em Três Lagoas, MT. S/d. Fonte: Revista NOB, n° 290,1960 67 “... as agradáveis, limpas e arejadas residências” dos trabalhadores estacionados ao longo da via. A saúde do operário, prossegue, “é de ferro porque ele come bem”, e ele come bem “porque ganha mais, porque gasta menos com remédios e paga pouquíssimo pelos mantimentos da sua Cooperativa”. Em caso de doença, continua o médico, “há hospitais eficientes para atendê-los e à sua família”, e, se é ferido em serviço, conta com os postos médicos mantidos pela Estrada, “aparelhados para satisfazer às mais urgentes necessidades terapêuticas, correndo todas as despesas por sua conta”. (GOMES, [19--], p. 78 apud QUEIROZ, 2004:108) Esse trecho sintetiza o pensamento comum à época, relacionando o modo de vida do trabalhador à sua produtividade dentro da empresa. As ações da Companhia, no que se refere às práticas assistenciais, demonstram o seu sentido político e prático no que diz respeito ao seu funcionamento, visando manter seus funcionários sempre sãos e motivados para realizarem suas atividades para produzirem bastante, pois naquela época se dependia mais da mão-de-obra humana do que dependemos hoje, sendo fundamental fazê-la trabalhar da melhor maneira possível, nem que para isso fosse necessário o controle sobre a vida do trabalhador. Fig. 54 - Casa dos ferroviários em Três Lagoas, MT. S/d. Fonte: Revista NOB, n° 290, 1960. 68 Fig. 55 - Casa dos ferroviários em Porto Esperança no ramal de Ponta Porá. S/d. Fonte: Revista NOB, n° 290,1960. Fig.56 - Casa dos ferroviários em Três Lagoas, MT. S/d. Fonte: Revista NOB, n° 290,1960 69 Fig. 57 - Casa dos ferroviários em Bauru. S/d. Fonte: Revista NOB, n° 290,1960 Fig. 58 - Casa de Bauru. Foto: Karla Biernath, 2010. Fig. 59 - Sobrados dos engenheiros na Presidente Kennedy, na sua construção na década de 60 à esquerda. Fonte: Centro de Memória Unesp/RFSA. Fig. 60 – À direita os mesmos sobrados atualmente. Foto: Karla Biernath. 70 IV. DENTRO DE CASA 4.1. A Casa Mediadora dos Espaços A casa é a unidade física comum a todos os povos e todos os seres. Como uma casca que protege, é o elemento separador da vida pública e a vida privada. A casa se volta para o exterior projetando a imagem a ela imposta e abriga o lar em seu interior a qual é o resultado das interações humanas com o seu ambiente mais íntimo, o modo como o homem se protege, o espaço sagrado e o lugar de reunir os mais próximos. O lar é um refúgio inviolável, pois preserva o modo de vida através do processo que envolve as relações sociais, econômicos e culturais presentes em um determinado tempo e espaço. Em sua exterioridade, a casa se relaciona com o ambiente a qual está inserida, gerando uma série de configurações urbanas e manifestando em si o resultado das transformações ocorridas no espaço público ao longo do tempo. Interessante notar a oposição e a completude que a casa e a rua exercem uma sobre a outra. Como disse Jacobs (2000), a rua sozinha não é nada, é uma abstração. A casa por sua vez, precisa de um espaço, um lugar para situar-se, assim ao mesmo tempo em que elas delimitam o seu espaço há uma interdependência entre ambas para que possam assegurar sua existência, dando-lhe sentido. E é essa relação entre a casa e a rua que balizará as hierarquias apresentadas nas sociedades ao longo do tempo. Na verdade a oposição casa-rua era fundamental, ao longo dos séculos XVIII e XIX, na definição dos papéis e hierarquias sociais na cidade. (...) a cidade, na época da independência, estava longe de favorecer hábitos de convívio burguês: fora um passeio público mal consolidado, somente as ocasiões de procissão, te deums e festas cívicas animavam a vida social (DIAS, 1984, p.63 apud ROLNIK, 1997, p.33). Essa oposição à rua como um lugar perigoso para a moral e os bons costumes, é retomada nas próprias vilas. A casa torna-se então o centro de convivência familiar, e a rua perde seu valor, não sendo um espaço projetado para se tornar convidativo. Para o lazer de seus funcionários, as empresas investiam em clubes e esportes e tudo que 71 envolvesse a família, para mantê-los longe de quaisquer atividades que os desviassem do trabalho ou diminuísse sua produtividade. Ainda em relação à oposição da casa-rua, sob o prisma urbanístico, observa-se que: Numa época na qual as ruas, com raras exceções, ainda não tinham calçamento, nem eram conhecidos passeios – recursos desenvolvidos já em épocas mais recentes, como meio de seleção e aperfeiçoamento do tráfego – não seria possível pensar em ruas sem prédios; ruas sem edificações, definidas por cercas, eram as estradas. (REIS, 2004, p.22 apud FINGER, 2009, p. 67). Dessa forma, pode-se perceber a importância dos edifícios sobre o espaço público, a ponto de definir os usos do próprio espaço. Ruas que não possuíam edifícios eram consideradas estradas, meros lugares de passagem, embora a rua também fosse considerada como um lugar de passagem, adquiria um cunho de permanência a mais do que as estradas. Esse sentido só foi possível graças às casas, que propiciavam paradas mais longas do que em uma estrada. Podemos então, denominar a casa como verdadeiro mediador do espaço, definindo seus caminhos e hierarquizando o espaço público, através do seu próprio espaço. São testemunhas das transformações o