unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP RUBENS CÉSAR BAQUIÃO SSSOOONNNHHHOOOSSS EEE MMMIIITTTOOOSSS::: LLLEEEIIITTTUUURRRAAA SSSEEEMMMIIIÓÓÓTTTIIICCCAAA DDDEEE SSSAAANNNDDDMMMAAANNN ARARAQUARA – SP. 2010 1 RUBENS CÉSAR BAQUIÃO SSSOOONNNHHHOOOSSS EEE MMMIIITTTOOOSSS::: LLLEEEIIITTTUUURRRAAA SSSEEEMMMIIIÓÓÓTTTIIICCCAAA DDDEEE SSSAAANNNDDDMMMAAANNN Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Lingüística. Linha de pesquisa: Estrutura, organização e funcionamento discursivos e textuais. Orientadora: Profa. Doutora Renata Coelho Marchezan. Bolsa: CAPES ARARAQUARA – SP. 2010 Baquião, Rubens César Sonhos e mitos: leitura semiótica de Sandman / Rubens César Baquião – 2010 155 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientador: Renata Coelho Marchezan l. Mitologia. 2. Cultura popular. 3. Semi-simbolismo. 4. Semiótica tensiva. I. Título. 2 RUBENS CÉSAR BAQUIÃO SSSOOONNNHHHOOOSSS EEE MMMIIITTTOOOSSS::: LLLEEEIIITTTUUURRRAAA SSSEEEMMMIIIÓÓÓTTTIIICCCAAA DDDEEE SSSAAANNNDDDMMMAAANNN Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Lingüística. Linha de pesquisa: Estrutura, organização e funcionamento discursivos e textuais. Orientadora: Renata Coelho Marchezan. Bolsa: CAPES. Data da defesa: 26/02/2010 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientadora: Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan Universidade Estadual Paulista Membro Titular: Prof. Dr. Arnaldo Cortina Universidade Estadual Paulista Membro Titular: Prof. Dr. Ivã Carlos Lopes Universidade de São Paulo Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 3 À Maria Adélia Baquião, minha “heróica” mãe, à Jane de Fátima Baquião, minha irmã, e aos amigos que estiverem presentes no decorrer deste trabalho. 4 AGRADECIMENTOS À minha orientadora Renata Coelho Marchezan, cujo apoio e, principalmente, confiança, foram essenciais no desenvolvimento desse trabalho; À minha amiga Luciane de Paula, que me iniciou nos trabalhos acadêmicos; Ao professor Arnaldo Cortina, que possibilitou o surgimento desse trabalho em sua disciplina; Aos meus colegas do grupo de estudos CASA (Cadernos de Semiótica Aplicada), que, de várias maneiras, incentivaram meu trabalho; À agência CAPES, pela bolsa fornecida para a realização da pesquisa. 5 “Raciocínio sistemático é algo sem o qual nós, seja como espécie ou como indivíduo, não podemos passar. Mas creio que tampouco poderemos prescindir da percepção direta – e quanto menos sistemática melhor – dos mundos interior e exterior que nos serviram de berço, para que possamos preservar a sanidade mental. Esta realidade objetiva possui um sentido infinito que ultrapassa toda a compreensão e, no entanto, permite ser direta e, de certa forma, totalmente percebida.” Aldous Huxley (1985, p. 49) 6 RESUMO Esta dissertação visa compreender os sistemas de significação da mídia popular contemporânea. São destacados, como corpus, textos sincréticos produzidos pela indústria cultural norte- americana: Comic books (chamados de histórias em quadrinhos – HQs – no Brasil). Como a proposta é examinar textos que apresentam o plano de expressão verbal conjugado ao plano de expressão visual (textos sincréticos), o arcabouço teórico baseia-se na teoria Semiótica francesa proposta por A. J. Greimas, uma vez que ocorrem desenvolvimentos consideráveis nos estudos semióticos de textos visuais, realizados a partir da teoria greimasiana. Percebe-se que as HQs, em sua maioria, continham temas infantis e que hoje existem várias HQs direcionadas para o público adulto. Com o objetivo de entender a estrutura e o contexto de produção das HQs produzidas para adultos destaca-se a série Sandman (que é produzida para leitores adultos) para análise. As personagens da série são figurativizações de mitos da Antigüidade Clássica. A dissertação pretende estudar a estrutura narrativa e discursiva do texto, e também a figuratividade e as categorias semi-simbólicas e tensivas no plano de expressão visual. Será discutida a intertextualidade que há entre a série Sandman e a literatura. Este trabalho também tenciona entender como os mitos da Antigüidade, com toda sua carga de significados, são projetados em simulacros passionais e reconstruídos pela indústria cultural contemporânea. A respeito dos mitos, é possível formular uma configuração semântica de natureza patêmica que instaura uma nova mitologia e influi tanto no campo cognitivo quanto no campo afetivo do leitor. Palavras – chave: semi-simbolismo; semiótica tensiva; cultura popular; mitologia. 7 ABSTRACT This dissertation intends to comprehend the systems of signification of the contemporary cultural industry about the point of view of greimasian semiotic theory. The objects selected, as corpus, are the syncretic texts produced for the north-american cultural industry: Comic books. The propose is to examine texts that presents the verbal plan of expression united with the visual plan of expression (syncretic texts), the theory choosed are the French semiotic propose by A. J. Greimas, because the studies about visual texts, realized for the greimasian theory, are in great development. The comic books, in great part, are characterized by infantile themes, but, nowadays, there are many comic books produced for mature readers. With the objective of to understand the structure and the production context of the comic books produced by mature readers, this work detaches, as corpus, the Sandman series (produced for mature readers), to the analysis. The characters of the series are figurative creations of myths of Classical Antiquity. The dissertation intends to study the narrative and the discursive structure of the text, and also the figurativity and the semi-symbolic categories and the tensive semiotics concepts in the visual plan of expression. Will be discussed the intertextuality between the Sandman series and the literature. This work aims to understand how the ancient myths, with all their content of meanings, are projected in passional simulacrums and reconstructed for the contemporary cultural industry. Concerning the myths, is possible to formulate a semantic configuration of passional nature that establishes a new mythology and influences in the cognition dimensions and also in the affection dimensions of the reader. Key-words: semi-simbolism; tensive semiotics; pop culture; mythology. 8 LISTA DE ESQUEMAS Esquema 1 Esquema da decadência p.29 Esquema 2 Esquema da ascendência p.30 Esquema 3 Esquema da amplificação p.30 Esquema 4 Esquema 5 Esquema da atenuação Práxis enunciativa e semiosfera p.31 p.79 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................10 1 SIGNO, SIGNIFICAÇÃO E DISCURSO.............................................................................. 17 1.1 Figuratividade.........................................................................................................................31 1.2 Mito..........................................................................................................................................36 1.3 Semi-simbolismo.................................................................................................................... 41 1.4 A estrutura da linguagem das histórias em quadrinhos.....................................................46 2 PACTO COM O SONHO........................................................................................................ 50 2.1 Diálogo com os deuses........................................................................................................... 53 2.2 Os sonhos do bardo inglês......................................................................................................59 2.3 Fadas, poetas e uma noite de verão.......................................................................................62 2.4 Despertar.................................................................................................................................69 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................... 81 REFERÊNCIAS........................................................................................................................... 91 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA………………………………………….....……….......….95 ANEXOS........................................................................................................…............................96 ANEXO A – Men of Good Fortune.................................................................….........................97 ANEXO B – Perpétuos...............................................................................................................123 ANEXO C – A Midsummer Night’s Dream...............................................................................125 ANEXO D – Livros da Magia.....................................................................................................151 ANEXO E – The Wake...............................................................................................……........153 ANEXO F – Hamlet...................................................................................................….............155 10 INTRODUÇÃO Esta dissertação visa analisar os sistemas de significação da mídia popular e destaca as histórias em quadrinhos (HQs) contemporâneas como objeto. Como a proposta é examinar textos que apresentam o plano de expressão verbal conjugado ao plano de expressão visual (textos sincréticos), o arcabouço teórico baseia-se na teoria semiótica da significação proposta por A. J. Greimas, uma vez que ocorrem desenvolvimentos consideráveis nos estudos semióticos de textos visuais, realizados a partir da teoria greimasiana. As HQs surgiram entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Nesse período de emergência, os quadrinhos passaram a circular em jornais onde dividiram espaço com várias notícias. Em seus primeiros anos as HQs eram caracterizadas pelo humor e não existia uma indústria especializada nesse tipo de publicação. Mas as mudanças que ocorrem na produção e veiculação da chamada cultura de massa são visíveis. Quando E. Morin (1969, p. 40-41) refletiu sobre a natureza da cultura popular, na década de 1960, considerou que “[...] a grande imprensa para adultos está impregnada de conteúdos infantis (principalmente a invasão das histórias em quadrinhos).” Na primeira década do século XX, foi publicada a HQ Little Nemo in Slumberland, criada e desenhada pelo norte-americano Winsor McCay. Essa HQ, que surgiu em 1905, é considerada como uma das mais inovadoras na história desse tipo de texto. Além de usar elementos do art- noveau, McCay enriqueceu a linguagem das HQs com enquadramentos sofisticados e com a utilização de ângulos e perspectivas que só surgiriam posteriormente no cinema. Little Nemo in Slumberland foi publicada em suplementos dominicais de jornais norte-americanos. A página dominical é a primeira forma como foram publicadas as HQs modernas: os autores dispunham de uma página para apresentar uma HQ, que continha uma história completa ou apenas um capítulo. Na década de 1930 surgiu, nos Estados Unidos – o primeiro grande centro produtor de quadrinhos no mundo – a grande indústria de HQs. A partir dessa época, os quadrinhos passaram a ser publicados em revistas especializadas, mas continuavam a dividir espaço com reportagens e outras matérias em diversos jornais. A produção da indústria norte-americana especializada em HQs estabelece-se com a criação, em 1935, da empresa New York Company. Essa editora é rebatizada com o nome de National Allied Publishing e publica New Fun – The Big Comic Magazine 1, reconhecida como a primeira revista da futura DC Comics, que viria a ser uma das 11 maiores editoras de quadrinhos e, ainda na década de 1930, lançaria dois dos maiores ícones já criados para as HQs: Superman e Batman. Essas personagens, cujas histórias se desenvolveram no decorrer da Segunda Guerra Mundial, estão carregadas de significados de caráter heróico- nacionalista. W. Eisner, artista que participou da criação da indústria de quadrinhos na década de 1930, acreditava que os super-heróis surgiram por causa da difusão das idéias de Hitler. O livro Mein Kampf, escrito pelo líder nazista, fora publicado nos Estados Unidos em 1935 e, em seu conteúdo, defendia a teoria dos super-heróis. Segundo W. Eisner (1975, p. 2): Era uma época em que todo tipo de solicitações e de idéias novas chegava de todos os lugares ao mesmo tempo. É o que chamamos de cultura de massa: as pessoas não percebem que diversas coisas diferentes acontecem simultaneamente e as influenciam. [...] Era um estímulo sem igual para os adolescentes. Achavam que também eles poderiam vencer da noite para o dia como políticos, astros de cinema, boxeadores [...] E esse conjunto fez com que os novos super-heróis funcionassem. O personagem estilo Superman diz: “Não só eu te salvo a vida instantaneamente, como também vou acertar tudo que estiver errado.” E assim uma geração inteira foi educada num clima em que as coisas todas se resolviam de um golpe só. Morin (1969, p. 41) vislumbrava uma diluição nas barreiras de faixa etária em relação ao consumo popular: “Assim, uma homogeneização da produção se prolonga em homogeneização do consumo que tende a atenuar as barreiras entre as idades.” No início do século XXI percebe-se que a homogeneização visualizada por Morin se encontra em um estágio no qual os temas adultos, infantis, masculinos e femininos se mesclam de forma complexa enquanto existem subdivisões específicas para cada setor etário. Percebe-se que as HQs na década de 1960 continham, em sua maioria, temas infantis, e que hoje existem várias HQs direcionadas para o público adulto. Essa mudança está relacionada à estruturação narrativa desse tipo de texto sincrético. Com base nessa reflexão, esta dissertação visa analisar especificamente os quadrinhos publicados para leitores adultos. Existem muitos quadrinhos publicados para adultos e isso torna necessária a escolha de uma única HQ, produzida para o público adulto, como corpus. HQs produzidas para adultos existem desde a década de 1960, é possível citar autores como o norte-americano R. Crumb, criador de personagens como Fritz the Cat, que se tornou um ícone da contracultura. Esse mesmo autor influenciou quadrinhistas brasileiros, como Angeli, na criação de personagens como Rê Bordosa e Bob Cuspe e também no uso de uma linguagem contraventora. Existem publicações essenciais 12 de HQs produzidas no Brasil e que tinham o público adulto como alvo: revistas como Chiclete com banana e Circo, por exemplo. Destaca-se, também no cenário brasileiro, o trabalho do quadrinhista Lourenço Mutarelli, que trata de temas profundos da condição humana em um estilo, ao mesmo tempo, debochado e compassivo. Há trabalhos europeus que foram essenciais no desenvolvimento estético e temático da linguagem das HQs, como Barbarella, do francês Jean Claude Forest, e Valentina, do italiano Guido Crepax, ambos criados na década de 1960, enfatizam principalmente o erotismo. É preciso destacar a publicação de uma revista francesa que é reconhecida como uma das mais importantes na história das HQs para adultos: a Métal Hurlant. Essa revista, publicada em 1975 pelos artistas Giraud, Druillet, Dionnet e Farkas, é responsável por situar a linguagem das HQs em um patamar mais elevado de qualidade. A contribuição desses autores é percebida tanto na produção de suas histórias e desenhos quanto no material (papel couché e formato grande) no qual a revista, hoje extinta, era impressa. Os desenhistas Giraud (também conhecido pelo pseudônimo de Moebius) e Druillet revolucionaram a linguagem dos quadrinhos europeus (e, conseqüentemente, mundiais, depois da publicação em 1977 da versão norte-americana da Métal Hurlant: a revista Heavy Metal) ao criarem histórias que tinham como base a ficção científica e a fantasia, sempre com elementos eróticos. Moebius e Druillet produziram trabalhos de vanguarda utilizando técnicas da pintura, serigrafia e fotografia para narrar histórias, muitas vezes psicodélicas, ambientadas em universos alienígenas oníricos e lisérgicos. A Métal Hurlant, ao lado da Zap Comix, revista norte-americana criada por R. Crumb na década de 1960, são HQs responsáveis por definir a noção de quadrinhos para adultos porque inovaram em conteúdo e expressão a estrutura desse tipo de texto. Uma grande mudança nas HQs para adultos aconteceu durante a década de 1980, dentro do mercado norte-americano, a partir de obras publicadas pela editora DC Comics. Os quadrinhistas Frank Miller e Alan Moore produziram HQs para adultos sem se aterem ao estilo humorístico ou erótico que predominava nos quadrinhos adultos até então. Miller escreve a obra Batman: The Dark Knight Returns, uma releitura da história de Batman, na qual a personagem enfrenta a própria decadência e encara suas psicopatias. Moore escreve Watchmen, mini-série que é publicada na mesma época de Batman: The Dark Knight Returns e cuja narrativa é uma desconstrução das histórias tradicionais de super-heróis. Além de fazer um uso inovador da técnica narrativa em quadrinhos, Moore explora questões políticas de sua época, como a Guerra 13 Fria, e também se apóia em conceitos científicos, como a teoria matemática do caos, no desenvolvimento de seu texto. A maneira como esses autores trabalharam com os super-heróis – personagens amplamente consumidas na indústria cultural – é semelhante ao trabalho dos pintores da pop art, que reproduziram ícones da sociedade de consumo norte-americana. Ao pensar nas escolas de arte da sociedade ocidental contemporânea, o historiador E. Hobsbawm (1999, p. 496) considera que As imagens que se tornaram ícones de tais sociedades eram as das diversões e consumo de massa: astros e latas. Não surpreende que na década de 1950, no coração da democracia de consumo, a principal escola de pintores abdicasse diante de fabricantes de imagens tão mais poderosas que a arte anacrônica. A pop art (Warhol, Lichtenstein, Rauschenberg, Oldenburg) passava o tempo reproduzindo, com tanta exatidão e insensibilidade quanto possível, os badulaques visuais do comercialismo americano: latas de sopa, bandeiras, garrafas de coca-cola, Marilyn Monroe. Os quadrinhistas Moore e Miller se apropriaram de ícones da sociedade consumista ocidental, como Superman e Batman, e os redefiniram a partir de uma leitura crítica. É importante salientar que esse trabalho de releitura de super-heróis ocorreu no interior da indústria de HQs norte-americana. A contribuição desses autores foi introduzir conceitos inovadores no imenso mercado norte-americano de quadrinhos. Como a indústria norte-americana é uma das mais lidas em todo o mundo, esses trabalhos tiveram enorme repercussão e influenciaram vários outros artistas e também outras mídias, como o cinema. Os trabalhos de Miller e Moore foram publicados em formato de luxo e com destaque para o nome do autor, mais que da personagem, isso consolidou a produção dos quadrinhos de autor na mídia mundial. Na introdução da terceira parte de sua obra Incal, publicada pela primeira vez em 1988, o artista francês Moebius (2006, p. 3) reflete sobre a produção das HQs autorais norte-americanas: Acredito que muitas novidades estão acontecendo nas revistas em quadrinhos nos Estados Unidos, mas acho que é apenas o começo. No dia em que pessoas do calibre de, digamos, um Arthur Miller, um Charles Bukowsky ou qualquer um com esse tipo de talento, entrarem no campo dos quadrinhos, então nós veremos coisas incríveis. Isso ainda não aconteceu, mas acho que acontecerá. Nós, recentemente, vimos o surgimento de uma nova geração de criadores, que começaram a tomar consciência de que os quadrinhos, como uma mídia, podem, realmente, sustentar um material de altíssima qualidade. Mas porque isso é um fenômeno novo nos Estados Unidos, podemos dizer que eles ainda se sentem desconfortáveis com relação ao assunto. [...] Na Europa, no final dos anos 60 e 14 no começo dos anos 70, nós experimentamos o mesmo fenômeno, mas ele ocorreu muito rapidamente, pois era um mercado bem menor, com, acho eu, menos formalidades estabelecidas dentro dele. Os EUA são um país imenso e sinto que as pessoas lá são, geralmente, mais atenciosas com o sistema. Mas quando elas despedaçam as coisas, elas fazem isso pra valer. Nesse dia, nós começaremos a ver algumas coisas incríveis. Depois do sucesso editorial e crítico do trabalho de Moore e Miller, a editora DC Comics, cuja única grande rival era a Marvel Comics, decidiu investir nos quadrinhos para adultos e começou a procurar escritores talentosos para produzi-los. O trabalho de quadrinhistas ingleses, como Moore, atraiu a atenção dos editores norte-americanos no final da década de 1980. Entre esses novos autores britânicos, um dos que mais se destacam é Neil Gaiman e sua série Sandman, produzida e impressa para o público adulto1; ou seria aquilo que Morin chamou de “adulto acriançado”2? Essa questão será esclarecida nas considerações finais dessa dissertação. U. Eco analisou vários textos da indústria cultural na década de 1960, incluindo as HQs Steve Canyon, Superman e Charlie Brown. Eco (1993, p. 19) escreveu sobre os intelectuais que recusavam o estudo de objetos da indústria cultural (chamados de apocalípticos) e sobre aqueles que procuravam entender os produtos culturais da indústria (chamados de integrados): O que [...] se censura ao apocalíptico é o fato de jamais tentar, realmente, um estudo concreto dos produtos e das maneiras pelas quais são eles, na verdade, consumidos. O apocalíptico não só reduz os consumidores àquele fetiche indiferenciado que é o homem-massa, mas – enquanto o acusa de reduzir todo produto artístico, até o mais válido, a puro fetiche – reduz, ele próprio, a fetiche o produto da massa. E ao invés de analisá-lo, caso por caso, para fazer dele emergirem as características estruturais, nega-o em bloco. Quando o analisa, trai então uma estranha propensão emotiva e manifesta um irresoluto complexo de amor-ódio – fazendo nascer a suspeita de que a primeira e mais ilustre vítima do produto de massa seja, justamente, o seu crítico virtuoso. Compreende-se a necessidade de estudar – sem pré-concepções – textos produzidos pela indústria cultural e, com base nessa reflexão, esta dissertação destaca a série Sandman para análise. A série foi publicada em revistas mensais entre os anos de 1988 e 1996. A editora DC 1 A série, publicada pelo selo Vertigo, divisão da editora norte-americana DC Comics, tem a seguinte frase impressa nas capas: Suggested for mature readers (sugerido para leitores adultos – tradução nossa). 2 Em Cultura de Massas no século XX, diz Morin (1969, p. 39): “Pode-se dizer que a cultura de massa, em seu setor infantil, leva precocemente a criança ao alcance do setor adulto, enquanto em seu setor adulto ela se coloca ao alcance da criança. Esta cultura cria uma criança com caracteres pré-adultos ou um adulto acriançado?” 15 Comics, devido em grande parte ao sucesso de Sandman, criou o selo Vertigo, que só publica HQs de caráter adulto. O Brasil foi o primeiro país de língua não inglesa a publicar Sandman. Hoje, a série é reeditada em aproximadamente quarenta idiomas em dez volumes encadernados produzidos com material de luxo. Os primeiros volumes encadernados de Sandman publicados pela editora Conrad, a partir de 2005, no Brasil, esgotaram em menos de três anos após o lançamento. Mesmo com o preço em torno de R$65,00 a R$95,00, quantia alta para os padrões brasileiros, os volumes encadernados já se tornaram raridade entre os colecionadores do gênero. É curioso o fato de a série ter ganhado prêmios que antes eram específicos da literatura de ficção, como o World Fantasy Award, por exemplo. Longe de avaliar a relevância do prêmio, o que realmente importa é compreender a maneira como as HQs (a série Sandman em especial) invadem outros domínios, como o da literatura. Há muitas adaptações de obras literárias para os quadrinhos, mas o que esta dissertação pretende analisar é a forma como as HQs podem estruturar um discurso que se relaciona a elementos da literatura universal. Resta saber quais as conseqüências que decorrem dessa relação entre as HQs e a literatura. Como a série completa é longa serão destacadas, como corpus, duas histórias e uma ilustração. As histórias se chamam Men of Good Fortune e A Midsummer Night’s Dream (HQ vencedora do prêmio literário World Fantasy Award em 1991) e foram publicadas, respectivamente, em Sandman: The Doll’s House e em Sandman: Dream Country. Essas histórias foram escolhidas por conterem elementos que caracterizam toda a série, que foi publicada em 75 edições e sempre foi roteirizada por Gaiman, mas desenhada por vários artistas. A ilustração destacada se chama The Wake e foi publicada no último volume da série. O primeiro capítulo da dissertação contém a discussão teórica dos conceitos semióticos que serão utilizados na análise do corpus. Serão discutidas as bases da semiótica greimasiana, de F. Saussure a L. Hjemslev, o percurso gerativo de sentido proposto por Greimas e o atual desenvolvimento da semiótica tensiva, proposta por C. Zillberberg e J. Fontanille. Ainda no primeiro capítulo será exposto o conceito de figuratividade, o conceito de mito, alicerçado na definição de Roland Barthes, o conceito de semi-simbolismo, segundo J. M. Floch, e também será apresentada a estrutura da linguagem das HQs. O segundo capítulo compreende a análise das HQs Men of Good Fortune e A Midsummer Night’s Dream. Serão analisados, principalmente, os níveis narrativo e discursivo dessas histórias e será destacada a intertextualidade que há entre as HQs de Gaiman e textos da literatura 16 universal, como Hesíodo, Homero, Ovídio, Camões e Shakespeare. As análises também serão conduzidas com base na semiótica plástica proposta por Floch. No último tópico do segundo capítulo será analisada a ilustração The Wake, publicada no volume homônimo. A análise, além do conceito de semi-simbolismo, será também baseada na semiótica passional e na semiótica tensiva. Depois da análise do corpus, será possível tirar conclusões a partir de reflexões sobre o contexto histórico e social no qual o objeto foi produzido. As considerações que E. Hobsbawm faz acerca das transformações na indústria cultural e na sociedade após a década de 1950, em Era dos Extremos, ajudam a entender o impacto das HQs entre o público adulto no final do século XX. As reflexões do sociólogo E. Morin, presentes no livro Cultura de Massas no século XX, também são valiosas nas considerações finais. A importância de se realizar um estudo dos sistemas de significação das HQs ocorre porque são uma forma poderosa de veiculação de valores. Ao considerar que a cultura industrial é constituída, em grande parte, por textos sincréticos, não se pode negligenciar o impacto discursivo das HQs na sociedade de consumo contemporânea. Pretende-se, portanto, neste trabalho, analisar a estrutura desses objetos textuais que surgiram no início do século XX, caracterizados como textos infantis, e entender como se desenvolveram, no final do século XX, as HQs produzidas para adultos. 17 1 SIGNO, SIGNIFICAÇÃO E DISCURSO F. Saussure estabeleceu os princípios teóricos que formam a base da Lingüística contemporânea. Ele obteve sucesso na proposta de criar uma teoria científica capaz de descrever, por meio da própria linguagem, a estrutura de todas as línguas. A obra basilar da Lingüística moderna é o Curso de Lingüística Geral. Este livro, publicado em 1916, não foi escrito por Saussure, que morreu em 1913, trata-se de uma compilação do pensamento do teórico feita pelos seus discípulos. Atualmente, com a descoberta de textos escritos pelo próprio Saussure, muitas questões são esclarecidas no que diz respeito ao trabalho do criador da Lingüística moderna, reconhecido como o “pai do Estruturalismo”. De qualquer maneira, diversas linhas de pesquisa que se desenvolveram no século XX (não só na Lingüística, mas também na Antropologia e na Psicanálise) baseiam suas teorias no Curso de Lingüística Geral, e esse fato atesta sua importância acadêmica. Um dos conceitos teóricos fundamentais apresentados no Curso de Lingüística Geral é o conceito de signo lingüístico. Segundo Saussure (1975, p. 80): O signo lingüístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegarmos a chamá- la “material”, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato. O caráter psíquico de nossas imagens acústicas aparece claramente quando observamos nossa própria linguagem. Sem movermos os lábios nem a língua, podemos falar conosco ou recitar mentalmente um poema. A língua é um sistema de signos, e todo signo se estrutura pela união entre um significante (imagem acústica) e um significado (conceito). Assim, entendemos que o significado (conceito) da palavra cavalo está ligado a diversos significantes (imagens acústicas). As palavras cavalo, cheval ou horse (português, francês e inglês) são formas gráficas com diferentes imagens acústicas (significantes) que remetem a um mesmo conceito (significado). De forma que existem diferentes significantes que remetem a um significado semelhante. Percebe-se que a teoria saussuriana de signo lingüístico se aplica a todas as línguas conhecidas, pois compreendemos que toda língua é estruturada por meio da relação entre um significante e um significado. 18 Saussure (1975, p. 82-83) também chama a atenção para o princípio de arbitrariedade do signo lingüístico. Segundo o teórico, não existe motivação que una o significante ao significado: Assim, a idéia de “mar” não está ligada por relação alguma interior à seqüência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra seqüência, não importa qual; como prova, temos as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes: o significado da palavra francesa boeuf (“boi”) tem por significante b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica, e o-k-s (Ochus) do outro. [...] o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade. Compreende-se que as duas faces do signo, o significante e o significado, não se relacionam por analogia. O conceito não está vinculado à imagem acústica na formação de um signo lingüístico. O princípio de arbitrariedade do signo é problematizado no desenvolvimento das ciências da linguagem. As conseqüências acerca da arbitrariedade do signo serão discutidas adiante. Um dos principais lingüistas a dar continuidade ao trabalho de Saussure é o dinamarquês L. Hjemslev. Sua obra Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem, publicada em 1943, estabelece os princípios fundamentais da Glossemática (da palavra grega glossa – língua), teoria lingüística elaborada por Hjemslev e por seu amigo H. Uldall. Hjemslev fez uso da lógica- matemática para estabelecer uma teoria da linguagem de caráter universal, que compreende a Lingüística como uma espécie de álgebra. Desse modo, o que importa é compreender as relações formais entre os elementos lingüísticos no interior da estrutura da linguagem. Entre os conceitos desenvolvidos por Hjemslev destaca-se o de função, proposto em seu sentido lógico-matemático. Segundo o lingüista dinamarquês, uma função é a inter-relação entre os termos que constituem todo sistema de significação, ou seja, toda semiótica. A função é estabelecida por meio da relação entre termos chamados funtivos: Ao mesmo tempo que adotamos o termo técnico função, desejamos evitar a ambigüidade do uso tradicional no qual ele designa tanto a relação entre dois termos e um ou mesmo ambos esses termos no caso em que se diz que um termo é “função” do outro. É para eliminar essa ambigüidade que propusemos o termo técnico funtivo e que tentamos evitar dizer, como normalmente se faz, que um funtivo é “função” do outro, preferindo a seguinte formulação: um funtivo tem uma função com o outro. (HJEMSLEV, 1975, p. 40) 19 Entende-se que uma função é contraída por meio da relação entre os funtivos. Hjemslev (1975, p. 53-54) desenvolve o conceito de função semiótica e o define como a relação entre dois funtivos: expressão e conteúdo: Adotamos os termos expressão e conteúdo para designar os funtivos que contraem a função em questão, a função semiótica; esta é uma concepção puramente operacional e formal e, nesta ordem de idéias, nenhum outro significado é atribuído aos termos expressão e conteúdo. É a partir desses princípios que Hjemslev irá propor os dois planos da linguagem: o plano da expressão e o plano do conteúdo, fundamentais no desenvolvimento da semiótica greimasiana. O plano da expressão se desdobra em dois extratos: forma da expressão e substância da expressão, assim como o plano do conteúdo também se desdobra em forma do conteúdo e substância do conteúdo. Por exemplo: A) O plano da expressão da palavra avião: 1) A forma da expressão é o conjunto de seus fonemas. É o recorte sonoro compreendido pelos fonemas, que, por sua vez, fazem parte do sistema fonológico da língua. 2) A substância da expressão é o som, que se manifesta na pronúncia dos fonemas da palavra avião. É a manifestação do som já organizado fonologicamente. B) O plano do conteúdo da palavra avião: 1)A forma do conteúdo é a noção de avião (jato, planador, boeing, etc), que também é transmitida pelas formas da expressão avion (francês) e airplane (inglês). 2) A substância do conteúdo é o conceito, que é materializado pelo sistema lingüístico. No caso de avião, a substância é o conceito de “meio de transporte aéreo”, que se organiza na forma do conteúdo. A teoria Glossemática de Hjemslev define o signo como uma função que se contrai na relação entre dois funtivos formais: o plano da expressão e o plano do conteúdo. É esse o conceito lógico-matemático de função semiótica – a relação entre os funtivos expressão e conteúdo – que é fundamental em toda significação ao constituir signos e criar efeitos de sentido. 20 Na Glossemática, as unidades da língua são os termos formais que estruturam a significação, e não os sons e os conceitos, que são elementos extralingüísticos. É o estabelecimento dessa metalinguagem, a idéia de que é possível compreender a linguagem por meio de um método estrutural lógico-matemático, que preparou o caminho para o surgimento da semiótica francesa. Greimas, lingüista lituano, se encarregou do trabalho de criar uma teoria semiótica cuja eficácia analítica abrangesse todos os sistemas de significação. Entende-se significação como a apreensão das relações entre os elementos da linguagem: é o ato por meio do qual o mundo faz sentido, significa. De modo que a significação é um conceito primordial na relação entre homem e mundo. Assim, a semiótica conceitua o texto como um conjunto formal de significação que se manifesta em diversas substâncias da expressão: verbais, visuais, áudio-visuais, esculturais, arquitetônicas, etc... Como pesquisador do folclore lituano, Greimas percebeu que, subjacente às narrativas, havia uma estrutura lógica que organizava a manifestação dos textos. Caberia à semiótica francesa formalizar o percurso gerativo de sentido em níveis: - Nível fundamental: no qual se situam as relações lógicas – representadas por caracteres simbólicos – com investimento semântico mínimo; - Nível narrativo: no qual ocorre a organização e o desenvolvimento semântico dos elementos lógicos que estruturam a narrativa; - Nível discursivo: no qual os níveis anteriores se manifestam temática e figurativamente, nele se examinam os investimentos mais concretos, que são manifestados em diversos textos: verbais, visuais, sincréticos etc. Neste nível, o sujeito da enunciação – produtor do discurso – organiza as estruturas narrativas em categorias discursivas de pessoa, tempo e espaço. Segundo Greimas (1975, p. 12): É através de uma via estreita, entre duas competências indiscutíveis – a filosófica e a lógico-matemática –, que o estudioso de semiótica é obrigado a conduzir sua pesquisa sobre o sentido. [...] É preciso, para satisfazer às reais necessidades da semiótica, dispor de um mínimo de conceitos epistemológicos explicitados que permitam ao estudioso de semiótica apreciar, quando se trata da análise das significações, a adequação dos modelos que lhe são propostos ou que ele constrói para si. 21 O semioticista, ao se aventurar em um terreno tão vasto, que é o da significação, deve se orientar por meio da filosofia e da lógica-matemática para efetuar seu trabalho. O conhecimento dos princípios científicos já estabelecidos também é fundamental para que se entenda em que medida o modelo teórico proposto é adequado à análise de certo objeto. Ao tomar para si a significação como campo de estudo, a semiótica precisa definir em qual domínio epistemológico se situam os objetos a serem analisados. Em Semântica Estrutural, obra fundamental da semiótica européia, publicada em 1966, Greimas (1976, p. 27) afirma: A única forma de focalizar, atualmente, o problema da significação, consiste em afirmar a existência de descontinuidades, no plano da percepção, e dos espaços diferenciais (como o fez Lévi-Strauss), criadores de significação, sem se preocupar com a natureza das diferenças percebidas. Greimas salienta que, para trabalhar a significação, é preciso apreender as descontinuidades que podem ser identificadas no campo da percepção. Entende-se por descontinuidade o momento em que ocorre a ruptura na continuidade entre uma unidade significativa e outras unidades relacionadas: um fenômeno é recortado do universo contínuo no qual está diretamente relacionado a outros fenômenos. De modo que os objetos semióticos são identificados por meio dos sentidos fisiológicos no campo da percepção, no sentido filosófico que lhe atribui a fenomenologia. A corrente filosófica fenomenológica é fundamental no desenvolvimento da semiótica greimasiana e é no plano da percepção que os objetos semióticos são situados. A semiótica compreende as formas físicas, químicas e biológicas como objetos que são percebidos pelo homem por meio de suas qualidades sensíveis. Esses objetos são compreendidos como partes constituintes do mundo natural (Em semiótica, opõem-se línguas naturais e mundo natural para ressaltar a anterioridade deste último em relação às línguas e aos indivíduos. Tanto as línguas naturais quanto o mundo natural são considerados macrossemióticas). O mundo natural interessa ao semioticista no momento em que seus objetos significam algo no universo da linguagem, de maneira que esses objetos deixam de ser simples elementos do mundo natural e passam a ser considerados textos. Assim, uma rocha – elemento do mundo natural – torna-se um texto quando um escultor a trabalha e lhe concede significado, mas a própria ação da natureza pode tornar uma rocha semelhante a uma figura cultural, o que justifica considerar esse objeto natural como um texto. 22 Entende-se que os objetos dotados de significação são percebidos pelos sentidos fisiológicos e podem tornar-se objetos de estudo para o semioticista, desde que o pesquisador se aproprie do objeto discreto – isto é, em seu caráter descontínuo – e o articule ao instrumental dos conceitos teóricos estabelecidos. A proposta de trabalhar somente com fenômenos descontínuos e objetos discretos é um princípio estruturalista que é problematizado no desenvolvimento da semiótica. Adiante, serão expostas as propostas semióticas que buscam ocupar-se da significação em devir e do discurso em ato. No nível fundamental do percurso gerativo, identifica-se a oposição entre os termos mais simples e abstratos que estruturam a significação. Uma oposição fundamental como vida versus morte pode ser representada pela oposição entre termos lógicos como s1 versus s2, sendo que s1 se refere à vida e s2 se refere à morte. Essa oposição semântica fundamental estrutura o sentido de um texto, de forma que o percurso gerativo de sentido pode partir de s1 (vida) passar por não- s1 (não-vida) e afirmar s2 (morte). Nesse caso, o sentido do texto afirma a vida em s1, nega a vida em não-s1 e conclui ao afirmar a morte em s2. Entende-se que, nesse percurso, a morte predomina e a vida é negada. Ao considerar o desenvolvimento das pesquisas de Propp e Lévi-Strauss sobre a narratividade, Greimas (1675, p. 144) teoriza uma semiótica que expõe a organização das estruturas narrativas. O teórico lituano considera que as estruturas narrativas são essenciais na produção dos discursos, pois a articulação dos elementos que compõem o nível discursivo ocorre no nível narrativo. Assim, para que a semiótica estabeleça o nível discursivo é preciso que ela formalize o nível narrativo. Greimas (1976, p. 26) considera que a notação técnica – cifras e caracteres simbólicos –, adotada para representar as estruturas lógicas, possibilita criar um modelo formal que manipula os conteúdos organizados sem se identificar com eles. Desse modo, torna-se possível estabelecer uma teoria da narrativa que descreva as articulações e transformações entre elementos lógicos como S1 e S2 (sujeitos), O (objetos) e v (valores), que podem ser relacionados por termos como � (que indica transformação), � (que significa conjunção) e U (que significa disjunção). Estes conceitos permitem examinar, de forma lógica, a organização das estruturas narrativas. Visualiza- se uma metalinguagem que permite trabalhar a narratividade. 23 Os termos S1, S2, e O são considerados unidades formais que ainda não receberam investimento semântico e são chamados de actantes. O nível narrativo se desdobra em sintaxe narrativa e semântica narrativa. No nível da sintaxe narrativa os actantes relacionam-se em encadeamentos lógicos: em determinada narrativa S1 (sujeito 1) transformará (�) S2 (sujeito 2) ao tornar este conjunto (�) ou disjunto (U) de um O (objeto). No nível da semântica narrativa os actantes relacionam-se com valores (v), que podem se inscrever nos objetos. Por exemplo: Na história mítica de Sansão, herói dos judeus3, S1 (Sansão) é um actante que está conjunto de um objeto (cabelos) que lhe fornece um valor (força). Este enunciado de estado pode ser formalizado como: S1 � Ov. O estado de conjunção é transformado no momento em que Dalila (S2) seduz o herói e lhe corta os cabelos, privando-o da força. De forma que S2 transforma (�) S1 tornando-o disjunto (U) de um objeto valor (Ov). No nível da semântica narrativa também ocorrem as modalizações, que são responsáveis por modificar as relações entre os actantes. A existência modal do sujeito de estado e sua relação com valores (v) como ódio, inveja, ciúme, etc. é denominada modalização do ser. A competência modal do sujeito do fazer, sujeito dinâmico que se define pelos enunciados de ação4, é denominada modalização do fazer. São previstas quatro modalidades que definem tanto a modalização do ser quanto a modalização do fazer: o querer, o dever, o poder e o saber. Por exemplo: Dalila é modalizada pelo querer-ser aquela que descobrirá a fonte da força de Sansão. De forma que, no nível narrativo, os actantes desempenham papéis actanciais; na história de Sansão, o papel actancial de S2 (Dalila) é definido pelo investimento modal querer-ser. Na narrativa bíblica, os príncipes dos filisteus oferecem dinheiro a Dalila para que ela revela a fonte da força de Sansão. De forma que ocorre uma modalização do ser pelo valor ambição. Ela se apropria de um saber-fazer no momento em que descobre a fonte da força do herói que, seduzido, revela que são os cabelos que lhe conferem tamanha força. O saber-fazer possibilita o poder- fazer, que, neste caso, diz respeito ao ato de cortar os cabelos de Sansão. Devido a esta modalização do fazer o herói é privado de sua força. 3 História bastante conhecida, que está presente, de forma verbal, no texto bíblico de Juízes – capítulo 13 –, e que pode se manifestar em vários textos como o cinema, o teatro, a pintura, a música, etc. 4 Em que se encadeiam vários enunciados de estado e várias transformações. 24 O querer-ser e o saber-fazer que modalizam Dalila, tornando-a competente para realizar sua performance na narrativa, transformam o estado de conjunção entre Sansão e seu objeto valor em estado de disjunção. Distingue-se um PN (programa narrativo) que pode ser formalizado como: - PN = F (função) [S2 � (S1 U Ov)] Neste PN a performance de Dalila (S2) predomina sobre a de Sansão (S1), de forma que Dalila é o sujeito do fazer e Sansão é o sujeito do estado. Compreende-se que em um texto em que se encadeiam vários PN ocorrem várias transformações e circulam vários objetos e valores, de forma que a história se estrutura na ação e nas modalizações do fazer. Ao contrário, um texto com poucas transformações entre sujeitos e objetos, em que ocorre pouca ação, se organiza em torno do estado passional do ser. O nível discursivo é a etapa mais superficial do percurso gerativo de sentido e é por meio da enunciação que o nível narrativo se converte em nível discursivo. No nível do discurso ocorre uma circulação de enunciados entre interlocutores, que são denominados enunciador e enunciatário. O destinador da enunciação é denominado enunciador e o destinatário é denominado enunciatário. Segundo Greimas e Courtés (2008, p. 171): [...] o enunciatário não é apenas destinatário da comunicação, mas também sujeito produtor do discurso, por ser a “leitura” um ato de linguagem (um ato de significar) da mesma maneira que a produção do discurso propriamente dito. O termo “sujeito da enunciação”, empregado freqüentemente como sinônimo de enunciador, cobre de fato as duas posições actanciais de enunciador e de enunciatário. O sujeito da enunciação produz o discurso ao organizar as estruturas narrativas em categorias de pessoa, tempo e espaço. De forma que o discurso estabelece a comunicação entre enunciador e enunciatário. Entende-se que o sujeito da enunciação se projeta no texto e deixa marcas lingüísticas que permitem reconstruir a enunciação. A história mítica de Sansão é compreendida como o discurso de uma civilização do antigo oriente próximo e as categorias de pessoa, tempo e espaço do enunciado estruturam-se segundo a linguagem de determinado sujeito da enunciação. O discurso do mito de Sansão é enunciado, originalmente, conforme a estrutura da antiga língua hebraica. 25 O nível discursivo compreende a manifestação temática e figurativa das estruturas narrativas. Os temas são revestidos por figuras, elementos que tornam os temas concretos no discurso. As figuras sugerem elementos do mundo natural, no campo da percepção, o que produz efeitos de sentido e ilusões de realidade no discurso. Os temas não sugerem elementos do mundo natural, pois são mais abstratos que as figuras. Por exemplo: Nas HQs do Superman percebe-se o tema do nacionalismo norte-americano concretizado na figura do herói, cujo uniforme é colorido por duas cores que se destacam na bandeira dos E.U.A. (azul e vermelho). O Superman é modalizado por uma competência extraordinária, pois seus superpoderes o qualificam com um quase ilimitado poder-fazer. O super-herói usa seus superpoderes para salvar a humanidade, o que pode ser entendido como um discurso do poder político norte-americano de policiamento do mundo. Segundo a teoria semiótica, o actante que acumula um papel actancial, no nível narrativo, e um papel temático, no nível discursivo, passa a ser classificado como ator. Na história do Superman, no nível narrativo, o actante desempenha um papel actancial no momento em que é modalizado pelo poder-fazer e, no nível discursivo, o actante assume o papel temático do heroísmo e torna-se um ator. Chama-se a atenção para a importância do contexto histórico em que o discurso é produzido. Compreende-se que tanto a estrutura narrativa da história de Sansão quanto a estrutura narrativa da história do Superman manifestam-se em discursos heróicos, mas com diferentes percursos temáticos e figurativos. O mito de Sansão está relacionado aos elementos discursivos específicos do povo judeu e o herói recebe poderes do deus dessa cultura. A semiótica denomina a axiologia positiva do discurso de euforia e nomeia a axiologia negativa de disforia. O discurso judeu euforiza Sansão como um herói com poderes divinos e disforiza os filisteus ao retratar esse povo como traiçoeiro e dissimulado. A história do Superman é produzida por uma sociedade industrial capitalista e é a indústria de entretenimento norte-americana que veicula os textos sincréticos que contam esta história. O discurso norte-americano euforiza o Superman ao investi-lo de valores como a ética do homem do campo (o super-herói é criado por um casal de idosos em uma fazenda no interior dos E.U.A.), de modo que um valor específico da cultura norte-americana busca se afirmar como valor universal de um salvador da humanidade. A supremacia do poder bélico e o valor universal da moral norte-americana são efeitos de sentido do discurso heróico em Superman. 26 O desenvolvimento tecnológico das condições de produção de textos na contemporaneidade possibilita uma relação entre enunciador e enunciatário de alcance cultural muito mais amplo que na Antigüidade. A história de Sansão foi recontada em versões cinematográficas pela indústria cultural norte-americana e circulou na mídia mundial, mas, na antiga sociedade judaica em que surgiu, sua veiculação era restrita porque a produção material de textos era rudimentar. A história do Superman foi produzida na primeira metade do século XX e, neste mesmo período, circulou na mídia mundial. Mas os mitos bíblicos, como o de Sansão, são uma base cultural muito forte e moldaram diferentes culturas, enquanto a história do Superman ainda é um elemento cultural muito recente. Compreende-se que a passagem do tempo, juntamente com fatores sociais e políticos, estabiliza o mito na cultura. Esse breve apanhado do percurso gerativo de sentido mostra a semiótica em sua fase estrutural. A semiótica estrutural faz uso de um sistema formal, sob a forma de caracteres simbólicos, para tratar a significação em sua forma descontínua, mais fixa. No entanto, a formalização não leva em conta as propriedades sensíveis e afetivas dos sujeitos e objetos semióticos. Greimas e Fontanille consideram que a semiótica deve trabalhar não só objetos discretos, mas deve também dar conta da significação em devir e do discurso em ato. No livro Semiótica das Paixões – dos estados de coisas aos estados de alma, de 1991, Greimas e Fontanille (1993, p. 14 e 15) ponderam: [...] a semiótica da ação, atribuindo o status formal aos conceitos de actante e de transformação, condição para a instauração de sua sintaxe, não fez outra coisa senão deslocar a problemática dos investimentos semânticos, descarregando-se sobre a noção de estado. Ora, o estado, na perspectiva do sujeito que age, é ou o resultado da ação, ou seu ponto de partida: haveria, portanto, “estado” e “estado”, e as mesmas dificuldades ressurgem; o estado é antes de mais nada um “estado de coisas” do mundo que se acha transformado pelo sujeito, mas é também o “estado de alma” do sujeito competente em vista da ação e a própria competência modal, que sofre ao mesmo tempo transformações. Com base nessas duas concepções do “estado”, reaparece o dualismo sujeito/mundo. Apenas a afirmação de uma existência semiótica homogênea – tornada tal pela mediação do “corpo que sente” – permite enfrentar essa aporia: graças a essa transmutação, o mundo enquanto “estado de coisas” vê-se rebaixado ao “estado do sujeito”, isto é, reintegrado no espaço interior uniforme do sujeito. Os semioticistas consideram que os dois estados – o estado de coisas do mundo e o estado de alma do sujeito – são unidos por meio da mediação do corpo que sente. O conceito fenomenológico de corpo é fundamental no desenvolvimento da semiótica das paixões e da 27 semiótica tensiva, que trabalha as variações de tensão entre o sensível e o inteligível. A semiótica retoma conceitos da fenomenologia – com base principalmente nas reflexões do filósofo Merleau-Ponty – e o estudo da atividade sensório-motora passa a ser fundamental no conhecimento da significação. A semiótica tensiva, desenvolvida pelos trabalhos recentes de C. Zilberberg e J. Fontanille, se concentra no estudo da interação entre o sensível e o inteligível na produção de sentidos. O sensível é o campo das presenças sensoriais e o inteligível é o campo do entendimento e da compreensão. A sintaxe do discurso é um encadeamento e uma sobreposição de atos que conjuga a dimensão da intensidade (sensível) e a dimensão da extensidade (inteligível). As tensões entre sensível e inteligível ocorrem no campo da percepção e definem o modo como o corpo sofre a experiência da significação. Ao tratar dos dois planos da linguagem – plano da expressão e plano do conteúdo – Fontanille (1993, p. 14 e 15) pondera: Os dois planos da linguagem substituem, a partir de agora, as duas faces do signo. Sejam quais forem os nomes que se lhes dê, os dois planos da linguagem são separados por um corpo perceptivo que toma posição no mundo do sentido, que define, graças a essa tomada de posição, a fronteira entre o que será da ordem da expressão (o mundo exterior) e o que será da ordem do conteúdo (o mundo interior). É também esse corpo que reúne esses dois planos em uma mesma linguagem. Portanto, o sensível e o inteligível estão irremediavelmente ligados no ato que reúne os dois planos da linguagem. Fontanille (2007, p. 44) retoma e desenvolve os conceitos de exteroceptividade, interoceptividade e proprioceptividade a partir da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty. A exteroceptividade é a percepção do mundo exterior, é o modo como o corpo percebe as formas físicas e biológicas do mundo natural (plano da expressão) e a interoceptivade é o momento em que o corpo percebe seu mundo interior: afetos, conceitos e sensações (plano do conteúdo). A proprioceptividade é a posição do sujeito da percepção, que experimenta a significação a partir de seu corpo próprio, que é um invólucro sensível, uma fronteira entre o domínio interior e o domínio exterior. O corpo próprio é mais que um mediador entre a exteroceptividade e a interoceptividade e sua atividade sensório-motora interfere na significação. O corpo percebe o ambiente que o interpela e converte as figuras do mundo (exteroceptivas) em figuras interiores (interoceptivas), que são equivalentes às figuras exteriores, mas que estão contaminadas pela dimensão patêmica (proprioceptiva) do corpo sensível. Além do corpo exterior (exteroceptivo) e do corpo interior (interoceptivo) o conceito de corpo próprio (proprioceptivo) define o momento em que o sujeito experimenta a significação em uma instância de legítima individualidade. 28 Assim, um mesmo discurso é entendido de maneiras diferentes por vários sujeitos porque cada um deles possui um corpo próprio que define um momento de sentido único. A proprioceptividade é a instância em que a sensibilidade singular – individualidade corpórea – do sujeito irá definir o sentido de um discurso. Para que se entenda melhor o modo como a semiótica trabalha a interação entre o sensível e o inteligível é importante discutir o conceito de presença. Segundo Fontanille (2007, p. 47): Perceber algo – antes de conhecer esse algo como uma figura pertencente a uma das macrossemióticas – é perceber mais ou menos intensamente uma presença. De fato, antes de identificar uma figura do mundo natural, ou ainda uma noção ou um sentimento, percebemos (ou “pressentimos”) sua presença, ou seja, algo que, por um lado, ocupa uma certa posição (relativa a nossa própria posição) e uma certa extensão e que, por outro lado, nos afeta com alguma intensidade. Algo, em suma, que orienta nossa atenção, que a ela resiste ou a ela se oferece. Assim, a presença é compreendida como uma articulação semiótica da percepção. A intensidade sensorial que nos coloca em relação com o mundo, de natureza tensa, se situa no domínio da visada. A compreensão inteligível dos fenômenos, de qualidade extensa, se caracteriza pelo relaxamento cognitivo e se situa no domínio da apreensão. De modo que a presença suscita duas operações semióticas no plano da percepção: a visada (intensa) e a apreensão (extensa). Nesse sentido, os conceitos de visada e apreensão são compreendidos a partir de um ponto de vista fenomenológico: Como é uma tomada de posição sensível, destinada a instalar uma área de referência, ela consiste também em uma tomada de posição sobre as grandes dimensões da sensibilidade perceptiva: a intensidade e a extensão. No caso da intensidade, dir-se-á que a tomada de posição é uma visada; no caso da extensão, uma apreensão. A visada opera sobre o modo da intensidade: o corpo próprio vai, então, em direção àquilo que nele suscita uma intensidade sensível (perceptiva, afetiva). A apreensão opera, em contrapartida, sobre o modo da extensão: o corpo próprio percebe as posições, as distâncias, as dimensões e as quantidades. (FONTANILLE, 2007, p. 98) Zilberberg e Fontanille desenvolveram esquemas que possibilitam analisar a interação enunciativa entre a sensibilidade e a inteligibilidade, estes esquemas são uma das bases da semiótica tensiva. Os esquemas tensivos representam as variações de tensão no campo de presença da percepção, de forma que a significação é gerada a partir de tensões na atividade 29 sensório-motora. O domínio sensorial-afetivo (sensível) é identificado na evolução do eixo da intensidade e o domínio racional-quantitativo (inteligível) é reconhecido no desdobramento do eixo da extensão (este eixo também representa o desdobramento espaço-temporal). As variações de equilíbrio entre o sensível e o inteligível podem conduzir ao aumento da tensão afetiva ou ao relaxamento cognitivo. São teorizados quatro esquemas elementares para observar a interação tensiva entre sensível e inteligível: 1º movimento – Esquema da decadência: Orienta-se a partir do eixo da intensidade na direção do eixo da extensão, parte do sensível para o inteligível. Pode-se compreender esse esquema na edição de um filme que enquadra o rosto de um ator em um close-up, para destacar um estado emocional, e que depois amplia o campo para enquadrar o cenário e outros atores em um plano panorâmico. Essa edição parte da intensidade, do sensível, e se desdobra na extensão, no inteligível. Esquema 1 – Esquema da decadência Fonte: Fontanille (2007, p. 111) 2º movimento – Esquema da ascendência: Orienta-se a partir do eixo da extensão na direção do eixo da intensidade, parte do inteligível para o sensível. É o contrário do exemplo anterior: seria uma edição de filme que parte de um plano amplo, extenso, que enquadra uma paisagem e vários atores, e se aproxima do rosto de um único ator para enquadrar um estado emocional intenso. 30 Esquema 2 – Esquema da ascendência Fonte: FONTANILLE (2007, p. 111) 3º movimento – Esquema da amplificação: O sensível e o inteligível crescem em conjunto. Esse movimento parte de um mínimo de intensidade e de uma extensão fraca e se desenvolve em uma tensão máxima juntamente com o desdobramento da extensão. É o que acontece em várias sinfonias, que se iniciam com um solo tocado de forma suave por um único instrumento e se desenvolvem até a explosão do conjunto intenso de todos os instrumentos. Esquema 3 – Esquema da amplificação Fonte: FONTANILLE (2007, p. 112) 31 4º movimento – Esquema da atenuação: É o declínio geral da intensidade-sensível e da extensão-inteligível. Tanto o sensível quanto o inteligível estão no grau mais baixo, na zona mais tênue, esta seria a zona do apagamento das figuras, mas onde é possível surgirem novas formas semióticas. É o caso da filosofia zen-budista, que busca a atenuação do sensível, o apagamento dos sentidos, e também o apagamento do inteligível por meio do “não-pensar”. É também nesta zona de apagamento que o zen-budista pode alcançar a iluminação, que seria uma nova forma semiótica. Esquema 4: Esquema da atenuação Fonte: FONTANILLE (2007, p. 112) Estes são os esquemas desenvolvidos para delimitar as variações tensivas e que formam o esquema da práxis enunciativa, que será explicado e aplicado no quarto tópico do segundo capítulo desta dissertação. 1.1 Figuratividade O homem sempre representou os objetos do mundo de forma figurativa. A comunicação escrita se desenvolveu a partir de representações em imagens de elementos do mundo natural. A relação entre o homem e as imagens provoca reflexões filosóficas desde a Antigüidade. O 32 filósofo Aristóteles (1999, p.40) já refletia sobre os sentimentos suscitados pelas imagens há mais de dois milênios, como se vê no seguinte trecho de sua obra Poética: [...] temos prazer em contemplar imagens perfeitas das coisas cuja visão nos repugna, como (as figuras dos) animais ferozes e dos cadáveres. O aprendizado apraz não só os filósofos, mas também aos demais homens, embora a estes ele seja menor. Se olhar as imagens proporciona deleite, é porque a quem contempla sucede aprender e identificar cada uma delas; dirão, ao vê-la, “esse é Fulano”. Se acontecer de alguém não ter visto o original, nenhum prazer despertará a imagem como coisa imitada, mas somente pela execução, ou pelo colorido, ou por alguma outra causa da mesma natureza. É importante ressaltar que a semiótica entende que a língua não aponta para um referente do mundo natural, já que compartilha da conceituação saussuriana de signo e não da concepção aristotélica de signo, que considera o referente na língua. Na breve reflexão destacada acima, Aristóteles faz interessantes observações sobre o universo das artes plásticas. O filósofo observa que figuras como as de animais ferozes ou de cadáveres, que tendem a causar repulsa ao observador, são revestidas de beleza ao serem recriadas por meio do trabalho artístico. Este trabalho estético se concretiza em um plano de expressão visual que proporciona prazer ao observador e não mais repulsa. Aristóteles também enfatiza que a imagem desperta efeitos de sentido mesmo se o observador não conhecer o original representado, de forma que se compreende que a imagem não remete diretamente a um objeto do mundo natural, mas sugere elementos do mundo no campo da percepção. O que o filósofo enfatiza, é o caráter estético do texto visual e a maneira pela qual o cromatismo transmite significados sem fazer referência direta aos objetos do mundo. Na teoria semiótica, as representações de elementos do mundo natural são tratadas no nível da figuratividade. A teoria semiótica desenvolveu muitos conceitos emprestados de outras disciplinas. O conceito de figuratividade é procedente da teoria estética. Sobre a figuratividade, Bertrand (2003, p. 154) afirma: Tal categoria descritiva é oriunda da teoria estética, que opõe, como todos sabem, a arte figurativa e a arte “não figurativa” ou “abstrata”. Sugere espontaneamente a semelhança, a representação, a imitação do mundo pela disposição das formas numa superfície. Ultrapassando porém o universo particular da expressão plástica que o viu nascer, o conceito semiótico de figuratividade foi estendido a todas as linguagens, tanto verbais quanto não- verbais, para designar esta propriedade que elas têm em comum de produzir e 33 restituir parcialmente significações análogas às de nossas experiências perceptivas mais concretas. O conceito de figuratividade em semiótica é estendido a todas as linguagens e não só às linguagens com motivação estética e plástica. Ocorre figuratividade quando a linguagem (verbal ou não-verbal) sugere elementos do mundo natural no campo da percepção. Na teoria semiótica surge primeiro o conceito de figura para, só depois, ser desenvolvido o de figuratividade. Segundo Teixeira (2004, p. 230): Considerando o percurso gerativo e, no nível discursivo, o componente semântico, a teoria desenvolveu a distinção entre temas e figuras. Os temas dizem respeito a categorias abstratas de organização do mundo, enquanto as figuras referem-se às sensações, a elementos concretos. A distinção entre temas e figuras já foi apresentada neste trabalho. Os temas são elementos abstratos que se concretizam em figuras no nível discursivo. O corpo e a percepção são entendidos como instâncias fundamentais na produção de sentidos figurativos. Segundo Teixeira (2004, p. 231): A figuratividade, assim, instaura a fratura do contínuo, põe em cena um corpo em relação de disjunção com o mundo: ‘É pela mediação do corpo que percebe que o mundo transforma-se em sentido’ (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p.13). Esse corpo que percebe e começa a dar sentido ao espaço que habita identificando algumas oposições fundadoras é também um corpo que se atribui um lugar, um modo de estar no mundo. O corpo percebe o vínculo entre a figura e o elemento do mundo e também percebe a oposição entre a representação figurativa e o elemento natural, essas relações são sensoriais e não remetem ao referente do mundo natural. O sentido é instaurado nessa relação intermediária entre mundo natural e corpo que percebe. O corpo se reconhece como um elemento do mundo e também identifica o modo como os efeitos de sentido do mundo estabilizam-se na linguagem. A figuratividade instaura um rompimento entre os elementos do mundo natural e suas representações. Percebe-se a figuratividade nas HQs de super-heróis na medida em que o mundo fictício no qual se passam as histórias (como a cidade de Gotham City nas histórias de Batman) é estruturado por meio de vínculos com o mundo sócio-cultural. Na arquitetura de Gotham City 34 destacam-se os estilos Gótico e Art Noveau. A figuratividade gera a sugestão perceptiva de que Gotham City é um lugar palpável. O universo discursivo das HQs de Batman concretiza temas e figuras semelhantes aos do mundo cultural e a narrativa sincrética se desenvolve no espaço- tempo de uma metrópole figurativizada. Teixeira (2004, p. 232) escreve que o sentido não é somente instaurado pelo corte e pela fratura com o mundo, pois o funcionamento da linguagem nos mostra que a intensidade das manifestações lingüísticas, como a que ocorre na música, é também parte da experiência semiótica: A continuidade, o acúmulo, a repetição, por exemplo, conferem intensidade à atuação do pianista, que pode atingir o ouvinte com mais impacto e portanto, chamá-lo para novos sentidos do mundo, quanto mais puder apurar a emoção e o refinamento técnico de sua execução. [...] É também a intensidade da reiteração que congrega em torno de um estilo obras produzidas numa determinada circunstância histórica. Tome-se, por exemplo, o conjunto de pinturas que inauguram o impressionismo. Ainda que preservando a figuração da paisagem e das pessoas, o novo modo de pintar, a pincelada aparente, a luminosidade, o cromatismo que clareia a paleta, a gestualidade que dilui contornos para ressaltar o movimento e a cor – todos esses procedimentos se expandem em telas de diferentes assinaturas, em diversos lugares, para constituir um estilo, uma outra maneira de dar sentido ao mundo da pintura. Cria-se uma figuratividade impressionista que ultrapassa, então, sua origem francesa e seu período de aparição e maior exuberância, para ser atribuída a qualquer pintura que retome suas qualidades essenciais, digamos, seu fundo figural de base. Quanto mais emoção e apuramento técnico forem empregados na execução de um enunciado, mais significados são instaurados e a rede figurativa adquire maior riqueza de sentidos. A personagem Superman é estruturada por meio do acúmulo de traços mítico- figurativos: a repetição de temas como o heroísmo e o nacionalismo norte-americanos se manifesta tanto nas cores do uniforme da personagem quanto no seu papel de salvador da humanidade. A composição gráfica das HQs é baseada na conjugação entre texto verbal e texto visual. A articulação desses dois tipos de linguagens – a verbal e a visual – é uma manifestação de intensidade lingüística, pois o plano de expressão verbal exprime vários sentidos que são reunidos ao conjunto de significados presentes no plano de expressão visual. Esse é um dos princípios básicos do processo de criação de textos sincréticos. Teixeira também destaca como o movimento impressionista na pintura ultrapassa sua origem francesa e se torna um estilo que não é caracterizado somente pelo período em que surge 35 na França. O impressionismo se caracteriza também pelas qualidades presentes nas pinturas que compartilham as mesmas características e apuramento técnico que se tornaram marcas essenciais do estilo impressionista francês. Esse estilo, assim consagrado, não é mais caracterizado por uma nacionalidade, mas sim pela sua plasticidade específica. Essa última reflexão nos faz pensar na forma pela qual as HQs se concretizam em determinados estilos como os fumetti (quadrinhos produzidos em série na Itália) e os mangás (quadrinhos produzidos pela indústria japonesa). O estilo mangá se distingue por desenhos que expressam um intenso efeito de movimentos e também pela pouca quantidade de texto escrito. Histórias predominantemente visuais são uma particularidade dos mangás. Em 1983 a editora DC Comics publica a mini-série Ronin, escrita e desenhada pelo quadrinhista norte-americano F. Miller. Essa obra foi republicada no Brasil em 2003 pela Opera Graphica Editora com a seguinte apresentação escrita nas capas: “O primeiro mangá americano”. O autor utilizou as mesmas técnicas visuais empregadas nos mangás para criar os desenhos e o ritmo da narrativa em Ronin. Os mangás ultrapassaram sua origem na indústria japonesa e se tornaram um estilo que não se restringe só ao Japão, pois se caracteriza principalmente por técnicas singulares de narrativa visual. A instauração figurativa do estilo mangá ocorre de maneira semelhante à forma pela qual o impressionismo na pintura transpõe sua origem francesa e se torna identificável por meio de suas particularidades estilísticas, que são o que Teixeira (2004, p. 232) chama de “fundo figural de base”. Ao se compreender a recorrência de temas e figuras nas HQs, entende-se que o conceito de figuratividade é um alicerce teórico fundamental no estudo da significação dos textos sincréticos. O corpus escolhido, a série Sandman, caracteriza-se pela figuratividade de mitos clássicos (das lendas gregas e medievais) mesclados com elementos contemporâneos, o que evidencia a figuratividade no texto. 36 1.2 Mito Com o desenvolvimento cada vez mais avançado da comunicação visual, principalmente por meio da Internet, o discurso mítico se perpetua em vários planos de expressão. Na sociedade contemporânea, caracterizada por um grande desenvolvimento tecnológico, como o mito se faz presente? Qual a importância de se estudar o mito no mundo atual? A mitologia foi explorada por vários campos do conhecimento (como a Antropologia e a Psicanálise) e essa conceituação de mito se baseia em definições das ciências da linguagem. Entre os teóricos que trabalharam o conceito de mito destaca-se R. Barthes, responsável por desenvolver uma semiologia – e demonstrar sua aplicação em vários textos visuais e sincréticos – a partir do trabalho de Saussure. No momento em que se entende o mito como linguagem, concorda-se com a definição de Barthes (2004, p. 232), que conceitua o mito como fala: Naturalmente, não é uma fala qualquer. São necessárias condições especiais para que a linguagem se transforme em mito [...] Mas o que se deve estabelecer solidamente desde o início é que o mito é um sistema de comunicação, uma mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito ou uma idéia: ele é um modo de significação, uma forma. [...] Seria, portanto, totalmente ilusório pretender fazer uma discriminação substancial entre os objetos míticos: já que o mito é uma fala, tudo pode constituir um mito, desde que seja suscetível de ser julgado por um discurso. [...] Logo, tudo pode ser mito? Sim, julgo que sim, pois o universo é infinitamente sugestivo. Cada objeto do mundo pode passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade, pois nenhuma lei, natural ou não, pode impedir-nos de falar das coisas. Barthes discute que o mito, devido a sua natureza lingüística, pode se inscrever em qualquer objeto do mundo natural. Na Grécia Antiga, um fenômeno natural, como o relâmpago, é destituído de sua relação com a natureza e passa a ser relacionado a Zeus, deus portador do raio. De forma que qualquer elemento da linguagem pode se tornar um mito, desde que haja investimento significativo nas formas físicas e biológicas do mundo natural. Assim, essas representações figurativas de elementos do mundo (que a semiótica não considera como referentes, mas como sugestões perceptivas) são mitificadas e adaptadas ao consumo de certa sociedade. Mas uma sociedade cuja comunicação tecnológica está em pleno desenvolvimento poderia gerar mitos comparáveis aos mitos da Antigüidade Clássica? 37 O livro Mitologias, de Barthes, surge em 1957, época em que a televisão e a indústria cinematográfica já haviam se estabelecido e faziam circular, mundialmente, uma grande quantidade de imagens. Em um dos capítulos de Mitologias, cujo título é O rosto de Garbo, Barthes (2003, p. 72) analisa o rosto da atriz Greta Garbo: O rosto de Garbo representa o momento frágil em que o cinema está prestes a extrair uma beleza existencial de uma beleza essencial, em que o arquétipo está se dirigindo ao fascínio pelos rostos perecíveis, em que a clareza das essências carnais cederá o seu lugar a uma lírica da mulher. Esse texto explora o momento em que o rosto de uma atriz é imortalizado na idéia de divinização plástica da mulher. O rosto de Garbo ultrapassa seu aspecto carnal e passa a fazer parte do universo mítico, o divino supera o humano por meio da perenidade conferida pela linguagem visual. E. Morin escreveu sobre a cultura de massas no início da década de 60 e considerou que reis, rainhas, artistas famosos, esportistas, etc. eram elevados à condição de “olimpianos modernos”. Isso porque, assim como os deuses gregos que habitam o monte Olimpo, essas vedetes habitam o espaço mítico da grande imprensa, que as diviniza: A informação transforma esses olimpos em vedetes da atualidade. Ela eleva à dignidade de acontecimentos históricos acontecimentos destituídos de qualquer significação política [...] Esse novo Olimpo é, de fato, o produto mais original do novo curso da cultura de massa. As estrelas de cinema já haviam sido anteriormente promovidas a divindades. O novo curso as humanizou. [...] Os novos olimpianos são, simultaneamente, magnetizados no imaginário e no real, simultaneamente, ideais inimitáveis e modelos imitáveis; sua dupla natureza é análoga à dupla natureza teológica do herói-deus da religião cristã: olimpianas e olimpianos são sobre-humanos no papel que eles encarnam , humanos na existência privada que eles levam. (MORIN, 1969, p. 105-106) Morin considera que os astros da cultura de massa são caracterizados por uma dupla natureza: são astros divinos e ao mesmo tempo humanos mortais. No aspecto mortal se assemelham aos seus consumidores e no aspecto divino os ultrapassam, possuem uma natureza dupla semelhante à do herói cristão, que é homem e deus ao mesmo tempo. Barthes percebeu que os filmes, as propagandas publicitárias, etc., geram mitos modernos que são produzidos e veiculados em uma escala impensável antes da existência dos aparelhos de 38 comunicação eletrônicos. Isso fez com que o semiólogo refletisse sobre o modo como surge o mito e sobre sua sobrevivência na história: Não existe, evidentemente, uma manifestação simultânea de todos os mitos: certos objetos permanecem cativos da linguagem mítica durante um certo tempo, depois desaparecem, outros substituem-no, sendo elevado ao mito. [...] pode se conceber que haja mitos antiqüíssimos, mas não eternos; pois é a História que transforma o real em discurso; é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica. Longínqua ou não, a mitologia só pode ter um fundamento histórico, visto que o mito é uma fala escolhida pela História: não poderia de modo algum surgir da “natureza” das coisas. Esta fala é uma mensagem. Pode, portanto, não ser oral; pode ser formada por escritas ou representações: o discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de apoio à fala mítica. (BARTHES, 2003, p. 200) Barthes compreende o poder sugestivo de textos sincréticos, como a fotografia e o cinema, e entende que todas essas formas de comunicação podem comportar a fala mítica. Em 1970, em seu livro Shazam!, A. Moya (1977, p. 91) cita um texto da pesquisadora francesa de bandes dessinées E. Sullerot, no qual ela destaca a circulação de mitos na grande mídia: “Evelyne Sullerot escreve em Bandes dessinées et culture: [...] ‘A imprensa escrita, o cinema, as histórias em quadrinhos e as telenovelas são os reservatórios mitológicos da nossa sociedade.’”. Percebe- se que vários pesquisadores já reconhecem, há décadas, os veículos midiáticos como meios de circulação de mitos contemporâneos. Constata-se que a fala mítica está presente nas mais diversas manifestações da linguagem. A discussão acadêmica sobre a veiculação da fala mítica nos meios de comunicação eletrônicos era uma novidade na época de Barthes e ele foi um dos pioneiros no estudo da imagem no interior das ciências da linguagem. Para situar o objeto visual como algo pertinente aos estudos lingüísticos, Barthes (2003, p. 201) considera que A imagem é certamente mais imperativa do que a escrita, impondo a significação de uma só vez, sem analisá-la e dispersá-la. Mas isso já não é uma diferença constitutiva. A imagem se transforma numa escrita, a partir do momento em que é significativa: como a escrita, ela exige uma lexis. Entender- se-á, portanto, daqui para a frente, por linguagem, discurso, fala, etc. toda unidade ou toda síntese significativa, quer seja verbal, quer visual: uma fotografia será, por nós, considerada fala, exatamente como um artigo de jornal; os próprios objetos poderão transformar-se em fala se significarem alguma coisa. 39 Barthes defende que todo objeto dotado de significação é pertinente aos estudos da linguagem, que não se restringe somente às línguas naturais. Uma reflexão semelhante levou Greimas (1975, p. 145), anos depois, a escrever que a semiótica, cujo campo de pesquisa é a significação, também deve explorar objetos de significação não-verbais: “Em primeiro lugar, era preciso admitir que as estruturas narrativas podem ser reconhecidas em manifestações do sentido que se efetuam fora do domínio das línguas naturais: nas línguas cinematográfica e onírica, na pintura figurativa, etc.”. A semiótica se ocupa do estudo das mais diversas manifestações da linguagem, como textos visuais, sincréticos, sonoros, etc. Essa preocupação dos semioticistas revela o interesse das ciências da linguagem no estudo das formas de significação não-verbais. Ao entender o mito como linguagem, percebe-se que o discurso mítico se faz presente no mundo atual de diversas maneiras, sendo veiculado inclusive pelos meios de comunicação tecnológicos mais avançados, como a Internet. A relevância do estudo desses mitos reside no fato de que eles se tornaram parte do cotidiano e afetam o modo como a sociedade entende o mundo. Os mitos invadem a linguagem nas mais diversas formas e imprimem novos significados, de maneira profunda, no modo como o homem entende a própria existência. Até mesmo os conceitos científicos podem ser atravessados pela noção mítica presente no pensamento humano, como é o caso da teoria física do Big-Bang. Segundo a teoria do Big-Bang, o universo surge a partir de uma “grande explosão” que origina as primeiras partículas da matéria conhecida. Esta noção possui analogias com o mito bíblico da criação divina, segundo o qual a origem do universo acontece no momento em que Deus cria os fenômenos naturais. Percebe-se que o pensamento mítico está arraigado na própria maneira de pensar do homem, mesmo que se use a razão para encontrar uma verdade o mito persiste. No caso da teoria do Big-Bang, o pensamento científico foi atravessado pelo mito da criação divina, de modo que se produziu uma cosmogonia a partir de conceitos lógico-matemáticos. A própria Física problematiza a noção da origem do universo; célebres físicos como S. Hawking e L. Mlodinow (2005, p. 93-94) refletem sobre os desenvolvimentos da Física na segunda metade do século XX5 e consideram que [...] a matemática não consegue realmente manusear números infinitos, ao predizer que o universo começou com o big bang, um momento em que a densidade do universo e a curvatura do espaço-tempo teriam sido 5 Especialmente conceitos desenvolvidos a partir da teoria da relatividade geral, proposta por A. Einstein. 40 infinitos, a teoria da relatividade geral prediz que existe um ponto no universo no qual a própria teoria se despedaça. Ou falha. Esse ponto é um exemplo daquilo que os matemáticos chamam de singularidade. Quando uma teoria prediz singularidades, tais como densidade e curvatura infinitas, isso é um sinal de que a teoria deve ser de alguma forma modificada. A relatividade geral é uma teoria incompleta porque não é capaz de nos informar como o universo principiou. Com o desenvolvimento da Física no século XX, surge a proposta da teoria quântica6, que, entre outros conceitos, considera que o universo é autocontido; esta noção redefine a questão do estado inicial do universo: Na teoria quântica, é possível o espaço-tempo ser finito em extensão e, ainda assim, não ter singularidades que tenham formado um contorno ou beirada. [...] Portanto, se viermos a constatar que é esse o caso, então a teoria quântica da gravidade terá exposto uma nova possibilidade na qual não haveria singularidades nas quais as leis da ciência deixariam de ser válidas. Se não existirem limites no espaço-tempo, não haverá necessidade de especificar o comportamento no contorno – não haverá necessidade de conhecer o estado inicial do universo. Não existe beirada do espaço-tempo, na qual teríamos de apelar para Deus ou alguma nova lei para definir as condições de contorno para o espaço-tempo. Poderíamos dizer: “A condição de contorno do universo é que ele não tem contorno.” O universo seria inteiramente autocontido e não afetado por nada fora dele. Não seria criado nem destruído. Apenas SERIA. (HAWKING; MLODINOW, 2005, p. 112-113) A percepção humana do mundo natural produz teorias científicas que nem sempre correspondem com o modo como a natureza atua. O próprio conceito de lógica é uma definição humana e a natureza não se comporta segundo parâmetros humanos. Esse é um problema que está relacionado à especificidade da linguagem humana, pois os significados que são atribuídos ao mundo acontecem por meio da linguagem. Hobsbawm discute, em um capítulo de Era dos Extremos, o impacto das ciências naturais no século XX. O historiador pondera sobre a tentativa dos físicos de conciliar as novas teorias físicas do século XX7 e as teorias físicas clássicas8, 6 A física quântica ocupa-se do estudo de sistemas físicos cujas dimensões são aproximadas ou menores que as dimensões da escala atômica. No entanto, a teoria quântica também descreve, em diversos casos, fenômenos macroscópicos. 7 De caráter probabilista, se pautam no princípio da incerteza desenvolvido por Heinsenberg, segundo o qual não é possível determinar, ao mesmo tempo, a velocidade e a posição de uma partícula: ao se identificar com precisão a velocidade, a posição se torna menos conhecida e vice-versa. 8 De caráter determinista, consideram que todos os eventos naturais são determinados com precisão. 41 contraditórias, e considera que “não havia como expressar a totalidade da matéria numa descrição única, em vista da natureza da linguagem humana.” (HOBSBAWM, 1999, p. 520). Tais questões, destacadas de forma breve devido à natureza deste trabalho, podem ser abordadas por meio da semiótica tensiva, pois o que se entende como verdade são concepções que surgem a partir das experiências perceptivas: o inteligível (domínio da compreensão e do racional) está vinculado ao sensível (domínio da afetividade e do irracional), de forma que a razão (responsável pela produção científica) é comprometida pela intensidade afetiva presente no corpo humano. A noção de “verdade científica”, conquistada pela razão, pode ser um efeito de sentido gerado pela percepção humana. O homem se apóia na lógica para descobrir uma verdade e pode acabar afirmando um mito – como no caso da teoria do Big-Bang – pois é iludido pela sua percepção limitada da natureza. De forma que até mesmo o raciocínio lógico pode ser atravessado por noções míticas e simbólicas acerca do mundo natural. O mito está enraizado, de forma profunda, na linguagem. 1.3 Semi-simbolismo A semiótica de textos visuais foi explorada em vários trabalhos de J. M. Floch, um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da semiótica plástica. Uma das principais obras de Floch é o livro Petites Mythologie de L’Oeil et de L’Esprit (Pequenas Mitologias do Olho e do Espírito – tradução nossa), publicado em 1985, no qual é trabalhado o conceito de semi- simbolismo. A idéia de pequenas mitologias, que forma a primeira parte do título do livro, tem origem em uma reflexão de Lévi-Strauss, na qual o antropólogo pensa a relação entre as palavras jour e nuit (respectivamente dia e noite em francês). Segundo Lévi-Strauss, o vocalismo grave de jour remete ao sentido de noite, já que o tom grave tem um conteúdo sombrio, escuro; enquanto o vocalismo agudo de nuit remete ao dia, pois o tom agudo sugere claridade, alegria. Ocorre uma inversão entre expressão e conteúdo, já que o significante de dia (jour) se relaciona ao conteúdo da escuridão e o significante de noite (nuit) se relaciona ao conteúdo da claridade. Nesse tipo de relação o plano da expressão e o plano do conteúdo estão vinculados. 42 Lévi-Strauss prossegue a reflexão, contraria essa relação invertida e faz uma relação que vincula jour ao conteúdo do dia quando considera que o vocalismo grave de jour é de aspecto durativo. Na concepção de Lévi-Strauss o aspecto durativo se relaciona ao dia, pois o antropólogo entende a noção de dia como algo mais duradouro que a noite; enquanto o vocalismo agudo de nuit, de aspecto perfectivo, se relaciona à noite, devido à sua curta duração segundo Lévi-Strauss. Essa reflexão está envolvida pelo modo particular como Lévi-Strauss entende o dia e a noite, é um detalhe axiológico que pode comprometer a definição do conceito. Mas, independente dos valores que o antropólogo confere ao sentido de dia e ao sentido de noite, entende-se que ocorre uma relação entre conteúdo e expressão e esta relação homóloga entre os dois planos da linguagem é o que realmente importa na definição do conceito. É preciso proceder com cautela ao se propor um conceito teórico. O pesquisador precisa habitar o texto para entender sua motivação e ser coerente no momento da análise. É pertinente o pensamento de Merleau-Ponty (1980, p. 85) que diz que “a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las”, pois seria desonesto forçar um texto a significar algo só para confirmar uma teoria. Fontanille (2007, p. 76), em seu livro Semiótica do Discurso, reflete sobre a necessidade de se entender as qualidades sensíveis que orientam a manifestação de uma categoria: Quando se adota o ponto de vista do discurso, se é conduzido a buscar primeiramente – antes de se perguntar se os termos de uma categoria têm um valor universal qualquer – as qualidades sensíveis que determinam e orientam a manifestação da categoria. O pesquisador deve encontrar as qualidades sensíveis particulares de certo objeto, para descrever suas categorias específicas, antes de tentar extrair-lhe categorias universais. É na análise discursiva que o pesquisador identifica se há vínculo entre significante e significado ou não, pois as categorias que surgem a partir do objeto podem ser tanto arbitrárias quanto não- arbitrárias. Lévi-Strauss chama a relação homóloga entre significante e significado de pequena mitologia, pelo fato de esta ser não-arbitrária, pois contraria o conceito saussuriano de arbitrariedade do signo. Nesse sentido, significante e significado são não-arbitrários, são homólogos. Segundo Floch (1985, p. 14): C’est donc em étudiant concrètement des images prises dans leur globalité que nous avons petit à petit reconnu et cherché à definir ce système de sens, de type 43 semi-symbolique, qu’est la sémiotique plastique, où les deux termes d’une catégorie du signifiant peuvent être homologues à ceux d’une catégorie du signifié. Ocorre semi-simbolismo no momento em que dois termos de uma categoria do significante são vinculados a dois termos de uma categoria do significado, isso será exemplificado no decorrer deste texto. Como uma das propostas desse trabalho é entender a natureza dos mitos contemporâneos, enfatiza-se que o princípio de não-arbitrariedade do conceito de semi-simbolismo é uma das principais características da fala mítica, segundo Barthes (2003, p. 217-218): Quanto à significação mítica, nunca é completamente arbitrária, sendo sempre em parte motivada e contendo fatalmente uma parte de analogia. [...] A motivação é necessária à própria duplicidade do mito; o mito joga com a analogia do sentido e da forma: não existe mito sem uma forma motivada. O discurso mítico caracteriza-se por ser, em parte, motivado. A relação entre o sentido e a forma mítica não é totalmente arbitrária. O mito engendra um discurso que se estabiliza por meio da analogia parcial entre o sentido e a forma. A segunda parte do título do livro de Floch faz referência ao texto O olho e o espírito (L’Oeil et L’Esprit, no original) escrito pelo filósofo Merleau-Ponty. Trata-se de um texto sobre estética no qual o autor reflete, pelo viés fenomenológico, sobre as significações de pinturas, principalmente as de Cézanne. Sobre o universo da pintura, Merleau-Ponty (1980, p. 93) reflete: Essência e existência, imaginário e real, visível e invisível, a pintura baralha todas as nossas categorias ao desdobrar o seu universo onírico de essências carnais, de semelhanças eficazes, de mudas significações. O filósofo reflete sobre o desdobramento do sentido visual da pintura em um universo de “mudas significações”. Estas são entendidas como significações de textos não-verbais, justamente o tipo de texto que Floch explora. Assim, compreende-se que a obra Petites Mythologies de L’Oeil et de L’Esprit incorpora reflexões da antropologia de Lévi-Strauss e da filosofia de Merleau-Ponty. Floch (1985, p. 79) esclarece que os textos visuais são apenas um dos modos de realização dos sistemas semi-simbólicos: 44 Les sémiotiques plastiques ne sont qu’un des modes de réalisation des systèmes semi-symboliques, et ce à um double titre. Les systèmes semi-symboliques peuvent être réalisés par des sons ou par des gestes, c’est-à-dire par d’autres substances de l’expression (et Il s’agit alors aussi de relations sémiotiques, em ce sens que ce sont les deux plans du langage qui sont toujours mis em relation). O semi-simbolismo ocorre desde que exista vínculo entre duas categorias de cada um dos planos da linguagem: conteúdo e expressão devem ser homólogos para que aconteça o semi- simbolismo. Mas a coerência heurística dos sistemas semi-simbólicos é atestada na conexão estabelecida pela oposição sistemática entre dois termos de cada plano. No caso de correlação entre um termo de cada plano ocorre o simbolismo: a cruz (expressão) e a fé (conteúdo), a balança (expressão) e a justiça (conteúdo), a pomba branca (expressão) e a paz (conteúdo), etc. Um exemplo de relação homóloga entre dois termos da expressão e dois termos do conteúdo, na música, ocorre no famoso concerto de Vivaldi As quatro estações. Em um dos movimentos, chamado Verão, o plano da expressão sonoro é marcado por vários acentos rítmicos, que causam uma aceleração na substância sonora da expressão. Outro movimento, chamado Inverno, é caracterizado pela desaceleração, pois o plano da expressão é marcado por poucos acentos rítmicos. No movimento Verão, a aceleração no plano da expressão concorda com a idéia de agitação no plano do conteúdo, já que o verão é uma estação que se caracteriza pela idéia de movimento mais que as outras estações do ano (movimento dinâmico no sentido semântico de calor, chuva, umidade, sensualidade, etc.). No movimento Inverno, a desaceleração no plano da expressão concorda com a idéia de repouso no plano do conteúdo, pois entende-se o inverno como uma estação estática, imobilizada pela intensidade do frio. Assim, o plano da expressão sonoro e o plano do conteúdo semântico estão vinculados. A categoria aceleração versus desaceleração, do plano da expressão, concorda com a categoria agitação versus repouso, do plano do conteúdo, de forma que ocorre uma relação semi-simbólica, já que há homologação entre duas categorias de cada um dos planos da linguagem. No livro Semiótica Visual: os percursos do olhar, Pietroforte (2004, p. 21) comenta o interesse da semiótica pelo estudo do plano de expressão e explica a ocorrência do semi- simbolismo: Deixado de lado pela semiótica em um primeiro momento teórico, o plano da expressão passa a ser estudado na teoria dos sistemas semi-simbólicos. Em muitos textos o plano da expressão funciona apenas para veiculação do conteúdo, como na conversação, por exemplo. No entanto, em muitos outros, ele 45 passa a “fazer sentido”. Quando isso acontece, uma forma da expressão é articulada com uma forma do conteúdo, e essa relação é chamada semi- simbólica. Uma pintura em que o conteúdo é articulado de acordo com a categoria semântica vida vs. morte, por exemplo, pode ter sua expressão formada de acordo com uma categoria plástica luz vs. sombra, de modo que a sombra refira-se à morte e a luz, à vida. São encontradas relações semi-simbólicas em textos visuais quando dois termos de uma categoria plástica são vinculados a dois termos de uma categoria semântica. Destaca-se um exemplo de sistema semi-simbólico que ocorre na capa feita por D. Mckean para a HQ Men of Good Fortune (ANEXO A, p. 97), trata-se de um texto bidimensional. Uma capa de HQ é a apresentação de uma história sincrética e se relaciona diretamente ao conteúdo dessa história. Ressalta-se que todas as capas da série Sandman foram produzidas por Mckean, esse artista usou técnicas de desenho, pintura e fotografia que não eram comuns nas HQs mensais publicadas pelas grandes editoras norte-americanas. No plano de expressão há uma relação cromática que pode ser definida pelas categorias claridade e escuridão. No espaço da claridade estão as figuras do pergaminho carcomido e do relógio estilhaçado. No espaço da escuridão destacam-se as figuras obscuras de esqueletos humanos. No plano do conteúdo, os esqueletos na escuridão transmitem a idéia de mortalidade. escrito em língua “morta” (latim), o que transmite a idéia de uma longa passagem de tempo. Ao se opor a escuridão à claridade no plano de expressão e ao se aplicar a mesma lógica no plano do conteúdo, cujo termo destacado é mortalidade, identifica-se outro termo semântico: imortalidade. O sentido de mortalidade é determinado pela idéia de passagem do tempo e o sentido de imortalidade é reforçado pela destruição da passagem do tempo na figura do relógio estilhaçado. A imortalidade é afirmada pela claridade, pois tanto a idéia de imortalidade quanto a idéia de claridade são axiologias eufóricas na cultura ocidental – a cultura na qual o discurso foi produzido fornece os valores específicos selecionados na análise – enquanto a mortalidade e a escuridão são axiologias disfóricas. A claridade se relaciona à imortalidade e a escuridão se relaciona à mortalidade. Assim, identifica-se a categoria claridade versus escuridão, no plano da expressão, que é homóloga à categoria imortalidade versus mortalidade, no plano do conteúdo. Essa é uma relação semi-simbólica já que dois termos de uma categoria plástica são vinculados a dois termos de uma categoria semântica. A capa de Mckean caracteriza-se pe