UNESP Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e Ciências - Campus de Marília - Pós-Graduação em Ciência da Informação. TÂNIA CRISTINA REGISTRO O arranjo de fotografias em unidades de informação: fundamentos teóricos e aplicações práticas a partir do Fundo José Pedro Miranda do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto. Marília 2005 2 Tânia Cristina Registro O arranjo de fotografias em unidades de informação: fundamentos teóricos e aplicações práticas a partir do Fundo José Pedro Miranda do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto. Dissertação apresentada, como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Faculdade de Filosofia e Ciências – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP, campus de Marília. Área de Concentração “Informação, Tecnologia e Conhecimento”. Orientador: Dr. Eduardo Ismael Murguia Maranon. Marília 2005 3 Registro, Tânia Cristina. R337a O arranjo de fotografias em unidades de informação: fundamentos teóricos e aplicações práticas a partir do Fundo José Pedro Miranda do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto / Tânia Cristina Registro. -- Marília, T. C. Registro, 2005. 187 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Faculdade de Filosofia e Ciências – Universidade Estadual Paulista, 2005. Orientador: Dr. Eduardo Ismael Murguia Maranon. 1. Fotografia. 2. Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto. 3. Arranjo de fotografias. I. Autor. II. UNESP-Marília. III. Título. CDD 770.98161 4 Tânia Cristina Registro O arranjo de fotografias em unidades de informação: fundamentos teóricos e aplicações práticas a partir do Fundo José Pedro Miranda do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto. Dissertação apresentada, como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Faculdade de Filosofia e Ciências – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP, campus de Marília. Área de Concentração “Informação, Tecnologia e Conhecimento”. Banca Examinadora: ___________________________________________ Presidente e orientador: Dr. Eduardo Ismael Murguia Maranon. Departamento de Ciência da Informação da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP – Universidade Estadual Paulista, campus de Marília. ___________________________________________ Membro titular: Prof. Dr. José Augusto Chaves Guimarães. Departamento de Ciência da Informação da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP – Universidade Estadual Paulista, campus de Marília. ___________________________________________ Membro titular: Drª. Giulia Crippa. Departamento de Física e Matemática, Curso de Ciências da Informação da Documentação, USP – Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto. Marília, 03 de março de 2005. 5 À memória de Mário Moreira Chaves e José Pedro Miranda 6 AGRADECIMENTOS Trilhas e caminhos abertos em meio a uma paisagem, cujos contornos e conteúdos me remetem sempre às pessoas; pessoas que em tempos diferentes e de maneiras diversas tocaram a minha emoção e o meu intelecto, iluminando de maneira definitiva a minha existência. Agradeço profundamente: Ao Dr. Eduardo Murguia, pela oportunidade para que o presente estudo fosse desenvolvido, pela orientação e ensinamentos que transformaram um amontoado de idéias dispersas numa pesquisa científica; pela presença constante, pela amizade. Se eu inventasse uma alegoria, imaginando que essa pesquisa fora um barco, no qual realizei uma viagem inesquecível, diria que você foi o capitão desse barco. Foi também a quilha que permitiu a travessia; foi ainda o lastro, que sustentou o barco em águas bravias. Noutras vezes foi o leme condutor e objetivo e, em todos os momentos, foi o vento que possibilitou a realização dessa aventura. Portanto, expresso aqui meu maior sentimento de gratidão e admiração. Ao Prof. Dr. José Augusto Chaves Guimarães e à Dra. Giulia Crippa, pelas importantes sugestões e valiosas contribuições; Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP-Marília, expresso aqui minha homenagem e agradecimento; Aos funcionários administrativos da UNESP-Marília, pelo suporte e atendimento competente; Aos funcionários da Biblioteca da Unesp-Marília e da Biblioteca da USP- Ribeirão Preto, pelo pronto atendimento, sempre competente e amigável; Aos meus colegas de mestrado, Walter, Karina, Liriane, Flavinha Bastos, Lucilene, Patrícia, Rachel, Igor, Wellington e Simone, pelas discussões durante as 7 disciplinas; cada um de vocês, de forma peculiar e única, participou do meu crescimento intelectual e pessoal; À Alice Heck pela carinhosa presença e revisão dos textos; À Silvia Espírito Santo, pelo incentivo na fase inicial do presente trabalho; À Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa, Coordenadora de Memória da Secretaria da Cultura de Ribeirão Preto, pelo apoio constante à presente pesquisa; Aos meus colegas de trabalho no Arquivo de Ribeirão Preto: Mauro Porto, Sandra Abdala, Lúcia Canoa, Simone Filipin, Beatriz Volpon Vibrio, e à estagiária Simone Rosse, pelo apoio e companheirismo, em todos os momentos; Aos estagiários voluntários Renato Lima de Oliveira, Jeferson Mateus de Souza e Rafael Cardoso de Mello, pela disposição e colaboração na consecução do Diagnóstico do Acervo Fotográfico; Aos pesquisadores do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto, razão maior da existência dessa instituição; Aos ex-Diretores do Arquivo de Ribeirão Preto: Dra. Maria Elízia Borges; Prof. Divo Marino e Profa. Valéria de Campos Verde Valadão, pela dedicação e importantes contribuições para a preservação do patrimônio documental da cidade de Ribeirão Preto; Ao fotógrafo Vicente Sampaio, meu grande mestre na arte do olhar; À Dra. Helena Maria Andrade Capelini e à Dra. Maria Cristina Silva Costa, pelos primeiros ensinamentos nessa grande aventura que é o conhecimento, e pela amizade, sempre; À família Roberto Terraz: Shirlei, Simone, Galileu, Ricardo e Fernanda, pelo acolhimento carinhoso durante minha estada em Marília; à Cida pelas inesquecíveis sopas; 8 Aos amigos Hélio Eudoro Rodrigues Júnior, Adda Prieto, Márcia Mattos, Laura Próspero e José Alberto Albuquerque Lins (em memória), pela amizade em todos os tempos e a qualquer latitude; À Érika Moretini, Solange Cardinale, Jane Ferreira e Vera de Carvalho, pelo exemplo de profissionalismo e pela amizade; À Lígia e Sérgio do Monte pelo apoio e incondicional presença em todos os momentos; À Leila Heck, por sua amizade, amor, companheirismo, paciência e presença encantadora em todos os cantos da minha vida; Aos meus pais Anivaldo e Jeni, exemplos maiores de conduta e caráter, agradeço profundamente pelo apoio em todos os momentos da minha vida, pelo entusiasmo e presença a cada novo passo, a cada novo sonho e realização; Às minhas irmãs Márcia e Marisa, grandes e eternas amigas, pela carinhosa presença e atenção; agradeço também por cuidarem dos meus gatos (Vicente e Tigre), durante a minha estada em Marília; Aos meus cunhados Serafim e Aluísio, pelo apoio e ajuda sempre; Aos meus sobrinhos Alice, Pedro, Gabriela e Luísa; às minhas afilhadas Vanessa e Ana Paula, de vocês emanam as luzes da esperança por um mundo mais fraterno e feliz. 9 O retrato não me responde, ele me fita e se completa nos meus olhos empoeirados. Carlos Drummond de Andrade (1980, p. 50). 10 RESUMO O presente trabalho é uma indagação teórica formulada a partir de problemas de ordem prática advindos do recolhimento, organização e disponibilização das fotografias de José Pedro Miranda no Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto. Relativizando o papel da fotografia como documento histórico e arquivístico, promove uma discussão sobre os problemas específicos da arquivística para o arranjo de documentos fotográficos. Conclui-se sobre a necessidade de uma abordagem abrangente, que considere os fundos e as coleções fotográficas como objetos que, no momento do tratamento documental, requerem a sutileza de saber dialogar e incorporar princípios de tratamento vindos de diferentes práticas e reflexões dos profissionais da área da Ciência da Informação. Palavras-chave: Fotografia; Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto; Arranjo de fotografias. 11 ABSTRACT The present research is a theoretical questioning given form from practical problems resulted from the accreation, organization and availability of photographs by José Pedro Miranda at the Ribeirão Preto Public and Historic Archive. Concerning the role of photography as a historical and archivistic document, this work promotes discussion upon specific problems on archival science, aiming at the arrangement of photographic documents. Its conclusion was the need of comprehensive approach able to consider fonds and photographic collections as objects that, during the processing period, require the subtlety of dialoguing and incorporating processing principles coming from different practices and reflections by professionals in the area of Information Science. Key-words: Photography; Ribeirão Preto Public and Historic Archive; Photograph arrangement. 12 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Foto 1: Tigre da Tasmânia. Local: Zoológico de Hobart – Tasmânia. Data: 1934. Fotógrafo: Não Identificado (Copyright ®: 1997/2002 – Comercial De Cicco). .........12 Foto 2: Vista da Janela onde a primeira fotografia (a moradora atual segura uma cópia) foi feita em 1826 por Niépce. Local: Borgonha – França. Data: 1997. Fotógrafo: René Burri. ...............................................................................................24 Foto 3: O Fotógrafo João Passig com sua esposa e filhos no pátio interno da sua residência. Local: Rua Amador Bueno esquina com Rua Américo Brasiliense – Ribeirão Preto/SP. Data: 1899. Fotógrafo: Não Identificado. ....................................55 Foto 4: Trabalhadores da empresa Banco Construtor de propriedade de Diederichsen & Hibbeln. Local: Ribeirão Preto/SP. Data: 1917. Fotógrafo: Flósculo de Magalhães............................................................................................................92 Foto 5: Grupo de funcionários da Empresa Diederichsen. Local: Ribeirão Preto/SP. Data: 1927. Fotógrafo: Romildo Cantarelli. .............................................................124 Foto 6: Praça XV de Novembro, Teatro Pedro II e Central Hotel. Local: Ribeirão Preto/SP. Data: 1930. Fotógrafo: Rainero Maggiori. ...............................................170 13 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................12 2 SOBRE A FOTOGRAFIA ...............................................................................24 2.1 A natureza da fotografia ...................................................................................25 2.2 As origens da fotografia ...................................................................................27 2.3 Fotografia e verdade .........................................................................................31 2.4 A parcialidade da fotografia .............................................................................34 2.5 A fotografia como documento social ..............................................................42 2.6 A gramática da fotografia .................................................................................47 2.7 Apontamentos para uma discussão sobre fotografia....................................52 3 A FOTOGRAFIA COMO DOCUMENTO HISTÓRICO E ARQUIVÍSTICO ....................................................................................................55 3.1 A paisagem da fotografia..................................................................................56 3.2 História e documento fotográfico ....................................................................60 3.3 A arquivística e os arquivos históricos...........................................................73 3.4 A fotografia como documento arquivístico ....................................................86 4 O ARQUIVO PÚBLICO E HISTÓRICO DE RIBEIRÃO PRETO: CONTEXTO DA PESQUISA .............................................................................92 4.1 Histórico da formação do arquivo ...................................................................93 4.2 Política de acervo..............................................................................................96 4.3 O acervo.............................................................................................................99 4.4 Tratamento arquivístico..................................................................................112 5 AS FOTOGRAFIAS DO FUNDO JOSÉ PEDRO MIRANDA: O ARRANJO COMO PESQUISA.......................................................................124 5.1 O tratamento documental de fotografias em unidades de informação ......125 5.2 Considerações e fundamentos para a operação do arranjo de arquivos pessoais.................................................................................................................136 5.3 Apresentação do Fundo José Pedro Miranda ..............................................145 5.4 Significados e sentidos dos documentos fotográficos a partir do arranjo do Fundo José Pedro Miranda ..................................................................................149 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................170 REFERÊNCIAS ..................................................................................................175 14 1 INTRODUÇÃO Foto 1: Tigre da Tasmânia. Local: Zoológico de Hobart – Tasmânia. Data: 1934. Fotógrafo: não identificado (Copyright ®: 1997/2002 – Comercial De Cicco). 15 Foto 1: Tigre da Tasmânia. O encontro com a fotografia acima, ocorrido na década de 1980 quando folheava uma revista, marcou profundamente a minha percepção e interesse pela fotografia, enquanto tecnologia e objeto; desse encontro derivam algumas reflexões que passaram a integrar a minha relação com a fotografia. A força motriz das incursões que realizo no universo da fotografia, teve o seu início nesse encontro, razão por que passo, a seguir, a explicitar um pouco mais sobre esse encontro. O primeiro olhar lançado sobre a foto em questão se fixou unicamente na imagem; uma imagem enigmática de um animal meio cachorro meio tigre, quase sobrenatural para os meus olhos leigos e ignorantes daquela imagem; essa foi a minha primeira impressão. Além do animal, percebi a existência de outros elementos presentes na foto, como o chão aparentemente de cimento e parte de uma alvenaria de tijolos ao fundo, mas que em nada contribuíram para a minha compreensão daquela imagem. O que existia era uma curiosidade enorme e um assombro desconcertante a preencher o espaço alinhado entre os meus olhos e a fotografia. Em busca de alívio para o meu desconforto diante daquela imagem, em seguida meus olhos buscaram ávidos pela legenda; o texto (escrito) representava muito mais que uma tradução ou explicação daquela imagem, apresentava-se como o elemento de ligação ou a interface necessária entre o meu olhar e a fotografia. 16 Assim, na legenda da foto, um texto breve, dizia algo como: Tigre da Tasmânia, último exemplar vivo da espécie, fotografia de 1934. O texto explicativo sobre a fotografia saciou em parte a minha curiosidade pois nomeava o animal, até então desconhecido, e o localizava no tempo. Mas se abrandada minha ignorância, o mesmo não ocorria com o meu desconforto, agora agravado pelo conteúdo não somente da fotografia mas também da legenda. Não somente o meu olhar, mas os demais sentidos e intelecto estavam envolvidos numa espécie de desarranjo emocional e cognitivo provocado pela fotografia e a sua legenda. O próximo passo então foi a realização de uma pesquisa sobre aquela fotografia, o seu conteúdo e sobre o texto que a acompanhava; assim fiquei sabendo um pouco mais sobre o animal em questão, o Tigre ou Lobo da Tasmânia; também conhecido como Tilacino1. O animal vivera na Tasmânia, onde foi caçado indiscriminadamente, até ser considerado oficialmente extinto no ano de 1936. Sobre a fotografia propriamente dita nada mais consegui acrescentar aos dados da legenda original, a não ser que a foto foi tirada no zoológico de Hobart; contudo, era possível agora ampliar a construção de possíveis narrativas sobre aquela foto. A fotografia era um registro não somente de um animal, mas de um último animal, portanto uma solidão enorme parecia emanar daquela imagem; como um 1 A título de curiosidade, uma vez que a fotografia do Tigre da Tasmânia tem neste trabalho um papel meramente ilustrativo, apresento aqui mais algumas informações sobre o animal: seu nome científico é Thylacinus cynocephalus, era um marsupial carnívoro com a pelagem áspera de cor marrom-arruivada apresentando listras negras no dorso; media cerca de 1,80 m da cabeça à cauda. Com a colonização da Tasmânia, a partir do século XIX, o animal foi responsabilizado por matar os rebanhos de ovelhas e bovinos dos colonos, o que convenceu as autoridades locais à promoção de campanhas para a matança dos tilacinos entre 1840 e 1909, inclusive oferecendo recompensas em dinheiro; até 1914 mais de 2.000 animais foram mortos e um pequeno número foi recolhido em zoológicos. O animal foi considerado oficialmente extinto quando morreu o último espécime vivo em 7 de setembro de 1936, no zoológico de Hobart na Tasmânia (LOBO- DA-TASMANIA, 1972). 17 objeto demonstrativo da existência de um ser e da sua própria finitude, a fotografia parecia ter a função de um atestado de óbito antecipado. Ao mesmo tempo documental e simbólica, ressonava a paradoxal presença humana tanto no gesto da captação da imagem ou do registro, como da destruição do animal. Aquela imagem se apresentava como um ponto de partida, a partir do qual me parecia ser possível a construção de narrativas a partir da própria imagem, a partir da legenda, a partir da pesquisa sobre a foto, a partir dos constructos pessoais de quem olha a fotografia, ou ainda, misturando e alternando uma experiência e uma compreensão visiva, textual e contextual; aquela fotografia se apresentava como um testemunho ao mesmo tempo que uma lembrança que parecia poder se desdobrar de maneira diversa e múltipla. Desse encontro casual com uma reprodução da fotografia do Tigre da Tasmânia, datada de 1934, emana uma espécie de perplexidade, que acompanha meu olhar frente a qualquer outra fotografia. Desse modo, algumas inquietações nascidas naquela ocasião integram as discussões sobre a fotografia que venho desenvolvendo ao longo da minha vida profissional, sobremaneira relacionada à organização dos documentos fotográficos do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto. Desde 1992 integro o quadro de funcionários, como historiadora, do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto, instituição criada junto à estrutura administrativa da Secretaria da Cultura da Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto. No Arquivo, trabalhei nos projetos de organização do acervo acompanhada por uma equipe técnica composta por arquivistas e historiadores. Posteriormente, em razão de uma série de acontecimentos que desestruturaram o Arquivo, tanto no aspecto administrativo como técnico, desfalcando o quadro de funcionários da figura do 18 arquivista, tenho trabalhado, juntamente com a equipe de funcionários, em projetos de manutenção do tratamento documental desenvolvido anteriormente, mas também tentando avançar, na medida do possível, no desenvolvimento de novos projetos para o tratamento documental do acervo do Arquivo. Este acervo organizado tem facilitado a produção de muitos trabalhos científicos; além disso, esta documentação contribui também para o desenvolvimento de trabalhos de pesquisa de professores e alunos do ensino fundamental e médio. Ainda, empresas de comunicação locais (TV, rádios, jornais, etc.) recorrem ao acervo do Arquivo em busca de informação histórica sobre a cidade. Assim, através da organização e disponibilização do acervo para consulta pública, foi construída uma imagem institucional positiva do Arquivo como prestador de serviços de informação, e esta prestação de serviços de informação, tem sido então o principal elemento da política de acervo desenvolvida pelo Arquivo. Para responder à demanda por informações, destinadas sobretudo à produção de trabalhos acadêmicos, além da confecção de instrumentos de pesquisa, o Arquivo empreendeu uma política de recolhimento de documentos de origem privada, com destaque para os arquivos de famílias e pessoais. Assim, o acervo de José Pedro Miranda, historiador e pesquisador da história de Ribeirão Preto falecido em 1999, foi incorporado ao Arquivo no ano de 2001. O recolhimento do acervo de José Pedro Miranda trouxe para o Arquivo enormes desafios, tanto pelo volume de documentos apresentados, uma vez que se configura como o mais numeroso dos fundos privados, com cerca de vinte mil documentos; como também, no que se refere à complexidade de problemas para a organização desse conjunto documental, pois se caracteriza como o mais 19 heterogêneo, no que se refere a gêneros2 de documentos, no universo do acervo do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto. A identificação inicial da massa documental do Fundo José Pedro Miranda revelou um aspecto surpreendente: a presença de um número significativo de fotografias. Integram este fundo um total de quinze mil oitocentas e sessenta e seis (15.866) imagens, entre ampliações em papel - avulsas (preto & branco e colorido); ampliações em papel coladas em álbuns e fichas; negativos; diapositivos; e cartões postais. Desse montante, as fotografias (ampliações em papel) totalizam o número de nove mil novecentos e sessenta (9.960) ampliações, que datam do período entre os anos de 1892 e 1980. Quanto à caracterização dos conjuntos de fotografias, detectou-se que os mesmos não foram produzidos por José Pedro Miranda, mas sim reunidos ao longo da sua vida através de um processo de seleção e acumulação. Os desafios impostos pelos conjuntos de documentos fotográficos que integram o Fundo José Pedro Miranda, relacionados ao tratamento documental desses documentos, bem como à criação de formas de acesso a estes documentos de modo a atender um amplo leque de consultas; e ainda, mediante o meu interesse anterior pela fotografia, motivaram a elaboração de um projeto de pesquisa para pleitear ingresso no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação. A oportunidade que me foi oferecida para ingresso no programa, bem como o oferecimento por parte do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP, campus de Marília, de uma estrutura de qualidade para o desenvolvimento de pesquisa, de reflexão e produção de conhecimento, foram fundamentais para a consecução da presente pesquisa. Assim, através da 2 Segundo Camargo e Bellotto (1996, p. 41) gênero documental significa “[...] configuração que assume um documento de acordo com o sistema de signos utilizado na comunicação do seu conteúdo.”; como por exemplo destacamos documentação iconográfica, documentação textual, documentação fonográfica, etc. 20 freqüência às disciplinas e cursos oferecidos, e principalmente, a partir do trabalho de orientação, presente em todas as etapas da pesquisa, foi possível o delineamento e desenvolvimento do presente estudo. A problemática que envolve a organização de documentos fotográficos, recolhidos junto às instituições de custódia, tem sido alvo de inúmeras discussões e, desencadeado, uma série de propostas de organização. No âmbito do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto, algumas tentativas na aplicação de modelos de organização do acervo de fotografias de José Pedro Miranda obtiveram resultados frustrantes, principalmente no que concerne a recuperação do conteúdo informacional das fotografias diante da estrutura organizativa proposta pela arquivística. A elaboração de um sistema organizacional de documentos fotográficos, segundo os princípios apresentados pela arquivística, implica no tratamento documental que tem como elementos instrumentais o arranjo e a descrição. No caso do acervo de fotografias de José Pedro Miranda, segundo a lógica da organicidade e da proveniência proposta pela arquivística, a elaboração do arranjo apresenta-se como uma construção de sentidos e significados que tem na personalidade de José Pedro Miranda o principal elemento de influência; o arranjo imprime uma inteligibilidade exclusiva e tributária à obra de José Pedro Miranda. Por esse motivo, no momento do arranjo, o conteúdo das imagens fotográficas, os autores–fotógrafos, os assuntos ou temas retratados, ou seja, os conteúdos informativos das fotografias configuram-se como elementos secundários. A dificuldade apresentada pela proposta organizacional da arquivística, para trazer à superfície o conteúdo informativo de fotografias, no âmbito da própria estrutura organizacional, o que no caso dos arquivos históricos significa a execução 21 do tratamento documental através das operações de arranjo e descrição, suscita a necessidade de fomentar uma discussão crítica sobre os princípios teóricos que sustentam a metodologia para o tratamento documental das fotografias, configuradas como documentos fotográficos, sob a custódia dos arquivos. Identificada a necessidade de um espaço de interlocução entre as práticas de tratamento documental, a possibilidade de inserção da arquivística no campo de conhecimento constituído como Ciência da Informação, nos permite a visualização de um deslocamento e intercâmbio entre os princípios teórico-metodológicos aplicados nas unidades de informação, representadas pelos arquivos, bibliotecas e museus, para a consecução da organização de documentos fotográficos. O descolamento a que nos referimos pressupõe mobilidade, e não necessariamente a perda de autonomia das três disciplinas na atuação e desenvolvimento de estruturas organizacionais. Todavia, a Ciência da Informação, apesar de tributária destas disciplinas, traz no seu bojo uma profunda crítica no que concerne aos fundamentos teóricos que vem sustentando a metodologia organizacional da arquivística. Silva et al (1999) dissertam que no século XIX a História, através do positivismo e historicismo, contribuiu para a consolidação da noção de organicidade estruturada através da proveniência; influenciou ainda, através do método histórico, o princípio de respeito ao ordenamento original, noções estas basilares da arquivística para a organização documental. A partir de meados do século XX, a consolidação da Nova História instaurou um posicionamento crítico quanto a tradicional distinção entre documento e monumento, influenciando ainda a integração de novos suportes informacionais aos arquivos, uma vez que a construção de narrativas históricas deixou de se pautar somente nos documentos 22 escritos. A explosão documental e o rápido desenvolvimento das novas tecnologias de informação, desencadeadas nos últimos trinta anos do século XX, propiciou o surgimento da Ciência da Informação (SILVA et al, 1999). Configurada como um campo de conhecimento interdisciplinar e transdisciplinar, a Ciência da Informação pode orquestrar os deslocamentos, as passagens e migrações entre os princípios teóricos e pressupostos práticos das tradicionais estruturas de informação apregoadas pela arquivística, pela biblioteconomia e pela museologia, com a finalidade de inventar e construir estruturas organizacionais complexas para administrar e difundir a informação. No âmbito do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação da Unesp-Marília, acreditamos que o presente trabalho se configura em uma discussão cuja a plataforma congrega questões tecnológicas, afeitas às fotografias e, questões relativas à organização de fotografias, portanto, provoca um cruzamento das duas linhas de pesquisa oferecidas no programa: “Informação e Tecnologia” e “Organização da Informação”, o que de certa forma contribui para validar a área de concentração, denominada de “Informação, Tecnologia e Conhecimento”. O presente estudo tem como objetivo propiciar uma discussão da arquivística, contemplada através da fotografia, segundo os contornos teóricos que sustentam o tratamento organizativo de documentos fotográficos. Tem ainda como objetivo elucidar, através do Fundo José Pedro Miranda, os problemas advindos das tensões entre a noção de documento fotográfico e os conteúdos informacionais das fotografias, no momento do arranjo das fotografias. A presente pesquisa se sustenta na revisão de bibliografia e na discussão e análise dos documentos fotográficos do Fundo José Pedro Miranda. 23 Para o desenvolvimento do texto da dissertação, dada a presença de inúmeros termos técnicos que permeiam a atuação das unidades de informações representadas pelos arquivos, bibliotecas e museus no tratamento técnico de documentos, optamos pela utilização do trabalho de terminologia elaborado por Camargo e Bellotto (1996). Assim, no transcorrer do texto, cada termo técnico utilizado estará acompanhado de uma remissão em forma de nota de rodapé, com a definição terminológica segundo Camargo e Bellotto (1996). Para o desenvolvimento das discussões propostas, a dissertação está estruturada nos seguintes capítulos. A partir da percepção sobre a necessidade de inicialmente tentar estabelecer um patamar mínimo de compreensão sobre a fotografia, enquanto objeto, processo tecnológico e como um fenômeno social, elaboramos no capítulo 2 “Sobre a Fotografia” uma revisão bibliográfica de alguns estudos sobre a fotografia que enfocam principalmente as origens e contexto de surgimento do invento no século XIX; a natureza e atributos da fotografia; questões relacionadas à credibilidade e imparcialidade da fotografia; e algumas discussões sobre a fotografia como documento social. Essa discussão inicial tem a intenção de detectar algumas características da fotografia e as múltiplas implicações a ela aderidas; estas questões relacionadas à natureza e atributos da fotografia, ao nosso ver, devem estar presentes no processo de análise da fotografia enquanto documento histórico. No capítulo seguinte, “A fotografia como documento histórico e arquivístico”, procuramos discorrer sobre a inserção da fotografia ao elenco de documentos históricos recolhidos junto às instituições arquivísticas. Ainda neste capítulo realizamos a revisão de literatura sobre a formação dos arquivos e sobre o tratamento técnico de documentos segundo os princípios teóricos da arquivistica, 24 relacionando estes princípios ao tratamento documental das fotografias. Apresentamos também uma discussão inicial sobre o tratamento documental em arquivos históricos, em particular sobre a operação do arranjo e descrição, segundo revisão bibliográfica. No capítulo 4 “O Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto: contexto da pesquisa” nos detemos na explanação sobre o histórico de formação do Arquivo e seu acervo; sobre a composição do acervo e o tratamento técnico aplicado a estes documentos, com destaque para a operação do arranjo. Neste capítulo aprofundamos as discussões sobre o arranjo e os métodos de arranjo estrutural e funcional, mediante revisão de literatura. No capítulo 5 “As fotografias do fundo José Pedro Miranda: o arranjo como pesquisa” realizamos a revisão da literatura sobre o tratamento documental de fotografias em unidades de informação, representadas pelos arquivos, bibliotecas e museus, destacando alguns elementos de tensão entre a noção de documento fotográfico e o conteúdo informacional das fotografias, advindos da própria aplicação metodológica do tratamento documental, ou seja, elaboração do arranjo e descrição; apresentamos também uma revisão bibliográfica sobre alguns fundamentos para a operação do arranjo em arquivos pessoais. Em seguida, apresentamos o Fundo José Pedro Miranda e o quadro de arranjo provisório. Ainda neste capítulo, segundo a revisão de bibliografia sobre o arranjo e catalogação de documentos fotográficos de arquivos pessoais, elaboramos algumas considerações a respeito da descrição dos documentos fotográficos e, finalmente, dissertamos sobre os sentidos e significados dos documentos fotográficos do Fundo José Pedro Miranda, a partir da inteligibilidade desses documentos emanada do arranjo. 25 Apresentamos no capítulo 6 “Considerações Finais”, uma análise das discussões promovidas na presente pesquisa. 26 2 SOBRE A FOTOGRAFIA Foto 2: Vista da janela onde a primeira fotografia (a moradora atual segura uma cópia) foi feita em 1826 por Niépce. Local: Borgonha – França. Data: 1997. Fotógrafo: René Burri. 27 2.1 A natureza da fotografia O que é fotografia? Responder a essa pergunta é uma tarefa ampla, profunda e talvez impossível. Nenhuma resposta poderia satisfazer a explicação de uma tecnologia – prática – fenômeno, que não tem deixado de fascinar a história desde o seu aparecimento. Numerosos autores trataram de explicar (não de responder) essa pergunta. Entre eles, alguns se destacaram pelo fato de sua profundidade, embasamento, sensibilidade e sagacidade, no momento de pensar a fotografia. Desse modo, diante de uma vasta produção bibliográfica e da amplitude das discussões que a fotografia encerra, o referencial teórico utilizado no presente estudo baseia-se fundamentalmente no trabalho de quatro autores3: Walter Benjamin (1992), Susan Sontag (1981), Gisèle Freund (1976) e Roland Barthes (1984). Cabe salientar nesse momento que as discussões não abrangem a fotografia digital, em virtude dessa tecnologia não estar presente no conjunto de fotografias que constituem o objeto da análise proposta no presente estudo. A escolha dos autores citados deu-se em razão de que as reflexões por eles propostas atentem, ao nosso ver, alguns dos aspectos consagrados como essenciais na abordagem da fotografia, quando se propõe a sua utilização enquanto documento histórico. Assim, evidenciamos algumas das proposições dos autores que contribuíssem para a discussão de como desvelar aquilo que reside impresso e estático na superfície da fotografia, reconhecendo o que está presente na imagem fotográfica como algo capturado por uma máquina, através do domínio dos 3 As explanações sobre as obras dos autores citados estão apresentadas em separado no decorrer do presente capítulo, todavia, ao final apresentamos algumas reflexões articulando e contrapondo as discussões propostas pelos autores. 28 processos fotomecânicos e químicos, mas levando-se ao mesmo tempo em conta que essa presença é resultado de uma possível escolha daquele que opera e decide - o fotógrafo, o qual inevitavelmente encontra-se inserido em um determinado contexto histórico. Em decorrência da constatação de uma dupla presença, objetiva e subjetiva, que a imagem fotográfica compartilha, procuramos discorrer sobre quais as considerações necessárias para a identificação e compreensão das múltiplas informações que residem numa fotografia; como identificar e dosar os níveis de existência de uma realidade que quando fotografada se caracteriza por uma concretude ao mesmo tempo que uma emanação desta realidade, como se a fotografia revelasse aos olhos o objeto e os seus vestígios, como uma presença real ao mesmo tempo que um fantasma desta presença. O estudo da fotografia, sob esse ponto de vista, demanda atender a múltiplas implicações aderidas a este fenômeno que se caracteriza por uma natureza mecânico-química, aparentemente autônoma da máquina fotográfica, ou seja, um invento, um processo de inovações técnicas mas sempre em consonância com as questões relativas a sua contextualização, o que vale dizer, sob uma perspectiva histórica. Antes porém de iniciarmos o aprofundamento das discussões teóricas, apresentamos algumas considerações relativas à invenção da fotografia, as quais acreditamos oportunas para o desenvolvimento do presente estudo, sem todavia termos a pretensão de aprofundamento quanto às questões essencialmente técnicas do invento. Procuramos apenas salientar alguns aspectos no sentido de situar a nossa compreensão sobre o processo de desenvolvimento da fotografia bem como do contexto histórico no qual se insere. 29 2.2 As origens da fotografia As questões relativas à invenção do processo fotográfico, que abrange desde a tomada de uma cena por meio de um aparato mecânico, os procedimentos de manipulação para a revelação do negativo até a elaboração da ampliação da imagem e sua fixação no papel, se apresentam como múltiplas, se consideradas as diversas técnicas que surgiram ao longo do tempo para a realização desse processo. As bases da fotografia representam uma acumulação de conquistas técnicas e científicas que datam de centenas de anos; estas bases constituem essencialmente no processo de fixação das imagens projetadas na câmara escura (NOGUEIRA, 1958). Os princípios que regem a câmara escura foram descritos por Aristóteles na obra intitulada “Problemas”, cerca de 2300 a. C. ;posteriormente, outros pensadores, como por exemplo, Roger Bacon na obra “Sobre a Multiplicidade das Espécies” no ano de 1267, também se dedicaram à descrição dos princípios da câmara escura, ou seja, como os raios solares ao atravessarem um pequeno orifício formavam uma imagem invertida da superfície oposta a esse orifício (NOGUEIRA, 1958). No ano de 1290, Guilherme de Saint-Cloud relatou a utilização da câmara escura para a observação de eclipses do sol; de um mero dado de observação a câmara escura passou a ter uma aplicação prática e transformou-se em um instrumento de domínio humano em prol do conhecimento. No final do século XV Leonardo da Vinci elaborou uma descrição pormenorizada da câmara escura e no século XVI Cardano aplicou uma lente plano-convexa no orifício da câmara escura, 30 para correção da desfocagem provocada pelo alargamento do orifício (NOGUEIRA, 1958). Em 1679 Robert Hooke construiu as primeiras câmaras portáteis, e, simultaneamente, na Suíça, Pierre Louis Guinand passou a aperfeiçoar os vidros óticos. Paralelamente, os conhecimentos da química sobre o escurecimento dos sais de prata quando expostos à luz, descritos desde o século XIII por Alberto o Grande e o alquimista árabe Gebel, a partir do século XVI evoluem rapidamente. O cloreto de prata, denominado com o nome cabalístico de Lua Córnea, passou a ser alvo de várias pesquisas que tinham o objetivo de fixar a imagem obtida através da sensibilização dos sais de prata, como por exemplo os estudos empreendidos por Johann Heinrich Schulze na Alemanha, em 1727, e as pesquisas de Thomas Wedgwood e Humphry Davy na Inglaterra, nos primeiros anos do século XVIII (NOGUEIRA, 1958). As bases de todas as tecnologias fotográficas se ramificaram a partir dos estudos óticos e instalação de lentes na câmara escura durante os séculos XVI e XVII e, através dos estudos no campo da fotoquímica nos séculos XVIII e XIX, que tinham como objetivo fixar a imagem da câmara escura (KOSSOY, 1980). Esse emaranhado de saberes e fazeres propiciou o invento da fotografia, que se deu de forma múltipla, se considerados os diferentes processos pesquisados para obtenção de uma imagem estável e fixação desta imagem a um suporte e, de maneira simultânea e complementar, se considerados os estudos desenvolvidos e os resultados obtidos por Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833), Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), William Henry Fox Talbot (1800-1877), Hippolyte Bayard 31 (1801-1887) e Antoine Hercules Romuald Florence (1804-1879), na França, Inglaterra e no Brasil4. Segundo Freund (1976), o ano de 1839 é considerado como a data oficial da invenção da fotografia, quando no dia 15 de junho, o Governo Francês adquiriu o processo inventado por Louis Daguerre e colocou a patente do invento em domínio público; mas se considerarmos as múltiplas questões que o desenvolvimento da fotografia abarca, podemos ainda considerar o ano de 1826 como a data da sua invenção, pois foi neste ano que Joseph Niépce conseguiu obter a primeira imagem fixa. Seja qual for a data escolhida para marcar o início do invento, a natureza da fotografia configura-se como um paradoxo no contexto da sua invenção. Em meio ao desenvolvimento tecnológico do século XIX, na chamada Era Industrial, quando inúmeras pesquisas concorriam para a fabricação de inventos mecânicos utilizados principalmente como instrumentos de reconhecimento e domínio do mundo natural, superlativando a fabricação e circulação de produtos, surge a fotografia. Neste contexto em que o tempo da existência passa a ser aquele das máquinas e do consumo, quando imprime-se uma nova ordem de valores e hierarquias sobre aquilo que permanece e que desaparece, a fotografia se consolida como um invento capaz de duplicar o mundo, [...] no momento em que a paisagem humana passou a experimentar um ritmo de transformação vertiginoso: enquanto um número incontável de manifestações de vida biológica e social está sendo destruído em breve espaço de tempo, surge um invento capaz de registrar aquilo que está desaparecendo. (SONTAG, 1981, p. 15). 4 Segundo Borges (1986) até a década de 1970 o nome de Hercules Florence, francês radicado no Brasil, não aparecia como um dos inventores da fotografia, este reconhecimento se deu somente a partir das pesquisas de Boris Kossoy em 1977, resultando que, nos dias atuais, o nome de Hercules Florence aparece como um inventor isolado da fotografia. 32 Neste contexto de rápido desenvolvimento técnico, se aceleram as descobertas dos processos técnicos para obtenção de uma imagem fixa em um espaço de tempo cada vez menor. Conforme observa Freund (1976), em 1839 o tempo de exposição ao sol para obtenção de uma imagem era de quinze minutos, um ano depois bastavam treze minutos à sombra, em 1841 reduziu-se este tempo para três minutos e em 1842 para vinte e quatro segundos. Se num primeiro momento o processo fotográfico, desde a exposição até a fixação da imagem sobre um suporte, implicava em grandes dificuldades e demandava uma série de restrições que de certa forma aproximava-a da arte, por conta do chamado mistério da criação, o processo de industrialização da fotografia tornou possível a sua execução de maneira rápida e extensa. O desenvolvimento tecnológico possibilitou a sua crescente difusão e absorção pela sociedade. Assim, como exemplo deste crescimento, Freund (1976) cita que no ano de 1850 existiam nos Estados Unidos da América cerca de dois mil daguerreotipistas (fotógrafos) e no ano de 1853 foram elaboradas aproximadamente três milhões de fotografias. Como um produto do século das máquinas, a compreensão da fotografia e do seu desenvolvimento deve estar necessariamente inserida na compreensão do processo de industrialização ocorrido no século XIX, quando, [...] a sociedade industrial apresenta-se para a história como um processo múltiplo, dinâmico, abrangente, difícil de ser analisado na sua totalidade. A inovação tecnológica forma parte desse processo, sendo ao mesmo tempo sua causa e conseqüência. A produção de objetos em série da indústria cresce em consonância com o incremento da tecnologia. Paralelamente, quanto maior o desenvolvimento tecnológico, maior a sofisticação da sua produção: ela pressupõe um saber específico. Ao mesmo tempo, novas descobertas possibilitam novas reflexões e novas práticas. (MURGUIA, 2003, p. 1). Inserida num tempo em que se inauguram as transformações e substituições ininterruptas, a fotografia tem a atribuição de congelar a existência num determinado 33 espaço e fração de tempo. Instaura uma certa tranqüilidade e ameniza uma possível dor ou remorso, pois realiza o inventário crível e antecipado daquilo que este mesmo tempo está prestes a consumir. Em meio às maquinas, ao ritmo dos relógios e apito das fábricas, à velocidade que atordoa os corpos que se deslocam nas poltronas dos trens, numa amplitude até então nunca vista ou experimentada de compassos de tempos e espaços, é possível segurar algo nas mãos - a fotografia como um objeto - que de certa forma assegura a posse daquilo que se esvaece inexoravelmente. Aquilo que Fox Talbot denominou de “[...] o lápis da natureza.” (apud SONTAG, 1981, p. 153) pode, a partir da industrialização das suas técnicas, fixar firmemente no papel uma realidade que não pode mais ser transformada porque totalmente possuída. A fotografia passa a executar um inventário contínuo em substituição a uma existência fragilizada porque sempre prestes a ser substituída. 2.3 Fotografia e verdade O fascínio proporcionado pela primeira natureza reconhecida da fotografia, a de proporcionar a reprodução fiel e imparcial da realidade, lhe confere o seu primeiro atributo – a credibilidade. Mas em que medida podemos atribuir à fotografia o status de reprodução fiel da realidade sensível com plena dose de imparcialidade e, portanto, crível quanto aos resultados obtidos? Este primeiro atributo da fotografia, o da credibilidade, nos remete ao aprofundamento das questões inicialmente levantadas. Apresentamos então, a 34 seguir, as discussões sobre a natureza da fotografia a partir da ótica dos quatro autores citados no início do presente capítulo. No ano de 1931, Walter Benjamin (1992), num trabalho pioneiro sobre a fotografia, reproduz parte de um texto publicado no jornal “Leipziger Anzeige”, contemporâneo ao anúncio do Governo Francês sobre a invenção da fotografia, que afirmava ser impossível a fixação de uma imagem efêmera através de uma máquina humana e que o próprio desejo de isso se realizar seria uma blasfêmia. A credibilidade de que a fotografia oferecia uma realidade duplicada, intrigava e fazia temer as pessoas que imaginavam ter suas almas roubadas pela máquina e depois aprisionadas num suporte de metal ou papel. O medo e a desconfiança sobre como um instrumento mecânico poderia propiciar a recriação da natureza resultou numa atitude de interesse receoso dos primeiros espectadores da fotografia quanto à natureza desta realidade recriada, tal sua semelhança com o mundo concreto. Como exemplo dessa desconfiança, Nadar (apud SONTAG, 1981) cita em suas memórias que o escritor francês Honorè de Balzac era um daqueles que tinha um pavor vago de ser fotografado, a explicação para esse temor era que o homem não poderia criar algo de material a partir de uma aparição, ou seja, a partir do nada; Balzac acreditava que os corpos físicos eram formados por camadas de imagens e que cada vez que alguém tinha sua foto tirada, uma dessas camadas espectrais era removida do corpo e transferida para a fotografia. Benjamin (1992) considera que a credibilidade, quanto à realidade apresentada pela fotografia, foi razão pela qual ela foi apregoada como um invento a ser utilizado para registro do mundo natural, e como um instrumento a serviço da investigação científica nos mais diversos campos. 35 A vocação utilitária e documental da fotografia levantada por Benjamin (1992), foi empreendida ainda nas primeiras décadas que sucederam a sua invenção; já em 1842 Viollet-le-Duc, encarregado das obras de recuperação de Notre Dame, “[...] encomendou uma série de daguerreotipos5 da catedral antes de dar início à restauração.” (SONTAG, 1981, p. 75). O caráter realista da fotografia lhe outorgava o estatuto de registro fiel da realidade providenciando informação fidedigna. Foi essa a razão pela qual a fotografia foi ainda escolhida para exercer um papel controlador nas instituições familiares, policiais e médicas (SONTAG, 1981). Mas além desse caráter realista, Benjamim (1992) apregoava que na fotografia era possível reconhecer também certo grau de recriação ou interpretação de uma existência; previa que na imagem capturada pela máquina residia algo que cintilava, o acaso, “[...] com o qual a realidade ateou o caráter da imagem [...]” (BENJAMIN, 1992, v. 1, p. 118). Segundo sua análise, este acaso era de uma natureza impregnada por um inconsciente talhado por algo misterioso que existia além de uma presença visível. Constatou que a fotografia era um lugar onde os contrastes se tocavam, pois era onde a mais precisa técnica conferia ao resultado um valor mágico. A partir das reflexões de Benjamin (1992), podemos inferir que a idéia de magia de que a fotografia nos fala difere da concepção divina ou genial atribuída à pintura romântica, na qual as imagens da realidade são recriadas pelo pintor que 5 Denomina-se de daguerreotipia o processo inventado por Daguerre que consistia em obter uma imagem através de placas prateadas iodadas impressionadas na câmara escura e depois submetidas à ação de vapores de mercúrio. As peças denominadas de daguerreotipos eram únicas. O processo da fotografia sobre papel e o processo negativo- positivo, chamado inicialmente de colotipia, foi patenteado em 1841 por Fox Talbot, este processo, denominado posteriormente de talbotipia, permitia a produção ilimitada de positivos e suplantou aos poucos a daguerreotipia; a partir do processo inventado por Talbot é que derivaram os modernos processos da fotografia (KOSSOY, 1980). 36 pode ainda dar concretude a uma realidade imaginada, que existe somente após o seu gesto criativo. Na fotografia, a realidade antecede ao gesto do fotógrafo. A fotografia é um produto de um processo físico-químico, através do qual as imagens são aprisionadas num determinado instante e depois fixadas sobre uma superfície de maneira estável. A fotografia valida a existência material daquilo que foi fotografado, mas é também um lugar onde habitam igualmente os vestígios de uma interferência, de uma escolha, mesmo que não proposital, atesta uma possível distorção. 2.4 A parcialidade da fotografia Algumas das reflexões sobre a natureza dual da fotografia, elaboradas por Benjamin (1992) na década de 1930, foram recuperadas e deram início a uma série de estudos, principalmente a partir dos anos 1970 e 1980, que procuravam, se não desbancar, pelo menos questionar de forma sistemática a suposição da fotografia enquanto registro objetivo e fiel da realidade6. Sob uma perspectiva histórica e tratando a fotografia não somente através dos seus aspectos técnicos, mas como uma relação entre técnica e cultura, derivando a sua afirmação como produto de um trabalho humano e portanto passível de interferência das mãos, dos olhos do fotógrafo e de seu tempo. É neste contexto de discussão que se consolida um segundo atributo da fotografia, a parcialidade. Este atributo é proporcionado pela sua natureza 6 Destacaremos aqui os trabalhos de Susan Sontag (1981), Gisele Freund (1976) e Roland Barthes (1984). 37 referencial. A partir dessa segunda natureza revelada da fotografia, passamos agora ao aprofundamento das discussões propostas por Susan Sontag (1981), Gisèle Freund (1976) e Roland Barthes (1984). Susan Sontag (1981) elaborou, na década de 1970, alguns estudos investigativos sobre a fotografia, numa série de seis ensaios. O seu trabalho nos revela alguns dos elementos essenciais para a compreensão da fotografia, pois discute essencialmente sobre a matéria que compõe a realidade por ela revelada. Sontag (1981) trabalha a idéia de que a fotografia não reproduz simplesmente o real, ela é sim algo capaz de representar a realidade objetiva e, por isso, configura-se como um transmissor privilegiado de informações. A autora salienta que uma das maiores, e talvez a mais profunda, característica do fenômeno fotográfico foi que, através dele, houve uma redefinição sobre a percepção da realidade. Simultaneamente, houve uma alteração sobre a concepção da realidade. A dupla capacidade da câmara fotográfica de tornar subjetiva e objetiva a realidade é, ao mesmo tempo, um produto e um resultado das necessidades e afirmações que alicerçam os contrafortes da moderna sociedade capitalista. Sontag (1981) afirma que o caráter realista da fotografia lhe confere o estatuto de prova, este atributo motivou a sua utilização, logo nos primeiros trinta anos da sua existência, pela polícia da cidade de Paris para identificação criminal de suspeitos, “[...] na perseguição que levou a cabo contra os comunas, em junho de 1871 [...]” (SONTAG, 1981, p. 5). Ainda como uma forma de registro da realidade sensível, a fotografia tem uma característica comprobatória, pois constitui-se em prova inquestionável de acontecimento de um determinado evento ou da existência de determinada pessoa 38 ou coisa; mesmo que de maneira distorcida, a fotografia atesta de maneira inequívoca a existência de algo. A partir dos posicionamentos iniciais de Sontag (1981) sobre a natureza da realidade revelada pela fotografia, podemos caracterizá-la como um resultado obtido através de um engenho mecânico – a máquina fotográfica, e de um processo químico pré-definido – a imagem fixa sobre um suporte. Estes seriam os atributos que lhe teriam concedido o status definitivo de isenção e imparcialidade frente à realidade sensível. Mas se existe uma distorção da realidade apresentada pela fotografia, como podemos afirmar ou dosar os níveis desta distorção? Sontag (1981) adverte que “[...] apesar do pressuposto de veracidade que confere autoridade à fotografia, despertando-nos interesse e sedução, a obra que a fotografia realiza não constitui exceção genérica ao comércio, muitas vezes sombrio, entre arte e verdade [...]” (SONTAG, 1981, p. 6). A fotografia apresenta então uma visão da realidade. Esta visão constitui-se numa interpretação do mundo, interpretação esta obtida através de uma máquina, mas que nem por isso lhe confere isenção ou imparcialidade alguma, pois “[...] ainda que se preocupe a fundo em espelhar a realidade, o fotógrafo se vê perseguido por tácitas imposições de gosto e consciência.” (SONTAG, 1981, p. 6). Sobre a ambigüidade não resolvida da natureza objetiva-subjetiva da fotografia, Sontag (1981) destaca ainda que as afirmações iniciais sobre os atributos da fotografia, contemporâneas às primeiras décadas do seu surgimento, diziam respeito a sua qualidade de copiadora fiel do mundo, como se a própria máquina fosse quem visse o mundo ou fosse o sujeito da ação. O fotógrafo não deveria interferir, apenas observar algo que seria realizado pela câmara fotográfica. Todavia a autora salienta que, 39 [...] como as pessoas logo descobriram que ninguém tira a mesma fotografia da mesma coisa, a suposição de que a câmara fornecia uma imagem impessoal e objetiva deu lugar à realidade de que a fotografia é uma prova não só do que está ao nosso redor, mas também do que o indivíduo vê [...]. (SONTAG, 1981, p. 86). Sontag (1981) conclui que a fotografia não se evidencia somente como registro, mas também como avaliação do mundo. Aprofundando a discussão sobre a relação fotógrafo-máquina, Sontag (1981) observa que o ato de fotografar formaliza uma experiência entre o fotógrafo e o objeto a ser fotografado. Tirar uma fotografia não é um mero encontro entre o evento e o fotógrafo, é um acontecimento com direito a invadir ou ignorar e, por conseguinte, uma relação onde se experimenta a parcialidade. Ainda que o fotógrafo se posicione de maneira isenta a qualquer situação ou objeto a ser fotografado, o ato de fotografar torna o fotógrafo uma pessoa ativa, “[...] mesmo que incompatível com a intervenção, num sentido físico, a utilização da câmara ainda é uma forma de participar.” (SONTAG, 1981, p. 12). Ainda sobre como se dá a relação da fotografia com a realidade, Sontag (1981) indica que a fotografia fornece uma visão do mundo revelada através de uma máquina, por conseguinte, o realismo da fotografia pode ser definido somente como algo que percebemos a respeito da realidade através de uma mediação tecnológica. Conforme observa Sontag (1981), nessa realidade percebida através da mediação tecnológica coexistem dois ideais: o assalto à realidade e a submissão à realidade; a fotografia como o paradigma de uma ligação ambígua, ambivalente e constantemente relacionada aos recursos tecnológicos do processo fotográfico e ao gosto ou intenção do fotógrafo. Assim, a câmara fotográfica torna-se um instrumento de visão a partir do qual se reelaboram a realidade e a própria visão. As incursões de Sontag (1981) no território ambíguo da fotografia, sobre a presença ambivalente daquilo que ela nos revela, sobre como a fotografia oferece 40 novas possibilidades de visão, nos leva a crer que a visão do mundo proporcionada pela fotografia, a partir do século XIX, tornou real, porque tornou visto, o universo microscópico, particularidades culturais das sociedades orientais e do novo mundo; no século XX, surpreendeu novamente e sucessivamente os olhos com a visão close-up da anatomia humana, do mundo vegetal e animal, por ângulos, velocidades, intensidade e detalhamento jamais imaginados. Mas o surpreendente da fotografia não se restringe apenas àquilo que ela revela como novo, como surpresa porque impossível de ser observado somente pelos olhos da fisiologia humana. A originalidade da fotografia reside principalmente no fato de que, quando se elabora uma visão do mundo através da fotografia, o ato dessa visão configura-se como uma revisão, porque mediada por uma tecnologia mecânica. Assim, ao rever os mundos, sejam eles já conhecidos ou não, seja a própria realidade cotidiana, os rostos de familiares ou uma paisagem urbana, a fotografia reinventa a realidade porque revela a visão fotográfica desta realidade. A visão fotográfica passa então a substituir a visão fisiológica do mundo. Ainda sobre a questão da visão fotográfica do mundo, Sontag (1981) afirma que a fotografia imprimiu um novo código da visão, ao executar o enquadramento, o recorte, ao focar determinada imagem do mundo, tornou fragmentada a forma com que compreendemos a realidade. Ao transformar estes fragmentos em objetos, estes objetos foram destinados a serem possuídos e colecionados, portanto a natureza da fotografia é uma natureza de domínio ao mesmo tempo que elegíaca. A autora argumenta ainda que o fenômeno fotográfico transformou a percepção do tempo, pois ao cristalizar determinada existência num determinado instante, a fotografia testemunha a dissolução inexorável do tempo. Assim, tomada uma fração precisa do tempo, tornando-o um objeto, este pode ser guardado e acumulado para 41 ser visto novamente. Ainda segundo Sontag (1981), “[...] tomar uma fotografia é como participar da mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade de uma pessoa (ou objeto).” (SONTAG, 1981, p. 15). Mas paradoxalmente, adverte Sontag (1981), a fotografia confere imortalidade ao acontecido. Outra importante questão abordada por Sontag (1981) é sobre que tipo de conhecimento a fotografia proporciona. Segundo a autora são múltiplas as significações possíveis ao observar uma foto, como se tivéssemos que a todo momento indagar: “Ali está a superfície. Agora pense, ou melhor, sinta, intua – no que possa estar do outro lado da imagem.” (SONTAG, 1981, p. 22). A fotografia é incapaz de explicar por si só a realidade, mas apresenta um eterno convite à dedução, à especulação e à fantasia. A fotografia preenche alguns vazios no retrato mental que temos do presente e do passado, mas como todo funcionamento acontece no tempo e no tempo precisa ser explicado, é impossível compreender através da fotografia. Sempre, da mesma forma que tirar uma foto é uma forma de apropriação aparente do mundo, o conhecimento fotográfico do mundo também é aparente. Segundo Sontag (1981), este conhecimento aparente do mundo nos foi proporcionado pelas sociedades industriais; a necessidade de comprovar a realidade e ampliar a nossa experiência através da fotografia se apresenta como um consumismo estético, “[...] ao dotar este nosso mundo, já tão congestionado, de uma duplicata do mundo das imagens, a fotografia nos faz crer ser este mundo mais acessível do que na verdade o é.” (SONTAG, 1981, p. 23). A fotografia tornou a todos viciados em imagens e nos fez crer num conhecimento aparente do mundo. Em aprofundamento sobre a questão do conhecimento que a fotografia proporciona, Sontag (1981) aponta que para ser compreendido o significado e o 42 conhecimento proporcionado pela fotografia, há de se levar em conta ainda que como a foto é um fragmento, o seu peso moral, emocional e cognitivo depende de como e onde ela é inserida, pois a fotografia transforma-se de acordo com o contexto em que é vista e muito do seu significado está no uso. Assim, [...] a presença e proliferação da fotografia contribuem para uma erosão da própria noção de significado, para o esfacelamento da verdade em várias verdades relativas que a moderna consciência liberal toma como certas. (SONTAG, 1981, p. 102). Sontag (1981) demonstra que, apesar da fotografia ter dado um enorme impulso às pretensões cognitivas da visão, ampliando os domínios do visível através da tecnologia (close-up, microfotografia, macrofotografia, etc.), o ato de fotografar pode ser interpretado de duas maneiras: como uma forma de conhecimento lúcido e preciso, afeito a uma inteligência ou como pré-intelectual e intuitivo. Sobre o posicionamento dos fotógrafos em relação às suas inserções ou não no universo por eles explorado através da fotografia, Sontag (1981) disserta que alguns fotógrafos da velha geração (até a primeira metade do século XX), descreviam a fotografia como um esforço heróico de atenção, a qual deveria ser realizada com disciplina ascética e com uma receptividade mística do mundo, em relação a este mundo o fotógrafo deveria manter uma posição incógnita. Neste sentido, o pensar era visto como algo que poderia obscurecer a transparência da consciência do fotógrafo e que infringiria a autonomia daquilo a ser fotografado. Fotógrafos de uma geração posterior levantaram novas discussões sobre o fazer fotográfico, colocando a fotografia como um conhecimento, sucedendo a fotografia pela fotografia. Estes defenderam a fotografia como oportunidade maior de expressão individual, o ato de fotografar foi posto como a expressão de um temperamento e, secundariamente, a expressão de uma máquina. A fotografia, era vista por estes fotógrafos como uma manifestação aguda do eu individualizado. A 43 autora adverte que ambas as formas do fazer fotográfico, tanto a defesa da foto como uma forma superior da expressão individual, ou como uma forma de colocar o eu a serviço da realidade, supõem a fotografia como um sistema capaz de fornecer descobertas e mostrar a realidade de uma maneira nunca vista antes. Todavia, ambas as posições sugerem uma relação tênue com o conhecimento. Finalmente, destacamos o aspecto da democratização proporcionado pela fotografia, observado por Sontag (1981). Segundo ela, a fotografia propiciou a democratização de todas as experiências através da tradução em imagens destas experiências, pois “[...] desde o início, a fotografia significou a apreensão do maior número possível de temas [...]” (SONTAG, 1981, p. 7-8). A industrialização da tecnologia da câmara fotográfica possibilitou a realização de um amplo e heterogêneo inventário do mundo. As reflexões propostas por Sontag (1981) indicam que uma complexidade de fatores se apresentam como fundamentais para a compreensão da fotografia. A partir do que ela denomina de visão fotográfica, os atributos de credibilidade e imparcialidade apregoados até então como inerentes à fotografia, passam a habitar de forma ambígua e paradoxal cada imagem proporcionada pela fotografia. Ao fragmentar a realidade, a fotografia desencadeia uma visão fragmentada desta realidade, a câmara fotográfica, por natureza, atomiza a realidade. Como um resultado de uma visão parcial e como produto de uma visão mediada por uma máquina, para a compreensão daquilo que a fotografia revela ou proporciona, talvez se faça necessária a aceitação da sua natureza dual, em outras palavras, aceitação da sua inerente ambigüidade, sem a qual parece ser impossível realizar qualquer tipo de análise sobre a natureza e atributos de uma imagem fotográfica. No 44 conhecimento proporcionado pela fotografia, estão irremediavelmente engendrados tecnologia (máquina) e uma determinante presença humana. 2.5 A fotografia como documento social Na obra escrita por Gisèle Freund7 (1976), sob o título “La Fotografía como Documento Social”, a autora propõe, como o próprio título sugere, o estudo da fotografia sob uma perspectiva histórica, onde estejam presentes não somente a história da técnica fotográfica, mas também os elementos que configuram a fotografia como um fenômeno social e político. Sua alegação é de que tendo sido incorporada pela vida cotidiana, a fotografia está presente em todos os acontecimentos e se presta a um caráter documental, ou como um aparato para reprodução fiel da vida social. Mas a fotografia pode ser também interpretada como uma informação, portanto um instrumento de comunicação passível de manipulação. A autora enfatiza que cada forma de expressão cultural de determinada época, corresponde sempre a um caráter político, às maneiras de pensar, aos gostos característicos do período, portanto, que toda expressão artística está ligada de maneira intrínseca ao contexto histórico a que pertence (FREUND, 1976), ou seja, aos aspectos culturais, sociais, econômicos e políticos. Para a realização do estudo sobre o contexto histórico onde a fotografia aparece, Freund (1976) localiza a fotografia como um meio de expressão e, segundo 7 Gisele Freund, fotógrafa e escritora alemã transferiu-se para França após a ascensão de Hitler. Licenciada em Sociologia publicou em 1974 o livro Photografie et Société, posteriormente em 1976 publicado na Espanha com o título de La Fotografia como Documento Social. Antes deste trabalho Gisele publicou sobre o tema fotografia as obras La Photographie en France (1936) e Le Monde de la Camera (1970). 45 sua linha de raciocínio, estabelece que os meios de expressão cultural, ou aquilo que é usado como mecanismo para a comunicação das expressões culturais, caracteriza-se de maneira diferente, em diferentes épocas. São causa e conseqüência que delimitam e fazem extrapolar os limites técnicos e as aspirações que os caracterizam e que, ao mesmo tempo, lhes são estranhos. Adverte ainda, que as expressões culturais realizam a acomodação de determinados princípios ao mesmo tempo que provocam rupturas e engendram transformações. Ao analisar o que denomina de precursores da fotografia, Freund (1976) elege o retrato a óleo como expressão artística que antecede o retrato fotográfico. Sua análise se calca não somente sobre as transformações das técnicas, mas também naquilo que caracteriza o retrato como expressão que reflete o gosto de uma época. Segundo a autora, o retrato a óleo refletia o esforço de uma determinada personalidade em afirmar-se e tomar consciência de si mesma e foi, durante algum tempo, um privilégio da aristocracia. Com a ascensão econômica da burguesia, surgiram novas necessidades de gosto e afirmação, concomitantemente surgem novas técnicas para atender a essa nova demanda. O retrato a óleo cedeu lugar à técnica de retrato em miniatura, cuja existência foi contemporânea ao período inicial da fotografia; neste momento a técnica fotográfica exigia conhecimentos muito especializados. Em continuidade à análise da relação entre retrato a óleo e o retrato fotográfico, Freund (1976) aponta que o rápido desenvolvimento tecnológico da fotografia foi extremamente impactante para as práticas e ofícios como a do retrato a óleo, o retrato-miniatura e sobre a atividade dos gravuristas; a fotografia passou rapidamente a ocupar os espaços e a demanda social anteriormente ocupados por estes fazeres. Para se ter uma idéia deste impacto, a autora cita que na cidade de 46 Marselha existiam, em 1850, cerca de cinco pintores miniaturistas que produziam cerca de cinqüenta retratos por ano; poucos anos depois, existiam nesta mesma cidade cerca de cinqüenta fotógrafos, a maioria dedicando-se à execução do retrato fotográfico, cada um destes fotógrafos produzia de mil a mil e oitocentos retratos por ano. A autora enfatiza que a industrialização da fotografia, no contexto de expansão e afirmação do sistema capitalista, provocou mudanças tanto no perfil do fotógrafo, até então conhecido como artista fotógrafo, como do público consumidor do retrato fotográfico. Estas transformações ocorreram entre 1839, data oficial de invenção da fotografia, e a década de 1850. As transformações recaíram também sobre a tecnologia da imagem; houve neste período uma substituição gradual do trabalho manual do pintor de retrato-miniatura, que demorava dias ou semanas reproduzindo minuciosamente um rosto, pela máquina do fotógrafo - a câmara fotográfica e sua tecnologia mecânica e química que evoluía rapidamente. A industrialização acabou ditando um modelo de eficiência cada vez mais associada à rapidez da produção da fotografia, desde a tomada da cena até a fotografia como produto ou objeto. 47 Freund (1976) disserta ainda sobre como a industrialização da fotografia provocou a disseminação do consumo do retrato fotográfico; junto a este foi também disseminado um determinado gosto e estética, plenamente adaptado à nova clientela, a burguesia. Assim, em 1854, o fotógrafo Disderi (apud FREUND, 1976) patenteou o chamado tarjeta de visita8, popularizando de forma definitiva o retrato fotográfico. Neste período a fotografia ainda está ligada à estética do retrato a óleo, desde o aparato que reproduz a mise-en-scène, como colunas, tapetes, ligados à expressão de gosto da burguesia, ao mesmo tempo que um cenário de representações ligadas a uma auto-imagem. Em 1862, Disderi publicou um trabalho sobre a estética da fotografia onde expressa os principais ideais do retrato fotográfico como: fisionomia agradável, nitidez, proporções naturais e beleza (FREUND, 1976). No período em que Freund (1976) denomina de fotografia artística, houve o surgimento do retoque do negativo e da cópia em papel, ou seja, houve um posicionamento de interferência quanto ao resultado obtido pela câmara fotográfica, possibilitando adequar o resultado ao gosto do freguês, ao mesmo tempo que possibilitou a interferência do fotógrafo – ou artista, sobre o resultado obtido através da máquina. Todavia, na medida em que a máquina foi ocupando lugar preponderante entre os meios de produção da sociedade burguesa, substituindo o trabalho manual, a prática da fotografia foi tornando-se impessoal e a fotografia 8 A expressão targeta de visita citada no texto está expressa em espanhol, conforme o idioma da obra de Freund (1976) por nós utilizada. Todavia, vale aqui esclarecer que a expressão refere-se ao cartão de visita. Conforme Fillippi, Lima e Carvalho (2002) o cartão de visita identifica uma classificação da estrutura física (emulsão e suporte) utilizado no processo fotográfico denominado de fotografia albuminada, muito popular no século XIX. Essa fotografia era obtida através de uma solução à base de albumina (clara de ovo) e outros elementos colocados sobre um papel muito fino; o papel albuminado era normalmente montado num suporte mais grosso, ou num papel cartão, para proteção. Segundo as autoras, os cartões são classificados de acordo com suas diferentes dimensões, o cartão de visita refere-se a retratos com dimensão aproximada de 5,7 x 10,8 cm (FILLIPPI; LIMA; CARVALHO, 2002). 48 começou a ser louvada em razão da sua tecnologia de reprodução mecânica da realidade. A autora revela ainda que, com a evolução do processo fotográfico, foram simplificados os procedimentos desde a tomada da cena até a fixação da imagem sobre um suporte, possibilitando também que os fotógrafos saíssem dos ateliês e registrassem cenas externas. As possibilidades técnicas, aliadas à afirmação realista da imagem fotográfica contribuíram para a afirmação documental do registro fotográfico. Em pouco tempo a imagem fotográfica seria integrada de maneira definitiva à imprensa, iniciando o chamado fotojornalismo. O chamado poder da imagem inaugurado pela fotografia e incorporado à sociedade moderna fez da fotografia o mais crível dos meios de comunicação. O extenso trabalho de Freund (1976) aborda em detalhes inúmeras outras questões relacionadas à fotografia, como a reprodução de obras de arte, a fotografia como instrumento político, entre outros. Para o desenvolvimento do presente trabalho, destacamos somente os elementos e características atribuídos à fotografia, surgidos ainda no contexto do século XIX mas que avançam através do século XX, relacionados aos seus atributos de credibilidade e fidedignidade frente à realidade, atributos estes considerados como essenciais para a sua utilização como documento. A discussão sobre o caráter representacional da fotografia é apresentado por Freund (1976) como oriundo do retrato a óleo, ao qual a autora atribui o estatuto de precursor do retrato fotográfico. Com a industrialização da tecnologia fotográfica, houve um distanciamento e distinção do resultado obtido através da fotografia em relação ao retrato a óleo. A fotografia, como resultado de um processo mecânico, passa a ter o estatuto de registro crível da realidade sensível, todavia, subjacentes 49 aos seus usos e funções sociais originais, a fotografia integra, como um meio de expressão cultural, as afirmações pretendidas da classe burguesa do século XIX e acaba por engendrar as representações que a sociedade moderna do século XX imprime sobre si mesma e sobre o mundo. A fotografia caracteriza-se como um processo tecnológico que foi incorporado, através do tempo, como um dos principais meios de expressão cultural das sociedades européias inicialmente e, posteriormente, estendido para todo o mundo. Caracteriza-se, portanto, como um importante documento social, derivando desta condição o seu caráter de testemunho histórico. 2.6 A gramática da fotografia No trabalho sob o título “A Câmara Clara”, Roland Barthes (1984) recupera a idéia, a exemplo de Sontag (1981), de que a fotografia depende de uma presença original, ou seja, há uma certeza quanto à existência de algo que esteve à frente da câmara fotográfica em um determinado ponto do tempo e do espaço. Mas Barthes (1984) discute também que não é a semelhança com a realidade que define a fotografia. A complexidade do fenômeno fotográfico reside, então, no fato de que a fotografia não lança dúvidas sobre a existência concreta da realidade, mas estabelece uma relação referencial com aquilo que retrata; a fotografia é uma aparência de seu referente. “Uma foto é sempre invisível: não é ela que vemos [...]”, afirma Barthes (1984, p. 16). Mas então o que vêem os olhos quando vêem uma fotografia? Vejo os olhos que viram, certamente responderia Barthes (1984). 50 O autor nos apresenta a fotografia como algo que revela uma existência, mas adverte que a sua fidelidade não se refere à aparência mas sim à presença. Estão aderidas à fotografia de maneira intrínseca, complementar e indissociável, realidade e ficção, paradoxalmente o que a fotografia apresenta é uma objetividade fictícia. Barthes (1984) elucida de que maneira alicerça a sua compreensão da fotografia como referencial. Segundo ele, a fotografia não é a realidade aprisionada, a fotografia não executa o rapto de um instante qualquer da realidade mantendo-o fixo para ser observado. A fotografia é sempre uma contingência, é sempre alguma coisa que é representada. A fotografia, infere o autor, enquanto objeto é um lugar onde se confraternizam três práticas, três emoções e três intenções: a do operador- fotógrafo e sua técnica; a do espectador que visualiza a fotografia e a do referente- daquele que é o fotografado. Sobre a natureza da fotografia, Barthes (1984) aponta que a realidade, experimentada através da fotografia, revela uma essência onde se entrelaçam e se desdobram as forças de uma presença inquestionável e todas as vicissitudes aderidas a esta presença. E para que diga algo, a fotografia tem que ser posta em posição de existência, portanto está sempre a flutuar “[...] entre as margens da percepção, a do signo e da imagem [...]” (BARTHES, 1984, p. 37). 51 Barthes (1984) considera que uma importante influência sobre a fotografia teria sido o teatro, e não somente a pintura9. O autor disserta que a primeira pessoa que observou uma foto (excetuando as pessoas que estiveram envolvidas com o invento da fotografia) possivelmente, pensou que se tratava de uma pintura e, de fato, a fotografia continua a ser atormentada com a relação de paternidade que tem com pintura, como se a fotografia tivesse nascido do quadro; neste sentido, Barhes (1984) infere que a câmara escura propiciou o quadro perspectivo e a fotografia. Entretanto, a fotografia, segundo a perspectiva de Barthes (1984) se aproxima do teatro, “[...] através do revezamento singular com a Morte.” (BARTHES, 1984, p. 53). Esta relação entre teatro e fotografia, segundo ele, estaria calcada na conhecida relação que o teatro originalmente mantinha com o culto aos mortos, quando “[...] os primeiros atores destacavam-se na comunidade ao desempenharem o papel dos mortos: caracterizar-se era designar-se como um corpo ao mesmo tempo vivo e morto [...]” (BARTHES, 1984, p. 53). Neste sentido, a fotografia apresenta-se, segundo Barthes (1984), como um teatro primitivo, uma vez que apresenta uma figuração imóvel na qual podemos ver os mortos. Neste momento o autor nos aponta outra importante questão sobre a fotografia: o tempo. A fotografia revela a força esmagadora do tempo, principalmente as fotografias históricas, quando atestam o que já não existe, porque então podemos observar na fotografia a própria mortalidade. 9 Grande parte dos estudos sobre a fotografia apontam o seu surgimento como subsidiário à pintura e, que o seu aparecimento teria provocado a decadência da pintura enquanto expressão artística. De fato, o surgimento e rápido desenvolvimento tecnológico da fotografia foi extremamente impactante para algumas práticas e ofícios, conforme a discussão proposta por Freund (1976), já citada nesse capítulo. Todavia a afirmação feita pelo pintor Paul Delaroche, “[...] a partir de hoje a pintura está morta [...]” (apud BATCHEN, 1998, p. 47), diante do invento da fotografia, não se concretizou. O que aconteceu foi que a partir de 1840, segundo Sontag (1981), a pintura e a fotografia se saquearam e se influenciaram mutuamente e, que ao tomar para si a função de retratar a realidade, até então tarefa da pintura, a fotografia teria libertado a pintura para a sua grande vocação moderna – a abstração. 52 Outra importante contribuição do autor ao constatar na fotografia o gélido lembrete da mortalidade do homem, é que esta constatação adverte sobre uma outra qualidade da fotografia, a de provocar a necessidade de remontar o tempo, pois oferece “[...] o cálculo da vida [...]” (BARTHES, 1984, p. 125). Segundo Barthes (1984), através da constatação da passagem do tempo, a história pode oferecer uma relação de proximidade com o passado quando a circunstância extrema e particular, tão abstrata em relação à imagem, pode ser apreendida e de certa forma experimentada através da fotografia. Assim, infere Barthes (1984) que o saber expresso pela fotografia refere-se a uma presença co-natural em relação ao seu referente. Para a compreensão da fotografia faz-se necessária a mistura de duas vozes: a da banalidade e a da singularidade. Esclarecendo que o referente da fotografia não é o mesmo das outras formas de representação, o autor expressa que o referente fotográfico não é algo “[...] facultativamente real a que remete uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria fotografia.” (BARTHES, 1984, p. 114-115). Na fotografia jamais se pode negar algo como existente, ela não simula nem imita, a ordem fundadora da fotografia não é a arte nem a comunicação, é a referência, uma coerção de realidade e de passado. A essência da fotografia consiste em ratificar o que ela representa, é um certificado de uma presença no tempo. Sobre as questões de objetividade e subjetividade da fotografia, Barthes (1984) elucida que a realidade concreta participa da fotografia, algo desta realidade nela habita, mesmo que de maneira contingenciada, consiste numa indicação irrefutável da existência. Mas a existência verídica não pode ser espelhada de maneira imparcial na fotografia, pois, na fotografia, segundo o autor, encontramos 53 sempre as intenções e a atuação do fotógrafo que devem ser lidas através de uma cultura, ou seja, através de um contrato entre o criador – da fotografia e, o espectador – da fotografia. Na tentativa de compreender a fotografia Barthes (1984) executa, ao nosso ver, uma espécie de estratigrafia da imagem fotográfica, a partir da qual estabelece alguns lugares, sentimentos, fragmentos, sempre presentes e co-atuantes na leitura da fotografia. Identifica três presenças ou fatos: o Operador, o fotógrafo; o Spectador, somos todos nós e o Spectrum, aquele ou aquela que é fotografado, é o alvo, o referente. Em seguida o autor traça uma espécie de “[...] regra estrutural do olhar [...]” (BARTHES, 1984, p. 40), que aponta um caminho ou uma possibilidade de leitura da fotografia pelo Spectador. Barthes (1984), especula sobre a existência do Studium, como aquilo que é percebido em função de um saber, de uma cultura, aquilo que faz com que as fotografias sejam percebidas como testemunhos. O Spectador vai de encontro e investe sobre a foto um trabalho descritivo a partir de uma conotação dada culturalmente (BARTHES, 1984). No Studium é possível encontrar as intenções do fotógrafo, “[...] é uma espécie de educação que permite o encontro com o Operador [...]” (BARTHES, 1984, p. 47); é também o ponto de encontro entre a fotografia e a sociedade, onde é possível compreender as funções da fotografia como: informar, representar, surpreender, fazer significar, dar vontade. Ainda segundo o autor, “[...] o Studium está, em definitivo, sempre codificado [...]” (BARTHES, 1984, p. 80, grifo do autor). Barthes (1984) especula sobre a presença de outro elemento, o Punctum, o qual define como algo que parte da foto como uma flecha e penetra o Spectador, provoca uma espécie de picada, de corte; refere-se ao Punctum como um acaso que 54 punge o Spectador. Ainda sobre o Punctum, Barthes (1984) considera que sua percepção é alijada de qualquer análise, e pode configurar-se como um pequeno detalhe que não leva em consideração a moral ou o bom gosto; que às vezes esse detalhe pode preencher toda a foto e que independe da intenção do fotógrafo (BARTHES, 1984). A partir daquilo que Barthes (1984) reconhece como elementos ou fatos da fotografia, podemos inferir sobre uma possível gramática da fotografia, cujos elementos constitutivos são o Studium, como aquilo que pode ser descrito mediante códigos estabelecidos culturalmente e, o Punctum, como algo que pode ser narrado através da fotografia, sempre a partir de um ponto de vista, de algo que punge o Spectador. 2.7 Apontamentos para uma discussão sobre fotografia Após a leitura de algumas reflexões propostas por Benjamin (1992), Sontag (1981), Freund (1976) e Barthes (1984), e contrapondo as discussões levantadas pelos autores citados, delineamos a nossa compreensão sobre a fotografia. Acreditamos se fazer necessário o reconhecimento dos diferentes níveis de realidade contidos nesta forma de registro: a realidade denotada na sua superfície e aquela criada através do processo fotográfico efetivado em um determinado contexto histórico. Igualmente necessária é a sua compreensão como um fragmento ou recorte de determinado aspecto da realidade em um determinado tempo. A fotografia é crível em relação ao referente, atesta, portanto, a existência de uma realidade; mas a fotografia é sempre interpretativa, porque deriva de uma 55 escolha. Não se configura como um espelho da realidade e não guarda traços de total fidelidade a essa realidade. Na fotografia, a parcialidade é algo que está sempre presente no conteúdo da imagem. A produção fotográfica envolve, em sua gênese, práticas de manipulação da luz, elementos químicos concentrados a determinada dosagem para determinado resultado, tempo de exposição, granulações do papel, etc. Envolve uma tecnologia, mas o ato de fotografar é uma intervenção sobre a realidade sensível, e aquilo que resulta é um produto híbrido onde há a presença do homem e da máquina. Com a invenção da fotografia inaugura-se o olhar mediado por uma tecnologia. Walter Benjamin (1992) fornece as primeiras pistas para a análise da fotografia a partir do acaso que nela cintila. Esta mesma expressão é recuperada por Barthes (1984) ao especular sobre o Punctum, aquilo que punge, ao acaso, na fotografia. Roland Barthes (1984) infere, ainda, sobre alguns elementos ou fatos presentes na fotografia, que indicam ser possível traçar algumas regras ou caminhos para uma leitura fotográfica, de maneira descritiva através do Studium, e de maneira narrativa a partir do Punctum. Susan Sontag (1981, p. 141), ao discutir sobre o estatuto da fotografia, especula que a fotografia aproxima-se da linguagem, uma vez que como a linguagem “[...] ela é o meio através do qual as obras de arte (entre outras coisas) são realizadas [...]”. Ainda segundo Sontag (1981, p. 141), [...] com a linguagem, podem-se fazer discursos científicos, memorandos burocráticos, cartas de amor, listas de compras, e a Paris de Balzac. Com a fotografia, podem-se fazer retratos para passaportes, fotografias meteorológicas, fotografias pornográficas, raios X, retratos de casamento e a Paris de Atget. Gisèle Freund (1976), localiza e dimensiona a fotografia como documento social, estabelecendo as bases para a sua compreensão como testemunho histórico. 56 Os estudos e as análises críticas apresentadas sobre a fotografia no presente capítulo, constituem o manancial teórico conceitual do qual derivam alguns postulados por nós adotados para o desenvolvimento da presente pesquisa. Esclarecemos, todavia, que não tivemos a pretensão de estender a discussão a todas as questões que a fotografia encerra, dada a riqueza do assunto, nos furtamos em discutir a totalidade dos temas abordados pelos autores citados. A nossa proposta consiste apenas em destacar alguns destes aspectos, essencialmente aqueles relativos à natureza dual da fotografia, pois ao nosso ver, os atributos de subjetividade e objetividade presentes na fotografia, enquanto processo fotográfico e enquanto objeto fotográfico, precisam necessariamente estar presentes e pautar as reflexões, o aprofundamento da discussão sobre a leitura da fotografia enquanto documento histórico, discussão esta levada a cabo no próximo capítulo. 57 3 A FOTOGRAFIA COMO DOCUMENTO HISTÓRICO E ARQUIVÍSTICO Foto 3: O fotógrafo João Passig com sua esposa e filhos no pátio interno da sua residência. Local: rua Amador Bueno esquina com rua Américo Brasiliense – Ribeirão Preto/SP. Data: 1899. Fotógrafo: não identificado. 58 3.1 A paisagem da fotografia Finalmente a bruma10 que pairava sobre alguns atributos e características da fotografia parece ter sido dissipada. Decorridos mais de 150 anos após sua invenção, a imagem fotográfica configura-se como uma importante fonte de informação e fonte de pesquisa histórica. Dissipada a bruma, a exploração do caráter documental da fotografia foi reconhecida. Mas a fotografia, elevada à categoria de testemunho histórico, traz consigo a sua natureza, que a caracteriza não como reflexo ou espelho da realidade, mas como uma maneira de representar uma dada realidade, a ser construída a partir de conteúdos e significados localizados historicamente; traz consigo os atributos que a caracterizam como objeto híbrido, igualmente povoado por objetividade e subjetividade, derivando que a sua compreensão, como documento histórico, seja permeada pelo reconhecimento da sua natureza ambígua e as conseqüentes potencialidades e limites do seu uso de maneira autônoma, conforme discussões levadas a cabo no capítulo “Sobre a Fotografia” do presente trabalho. O que nos foi revelado para além da bruma apresenta-se como um horizonte de amplitudes vertiginosas; apesar da chancela de documento ter sido outorgada à fotografia, tendo ainda sido eleita como um objeto potencialmente informativo, uma paisagem disforme, e por vezes acidentada, parece estar presente quando tratamos de conceber e alicerçar uma metodologia para o tratamento documental11 de 10 A imagem de bruma foi expressa por Walter Benjamin (1992) no início do texto Pequena História da Fotografia, o uso dessa mesma imagem no presente trabalho configura-se como uma homenagem ao referido autor. 11 Segundo Camargo e Bellotto (1996, p. 75) o tratamento documental se refere ao “Conjunto das atividades de classificação e descrição de documentos.”. 59 fotografias, quando estas são transformadas em acervos fotográficos, recolhidos junto aos Arquivos Históricos, instituições de memória e de pesquisa. As discussões que estas questões encerram, ao nosso ver, se apresentam como essenciais, e mesmo que não desbravada a extensão total dessa paisagem, e mesmo que não explorada de maneira conclusiva ou absoluta, nos propomos a desenvolver uma análise crítica sobre alguns aspectos que se sobrepõem, e ao mesmo tempo fundamentam a compreensão e uso da fotografia como documento histórico, à luz de alguns dos aportes teóricos oferecidos pela História e pela Arquivística. Percebemos ser necessário expor e discutir, em conjunto, algumas abordagens apresentadas pelas citadas disciplinas. Ao provocar este encontro, procuramos delinear, na paisagem da fotografia, alguns pontos de confronto onde habitam uma convivência incômoda de diferentes interesses, enfoques e perspectivas, que muitas vezes fundamentam de forma tênue o lidar com a fotografia quando elevada à categoria de documento histórico e, também, os lugares onde residem as possibilidades para a invenção e a construção de um conhecimento a partir do documento fotográfico. Assim, tentaremos compreender como as novas abordagens históricas, propostas pela Nova História, bem como o surgimento de novos suportes de informação, na presente pesquisa com enfoque exclusivo no suporte fotográfico, desencadearam diferentes formas de produção do conhecimento histórico; suscitaram o estabelecimento de uma nova hierarquia no que se refere à concepção e conceituação dos recursos documentais; provocaram uma nova ordem de problemas para as instituições consagradas como guardiãs de acervos fotográficos sob a égide de históricos, na presente pesquisa com enfoque exclusivo nos Arquivos 60 Históricos, principalmente no que se refere à origem e natureza dos documentos a serem recolhidos e colocados sob custódia. Desencadearam ainda uma problematização relacionada à fundamentação teórica que permeia a metodologia para o tratamento técnico dos documentos fotográficos, principalmente naquilo que incide sobre as escolhas do que guardar e do que descartar, sobre como organizar e sobre a elaboração dos instrumentos de pesquisa12, elo de comunicação entre o pesquisador e os acervos históricos. A partir de uma nova proposta de história, os chamados Arquivos Históricos, conforme discutido por Miguel (1993), deixam então de ser instituições de guarda somente dos atos oficiais resultantes de atividades econômicas, legais ou administrativas, para tornarem-se instituições destinadas a recolher, organizar, conservar e tornar acessíveis os documentos da memória coletiva, que abrange o documento escrito, o microfilmado, o fotográfico. Cabe então aos Arquivos o desempenho de um papel fundamental, o de diversificar suas reservas documentais, contribuindo assim para a apropriação desses objetos enquanto matéria prima para a investigação histórica. E, ainda, os Arquivos Históricos apresentam-se como lugares onde se processam as escolhas, incidem sobre aquilo que deve ser recolhido, sobre aquilo que merece permanecer como testemunho, pois conforme apontado por Rousseau e Couture (1998, p. 47), “[...] o arquivista contemporâneo tem o mandato de definir o que constituirá a memória de uma instituição ou de uma organização.”. A discussão proposta, no presente capítulo, não objetiva responder de maneira definitiva a todas as questões que as novas abordagens históricas impõem 12 Segundo Oliveira (1992), os instrumentos de pesquisa integram o programa descritivo do acervo, são voltados ao usuário externo pois configuram-se como instrumentos de socialização das informações, apresentam-se como Guia, Inventário e Catálogo. 61 aos Arquivos Históricos, tampouco estabelecer em que medida esta nova realidade deve ser absorvida pela Arquivística. Não pretendemos apontar quais os melhores critérios ou fórmulas definitivas para a compreensão da fotografia como documento histórico; tentaremos apenas desvelar parte daquilo que a sustenta como tal e discutir as possibilidades de um tratamento técnico arquivístico onde estejam presentes e delineados os atributos e a natureza inerentes à fotografia. Ao nosso ver, a paisagem que a fotografia constrói, como documento histórico, convida, provoca e suscita a promoção de um possível diálogo, entre os vários e múltiplos possíveis diálogos, entre a Fotografia, a História e a Arquivística. Aceitamos o convite e, a seguir, apresentamos algumas reflexões. No que diz respeito à História, não trataremos aqui de desenvolver um estudo sobre a história da fotografia, nem tampouco promover um exame profundo sobre todos os aparatos conceituais e teóricos da História enquanto disciplina científica, da qual deriva a produção de diferentes métodos para a análise e compreensão do passado. A nossa discussão objetiva abordar alguns posicionamentos relativos à compreensão do documento histórico e dos recursos teórico-metodológicos, dos quais deriva a construção de uma trama narrativa sobre o passado, baseando-nos para tanto, fundamentalmente, nos autores Jacques Le Goff (1994), Peter Burke (1992) e Keith Jenkins (2001). Quanto às reflexões sobre a Arquivística e os Arquivos Históricos, pretendemos compreender as bases teóricas que fundamentam o lidar com os documentos e as resultantes concretas desse lidar, que tem lugar nas instituições de guarda de documentos, aqui considerados somente os Arquivos Históricos; para tanto apresentamos como basilares os trabalhos dos autores Heloísa Liberalli 62 Bellotto (1991), Jean-Yves Rousseau e Carol Couture (1998), Daíse Apparecida Oliveira (1992) e Silva et al (1999). As reflexões propostas configuram-se como fundamentação teórica para a análise desenvolvida no capítulo 5 do presente trabalho, do conjunto de fotografias que integram o Fundo José Pedro Miranda, sob a custódia do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto. 3.2 História e documento fotográfico Le Goff (1994) reconhece a história como a forma científica da memória coletiva, onde operam dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos. Os monumentos teriam a intenção da duração no tempo, a natureza do seu propósito não seria o fornecimento de informação neutra, mas de fazer perpetuar determinado aspecto do passado, provocando a rememoração, fazendo vibrar o passado. Neste sentido podemos inferir que o monumento está imbuído de uma certa intenção de poder e, portanto expressa, de forma subjacente, uma latente subjetividade. Na posição oposta, estaria o documento. Segundo Le Goff (1994), este seria apresentado, de acordo com a escola positivista do século XIX, como material revestido de objetividade; normalmente associado a registros escritos e oficiais que teriam significado inerente de testemunho e prova. Todavia, significativas transformações teóricas e metodológicas da ciência histórica, através da chamada Nova História, provocaram uma crítica profunda à noção de documento. A crítica ao documento à qual Le Goff (1994) se refere, 63 confere ao documento os atributos do monum