UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA Centro de Estudos de Geografia do Trabalho - CEGeT Centro de Estudos do Trabalho, Ambiente e Saúde - CETAS TESE DE DOUTORADO O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E O CONTROLE SOCIAL DA NATUREZA E DO TRABALHO: UM ESTUDO A PARTIR DA FÁBRICA DE PRESERVATIVOS MASCULINOS DE XAPURI (AC). KARINA FURINI DA PONTE PRESIDENTE PRUDENTE 2014 KARINA FURINI DA PONTE O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E O CONTROLE SOCIAL DA NATUREZA E DO TRABALHO: UM ESTUDO A PARTIR DA FÁBRICA DE PRESERVATIVOS MASCULINOS DE XAPURI (AC). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP/Presidente Prudente, para obtenção do título de Doutor em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Antonio Thomaz Junior PRESIDENTE PRUDENTE 2014 FICHA CATALOGRÁFICA Ponte, Karina Furini. P857d O desenvolvimento sustentável e o controle social da natureza e do trabalho : um estudo a partir da Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri (AC) / Karina Furini da Ponte. - Presidente Prudente : [s.n], 2014 360f. : il. Orientador: Antonio Thomaz Junior Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia Inclui bibliografia 1. Geografia. 2. Trabalho. 3. Controle Social. I. Thomaz Junior, Antonio. II. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. III. Título. DEDICATÓRIA Aos meus pais Reinaldo e Eunice, obrigada por estar comigo em todos os momentos que, mesmo distantes, nunca deixaram com que me sentisse só! Ao Zé, meu presente da Geografia que, com nosso amor e nosso companheirismo, nos faz permanecer hoje e sempre! Ao Miguel, obrigada por colorir minha vida todos os dias! Aos seringueiros e, em especial, à Dercy Teles de Carvalho Cunha, por compartilhar comigo suas experiências, suas angústias e suas lutas. Sem vocês esse trabalho não existiria! AGRADECIMENTOS A construção de uma tese de doutorado exige um trabalho extenso que envolve vários aspectos relevantes para seu desenvolvimento. Assim, tanto a dimensão teórico-metodológica, quanto as práxis através dos trabalhos de campo e coletas de dados e informações em instituições são momentos importantes que permitem realizar a pesquisa. Embora uma tese não se faça somente através do cunho científico, mas também há uma teia de relações sociais e familiares que estão sempre presentes e que dão um suporte extra-academia para a concretização desse trabalho. Assim, o doutoramento, por mais que seja um trabalho de autoria, apenas é possível pelos sujeitos que estão no percurso, auxiliando cada qual a seu modo e contribuindo com suas particularidades. Por isso, de forma geral, quero agradecer a todos que participaram desse momento e reconhecer algumas pessoas e instituições. Primeiramente aos meus pais, Nice e Reinaldo, que me apoiaram e me deram suporte desde a graduação até a pós-graduação, sempre reconhecendo a necessidade de momentos que são incompreensíveis para o coração, mas importantes para a razão. Ao meu irmão Kaio pelo relevante papel que teve em minha graduação “segurando as pontas” para que fosse possível minha ausência para realizar essa etapa e pela linda família que nos trouxe, Fernanda e Maria Clara, que apesar de sempre distantes espacialmente, estão sempre presentes em meus pensamentos e em meu coração. Ao meu companheiro Zé que me faltam palavras para expressar sua importância em minha existência. Nossa vida se confunde e se completa pelo profissional e pelo pessoal, não somente por sermos geógrafos e trabalharmos juntos, mas pelo companheirismo que isso permitiu. Obrigada pela força no desenvolvimento da tese, sem você não seria possível. Ao nosso filho Miguel, você apareceu como um sonho e tornou nossa vida tão mais especial. Você é a melhor parte de mim! Ao Thomaz, pela orientação da tese e por possibilitar o contato com uma “nova” discussão teórico-metodológica que permitiu a construção desse trabalho de doutorado. Seu apoio e seu respeito permitiram avançar na pesquisa e a estreitar laços de amizade e profissionais. Obrigada por confiar em mim! Aos colegas que fizeram parte do cotidiano do grupo de pesquisa “Centro de Estudos de Geografia do Trabalho - CEGeT”, de Presidente Prudente (SP), que de tantos prefiro não enumerar para não incorrer em esquecimento, como àqueles dos demais núcleos distribuídos por vários cantos do Brasil, por sua importância acadêmica e científica, como também pelos nossos encontros gastro-etílicos. À Sonia, Maria e Zé pelas leituras e discussões que contribuíram para as reflexões da tese. Aos amigos que a Geografia nos trouxe tanto os de longa data como também aos mais recentemente, mas tão importantes quanto: Sônia e Divino, Marcelino e Flávia, Maria Franco, Silvia, Nécio e Beatriz, Márcio e Jarbas, Edilson e Denise, Wagner e Tatiane, Márcio e Letícia, Denis e Carlos, Eduardo Girardi e Sirlei, Marcelo Chelotti, Juscelino, Cíntia, Fernando, Cacá, Baiano, Cirso, Núbia e Agnaldo. Aos amigos prudentinos que participaram dessa fase do doutorado nos possibilitando momentos de descontração: João, Wesley, Fabiana e Políbio, Fabiana Inoue, Alessandra e Rodolfo, Luiz. Aos amigos acreanos que a UFAC nos trouxe e que tiveram, e continuam tendo, um papel tão importante na nossa vivência dentro e fora da universidade. Meu obrigada mais que especial no envolvimento do processo de liberação para essa fase do doutorado: Maria de Jesus, Silvio Simione, Lucilene Almeida e Socorro Maya. Aos amigos acreanos que nos acolheram e nos fizeram sentir parte do Acre: Lucimar, Lara, Carol e Cleilson, Claúdio. À UFAC por permitir a realização dessa etapa profissional e pessoal que é o doutoramento. À CAPES pelo auxílio financeiro para o desenvolvimento da pesquisa com a Bolsa Prodoutoral que tanto contribui no momento de realização do trabalho de campo e da finalização da tese. Ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da UNESP, Câmpus de Presidente Prudente (SP), em nome de seus professores, equipe da Biblioteca e da secretaria do PPG: Cinthia, André, Ivonete, Erinat, a atenção e força de vocês tornam a Universidade menos burocratizada. Aos professores Silvio Simione e Marcelo Dornelis Carvalhal, pela contribuição no exame de qualificação que permitiram avançar na pesquisa de doutorado. Ao Luiz Augusto Ely, pela revisão gramatical da tese. Ao Rafael Silva e Flora Sato, pelo trabalho com os mapas. Ao Jarbas Alves, pelo auxílio nas traduções. À Dercy Cunha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, pela atenção e abertura para o diálogo nos auxiliando a conhecer mais o Acre bem como o passado e o presente dos seus sujeitos. Parabéns pelo seu importante papel na defesa dos seringueiros e seu território. Fico muito feliz em saber que os seringueiros estão muito bem representados! Às lideranças seringueiras, Sabá Marinho, pela sua contribuição em nos apresentar à Reserva Extrativista Chico Mendes e seu filho, Raimundo Marinho, que nos ajudou a desvendar o cotidiano de vida e de trabalho dos seringueiros. Como também ao Osmarino Amâncio, pelas conversas mesmo antes da fase do doutorado, que auxiliaram na delimitação e na construção dessa pesquisa. Por fim, nosso agradecimento especial aos seringueiros da Resex Chico Mendes e dos Seringais Cachoeira e Equador, pelo prazer de conhecê-los e compartilhar conosco o processo de construção de suas vidas em seu território. Vocês protagonizaram essa pesquisa com suas experiências e permitiram que ela se tornasse possível. Meu muito obrigada a todas as pessoas, que apesar do cansaço de final de tese, nos permitiu nomear nos agradecimentos, como também àquelas que fizeram parte, mas que não foi possível mencionar, mesmo estando presentes e contribuindo à sua forma. “É necessário desmistificar todo este cenário lindo e maravilhoso que se apresenta [através da proposta de desenvolvimento sustentável da Frente Popular no estado do Acre], porque há toda uma exploração e uma contradição quando se trata do respeito ao ser humano e direito dos trabalhadores.” (Dercy Teles de Carvalho Cunha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri/AC) RESUMO: A introdução da proposta de desenvolvimento sustentável no estado do Acre ocorreu a partir de 1999, com a Frente Popular no poder executivo. Tal perspectiva política e ideológica tem como foco a convergência entre o aproveitamento econômico e a preservação ambiental da floresta, o que demonstra sua vinculação às necessidades emergentes da sociedade como também do capital. É nesse contexto que surge a Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri, como uma política de desenvolvimento sustentável do governo da Frente Popular no Acre, de produção de camisinhas a partir do látex nativo extraído nos seringais da região do Alto Acre. Diante da relevância e dos resultados da proposta de sustentabilidade para o estado surgiram alguns questionamentos: qual o papel da Preservativos Natex para o projeto político do desenvolvimento sustentável da Frente Popular no Acre? Como também, quais são os instrumentos e estratégias utilizadas para executar a proposta sustentável no estado? Por fim, como se materializa a relação entre a fábrica de preservativos e os sujeitos envolvidos, no caso, os seringueiros que fornecem látex para a produção de preservativos? Sendo assim, constatamos que a proposta de desenvolvimento sustentável da Frente Popular se constrói discordante da propaganda social e ambiental, já que prioriza o processo de mercantilização da natureza via exploração da madeira, exportação de carne bovina e a venda dos serviços ambientais. Com isso, tanto a Preservativos Natex, como a política de sustentabilidade servem para encobrir e legitimar o processo de espoliação da natureza através de um aparato ideológico que associa as atividades ligadas ao capital como sendo “sustentáveis”, já que privilegia as demandas sociais e com menor impacto ao ambiente. Para efetivar a perspectiva sustentável e, assim, a fábrica de preservativos, o capital/Estado se utiliza do controle social como uma importante estratégia de dominação do sujeito e de seu território por meio da sujeição do trabalho do seringueiro. Isto é, o sujeito passa a representar somente um elemento dentro do processo produtivo através de sua força de trabalho, o que se evidencia nas diversas formas de intensificação do labor com o aumento das horas trabalhadas e repercussões em sua organização de trabalho familiar a fim de permitir a manutenção da produção/criação do autoconsumo e, desse modo, a autonomia, em sua colocação; a degradação do trabalho que reflete na saúde do trabalhador ao expô-lo ao uso obrigatório da amônia, sem utilização de equipamentos de proteção individual (EPIs); como também seu envolvimento em um sistema de pesagem do látex caracterizado pela exploração através do pagamento somente de uma parte do produto e do trabalho do seringueiro. Portanto, é através do controle do processo de trabalho que o capital/Estado aplica seu controle sobre o sujeito e seu território, de modo a desestruturar seu modo de organização e gestão. Sendo assim, ao desarticular a relação metabólica entre homem e natureza, enquanto garantia de condições materiais e subjetivas de existência do sujeito, impõe formas de organização e de controle estranhadas, a fim de atender a rotina da produção de preservativos, o que especializa o seringueiro na extração do látex, dificultando ou até impedindo que privilegie sua autossuficiência e autonomia. Palavras-chave: Trabalho. Desenvolvimento Sustentável. Controle Social. Seringueiro. Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri. TITLE: Sustainable development and social control of nature and of work: a study from the Factory of Male Condoms of Xapuri (AC). ABSTRACT: The introduction of the concept of sustainable development in the state of Acre has occurred since 1999, with the Popular Front in the executive branch. Such political and ideological perspective focuses on the convergence between economic use and environmental preservation of the forest, which demonstrates its commitment to the emerging needs of society as well as the capital. It is in this context that the Factory of Male Condoms of Xapuri arises as a policy of sustainable development of the Popular Front government in Acre, producing condoms from latex from the rubber tree native of the Upper Acre region. Given the importance and results of the proposed sustainability for the state some questions arose: what is the role of Natex Condoms to the political project of sustainable development of the Popular Front in Acre? As well as what are the tools and strategies used to implement the sustainable proposition in the state? Finally, how does the relationship between the condom factory and the individuals involved, that is, the rubber tappers who provide latex for the production of condoms, materialize? Thus, we found that the proposed sustainable development of the Popular Front builds itself disagreeing with the social and environmental propaganda, since it prioritizes the process of commodification of nature via logging, beef export and sale of environmental services. This way, both Natex Condoms and the sustainability policy serve to cover up and legitimize the process of spoliation of nature through an ideological apparatus which combines activities related to capital as being "sustainable", as they favour the social demands and with less impact on the environment. To carry out the sustainable perspective and thus the condom factory, the capital / state uses social control as an important strategy of domination of the individual and of its territory by subjecting the work of the rubber tapper. That is, the individual comes to represent only one element within the production process through its workforce, which is evidenced in the various forms of intensification of labour with the increase in hours worked and their impact on family work organization to allow the maintenance of production / creation of self-consumption and the thereby autonomy in their placement; the degradation of work which reflects on the health of the worker when exposing him to the mandatory use of ammonia, without the use of personal protective equipment (PPE); as well as his involvement in a weighing system of Latex characterized by exploitation by paying only a part of the product and the work of rubber tapper. Therefore, it is through control of the labour process that the capital / State applies its control over its individual and territory, in order to disrupt their way of organization and management. Thus, when disrupting the metabolic relationship between man and nature as ensuring material and subjective conditions of existence of the individual, it imposes strange forms of organization and control in order to meet the routine production of condoms, which specializes the rubber tapper in the extraction of latex, hindering or even preventing him from favouring his self-sufficiency and autonomy. Keywords: Work. Sustainable Development. Social Control. Rubber Tapper. Condom Factory of Xapuri. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Estrutura do sistema de aviamento na extração da borracha na região amazônica............................................................................................. 49 Figura 2 - Processo de trabalho na extração do látex ..................................... 287 Figura 3 - Croqui de uma colocação seringueira, com as estradas de seringa.............................................................................................................. 289 Figura 4 - Processo de trabalho para a fabricação do CVP............................. 293 LISTA DE FOTOS Foto 1 - Cernambi Virgem Prensado (CVP)..................................................... 67 Foto 2 - Granulado Escuro Brasileiro (GEB).................................................... 68 Foto 3 - Embalagem do Granulado Escuro Brasileiro (GEB)........................... 68 Foto 4- Folhas Defumadas Líquidas (FDL)...................................................... 69 Foto 5 - Produção de preservativos masculinos na Preservativos Natex........ 70 Foto 6 - Produto final da cadeia produtiva do látex: preservativo masculino... 71 Foto 7 - Vista parcial da Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri (AC).................................................................................................................. 224 Foto 8 - Utilização do módulo sanitário fornecido pelo governo do estado do Acre aos seringueiros da Reserva Extrativista Chico Mendes............................................................................................................. 269 Foto 9 - Ponto de Apoio (PA) na colocação de um seringueiro que fornece látex para a Preservativos Natex...................................................................... 271 Foto 10 - Ponto de Recolhimento (PR) construído pela Preservativos Natex na Reserva Extrativista Chico Mendes, no Seringal Nazaré............................ 272 Foto 11 - Ponto de Recolhimento (PR) improvisado utilizando a construção já existente na colocação de um seringueiro no Seringal Equador............................................................................................................ 272 Foto 12 - Primeira etapa da sangria da seringueira para extração do látex.................................................................................................................. 290 Foto 13 - Segunda etapa da sangria da seringueira para extração do látex.... 290 Foto 14 - Primeira etapa da coleta do látex...................................................... 290 Foto 15 - Segunda etapa da coleta do látex..................................................... 291 Foto 16 - Retorno do dia de trabalho com seus instrumentos utilizados e o látex extraído.................................................................................................... 291 Foto 17 - Processo de armazenamento do látex.............................................. 292 Foto 18 - Comercialização do CVP com a COOPERACRE............................. 294 Foto 19 - Primeira etapa do sistema de transformação do látex líquido em sólidos totais..................................................................................................... 313 Foto 20 - Segunda etapa do sistema de transformação do látex líquido em sólidos totais..................................................................................................... 314 Foto 21 - Terceira etapa do sistema de transformação do látex líquido em sólidos totais..................................................................................................... 314 Foto 22 - Quarta etapa do sistema de transformação do látex líquido em sólidos totais..................................................................................................... 315 Foto 23 - Quinta etapa do sistema de transformação do látex líquido em sólidos totais..................................................................................................... 315 Foto 24 - Sexta etapa do sistema de transformação do látex líquido em sólidos totais..................................................................................................... 316 Foto 25 - Tabela utilizada pela COOPERACRE para determinação dos sólidos totais..................................................................................................... 316 Foto 26 - Entrega da nota de controle e pagamento ao seringueiro................ 317 Foto 27 - Nota de controle de entrega do látex emitida pela COOPERACRE ao seringueiro................................................................................................... 317 LISTA DE MAPAS Mapa 1- Localização da Reserva Extrativista Chico Mendes e dos Projetos de Assentamentos Agroextrativistas Cachoeira e Equador no estado do Acre.................................................................................................................. 36 Mapa 2 – Trabalho de Campo na Resex Chico Mendes e nos PAEs Cachoeira e Equador no estado do Acre.......................................................... 37 Mapa 3 – Trabalho de Campo no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri e na Preservativos Natex no estado do Acre........................................ 38 Mapa 4 – Espacialização da extração/produção dos derivados da borracha no estado do Acre............................................................................................. 65 Mapa 5 – Localização da Reserva Extrativista Chico Mendes no estado do Acre.................................................................................................................. 117 Mapa 6 - Espacialização dos seringais na Reserva Extrativista Chico Mendes no estado do Acre............................................................................... 118 Mapa 7 – Localização da Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri e os municípios fornecedores de látex................................................................ 223 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Calendário agroextrativista dos seringueiros do estado do Acre... 94 Quadro 2 - Composição do Conselho Deliberativo da Reserva Extrativista Chico Mendes (AC), a partir da Portaria IBAMA n° 28, de 22 de maio de 2003.................................................................................................................. 123 Quadro 3 - Quantidade e valor dos produtos da extração vegetal no estado do Acre em 2012.............................................................................................. 165 Quadro 4 - Efetivo do rebanho bovino, em 2012, segundo as grandes regiões do Brasil............................................................................................... 168 Quadro 5 - Órgãos do governo federal e sua participação na construção da Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri (AC)...................................... 225 LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS Tabela 1 - Distribuição espacial das famílias que recebem o subsídio da borracha (Lei Chico Mendes) no estado do Acre, no período de 1999 a 2010.................................................................................................................. 59 Tabela 2- Distribuição espacial da produção de borracha natural bruta subsidiada no estado do Acre no período de 1999 a 2010.............................. 60 Tabela 3 - Produção de borracha/kg por tipo de produto - 2007 a 2010......... 66 Gráfico 1- Taxa média de crescimento anual da pecuária nos estados da Amazônia Legal (%) entre 1990 a 2003........................................................... 168 LISTA DE SIGLAS AIDS = Síndrome de Imunodeficiência Adquirida AMOPREAB = Associação de Moradores e Produtores da Reserva Extrativista de Assis Brasil AMOPREB = Associação dos Moradores e Produtores da Reserva Extrativista Chico Mendes de Brasiléia AMOPREX = Associação dos Moradores e Produtores da Reserva Extrativista Chico Mendes de Xapuri ANG = Agência Não Governamental ANVISA = Agência Nacional de Vigilância Sanitária ASPRUC = Associação de Moradores e Produtores do Unidos do Rio Caipora BID = Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD = Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento BM = Banco Mundial BNDES = Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CAEX = Cooperativa Agroextrativista de Xapuri CAPEB = Cooperativa das Associações de Produtores e Extrativistas de Brasiléia CEB = Comunidade Eclesial de Base CEGeT = Centro de Estudos de Geografia do Trabalho CETAS = Centro de Estudos do Trabalho, Ambiente e Saúde CIMI = Conselho Indigenista Missionário CNPT = Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais CNS = Conselho Nacional dos Seringueiros COAEB = Cooperativa Agroextrativista de Brasiléia COMPAEB = Cooperativa Mista de Produção Agropecuária e Extrativista de Epitaciolândia e Brasiléia CONAB = Companhia Nacional de Abastecimento CONTAG = Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura COOPEC = Cooperativa Central de Associações do Estado do Acre COOPERACRE = Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre CPT = Comissão Pastoral da Terra CVP = Cernambi Virgem Prensado DST= Doença Sexualmente Transmissível EMBRAPA = Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária ENS = Encontro Nacional de Seringueiros EPI = Equipamentos de Proteção Individual EPR = Equipamentos para Proteção Respiratória FDL = Folha Defumada Líquida FIP = Fundo de Investimento e Participação FMI = Fundo Monetário Internacional FPA = Frente Popular do Acre FSC = Forest Stewardship Council FSP = Faculdade de Saúde Pública FUNASA = Fundação Nacional de Saúde FUNTAC = Fundação de Tecnologia do Estado do Acre GATT = Acordo Geral de Tarifas e Comércio GEB = Granulado Escuro Brasileiro IBAMA = Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IBGE = Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IFEPAC = Instituto de Pesquisas Empresariais do Acre IMAC = Instituto do Meio Ambiente do Acre INCRA = Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INMETRO = Instituto Nacional de Metrologia Qualidade e Tecnologia INPE = Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais INT = Instituto Nacional de Tecnologia MCF = Mecanismo de Certificação Florestal MDL = Mecanismo de Desenvolvimento Limpo NR = Normas Regulamentadoras de Segurança e Saúde do Trabalhador OMC = Organização Mundial do Comércio ONG = Organização Não Governamental ONU = Organização das Nações Unidas PA = Ponto de Apoio PAE = Projeto de Assentamento Agroextrativista PCN = Projeto Calha Norte PDSA = Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre PGC = Programa Grande Carajás PIN = Plano de Integração Nacional PMFS = Plano de Manejo Florestal Sustentável PND = Plano Nacional de Desenvolvimento POLAMAZÔNIA = Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia POLOCENTRO = Programa de Desenvolvimento dos Cerrados POLONOROESTE = Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil PPG7 = Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais PR = Ponto de Recolhimento PROBOR = Programa de Incentivo à Produção de Borracha Vegetal PSA = Pagamento por Serviços Ambientais PT = Partido dos Trabalhadores RDA = Renovação Democrática do Acre REDD = Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal RESEX = Reserva Extrativista SDB = Superintendência de Defesa da Borracha SEAPROF = Secretaria de Estado de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar SEATER = Secretaria Executiva de Assistência Técnica e Extensão Rural SEF = Secretária de Estado de Florestas SEFE = Secretaria Executiva de Florestas e Extrativismo do Acre SEPROF = Secretaria de Extrativismo e Produção Familiar SIPAM = Sistema de Proteção da Amazônia SNUC = Sistema Nacional de Unidade de Conservação SPVEA = Plano de Valorização Econômica da Amazônia STR = Sindicato dos Trabalhadores Rurais SUDHEVEA = Superintendência da Borracha SUFRAMA = Superintendência da Zona Franca de Manaus UFAC = Universidade Federal do Acre UNESP = Universidade Estadual Paulista USP = Universidade de São Paulo ZEE = Zoneamento Ecológico-Econômico ZPE = Zona de Processamento de Exportação SUMÁRIO APRESENTAÇÃO............................................................................................ 24 INTRODUÇÃO................................................................................................. 27 CAPÍTULO 1 A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO REGIONAL AMAZÔNICO E SEU PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO: O EXTRATIVISMO DA BORRACHA E AS COMMODITIES................................................................. 45 1.1 O extrativismo da borracha na Amazônia: o Acre em questão................. 47 1.1.1 O extrativismo da borracha: da inserção na divisão internacional do trabalho às políticas do governo federal........................................................... 47 1.1.2 As políticas estaduais para a extração/produção da borracha no Acre a partir da década de 1990............................................................................... 1.2 A produção do espaço regional amazônico no contexto das políticas do governo federal: a internacionalização da Amazônia e a produção de commodities..................................................................................................... 57 72 CAPÍTULO 2 O PROCESSO DE LUTA E RESISTÊNCIA DO MOVIMENTO SERINGUEIRO E A CRIAÇÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA CHICO MENDES NO ESTADO DO ACRE: DA CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA AO CONTROLE PELO ESTADO.................................................................... 84 2.1 Pressupostos básicos da racionalidade do seringueiro no estado do Acre.................................................................................................................. 86 2.2 O movimento seringueiro e seu processo de luta e resistência no estado do Acre............................................................................................................. 98 2.3 A criação da Reserva Extrativista Chico Mendes (AC): da luta seringueira à conquista da autonomia?............................................................ 116 2.4 O governo do estado do Acre e as formas de cerceamento da autonomia política e econômica dos seringueiros............................................ 128 2.4.1 Condições econômicas e sociais vivenciadas pelas famílias de seringueiros na Resex Chico Mendes.............................................................. 129 2.4.2 A prática do roçado: da sobrevivência à criminalização.......................... 133 2.4.3 A pecuarização da Resex: da sobrevivência à repressão....................... 137 2.4.4 O controle social pela cooptação de lideranças seringueiras................. 141 2.4.5 A organização coletiva dos seringueiros e a intervenção do Estado...... 146 CAPÍTULO 3 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA FRENTE POPULAR NO ESTADO DO ACRE: DO PROCESSO IDEOLÓGICO À MERCANTILIZAÇÃO DA NATUREZA............................................................ 158 3.1 A proposta de desenvolvimento sustentável do governo da Frente Popular no Estado do Acre e seus instrumentos legitimadores: o Zoneamento Ecológico-Econômico e o Programa de Desenvolvimento Sustentável....................................................................................................... 160 3.2 O sistema do capital e a valoração da natureza: da mercantilização à ideologização do desenvolvimento sustentável................................................ 182 3.2.1 O desenvolvimento sustentável enquanto um processo de mercantilização da natureza na escala global/local......................................... 191 3.2.2 O desenvolvimento sustentável enquanto um processo ideológico e de controle social.............................................................................................. 199 3.2.3 É possível um desenvolvimento sustentável sob o capitalismo?............ 208 CAPÍTULO 4 A FÁBRICA DE PRESERVATIVOS MASCULINOS DE XAPURI (AC) E A LEGITIMAÇÃO DO CONTROLE SOCIAL........................ 217 4.1 A Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri e os vínculos ao desenvolvimento sustentável da Frente Popular no Acre................................ 219 4.2 As contradições da política de “desenvolvimento sustentável” no estado do Acre: o caso da Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri................ 227 4.2.1 A Preservativos Natex como uma política de governo............................ 228 4.2.2 Do discurso do látex nativo à realidade do látex de cultivo................... 234 4.2.3 Segregação e parcialidade no atendimento aos seringueiros envolvidos com a Fábrica de Preservativos Natex........................................... 237 4.2.4 O papel da Preservativos Natex para a dinâmica do “desenvolvimento” territorial da região do Alto Acre......................................... 243 4.2.5 A vinculação com o Ministério da Saúde: projeto social ou estratégia econômica........................................................................................................ 247 4.2.6 A intermediação da COOPERACRE com os seringueiros: relação social ou comercial?......................................................................................... 250 4.3 A Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri: o controle social a partir de um projeto de “hibridização” do capital/Estado.................................. 256 CAPÍTULO 5 A SUJEIÇÃO DO SERINGUEIRO AO GOVERNO DA FRENTE POPULAR: O CASO DA FÁBRICA DE PRESERVATIVOS MASCULINOS DE XAPURI (AC).................................................................... 264 5.1 O seringueiro e o sistema de produção de preservativos masculinos........................................................................................................ 266 5.2 Os impactos da relação seringueiro X Preservativos Natex em seu território de vida e de trabalho.......................................................................... 275 5.3 A sujeição do seringueiro pelo trabalho: intensificação, degradação e exploração........................................................................................................ 284 5.3.1 A intensificação do trabalho a partir da expansão da jornada, do ritmo laboral e seus reflexos na rotina de trabalho do seringueiro e sua família............................................................................................................... 285 5.3.2 A intensificação do trabalho através da ampliação da jornada laboral X preço do quilo do látex...................................................................................... 299 5.3.3 A degradação do trabalho e os efeitos dos insumos químicos na saúde do trabalhador................................................................................................... 305 5.3.4 A exploração do trabalho do seringueiro através do sistema de pesagem do látex............................................................................................. 312 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 324 REFERÊNCIAS ............................................................................................... 337 APÊNDICE ...................................................................................................... 350 24 APRESENTAÇÃO 25 Em 2005 ingressei como docente na Universidade Federal do Acre (UFAC) através de concurso público para a área de Geografia da Indústria. Assim, iniciei o trabalho na instituição, a princípio, somente com as disciplinas vinculadas à temática da indústria, o que suscitou muitos questionamentos teóricos e empíricos diante da realidade peculiar do processo de industrialização no estado do Acre. Desse modo, a partir de 2007, me envolvi em atividades de pesquisa e extensão através da elaboração de um Projeto Institucional com duração de três anos (2007- 2009) e seus desmembramentos com orientações em nível de Iniciação Científica, também voltadas para essa temática, mais especificamente, relacionadas à Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri. Tais pesquisas, desenvolvidas no âmbito institucional, tinham o objetivo de analisar o papel do estado do Acre no processo de industrialização, tendo como estudo de caso a Preservativos Natex, bem como enfocar as relações de trabalho estabelecidas no processo produtivo do preservativo masculino. Com isso, através do desenvolvimento da pesquisa obtivemos a primeira constatação: de que não há como compreender a fábrica de preservativos somente através dos pressupostos teóricos da industrialização, mas como uma política de governo da Frente Popular, para o Acre, e sua vinculação aos princípios mais amplos do que somente a industrialização do estado. Contudo, seu papel de política de governo não a torna uma ação que envolva as questões sociais no tocante à busca pela melhoria da qualidade de vida dos sujeitos envolvidos, mas compreende demandas que contemplam a proposta político-partidária da Frente Popular direcionada às formulações do desenvolvimento sustentável. Assim, o papel do estado, agora personificado no governo do Acre através da Frente Popular, apresenta um papel muito mais do que executor do empreendimento, pois a Preservativos Natex demonstra objetividades e intencionalidades que extrapolam os aspectos de atendimento à sociedade, mas principalmente uma estratégia política diante de sua proposta da sustentabilidade. Além disso, essa abordagem inicial possibilitou verificar a relevância do seringueiro para o processo produtivo do preservativo masculino, como também as implicações em sua vida, em seu trabalho (rotina, formas de exploração, de pagamento/remuneração e controle) em seu território, decorrentes de seu envolvimento no fornecimento de látex para a Preservativos Natex. Assim, a centralidade do trabalho passou a ser o principal direcionamento para a 26 compreensão, não somente da relação entre a fábrica e o seringueiro, mas também entre o seringueiro com a terra e sua família. Portanto, tais indagações iniciais resultaram em problematizações que estendemos para o projeto de pesquisa de doutorado que busca analisar tanto a Preservativos Natex como parte da proposta de desenvolvimento sustentável da Frente Popular no Acre, quanto a relevância da inserção do trabalho do seringueiro para a dinâmica das ações do Estado dentro da perspectiva sustentável preconizada. 27 INTRODUÇÃO 28 A partir da década de 1990, o governo do estado do Acre, liderado pela coligação político-partidária da Frente Popular, passa a construir suas ações a partir da proposta de desenvolvimento sustentável. Com isso, surgem várias iniciativas e empreendimentos públicos e privados vinculados à perspectiva sustentável que a propaganda associa ao atendimento às questões sociais e ambientais. Para isso, o foco deve ser a inserção econômica da floresta a partir de suas peculiaridades como uma forma de gerar emprego e renda e, assim, reduzir a pobreza e proporcionar qualidade de vida, levando à melhora das condições sociais. Nesse contexto, em 2008, surge a Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri (Preservativos Natex) como uma política de governo vinculada à proposta de desenvolvimento sustentável, defensora da agregação de valor aos produtos florestais com vistas à industrialização do látex extraído na região do Alto Acre com a produção de preservativos. Sua especificidade consiste na relação estabelecida com o Ministério da Saúde, que através de convênios firmados com o estado do Acre, recebe toda a produção de preservativos e distribui gratuitamente nos Postos de Saúde, principalmente da região Norte do Brasil. Dessa forma, a Preservativos Natex é uma iniciativa do governo do estado do Acre, juntamente com o governo federal e que é administrada pelo governo estadual, por intermédio da Fundação de Tecnologia do Estado do Acre (FUNTAC), ou seja, a fábrica de preservativos não apresenta vinculação com iniciativas privadas e não realiza a comercialização direta das camisinhas. Nesse sentido, a inserção e a relevância da proposta de desenvolvimento sustentável no Acre suscitaram algumas indagações sobre quais são os propósitos e as intencionalidades na adoção da perspectiva sustentável para as ações políticas da Frente Popular no Acre. Tais questionamentos se reforçam diante da efetividade dos instrumentos de planejamento político do governo vinculados ao desenvolvimento sustentável, como o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), e o Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre (PDSA), pois seus objetivos principais convergem principalmente para as ações relacionadas às atividades de exploração da madeira, criação de gado e serviços ambientais, atividades contraditoriamente divergentes das dimensões sociais e ambientais, já que provocam degradação da floresta e, consequentemente, alteração no território de vida e de trabalho do seringueiro. Como também, tais atividades que compõem a política da sustentabilidade da Frente Popular estão vinculadas ao sistema de 29 reprodução do capital em nível internacional e à concepção da economia verde, se configurando a partir da apropriação e da mercantilização dos recursos naturais. Desse modo, como podemos compreender a Fábrica de Preservativos Masculinos que está vinculada à proposta de desenvolvimento sustentável do governo do Acre, sem necessariamente relacionar-se às atividades principais que conduzem às ações “sustentáveis” (madeira, gado e crédito de carbono), como também ao processo de mercantilização da natureza, já que não produz mercadoria que se realiza no processo de comercialização? Qual o papel da Preservativos Natex dentro da política de desenvolvimento sustentável da Frente Popular? Como também, quais são os instrumentos e estratégias que aproximam a fábrica de preservativos à lógica da proposta de desenvolvimento sustentável do capital mediada pela mercantilização da natureza? Por fim, como se configura a relação estabelecida entre a Preservativos Natex e os sujeitos envolvidos, os trabalhadores, no caso os seringueiros que fornecem látex para a produção de preservativos? Nesse sentido, partimos da hipótese de que a Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri se constrói enquanto uma propaganda da perspectiva sustentável do governo da Frente Popular no Acre. Portanto, através do caráter de política de governo e da desvinculação como empreendimento privado, reforçou-se a dimensão social da iniciativa no atendimento aos seringueiros vinculados ao fornecimento de látex para a fábrica de preservativos, como também ao incentivar uma atividade economicamente tradicional e culturalmente ligada aos seringueiros, no Acre, e, sendo uma atividade de baixo impacto na floresta, possibilita articular as ações político-partidárias da Frente Popular ao modelo defendido pelos protagonistas, de desenvolvimento economicamente viável, ambientalmente correto e inclusivo socialmente. Outra hipótese da qual partimos na pesquisa é que a inserção da Preservativos Natex nos seringais da região do Alto Acre proporcionou alterações significativas no modo de organização de vida e de trabalho dos sujeitos que habitam a floresta e a têm como território de vivência, a partir da introdução de uma nova forma de extração do látex para a produção de preservativos. Assim, as aproximações entre fábrica de preservativos e seringueiros ocorrem a partir de elementos que edificam a estrutura do sistema do capital, contrapondo à perspectiva social no que tange a proporcionar melhores condições de vida para os sujeitos, 30 trabalhadores/seringueiros, a partir de seu território, como também da dimensão ambiental de possibilitar ações que buscam a preservação da floresta. * * * Então, compreendemos que o trabalho é a categoria central para abordar o seringueiro nessa relação estabelecida com o capital/Estado através da vinculação com a fábrica de preservativos. Para tanto, é através da sujeição do seringueiro, pelo trabalho, ao governo do Acre, liderado pela Frente Popular no poder executivo, que se efetiva umas das vinculações da Preservativos Natex com a proposta de desenvolvimento sustentável ligado ao capital internacional, já que apesar de ser uma política de governo e não uma empresa privada, está assentada sobre as bases estruturantes do capital através da exploração e da degradação do trabalho como condições essenciais para reestabelecer sua lógica de reprodução. Portanto, as ações relacionadas à proposta de desenvolvimento sustentável, em especial a Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri, imprimiram no estado do Acre novos arranjos territoriais e, consequentemente, de poder, que modificaram as relações estabelecidas entre o capital, os sujeitos da floresta e o Estado. Da mesma forma que também reforçaram a desestruturação das relações entre homem e natureza enquanto base do metabolismo mediado pelo trabalho, que possibilita as condições de existência e de autonomia do sujeito frente ao seu território, sua vida e seu trabalho. Diante desse cenário produzido pelo governo da Frente Popular através da implantação da política de sustentabilidade, estabelecemos como objetivo geral analisar de que modo a proposta do desenvolvimento sustentável se constrói no estado do Acre a partir da implantação da política de governo denominada de Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri, bem como seus desdobramentos para os seringueiros vinculados no que diz respeito à sua organização de vida e de trabalho. Como objetivos específicos foram definidos: a) Demonstrar historicamente a vinculação da região amazônica e, mais especificamente, do estado do Acre, no circuito internacional do capital, e como a 31 estratégia do controle social passa a representar um importante instrumento de legitimação da ordem do capital; b) Refletir sobre as principais formas de controle estabelecidas pela Frente Popular a partir de 1999 no Acre, com relação aos seringueiros, e em especial, aos moradores da Resex Chico Mendes, bem como estabelecer as mediações entre controle e autonomia; c) Analisar a proposta de desenvolvimento sustentável implantada pela Frente Popular no Acre pós década de 1990 e suas aproximações com o sistema do capital; d) Refletir sobre os propósitos da Preservativos Natex diante do plano político da Frente Popular para o Acre e mediante à perspectiva da sustentabilidade do capital; e) Analisar como a proposta de desenvolvimento sustentável e, especificamente, a Preservativos Natex repercutem na organização territorial dos seringueiros da região do Alto Acre; f) Demonstrar como se configura a relação capital/Estado/trabalho diante do processo de desenvolvimento sustentável no Acre e enfocado através da política de governo da Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri. Assim, os reflexos da política de desenvolvimento sustentável, e especificamente da Preservativos Natex enquanto política de governo, nas formas de vida e de trabalho dos seringueiros e os desdobramentos na relação metabólica construída com a natureza, foram objeto de estudo nessa pesquisa de doutorado. Para isso, os conceitos de controle social e autonomia do trabalho permeiam todo o desenvolvimento da pesquisa. Apreendidos como dois processos interligados, já que compreendemos o controle social como uma estratégia do capital, no caso, do governo do estado do Acre de dominação do sujeito trabalhador (seringueiro), de seu trabalho e de seu território, pretextando romper com os fundamentos da autonomia. Esta é, pois, a condição essencial para desarticular a capacidade de autodeterminação, ou a autonomia do seringueiro e, assim, aplicar novos modos de organização e de uso da terra divergentes de sua racionalidade. Nesse sentido, abordaremos como a estratégia do controle permeou todo o processo de inserção da Amazônia no circuito do capital internacional, desde o seringal empresa no século XIX até a produção de atividades “sustentáveis” na década de 2000, e como hoje se estabelece o controle social exercido pela Frente 32 Popular do Acre. Com isso, pretendemos demonstrar como esse conceito se torna tão central para a análise da Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri. Por isso, detalhamos compreensões por meio de diversas ações de pesquisa (direta e via informações secundárias) a fim de que o sujeito da pesquisa, o seringueiro, que tem como território de vivência a floresta da amazônia-acreana, mais especificamente a região do Alto Acre, fosse objeto de detalhamentos. O ser seringueiro não se destaca somente pelo tipo de ocupação profissional, mas sim, pela construção histórica, política, econômica e social no território, o que os diferencia dos demais seringueiros de outras porções do Brasil. Esse seringueiro é, em um primeiro momento, um trabalhador da floresta, pois sua forma de vida e de organização territorial está baseada na intrínseca relação com a natureza, através do processo metabólico mediado pelo trabalho, no qual, além de criar os valores de uso, se constrói e se reconstrói enquanto sujeito através dessa relação dialética. Portanto, o seringueiro vinculado à política de governo da Frente Popular, a Preservativos Natex, tem seu modo de vida e de trabalho desarticulado diante das exigências da produção de preservativos masculinos. Assim, há o controle da relação metabólica e a imposição de formas de vida e de trabalho estranhas à sua racionalidade. É através dessa metamorfose do trabalho enquanto condição de existência ao trabalho estranhado que podemos evidenciar que mesmo o seringueiro não sendo um trabalhador direto de produção de mercadorias, mesmo não sendo assalariado e tendo a posse dos meios de produção, e embora não o controle, o compreendemos como um trabalhador justamente pelas mediações estabelecidas com o capital, que trazem reflexos em sua forma de organização de vida e de trabalho que demonstram os diversos graus de dominação e controle do capital/Estado sobre as dimensões existências do sujeito. Com isso, a relação entre Preservativos Natex e seringueiro foi construída com base na sujeição de seu trabalho através da inserção de formas de produção condizentes com a fabricação de camisinhas e, portanto, externas à sua racionalidade. Assim, a fim de adequar a nova modalidade de extração/produção evidenciam-se diversas formas de intensificação, precarização e exploração do seu trabalho. 33 Dessa forma, estabelece-se uma relação entre capital e Estado, por meio do governo da Frente Popular no Acre, que passa a ter um novo formato diante da proposta de desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, o Estado é um elemento importante para a efetivação da lógica do capital na escala local por formular e construir diversas estratégias que permitem a apropriação do território e, de forma conjunta, os sujeitos e os recursos. Assim, algumas ponderações sobre capital e Estado devem ser postas para esclarecer as fundamentações dessa pesquisa de doutorado. Primeiramente, a ordem do capital não está nitidamente apenas nas ações da iniciativa privada, mas também nas políticas públicas e de governo dos Estados e, consequentemente, nos desdobramentos que retroalimentam a base estrutural do sistema do capital, como exemplo, o controle do trabalho evidenciado na política de governo da Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri. Segundo, porque as ações dos Estados não podem ser analisadas em separado, pois elas compõem um leque de intencionalidades que, por vezes, não encerram por si só, ou seja, por mais que a Preservativos Natex não tenha uma vinculação explícita com a escala global e não esteja vinculada diretamente à produção de mercadorias que se realizam na comercialização, ela faz parte de uma ampla estratégia político-partidária da Frente Popular diante da proposta de desenvolvimento sustentável que está relacionada à lógica do capital para o estado do Acre, e para a Amazônia, de forma geral. Portanto, a relevância do tema da pesquisa de doutorado se justifica diante do peso da proposta de desenvolvimento sustentável para as políticas no estado do Acre, como também dentro das proporções da perspectiva sustentável no contexto internacional, já que representa uma nova modalidade de estratégia do capital, frente ao seu processo de reestruturação produtiva advinda de sua crise estrutural. Assim, se torna importante não somente compreender os propósitos e intencionalidades do desenvolvimento sustentável do capital, mas também os desdobramentos das ações ditas “sustentáveis” à sociedade. Dessa forma, ao demonstrar as ações do Estado, via governo da Frente Popular, com a Preservativos Natex, para com a população diretamente envolvida com os recursos florestais, como forma de vida e de trabalho, será possível refletir como uma política vinculada à proposta de sustentabilidade se efetiva na prática. 34 * * * A partir da formulação dos objetivos e da problematização da pesquisa de doutorado, foi delimitado um caminho metodológico constituído por etapas e instrumentos que permitissem apreender a práxis abordada juntamente com a contribuição dos pressupostos teóricos e categoriais. Assim, a metodologia foi estruturada em dois eixos de trabalho: 1) pesquisa bibliográfica e documental; 2) realização de trabalho de campo. A pesquisa bibliográfica e documental foi realizada ao longo de todo o processo de construção da tese de doutorado, pois ao eleger como proposta de pesquisa um recorte específico da realidade, que por seus aspectos espaciais e temporais somente conseguiríamos apreendê-lo através de instrumentos/procedimentos que levassem em consideração sua dinâmica. Para auxiliar o processo de levantamento bibliográfico de modo a abordar as discussões propostas, partimos de grandes eixos temáticos, sendo: capital, trabalho e Estado na Amazônia; desenvolvimento sustentável no contexto do capital; desenvolvimento sustentável da Frente Popular no Acre; o extrativismo da borracha e o seringueiro no Acre; capital, Estado e controle social. Essa etapa do levantamento de bibliografias ocorreu em diversas instituições e universidades, como na Biblioteca da UNESP/Presidente Prudente (SP) e Marília (SP); como também em acervos da região amazônica, como na Biblioteca da Universidade Federal do Acre (UFAC), na Editora da UFAC/EDUFAC, e no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém (PA). O levantamento bibliográfico em instituições da região amazônica foi importante não somente por ser a área da pesquisa, mas por concentrar, em termos quantitativos e qualitativos, publicações que envolvem as diversas temáticas da Amazônia desenvolvidas por pesquisadores locais. Outra fonte importante de acompanhamento das publicações referentes à questão do desenvolvimento sustentável no Acre e a Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri foi a pesquisa constante em sites de órgãos envolvidos com a 35 temática1, jornais do estado do Acre2, página web oficial do governo do Acre3, revistas digitais, blogs, dentre outros, o que nos possibilitou acompanhar a dinamicidade da temática em foco. Além da pesquisa bibliográfica, houve a realização da pesquisa documental, efetuada tanto nos sites citados acima, como também no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA); Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA); Ministério do Meio Ambiente; Ministério da Saúde, dentre outros. Houve também coleta de documentos in loco na Secretaria de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar (SEAPROF), localizada em Rio Branco (AC), com a obtenção de informações a respeito da produção/preço/subsídio da borracha e demais produtos derivados no estado do Acre como o CVP, látex, FDL, GEB, tanto total, como a distribuição por municípios. O segundo eixo dos procedimentos metodológicos refere-se à realização do trabalho de campo em julho de 2011. Embora o primeiro semestre desse ano tenha sido destinado para o planejamento e a elaboração das atividades a serem desenvolvidas no campo com a definição de objetivos, a metodologia utilizada, a elaboração de roteiros de entrevista, o contato e agendamento para realização das mesmas. Após a fase de preparação, foi realizado o trabalho de campo da pesquisa de doutorado nos municípios de Rio Branco, Xapuri e Assis Brasil, no estado do Acre. Dentre as atividades realizadas constam entrevistas com: a) 15 seringueiros que fornecem látex para a Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri, sendo 6 do Seringal Nazaré, localizado na Resex Chico Mendes (comunidades Nova Vida e União), e 7 do Seringal Cachoeira e do Seringal Equador, inclusive com 2 meeiros que trabalham nesses seringais, todos no município de Xapuri (AC) (Mapas 1 e 2); b) 2 líderes do movimento dos seringueiros (Sabá Marinho e Nilson Mendes); c) Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri (Dercy Teles de Carvalho Cunha) (Mapa 3); 1 Fundação de Tecnologia do Acre (FUNTAC) (www.funtac.ac.gov.br); Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (www.iad.org). 2 Página 20 (www.pagina20.com.br); O Alto Acre (www.oaltoacre.com). 3 Governo do Acre (www.ac.gov.br); Agência de Notícias do Acre (www.agencia.ac.gov.br). 39 d) Diretora da Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri (Dirlei Berch), como também com 2 gerentes responsáveis pelos setores produtivos da unidade (Mapa 3); e) 1 produtor de látex de cultivo; f) Membros da COOPERACRE (Manoel Monteiro - Superintendente; Gilsilei Pereira da Silva e José Milton Pereira de Souza - ambos Gerentes de Ponto de Recolhimento de Látex para a Fábrica de Preservativos Masculinos; João Pereira da Silva - Gerente Geral dos Pontos de Recolhimento); g) Membro da SEAPROF (Ademir Batista - chefe de divisão da Secretaria de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar (SEAPROF)); h) 2 parlamentares da Frente Popular (deputado federal Sibá Machado e o ex-deputado estadual Ronald Polanco); i) 2 seringueiros que produzem o FDL (Folha Defumada Líquida), no Seringal São Francisco, no município de Assis Brasil; j) Membro da AMOPREAB (Associação dos Moradores e Produtores da Reserva Extrativista Chico Mendes de Assis Brasil), José Ferreira de Araújo, responsável pela organização produtiva do FDL. Além das entrevistas realizadas em julho de 2011, outras compõem as discussões e análises da pesquisa de doutorado. Tais materiais foram obtidos a partir da realização de trabalhos de campo referentes às disciplinas ministradas, e pesquisas desenvolvidas no âmbito da UFAC, o que nos possibilitou dispor de outras três entrevistas. A primeira, com a diretora da Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri, Dirlei Berch; a segunda, com a presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, Dercy Teles de Carvalho Cunha; e outra com Osmarino Amâncio, importante líder sindical e companheiro de Chico Mendes, sendo que todas foram realizadas em 2009. Na seleção dos sujeitos entrevistados, houve uma diversificação da amostra, conforme se identifica acima, o que nos permitiu selecionar alguns representantes de cada segmento que envolve a produção de preservativos masculinos no estado do Acre, abordando desde os representantes do estado enquanto idealizador e formulador da proposta da Preservativos Natex, passando pelos órgãos vinculados que viabilizam sua execução até chegar aos sujeitos diretamente envolvidos neste processo: os seringueiros. 40 A preparação das atividades que compõem um trabalho de campo não envolve somente a parte prática e operacional, mas o posicionamento ideológico e filosófico do pesquisador perante a realidade. Desse modo, o método é o fio condutor que demonstra sua forma de ver o mundo e ver o outro. Por isso, a posição do sujeito da pesquisa e o olhar do pesquisador sobre ele, demarcam e orientam os aspectos teórico-metodológicos para o desenvolvimento de um processo de investigação. Então, ao assumirmos a centralidade do sujeito enquanto norteador da pesquisa, estamos declarando sua relevância como fonte direta e como produtor de conhecimento. Assim, ao enfocar a importância do outro no processo de pesquisa, sua fala e sua narrativa tornam-se uma das principais bases analíticas da pesquisa, o que nos leva a buscar uma forma de tratamento que possibilite essa centralidade e a pesquisa qualitativa nos proporciona caminhos que devem ser percorridos a fim de captar o sujeito seringueiro como protagonista do processo. Dentro da pesquisa qualitativa, várias técnicas foram selecionadas para apreendermos o universo abordado. Ao longo do trabalho de campo foram realizadas observações diretas a fim de captar o que o visível não nos possibilita identificar. Isso permitiu que em cada entrevista fossem feitas anotações dos elementos que não compareciam nos depoimentos, dentre outras observações gerais do local e do contexto. Na observação direta procedemos à obtenção de material fotográfico sobre o cotidiano do seringueiro, com o propósito de captar os processos e as rotinas de trabalho dos sujeitos, a fim de construir um acervo de imagens que permitisse ao leitor aproximar-se da realidade analisada. A observação participante ocorreu com o acompanhamento do cotidiano de vida e de trabalho de um seringueiro que fornece látex para a Fábrica de Preservativos ao longo de cinco dias, com o objetivo de compreender o processo de extração, a rotina e a organização do trabalho familiar. Devido às dificuldades para chegar às colocações de cada seringueiro, as demais entrevistas foram realizadas fora de seu local de moradia; por isso, o acompanhamento diário de um seringueiro permitiu uma entrevista mais detalhada. As observações indiretas foram feitas a partir de entrevistas semi- estruturadas. Para isso, elaboramos um roteiro de questões a fim de abordar sua vida enquanto seringueiro, a organização familiar e produtiva, o papel do Estado com o seringueiro e seu território, como também a relação com a Fábrica de 41 Preservativos Masculinos de Xapuri e as alterações em termos de rotina de trabalho para atender às necessidades da produção de camisinhas. (Apêndice A) As entrevistas foram gravadas com consentimento dos entrevistados e posteriormente transcritas. Tal opção nos requereu um grande dispêndio de horas/trabalho para a sistematização dos dados, pois foram 31 entrevistas, que totalizaram 600 páginas de depoimentos. Todas as entrevistas foram transcritas tal como a fala dos entrevistados, sem resumos e preservando o seu conteúdo, pois concordamos com Whitaker (2002, p. 116) quando argumenta que “a sintaxe de qualquer discurso deve ser respeitada para que uma transcrição seja fidedigna. Assim, se o falante comete erros de concordância ou de regência de verbos, por exemplo, deve-se reproduzi- los em qualquer transcrição”. Para a análise das transcrições utilizamos a codificação proposta por Gibbs (2009, p. 51) que “é o processo de identificar passagens que exemplifiquem certas ideias temáticas e lhes atribuam um nome, ou seja, o código”. Assim, selecionamos inicialmente as ideias temáticas que deveriam nortear a sistematização das transcrições, embora de acordo com as análises, algumas foram modificadas e readaptadas. O importante na realização da codificação é criar códigos analíticos e teóricos, afastando-se da descrição para que assim possa observar o raciocínio que está por trás dele e suas relações com os demais códigos. Segundo Marre (1991, p. 24), outro elemento que perpassa a codificação é a questão técnica e teórica, pois: tal perspectiva codificadora do conteúdo das narrativas não parte apenas das técnicas. Não dissocia as técnicas da teoria, mas olha o conteúdo das narrativas coletadas, ou as histórias de vida, do ponto de vista da teoria, e articula as técnicas operacionais de codificação a essa teoria, no sentido de fazer como que o próprio processo de codificação seja uma teoria em ato. Ou seja, a codificação é conduzida tanto pela teoria que orientou a construção do objeto científico pelo pesquisador, como também pelas narrativas dos entrevistados, pois nelas estão presentes suas reflexões e posicionamentos. Assim, ao codificar e estabelecer ideias temáticas das entrevistas, as teorias 42 deverão guiá-las e, dessa forma, permitirão que não se restrinja somente às descrições das narrativas. Essas ideias temáticas geraram sistematizações dos depoimentos dos entrevistados com o propósito de contemplar o universo dos sujeitos que compõem a pesquisa, sendo: 1) O Estado e as políticas públicas no Acre; 2) A Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri: pressupostos estruturantes e sua desconstrução; 3) O seringueiro: território, identidade e relações de trabalho (Apêndice B), sendo importante frisar de que essas sistematizações não apresentam todas as discussões necessárias para a pesquisa, apenas contemplam as informações obtidas, através das entrevistas, sobre cada ideia temática e, assim, os questionamentos e os pontos a serem abordados nas reflexões. Após o trabalho de codificação, passou-se para as análises das ideias temáticas, anotações e construção do relatório das entrevistas, de forma que se fizesse presente, uma organização das questões centrais dos depoimentos dos entrevistados para se compreender a realidade a partir de sua perspectiva. Assim, através do relatório das entrevistas, juntamente com os dados e informações coletadas e as leituras e análises realizadas a partir do levantamento bibliográfico, sempre norteados pelos objetivos e pela problematização delimitada, foi possível construir o trabalho de doutorado. Portanto, tendo em vista a proposição de analisar o controle social do capital/Estado na Amazônia e seus reflexos no processo de autonomia dos sujeitos frente à imposição de atividades vinculadas à lógica de reprodução do capital é que norteou a organização da discussão da tese e a ordenação dos capítulos. Assim, será possível compreender como a política de desenvolvimento sustentável e a Preservativos Natex representam uma das estratégias vinculadas ao controle social sobre o seringueiro para legitimar a mercantilização da natureza, materializado na apropriação do trabalho e do território do sujeito para garantir os instrumentos necessários para a reprodução do capital, nesse caso, via Estado. Sendo assim, estruturamos a tese de doutorado em 5 capítulos, conforme especificados: O capítulo1 - “A organização do espaço regional amazônico e seu processo de internacionalização: o extrativismo da borracha e as commodities”, tem como objetivo demonstrar o processo de inserção da região amazônica no circuito internacional do capital, desde a produção da borracha no século XIX e XX para abastecer as indústrias nascentes europeias e norte-americanas, passando pela 43 política militar da década de 1960/70 com suas articulações para reforçar a internacionalização da economia brasileira. Da mesma forma que as commodities da década de 1990 até a política do desenvolvimento sustentável, a partir de 2000, nas quais as atividades vinculadas ao capital passam a ter um caráter “sustentável”. Além de realizar esse retrospecto histórico, em termos de vinculação capital e Amazônia, tem o propósito de evidenciar como o processo de controle sobre o sujeito e seu território de modo a cercear a autonomia foi condição sine qua non para efetivar a política do capital internacional na Amazônia. O capítulo 2 - “O processo de luta e resistência do movimento seringueiro e a criação da Reserva Extrativista Chico Mendes no estado do Acre: da construção da autonomia ao controle pelo estado”, pretende abordar como o processo de inserção do capital na Amazônia, conforme discutido no capítulo 1, possibilitou a perda do controle da terra dos sujeitos da floresta. Com isso, afetou a racionalidade/subjetividade do seringueiro que tem a floresta como lócus de vida e de trabalho, costurado pela relação metabólica com a natureza, o que culminou na organização coletiva através do movimento social dos seringueiros, na década de 1970, enquanto uma instância de luta e resistência frente ao processo de dissolução de sua racionalidade. Desse modo, na década de 1990, o governo federal instituiu a Resex Chico Mendes como resultado político da conquista do seringueiro pela busca de sua autonomia. Embora, como pudemos constatar ao longo da nossa pesquisa, desde então, o capital e o Estado, principalmente com a entrada da Frente Popular no poder executivo do Acre em 1999, estabeleceram diversas estratégias de controle para desarticular a autogestão de seu território e, assim, sua apropriação e direção das formas de uso da terra e do trabalho do sujeito. O capítulo 3 - “O desenvolvimento sustentável da Frente Popular no estado do Acre: do processo ideológico à mercantilização da natureza”, discute a proposta de sustentabilidade da Frente Popular. Para isso, mostra os instrumentos e estratégias adotadas por essa coligação político-partidária para inserir no estado o modelo de desenvolvimento sustentável advindo dos organismos internacionais do capital, pois representam a necessidade preeminente do sistema diante da busca pela recuperação dos efeitos causados pela sua crise estrutural que eclodiu na década de 1970. Desse modo, abordamos como o trabalho e a natureza se tornam condições relevantes para garantir a reestruturação do capital, seja com a exploração e degradação do trabalho, seja através da apropriação da natureza 44 efetivada através do processo de mercantilização dos recursos naturais, no caso do Acre, materializada na extração da madeira, na criação bovina e nos serviços ambientais. Contudo, para aplicar a lógica do capital, constroem todo um arcabouço ideológico para legitimar a espoliação da natureza e sua política de desenvolvimento, no caso, o sustentável. O capítulo 4 - “A Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri (AC) e a legitimação do controle social”, aprofunda a análise da proposta de desenvolvimento sustentável da Frente Popular no Acre. Põe-se em relevo o exemplo da política de governo ligada à perspectiva sustentável, bem como os pressupostos básicos que a constituíram e que a fizeram aproximar dessa nova modalidade de desenvolvimento, como os aspectos sociais e ambientais. Assim, foi possível analisar as intencionalidades ocultas do projeto da fábrica como também abordar os instrumentos que asseguram a Preservativos Natex como uma estratégia da Frente Popular de controle social dos seringueiros. O capítulo 5 - “A sujeição do seringueiro ao governo da Frente Popular: o caso da Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri (AC)”, apresenta alguns elementos da prática cotidiana do seringueiro vinculado à Preservativos Natex que evidenciam o processo de sujeição, pelo trabalho, imposto ao sujeito enquanto uma das principais formas de controle social vindas do capital, por meio do Estado. Para isso, demonstramos como os seringueiros comparecem somente enquanto um fator produtivo através de sua força de trabalho, sendo, pois, seu trabalho estranhado diante das exigências da produção de preservativos. Assim, é através da intensificação, da degradação e da exploração do trabalho que buscaremos abordar a sujeição do seringueiro à Preservativos Natex. Portanto, o trabalho, enquanto categoria estruturante da análise dessa pesquisa de doutorado, nos possibilita apreender o sujeito seringueiro e suas relações com a Fábrica de Preservativos Masculinos de Xapuri. 45 CAPÍTULO 1 A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO REGIONAL AMAZÔNICO E SEU PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO: O EXTRATIVISMO DA BORRACHA E AS COMMODITIES 46 O capítulo 1 tem como objetivo analisar o papel do Estado, em nível federal e estadual, juntamente com o capital internacional, no processo de (re)organização do espaço amazônico a partir de sua inserção na divisão internacional do trabalho. Para isso, tomou-se como ponto de partida a produção da borracha em escala comercial a partir do final do século XIX devido sua importância para a Amazônia tanto em termos de vinculação internacional diante do abastecimento das indústrias nascentes oriundas da Revolução Industrial, quanto internamente pelo resultado no processo de “ocupação” populacional da região. A economia da borracha perdurou até o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e mesmo com ações do governo federal e estadual, se mantém como uma atividade tradicional na região e vinculada mais ao caráter social do que necessariamente comercial, como foi evidenciado através das ações do governo do Acre a partir da década de 1990 para a extração/produção da borracha no estado. Assim, a partir dos governos militares nas décadas de 1960-70, a Amazônia foi objeto de novas articulações mediante a introdução de ações do estado federal para efetivar o processo de internacionalização da economia brasileira com a inserção de novas atividades econômicas na região amazônica, como a pecuária, a madeira e os projetos de mineração. Essa construção serviu como substrato para que a partir da década de 1990, a Amazônia se transformasse na fronteira das commodities e das atividades atreladas à proposta do desenvolvimento sustentável. Com isso, acentuou a vinculação com o capital internacional através da modernização das antigas atividades econômicas, citadas acima, imprimindo este caráter sustentável e a inserção de novas como os serviços ambientais ligados à “venda” do crédito de carbono. Desse modo, ao discutir a construção histórica da Amazônia mediada pelo capital internacional, as fissuras do sistema social vão aparecendo através do controle exercido sobre os sujeitos da floresta (índios, seringueiros, posseiros, etc.) pela apropriação de seu território e de seu trabalho ao cercear sua autonomia, sendo que, como respostas surgem os conflitos, bem como suas (re)criações. Portanto, abordar a Amazônia de maneira geral, permitirá entender o papel do estado do Acre diante das novas articulações protagonizadas pelo Estado e setores dominantes da burguesia, e como as atividades econômicas (madeira e 47 principalmente, a pecuária) foram configurando o território na década de 1970 e originando, contraditoriamente, o processo de luta e resistência consubstanciada na criação do movimento dos seringueiros, objeto das nossas reflexões, no capítulo 2. 1.1 O extrativismo da borracha na Amazônia: o Acre em questão 1.1.1 O extrativismo da borracha: da inserção na divisão internacional do trabalho às políticas do governo federal A ocupação e a inserção do espaço amazônico à economia-mundo remontam ao período da colonização, com a invasão portuguesa nessa região. Porém, o aprofundamento desta política mercantilista de integração da Amazônia só ocorreu no início do século XVIII, com a criação da Companhia do Grão-Pará e do Maranhão pelo Marquês de Pombal. Para Pereira (2005, p. 70), esta companhia representou “o primeiro modelo de economia organizado a fazer funcionar o extrativismo das riquezas amazônicas”, principalmente com as drogas do sertão e produtos como a castanha, a sorva, a borracha de uso artesanal e a agricultura. Nesse sentido, Becker (2005a, p. 23) reforça que “a ocupação da Amazônia ocorreu em surtos a partir da valorização de produtos extrativos no mercado internacional”, sendo que, primeiramente, foram comandados por Portugal a partir de uma economia colonial, em seguida pela Inglaterra, e depois com os Estados Unidos, ambos na passagem da mercantilização para a industrialização, inclusive no período em que a extração da borracha entra no circuito internacional da Revolução Industrial. Então, foi somente no final do século XIX que a região viveu um período de desenvolvimento a partir da exploração da borracha. Isso primeiramente nas áreas próximas a Belém, nas ilhas do estuário (Marajó), e em rios como o Xingu e o Jarí. Como a atividade da borracha ocorreu de forma predatória nessas áreas mencionadas e com a descoberta de seringueiras mais produtivas, a atividade foi obrigada a migrar para outras regiões, e foi neste processo que alcançou as terras do atual estado do Acre, sobretudo nos altos cursos do Purus e do Juruá. A região amazônica tem uma tradição no cultivo e na extração da borracha, pois sua ocupação está acompanhada pelo aproveitamento dos produtos 48 da floresta, principalmente a borracha natural, tanto é que seu processo histórico se associa aos diferentes períodos de auge e crise dessa atividade econômica. Desse modo, no final do século XIX e princípios do século XX, foi dado início ao primeiro auge da borracha na Amazônia, o que gerou transformações de grande magnitude na organização espacial da região e nas relações internas bem como internacionais. Dentre as relações internacionais, foram as novas necessidades advindas da Revolução Industrial que provocaram a inserção da Amazônia, a partir da exportação da borracha, na economia-mundo “em função da importância da borracha como matéria-prima de componentes para as máquinas industriais e na fabricação de fios para redes elétricas e de comunicação (telégrafos, telefone, energia)” (PORTO GONÇAVES, 2001, p. 83). Em seguida, a produção generalizada de pneumáticos amplia a utilização da borracha e aumenta a relevância da Amazônia dentro da nova divisão internacional do trabalho. Nesse sentido, Pereira (2005, p. 97) afirma que “a participação da borracha na pauta de exportações brasileiras nesse período foi tão significativa que se equiparou à do café, considerado pelos sulistas o produto-rei do país”. Já internamente, muitas transformações espaciais foram identificadas na região, como a migração nordestina para constituição de mão de obra na extração do látex, sendo o mais importante fluxo de povoamento na Amazônia. Isso se deve à situação de seca vivenciada pela população no nordeste brasileiro que gera, consequentemente, a dificuldade de vida e de trabalho e a necessidade de buscar novas áreas que permitam sua recriação. Outra importante alteração espacial na região Amazônica e, predominantemente no território que hoje compreende o estado do Acre devido à inserção da borracha no circuito internacional, foi a introdução do seringal empresa, como aborda Porto Gonçalves (2001), como sendo uma organização de caráter empresarial já que se destinava à produção da matéria-prima (borracha) para a fabricação de mercadorias para abastecer as novas necessidades da Revolução Industrial. A organização desse modelo socioeconômico de extração da borracha (seringal empresa) estava estruturada sob o sistema de aviamento. A respeito, Silva (2003, p. 103) acrescenta que: 49 no sistema de aviamento, o capital mercantil através das casas aviadoras aviam o seringalista, que por sua vez avia o seringueiro. As casas eram financiadas pelas casas exportadoras que, ligadas ao capital monopolista internacional conformava o nó mais forte da trama. As casas aviadoras localizadas em Belém e Manaus, que representavam uma ligação primária com o capital mercantil-industrial, eram as responsáveis pelo abastecimento de víveres e instrumentos de trabalho aos seringalistas que “vendiam” através do barracão aos seringueiros. Por outro lado, os seringueiros participavam nessa relação baseada no sistema de aviamento através de seu trabalho na extração da borracha, que fornecia ao seringalista que repassava para as casas aviadoras, e assim destinava ao capital monopolista internacional. Ao mesmo tempo, estabelecia uma relação de dependência ao ter que adquirir suas necessidades somente através da aquisição no barracão (Figura 1). Figura 1 - Estrutura do sistema de aviamento na extração da borracha na região Amazônica Sistema de aviamento ↓ Casas aviadoras ↔ Seringalista ↔ Seringueiro ↓ Estrutura financiada pelo capital monopolista internacional Fonte: Porto Gonçalves (2001); SILVA (2003) (2008); Paula (2005). Org.: Ponte, Karina Furini. A base da relação de produção e de trabalho no sistema de aviamento para a extração da borracha não havia mediação monetária, sendo, pois, realizada pela troca de produtos (bens de consumo e instrumentos de trabalho por borracha). Neste tipo de relação, o seringueiro ficava dependente (ou preso) por dívida, tanto pelo pagamento das despesas com o deslocamento, como pela compra de produtos de subsistência no armazém do seringal (barracão). Além disso, não lhe era permitido o cultivo de produtos para sua subsistência (PAULA, 2005) (SILVA, 2003). Tal mecanismo constituía-se em relações representativas de controle e dominação do seringueiro, nas quais correspondem às fissuras do sistema 50 metabólico onde o trabalhador estava submetido a consumir e a seguir normas que lhe eram impostas, e a não ter acesso à natureza, ou à terra e à água, como alternativa de autossustento. Podemos compreender neste tipo de relação os processos contraditórios e combinados imanentes ao sistema metabólico do capital, havendo nesta rede relações de trabalho não capitalistas para que assim pudessem garantir a reprodução do capital internacional através do abastecimento da matéria-prima (borracha) para o desenvolvimento das indústrias europeias. Assim, Oliveira (1995, p. 67) esclarece essa realidade ao afirmar que “a expansão do modo capitalista de produção, além de redefinir antigas relações, subordinando-as à sua produção, engendra relações não capitalistas igual e contraditoriamente necessárias à sua reprodução”. Essa relação de dependência do seringueiro ao seringalista, e consequentemente às Casas Aviadoras, proibia o seringueiro de praticar a agricultura, pois impedi-los de: plantar para sua sobrevivência e obrigá-los a só produzir borracha era viabilizar as casas aviadoras que não só compravam borracha, mas também vendiam alimentos, utensílios e outros supérfluos [...] para que, aumentando as suas dívidas, aumentasse sua dependência de maior produção de borracha (PORTO GONÇALVES, 2001, p. 86). A não permissão da prática da agricultura de subsistência controla/coíbe o trabalhador ao especializá-lo somente na extração da borracha, ao mesmo tempo em que retira a possibilidade de sua autonomia de vida, ao fazê-lo depender da compra de produtos para sua sobrevivência e impedir sua realização própria através de uma agricultura camponesa. O ápice da retirada da autonomia do seringueiro não ocorreu somente com o impedimento da produção de gêneros de necessidade básica por eles próprios, mas também com a impossibilidade de constituir família, já que no período áureo da borracha esse tipo de laço social era proibido tanto que prostitutas faziam parte do abastecimento oferecido pelos seringalistas (PORTO GONÇALVES, 2001). A família significava um desvio do seringueiro do seu trabalho, pois o foco do sistema de aviamento nos seringais era a produção de borracha para abastecer o mercado internacional das indústrias nascentes, principalmente as automobilísticas. 51 Assim, o seringueiro deveria somente entrar com seu trabalho na extração, sempre crescente, de borracha a fim de alimentar este circuito. Já a agricultura de subsistência, ou roçado1, representa um instrumento de independência do seringueiro, significa a construção de um processo de autonomia interna em sua colocação2, por mais que fora dela as relações sejam baseadas na exploração e no controle do seringueiro pelo seringalista. Segundo Silva (2008, p. 142), “o roçado tinha uma significância fundamental. Era a condição de ter mais autonomia e menos dependência no âmbito da produção e circulação de mercadorias e pessoas na região”, tanto é que após a primeira crise da produção da borracha para abastecer o capital monopolista internacional, por volta de 1910 a 1920, houve a retomada, principalmente nos seringais acreanos, da produção de pequenos roçados e criação de animais como autossustentação familiar. Assim, no período de crise da borracha verificou-se uma diversificação produtiva e, por conseguinte, levou à melhora da alimentação e qualidade de vida dos seringueiros na região da Amazônia Sul-Ocidental (PORTO GONÇALVES, 2001). Portanto, o primeiro auge da borracha na Amazônia, ocorrido no final do século XIX e início do século XX, representou um modelo econômico, político e social que não privilegiou o desenvolvimento da região e de sua população. Primeiro, porque os recursos econômicos vindos da extração do látex acabaram não sendo utilizados para o desenvolvimento da região, pois foram drenados para o Centro-Sul do país; segundo, que era um produto destinado exclusivamente para a exportação, com vista a suprir a demanda industrial internacional; e, terceiro, a organização do espaço amazônico era comandada por poucas firmas estrangeiras, sendo assim, quando houve a queda da produção, o capital estrangeiro também migrou. E o motivo dessa queda na produção gumífera da Amazônia, do início do século XX, se justifica pela concorrência com a produção asiática que, segundo 1 Roçado: área destinada ao cultivo de lavoura branca pelos seringueiros em suas colocações, geralmente utilizada para a manutenção de sua família, e quando há excedente, podem comercializar. 2 Colocação: representa a unidade produtiva e social do seringueiro no seringal. Ela é composta pela casa do seringueiro, barraco de serviços (defumador e outros), área de roçado, área de criação de pequenos animais e de pastagens com gado, e onde se encontram as estradas de seringa por meio das quais realizam o trabalho de extração e coleta da borracha. 52 Porto Gonçalves (2001, p. 91), se apresentava no circuito internacional com um preço menor do que a borracha amazônica. Além disso, a relevância da borracha para o complexo industrial fez com que os países importadores estabelecessem um controle político das áreas produtoras dessa matéria-prima. Assim, a extração da borracha na região amazônica, apesar de ser controlada por esses importadores europeus, tinha como intermediação as Casas Aviadoras, o que obrigava a dividir parte dos lucros. Já na região asiática, o controle se estendia por todas as fases da produção desde a comercialização, a distribuição e o consumo, estabelecendo uma dominação mais acentuada e vantajosa do ponto de vista político e econômico. Deste modo, a fim de recuperar a economia da borracha nacional, os produtores da Amazônia buscaram apoio do governo federal, resultando no 1º Plano de Defesa da Borracha em 1912, e através dele criou-se a Superintendência de Defesa da Borracha (SDB) para coordenar ações voltadas para a produção regional da borracha e melhorias sociais. Segundo Monteiro e Coelho (2004, p. 06), a ação de criação da SDB: previa a concessão de remuneração aos que efetivassem a implantação de seringais ou instalações para o beneficiamento do látex. Passou também a oferecer bonificações em dinheiro a quem edificasse instalações portuárias e estradas de ferro, dentre outras obras. Além disso, o governo reduziu as alíquotas dos impostos cobrados sobre a borracha, sob a alegação de torná-la mais competitiva no mercado internacional. Nesse contexto, tais medidas, baseadas em remunerações, bonificações e redução de impostos, correspondiam a metas ambiciosas, e assim, eram incompatíveis com a estrutura governamental da época. Por isso, já em 1914, o Plano foi finalizado sem cumprir seus objetivos. Com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Amazônia retoma o auge da borracha e volta a ter importância no contexto internacional, pois “o Japão impede o acesso do Ocidente às fontes produtoras da borracha asiática e os aliados se voltam para a antiga fonte”, ou seja, à região amazônica (PEREIRA, 2005, p. 86). Com isso, houve um investimento muito grande principalmente por parte de empreendedores norte-americanos a partir da assinatura dos Acordos de Washington, em 1942, buscando o aumento da produção gumífera. 53 Estes acordos foram estabelecidos entre as autoridades norte-americanas e brasileiras nos quais os primeiros ficaram responsáveis pelo financiamento da produção da borracha na Amazônia, e ao governo brasileiro caberia encaminhar grandes contingentes de trabalhadores para os seringais, a fim de aumentar a extração da matéria-prima que seria fornecida aos EUA. Assim, o governo federal organizou estruturas de recrutamento de força de trabalho tendo como origem o Nordeste do Brasil, aproveitando-se da situação de seca que flagelava a população local. Com isso, a migração passa a ser a saída para a busca da sobrevivência de muitas famílias que se destinam à região Amazônica. Para que esta frente migratória possa se deslocar para a Amazônia foi necessária a criação de condições internas favoráveis. Deste modo, o recrutamento era estimulado pela propaganda de melhor remuneração e possibilidade de obter um pedaço de terra. Nesse contexto, em 1942, houve o primeiro movimento migratório denominado de “batalha da borracha”, pois devido ao declínio da produção gumífera na década de 1920, muitos seringueiros foram “libertos” para outras atividades e, por fim, não havia força de trabalho suficiente para aumentar a produção. Assim, houve o direcionamento de um acentuado fluxo migratório para constituir um conjunto de mão de obra para “extrair no mínimo 70.000 toneladas de borracha, cota que pensava possível produzir na Amazônia durante o esforço de guerra” (MARTINELLO, 1988, p.86) (COSTA SOBRINHO, 1992). Em 1943 foi destinado outro fluxo migratório para a Amazônia, mas diferente do primeiro, já que agora a origem não foi somente o Nordeste, mas populações de outras áreas do país (Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais), e também divergente pelas aspirações dos migrantes, pois neste momento a busca não tinha como interesse primordial a sobrevivência, mas a oportunidade de conhecer novas áreas para trabalhadores precarizados e explorados pelas indústrias e ciente de seus diretos. Por esse diferencial os denominavam de arigó, pelo caráter “hostil e desordeiro”, já que não aceitavam de forma pacífica as condições postas e assim, questionavam a realidade da produção gumífera amazônica. Diante desse panorama de reativação da economia da borracha através do Acordo de Washington, em 1942, o Banco de Crédito da Borracha teve um papel extremamente relevante, tanto no sentido de fomentar a produção como no controle 54 do comércio e na fixação de preços. Vale lembrar que esta instituição contava com 40% de capital norte-americano (PEREIRA, 2005). O fim da Segunda Guerra Mundial marca a segunda crise da borracha na Amazônia e o retorno ao mercado asiático, juntamente com a introdução da produção sintética. Deste modo, novamente os seringueiros retornam à produção agrícola e criação de animais de pequeno porte juntamente com a remanescente produção extrativista da borracha. É nesse cenário que a intervenção estatal se torna a saída para os obstáculos da produção da borracha na referida região, pois o período de 1947 a 1967 foi marcado pelo monopólio da compra do produto pelo governo brasileiro. Para regulamentar a atuação do Estado junto aos produtores de borracha a partir da instauração do monopólio da compra da borracha, o governo instituiu a Lei nº 86, de 08 de setembro de 1947, e com ela a Comissão Executiva de Defesa da Borracha com o propósito de “manter estoques de borracha, controlar a importação, fixar preços de compra e venda da borracha sintética, regulamentar a instalação de novas fábricas, fiscalizar o emprego de sucedâneos de borracha nos produtos finais, dentre outras atribuições” (ALLEGRETTY, 2002, p. 130). Nesse contexto ainda, o Banco de Crédito da Borracha, criado em 1942 para financiar a produção gumífera através do Acordo de Washington, foi transformado em Banco de Crédito da Amazônia (1947) que, juntamente com a Comissão Executiva de Defesa da Borracha, deveriam manter o monopólio da compra do produto e não permitir seu colapso. Tais ações do Estado junto aos produtores de borracha na Amazônia ocasionaram debates entre o setor industrial nacional e o governo federal, já que as medidas praticadas através do monopólio da borracha refletiram no aumento substancial de seu preço, o que protegia o extrativista, mas não tornava seu produto competitivo internacionalmente, pois a borracha asiática chegava ao Brasil com um preço menor. Neste contexto, além do embate mencionado anteriormente e da crescente demanda por borracha para atender as prioridades do governo militar de 1964, que correspondem à construção de estradas e, consequentemente, do transporte rodoviário e das indústrias automobilísticas e pneumáticas, extinguiu-se a lei do monopólio de comercialização da borracha e instaurou-se uma nova política para o setor no Brasil. 55 Com isso, surge a Lei nº 5.227, de 18 de janeiro de 1967, que criou a Superintendência da Borracha (SUDHEVEA) sob a jurisdição do Ministério da Indústria e do Comércio, instaurando novos parâmetros de auxílio à produção interna de borracha de modo a não alimentar a aquisição do produto importado, considerado mais vantajoso economicamente do que o preço do produto nacional. De forma geral, a SUDHEVEA “permitiu um preço de garantia para a borracha vegetal nacional; determinou a formação de estoques de reserva e a equiparação dos preços das borrachas vegetais e sintéticas de produção nacional aos vigentes no mercado internacional” (ALLEGRETTY, 2002, p. 133). Além disso, outra condição estava ligada à intervenção estatal sobre os preços da borracha, como afirma a Lei nº 5.227, de 18 de janeiro de 1967, na alínea 1 do artigo 12, de que “o ajustamento de preços previsto neste artigo somente será efetuado na medida em que se cumprir um programa de diversificação das atividades econômicas das áreas de produção extrativista de borracha e de aumento da produtividade dos seus seringais” (BRASIL, 2014). Tal medida buscou assegurar que a Amazônia não dependesse apenas de um único produto para gerar emprego e renda e para “substituir a produção extrativa pelo cultivo da seringueira como forma de abastecer o mercado interno e não gerar uma crise social na região” (ALLEGRETTY, 2002, p. 139). A SUDHEVEA também tinha como função administrar os programas do PROBOR, pois segundo Allegretty (2002, p. 134), “o volume de recursos que a SUDHEVEA passou a administrar era crescente e deu origem ao Programa de Incentivo à Produção de Borracha Vegetal - PROBOR I, em 1972, e ao PROBOR II, em outubro de 1977”, e ao PROBOR III, em 1982. Os objetivos do PROBOR eram “aumentar a produção e a produtividade do setor de borracha vegetal e criar as condições para a consolidação da expansão da heveicultura no país, com a gradativa substituição do seringal nativo pelo de cultivo racional” (SOUZA, 2010, p.16). Dentre as três fases do Programa previa-se o plantio de 388 mil hectares de seringueiras, sendo grande parte na Amazônia, embora calcula-se que apenas 116 mil hectares tenham sido implantados na região nos 10 anos de vigência do PROBOR (1972 a 1982). No estado do Acre, estimou-se que tenha sido pouco mais de 800 hectares de áreas de seringais cultivados provenientes deste programa (LIMA, 2011). 56 Como os objetivos do PROBOR não foram realizados, a SUDHEVEA foi extinta através da Lei n° 7.732, de 14 de fevereiro de 1989, juntamente com o PROBOR. Assim, “suas atribuições, na época já bastante esvaziada, foram transferidas ao recém-criado Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA)” (SOUZA, 2010, p.11). O PROBOR não gerou a autossuficiência da produção de borracha nacional como havia propagado e não conseguiu tirar o setor da estagnação. Além disso, seus ínfimos resultados representaram uma conjugação de fatores que foram desde problemas técnicos, com a impossibilidade de conter o fungo causador do “mal das folhas”, como principalmente de ordem administrativa e de planejamento, já que se estimava que muitos dos recursos para a produção da borracha cultivada eram desviados para outros empreendimentos. Como ressalta Lima (2011, p.02), de que é “comum se ouvir que o estabelecimento de milhares de hectares de pastagens na região Leste do Acre foi viabilizado de forma indireta com recursos dos financiamentos do PROBOR”. E diante desse cenário de poucos avanços na economia da borracha que o governo federal foi retirando suas ações e imprimindo novos horizontes com relação às atividades econômicas para a Amazônia, como será discutido a seguir. Portanto, o processo histórico de ocupação da Amazônia, via produção da borracha, pode ser dividido em dois momentos. O primeiro momento, final do século XIX e 1ª metade do século XX, foi marcado pela construção de um processo de articulação internacional da atividade gumífera a fim de suprir a demanda do desenvolvimento industrial da Inglaterra e depois dos EUA. Era a inserção da Amazônia na divisão internacional do trabalho através da exportação da borracha. Já o segundo momento da produção da borracha, marcado pelo final da Segunda Guerra Mundial, a produção gumífera não conseguiu se sustentar no mercado externo e, nesse momento, somente o auxílio do governo federal conseguiu segurar o andamento da extração