ACIMA E ABAIXO: dos silêncios históricos ao educar a contrapelo e/ou da impossibilidade de ação à prática da imaginação UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes FERNANDA PANTUZZO FERREIRA São Paulo 2022 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. F383a Ferreira, Fernanda Pantuzzo, 1998- Acima e abaixo : dos silêncios históricos ao educar a contrapelo e/ou da impossibilidade de ação à prática da imaginação / Fernanda Pantuzzo Ferreira. - São Paulo, 2022. 73 f.: il. color. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rita Luciana Berti Bredariolli Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Arte e história. 2. Arte na educação. 3. Filosofia alemã. 4. Historiografia. I. Bredariolli, Rita Luciana Berti. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 709 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 ACIMA E ABAIXO: dos silêncios históricos ao educar a contrapelo e/ou da impossibilidade de ação à prática da imaginação Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. F383a Ferreira, Fernanda Pantuzzo, 1998- Acima e abaixo : dos silêncios históricos ao educar a contrapelo e/ou da impossibilidade de ação à prática da imaginação / Fernanda Pantuzzo Ferreira. - São Paulo, 2022. 73 f.: il. color. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rita Luciana Berti Bredariolli Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Arte e história. 2. Arte na educação. 3. Filosofia alemã. 4. Historiografia. I. Bredariolli, Rita Luciana Berti. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 709 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 ACIMA E ABAIXO: dos silêncios históricos ao educar a contrapelo e/ou da impossibilidade de ação à prática da imaginação FERNANDA PANTUZZO FERREIRA São Paulo 2022 Trabalho de Conclusão de Curso apresen- tado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Unesp para a obtenção dos títulos de Bacharela em Artes Visuais e Licenciada em Artes Visuais. Orientadora: Profa. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli. ACIMA E ABAIXO: dos silêncios históricos ao educar a contrapelo e/ou da impossibilidade de ação à prática da imaginação BANCA EXAMINADORA: ____________________________________ Profª Drª Rita Luciana B. Bredariolli - Orientadora Instituto de Artes da UNESP ____________________________________ Prof. Alexandre Gomes Vilas Boas Doutorando pelo Instituto de Artes da UNESP ____________________________________ Profa. Luciana Martins Tavares de Lima UNESP Mestranda pelo Instituto de Artes da UNESP Trabalho de conclusão de curso aprovado em: 07/07/2022 Trabalho de Conclusão de Curso apresen- tado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Unesp para a obtenção dos títulos de Bacharela em Artes Visuais e Licenciada em Artes Visuais. ACIMA E ABAIXO: dos silêncios históricos ao educar a contrapelo e/ou da impossibilidade de ação à prática da imaginação FERNANDA PANTUZZO FERREIRA Agradeço à minha professora e orientadora Rita Bredariolli pela orientação afetuosa, atenciosa e de escuta, que acolheu minhas dúvidas e angústias e apoiou imensamente minha pesquisa. Sobretudo, a agradeço por virar e revirar as minhas perspectivas sobre a arte e o mundo ao me colocar em contato pela primeira vez, em uma de suas aulas, à produção de Walter Benjamin. Agradeço à minha banca examinadora, Luciana Martins Tavares de Lima e Alexandre Gomes Vilas Boas, pela leitura e dedicação ao meu trabalho. Agradeço aos meus pais, Rita e Toninho, pela paciência neste difícil período, pelo apoio incondicional ao longo de toda minha vida e pelo amor, amor e mais amor que recebo todos os dias. Agradeço à Gabriela Gregório Floriano, pelas inúmeras contribuições aos pensamentos desta produção e pelo trabalho cuidadoso de revisão. Mas em especial, agradeço pelo companheirismo, pela escuta, cuidado e por todo o amor que recebo. Agradeço aos meus amigos - todos os possíveis - pela paciência nas minhas ausências e pelo carinho e incentivo à produção deste trabalho. Por fim, agradeço e dedico este trabalho à memória de todos os que já se foram e que nos deixaram com a responsabilidade de continuar a lutar por um mundo outro. agradecimentos Com o objetivo de adentrar o Repositório Institucional UNESP, requisito obri- gatório para a aquisição do diploma de licenciatura e bacharelado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP, o presente trabalho sofreu inúmeras alterações poéticas para adequar-se as Normas Padrão ABNT. A publicação plástica original, melhor condi- zente com a proposta conceitual apresentada no texto e que melhor me satifaz enquanto artista encontra-se disponível no seguinte link: https://issuu.com/fernandapantuzzo/docs/acimaeabaixo um esclarecimento Esta pesquisa cria diálogos entre os espaços vazios presentes nas histórias silenciadas e propositalmente enterradas do passado com as disciplinas de artes visu- ais, história e educação. Para isso, utiliza-se de alguns dos conceitos desenvolvidos pelo pensador alemão Walter Benjamin em seu texto Teses sobre o conceito da História (1940), tais como: identificação afetiva, narrar e esquecer, historicismo e história a contrapelo, redenção e rememoração e imagem dialética e saltos históricos. Partindo sobretudo da criação de uma imagem que liga o monumento lisboeta Padrão dos Descobrimentos com o fóssil de uma pessoa escravizada encontrado a poucos quilômetros do local, o presente trabalho se apresenta como uma obra poéticatextual que conecta imagens coletadas, rememorações pessoais, pesquisas bibliográficas e análises de obras para questionar quem possui o poder de ter suas memórias transmitidas e quem são os destinados ao esquecimento, projetando na ação educacional, artística e historiográfica a possibilidade da construção de um mundo sem essa dicotomia. Para maior expansão dessa reflexão, a pesquisa relaciona Walter Benjamin com outros filósofos, historiado- res e artistas contemporâneos como: Michel Rolph Trouillot, Jeanne Marie Gagnebin, Michael Löwy, Denise Ferreira da Silva, Ethel Batres, Saidiya Hartman, Jota Mombaça, Thierry Oussou e Rosana Paulino. Palavras chave: Artes visuais, História, Educação, Walter Benjamin, História a contra- pelo. resumo This research creates dialogues between the empty spaces present in the silen- ced and purposefully buried histories of the past with the disciplines of visual arts, history and education. For this, it uses some of the concepts developed by the german thinker Walter Benjamin in his text Theses on the concept of History (1940), such as: affective identification, narrating and forgetting, historicism and history against the grain, redemption and remembrance and image. dialectics and historical leaps. Starting mainly from the creation of an image that connects the monument of Lisbon Padrão dos Descobrimentos with the fossil of an enslaved person found a few kilometers from the place, the present work presents itself as a poetic-textual work that connects collected images, personal recollections, bibliographic research and analysis of artworks to question who has the power to have their memories transmitted and who are destined for oblivion, projecting in educational, artistic and historiographical action the possibility of building a world without this dichotomy. For further expansion of this reflection, the research relates Walter Benjamin with other contemporary philoso- phers, historians and artists such as: Michel Rolph Trouillot, Jeanne Marie Gagnebin, Michael Löwy, Denise Ferreira da Silva, Ethel Batres, Saidiya Hartman, Jota Mombaça, Thierry Oussou e Rosana Paulino. Keywords: Visual arts, History, Educacion, Walter Benjamin, History against the grain abstract Figura 1 - Colagem do Padrão dos Descobrimentos com o sítio arqueológico Campo das Cebolas. Fonte: Acervo pessoal 2 acima abaixo: do padrão ao fóssil 1 introdução (começos)13 15 3 sobre identificação afetiva 23 4 sobre o transmitir: me ensinam a esquecer de você 5 sobre o contrapelar: preciso te procurar 39 58 6 sobre o rememorar: a gente não gosta de lembrar 68 sumário 7 sobre o reparar: em busca de uma ética para seu passado 82 8 sobre o imaginar 95 9 conclusão (por fim)114 apêndice (epílogo) 119 referências 122 Figura 1 - C olagem do P adrão dos D escobrim entos com o sítio arqueológico C am po das C ebolas. Fonte: Acervo pessoal Figura 2 - P adrão dos D escobrim entos (1968). Fonte: http://w w w.m onum entos.gov.pt/Site/D ATA_SYS/FO N TES_D O C /IM AG ES/00000002/00006062.JPG Acima, na superfície da terra, mantêm-se aparentemente firmes, aqueles que creem que para nela se viver é preciso ter poder. Poder de posse, de domínio, de controle. Poder de exibição e transmissão. Exibem, na superfície desse solo, seus belos trajes e elegantes palavras. Transmitem, como em um cortejo, todos os seus grandes feitos e conquistas. Carregam em seus arcos, edifícios, fontes e monumentos, a crença em uma velha verdade: é por meio de sua longa permanên- cia na superfície, que a conquista desse poder é não só garantida, como inevitável. Já abaixo, imersos na terra, estão, forçadamente escondidos e calados, aqueles que uma vez de relance na superfície, são reiteradamente designados a sempre embaixo dela estarem. Com a intenção de que de lá nunca mais saiam, vencidos de todas as batalhas, foram e são enviados para baixo por aqueles que acima com poder existem. Com eles, aparentemente enterradas, vivem vozes que um dia alto cantaram, histórias que a muitos já foram contadas e objetos que, outrora, possuíram almas. Com a terra adentrando seus poros e, a cada dia que passa, cada vez mais sufocados ao fundo, sentem ser não mais possível emergir sozinhos, restando-os depositar no futuro, uma fagulha de esperança para que um dia possam voltar a viver em superfície. Esperam que as trajetórias que um dia viveram sirvam, de alguma forma, como armas para as lutas do presente. Buscando, desse modo, garantir triplamente a sobrevivência dos que teimam, assim como um dia teima- ram, não serem designados para baixo; a salvação daqueles que ainda estão por vir; e, de forma misteriosa, a redenção para si mesmos. Sonham, dessa forma, em um dia cantar as músicas que já não se ouvem mais, de se alimentar dos frutos que já não vemos nascer sob a terra e de viver uma vida a qual nunca puderam. Acima e abaixo. Quem são os que possuem o poder de viver sob a comum terra, com a infinita promessa de uma vitória? E quem são os designados a dentro dela para sempre perecerem enterrados? começos co m eç os 12 1 introdução ( ) co m eç os 13 Para além da figura do narrador, este entrelaçamento de educação, história e arte, é responsável por apresentar as reflexões e situações aqui formuladas, enquanto obras poéticas e imbricadas tanto na prática artística, quanto educacional e histórica. Tendo em vista que, na prática enquanto educadora e artista, aquilo que define e dife- rencia cada segmento é mesclado e hibridizado, o que faz do presente trabalho uma obra poética-educacional de licenciatura e bacharelado. Também, nota-se que o traje- to de pesquisa e a escultura das escritas aqui vistas, figuram a criação de imagens dialéticas, que partem da invenção e ficção de histórias para existirem. Deste modo, transformando o processo do escrever e pesquisar, também enquanto prática artística. No entanto, é importante ater-se que essas construções poéticas apresentam- -se, conceitualmente e formalmente, em oposição a um fazer artístico (e, portanto, de narração) que formula o pensamento de modo linear e descritivo. Inclusive, expõe esse fazer cronológico enquanto um dos perpetuadores da realidade de desigualdade da qual parte a pergunta feita acima. Deste modo, através de saltos dialéticos e estruturas de montagem, o objetivo deste trabalho é romper com a narrativa textual dissertativa que conhecemos e também condensar esse conteúdo disruptivo com uma forma esté- tica necessariamente poética e igualmente transgressora. Assim, a fim de apresentar uma outra maneira de estruturação e apreensão dos pensamentos aqui introduzidos, que por conseguinte, poderão nos ajudar a também pensar em um mundo diferente do acima e abaixo em que vivemos. Por fim, este trabalho pretende lembrar e imaginar, em especial, as vidas e histórias que são constantemente apagadas e silenciadas pelo fluxo de uma História hegemônica e, com isso, partir do reconhecimento de suas trajetórias de luta e resis- tência, para um presente e futuro onde, além de serem honradas, nos ajudarão a cons- truir um mundo baseado na sobrevivência dos que sem poder teimam não serem desig- nados para baixo, na salvação daqueles que estão por vir e, ainda, de forma misteriosa, na redenção das histórias do passado. É partindo dessa pergunta e das possíveis reflexões por ela geradas, que o presente trabalho busca, através de imagens e situações das áreas da história, educa- ção e artes, pensar a construção de um mundo outro: um mundo onde perguntas sobre quem possui (ou não) o poder de viver a vida em superfície, não precisem ser feitas. Para isso, parte da compreensão de que essa outra realidade só poderá existir justamente na apreensão das artes, história e educação enquanto áreas necessaria- mente implicadas umas nas outras. Frente a isso, o trabalho tem a intenção de misturar as figuras do historiador, artista e educador, e condensá-las na imagem do narrador: aquele que parte do sopro de um passado esquecido para estabelecer a construção de um outro presente. Para isso, a obra parte majoritariamente do referencial teórico de Walter Benjamin e rela- ciona a constelação de seus pensamentos com historiadores, filósofos, escritores e artistas como Michel Rolph Trouillot, Jeanne Marie Gagnebin, Michael Löwy, Denise Ferreira da Silva, Ethel Batres, Saidiya Hartman, Jota Mombaça, Thierry Oussou e Rosana Paulino; e também com minha produção enquanto arte-educadora. Na freguesia de Belém, em Lisboa, situa-se o monumento em homenagem ao pai das grandes navegações lusitanas - Infante Dom Henrique - que leva o nome de Padrão dos Descobrimentos. Dali, longe o bastante para ir a pé, mas não tão distante de carro, localizado no Distrito de Alfama, dentre os vários sítios arqueológicos da região, fora descoberto há pouco, um corpo enterrado em vala comum1. Nem mesmo os 7,6 quilômetros que separam espacialmente essas duas partes, até então desconexas - o monumento e a ossada humana - são capazes de desarticulá-las de uma história pregressa, que as entrelaçam para sempre. Em Belém, os principais desbravado- res que foram homenageados observam do alto, com seus tantos metros de altura, sua principal conquista: os mares. Em Alfama, debaixo da terra, um corpo escavado perecia há muito tempo, e fora desenterrado sem nome, sem origem, sem história. Por meio de um exame de DNA, coletou-se a única informação que faria parte de seu presente: a matéria fóssil observada correspondia a uma pessoa africana que viveu no período da colonização portuguesa. Acima e abaixo. De um lado e de outro. 7,6 quilômetros conec- tam lados opostos da história. Os vencedores em superfície e os vencidos enterrados na terra. 1Informação encontrada no documentário Rotas da Escravidão (2018), de produção de ARTE France, Compagnie des Phares et Balises. Figura 3 - Rota de carro do Padrão dos Descobrimentos ao Campo das Cebolas em Alfama (possível sítio arqueológico em que o fóssil foi encontrado). Foto: Frame de tela do aplicativo Google Maps. Fonte: Acervo pessoal 2 acima abaixo: do padrão ao fóssil I ac im a e ab ai co 14 ac im a ab ai xo 15 Ainda que todos mortos, apenas os vitoriosos têm a possibilida- de de permanecerem vivos. Através das inúmeras homenagens realiza- das pelos herdeiros de suas tradições, são capazes de perpetuar-se no imaginário dos que estão sob a terra no presente, garantindo assim, sua permanência no coração dos que nascerão no futuro. Por isso, fazem reviver na síntese de Infante Dom Henrique e de todos os outros cele- brados no Padrão dos Descobrimentos não somente suas próprias figu- ras históricas, mas todos os que ao longo da História da humanidade são simpáticos às suas conquistas. Na mesma lógica da representação de um pelo todo, os milha- res que jazem por terra podem achar-se nessa pessoa, encontrada tão próxima às margens do Tejo quanto o monumento. Desenterrada junto de artefatos multiculturais - raptados assim como ela durante o perío- do colonial - sua deterioração no presente traduz como é percebida pela contemporaneidade a história de todos os vencidos que foram designados a morrer para eternidade. Suas trajetórias diluem-se ao solo assim como suas carnes e, enquanto incorporam-se à terra, são destinadas ao esquecimento por aqueles que estão acima. Figura 4 - Padrão dos Descobrimentos (2015). Foto: Fabricio Moura. Fonte: https://www.vounajanela.com/portugal/belem-lisboa-como-chegar-e-o-que-fazer/ ac im a ab ai xo 16 Figura 4 - Padrão dos Descobrimentos (2015). Foto: Fabricio Moura. Fonte: https://www.vounajanela.com/portugal/belem-lisboa-como-chegar-e-o-que-fazer/ Acima e abaixo. Existe uma clara resposta para a pergunta sobre quem exerce poder para viver acima sob a comum terra e quem são os designados a dentro dela perecerem enterrados. O fio que realiza a conexão de um polo ao outro, entrelaça o gabarito de resposta. De um lado, o que está acima, o que permanece vivo, o monumento, o conquistador, o que venceu. Do outro, o que está abaixo, o predestinado a morrer, o fóssil, o escravizado, o que fora vencido. Acima e abaixo são faces opostas de uma guerra. Ainda que aparente- mente separados por quilômetros de distância e tempos distintos, são conecta- dos por uma linha invisível que, com a função de articular lados opostos, rompe com barreiras de espaço e tempo, juntando no presente, desconhecidos até então. A esse traçado conector, dou o nome de história. E seu processo de cria- ção, servindo e atendendo as questões do agora, é um dos muitos trabalhos que constituem o campo da arte e da educação. De uma educação a contrapelo. Em se tratar dessa criação educacional de história - monumento e fóssil - muitas palavras carregam em si conceitos mais profundos. Exibir/transmitir, Vencedor/vencido, História/história, herança/tradição, luta/guerra, lembrar/esquecer, tempo/espaço. Talvez, somente um único caminho de linha histórica, articulando monumento e corpo encontrado, não seja capaz de contemplar de maneira profunda o significado dessas expressões e suas rela- ções com uma tal de educação a contrapelo. A fim de compreendê-las verda- deiramente, as duas imagens necessitam de mais uma linha invisível, que as conecte a um desconhecido à elas até então. Alguém que ainda na condição de estranho, possa ser capaz de explicitar algo sobre as duas imagens que nem mesmo elas sabiam existir. Figura 5 - Fragmentos de cerâmicas “multiculturais” encontradas no sítio arqueológico do Campo das cebolas. Fonte: Frame do filme Rotas da escravidão (2018) ac im a ab ai xo 17 O ano de 1940 data a inauguração da primeira versão do Padrão dos Des- cobrimentos, em decorrência da Exposição do Mundo Português2. Meses depois do início da mostra, encontra-se o princípio da história deste desconhecido. Com o objetivo de refugiar-se nos Estados Unidos para escapar do nazis- mo na Europa que já o perseguia há sete anos, um judeu alemão chamado Walter Benjamin seguia uma rota de fuga tortuosa da França para Espanha e que rumava, coincidentemente, à sede do monumento, Lisboa, único destino possível na época para embarcar às Américas e, assim, sobreviver. No entanto, seu percurso foi interrompido na pequena cidade fronteiriça espanhola de Portbou. Apátrida, Benjamin viu-se atravancado na burocracia das fronteiras e Estados, e teve seu visto para os Estados Unidos invalidado pela polícia da cidade. Acompanhado de uma também fugitiva, Henny Gurland, e seu filho, hospedou-se naquela noite no Hotel de Francia, consciente de seu destino: no dia seguinte, os três seriam entregues pelos espanhóis para Gestapo. II Figura 6 - Padrão dos Descobrimentos em construção (1940). Foto: Mario Novais Fonte: https://www.flickr.com/photos/biblarte/albums/72157606234802424 2A Exposição do Mundo Português foi um evento que aconteceu em 1940 na cidade de Lisboa em comemoração a unificação do Estado Português e suas conquistas coloniais. A manhã chegou à sra. Gurland e seu filho, com a notícia de que foram liberados a seguir viagem, partindo para refugiar-se. Mas ao nosso personagem, aquele dia com a promessa de uma esperança não pôde chegar. Em 27 de setembro de 1940 morria Walter Ben- jamin. Apenas o depoimento dessa senhora que o acom- panhara e o obituário de sua morte sustentam a hipóte- se mais difundida da causa de seu falecimento: suicídio. Naquela madrugada, Benjamin teria ingerido comprimi- dos de morfina, instaurando, desse modo, seu fim na longa luta por liberdade que travava. A partir do momento de sua morte, Benjamin adentrava rapidamente à terra. Na urgência de seu suícidio não causar tumulto na pequena cidade, procu- rou-se enterrá-lo o mais rápido possível3. Transfor- mando-o em mais uma trágica imagem de um dos muitos vencidos da batalha contra o nazismo. Estaria ele, enfim, abaixo. Se enquanto acima, sua trajetória como refugia- do rumava então Portugal, país que carecia lembrar de suas glórias marítimas por meio de um monumento, o fim de Walter Benjamin, abaixo, muito se assemelha ao destino que levou àquele corpo encontrado a ter seu desfecho às margens do Tejo. Duas atrocidades da humanidade, portanto, nazismo e colonialismo, enter- ram essas duas pessoas. Benjamin ainda teve um direito que à essa figura escravizada fora negado: o direito à identidade, à uma história de sua vida. Se sem a possibi- lidade de um passado essa pessoa fora encontrada, resta-nos então imaginar que juntou-se à terra distante de sua casa, longe das pessoas que amava e de seus parceiros de luta; morrendo em busca de liberdade - assim como Benjamin. Talvez, as tais circunstâncias que definiram o fim da vida do refugiado, soassem bastar como o tal desconhecido conector ao monumento e a ossada. Mas se o ponto de conexão estabelecido fosse apenas sua biografia enquanto vítima de uma das maiores barbáries da humanidade, por que especialmente escolhê-lo e não outro? Visto que, infelizmente, foram tantos os milhões de mortos desse e de muitos outros momentos de perigo da história, o que há em Walter Benjamin que possa melhor explicar sobre os que mantêm-se acima e os designados a perecerem abaixo? Figura 7 - Trajeto de fuga de Walter Benjamin pelos Pirineus. Chamado de “Rota F”, o trajeto foi organizado pelo casal de militantes anti-fascis- tas Lisa e Hans Fittko. Fonte: https://blogs.mediapart.fr/edwy-plenel/blog/030920/sur-le-che min-walter-benjamin-avec-lisa-fittko ac im a ab ai xo 18 3Tanto o foi, que seu corpo jaz na seção cemiterial de católicos batizados, e não como supostamente deveria, na seção dos indigentes - enquanto judeu que cometera suicídio. Para mais, ver o documentário Quién mató a Walter Benjamin (2005) de David Mauas. ac im a ab ai xo 19 Pensava muito. Pensava sobre brinquedos, sobre ruas e vielas, sobre o vidro, sobre as drogas, sobre Baude- laire, sobre o Messias; sobre arte, sobre aura, sobre contar histórias, sobre colecionar, sobre colecionar histórias, sobre a história, sobre modernidade4. Mas sobretudo, pensava à “meia noite do século”5 sobre revo- lução. O berlinense Walter Benjamin era em si uma constelação: filósofo, romântico, radialista, de origem judaica, contador de histórias, crítico de literatura e arte, colecionador, materialista histórico dialético e escritor. Somente um pensamento suficientemente heterodoxo poderia ser capaz de comportar a tamanha diversidade de suas ocupações. Seus ideais abrigam uma infinitude de contradições, que por serem dessa natureza, geraram incompreensões de seus pares intelectuais, ao passo que possibilitam grande abertura para a presença de seus conceitos no século XXI. A teologia judaica, o romantis- mo alemão e o materialismo histórico dialético6 são três grandes pilares de sustentação de suas análises do mundo e, são vistos da melhor maneira, condensados em seu último trabalho realizado em vida. 4Sobre os textos do autor: Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educa- ção (1913- 1932), Livro das Passagens (1927-1940), Experiência e pobreza (1933), Sobre o Haxixe e Outras Drogas (1926), Teses sobre o conceito de História (1940), Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo (1937), Eduard Fuchs, colecionador e historia- dor (1937), A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (1935). 5O conceito “a meia noite do século” é muito utilizado por Benjamin e foi apropriado do escritor Victor Serge (1890-1947). Refere-se à um tempo limite de urgência e que tem grande possibilidade de disrupção. 6A tese de que a teologia judaica, o romantismo alemão e o materialismo histórico dialético são os três grandes pilares do pensamento benjaminiano é defendida pelo filósofo e pesquisador Michael Löwy. Para mais conferir o livro Walter Benjamin: aviso de incêndio: Uma leitura das teses "Sobre o conceito de história" (2005) de Michael Löwy. III Figura 8 - Possível trajeto que Walter Benjamin teria feito se tivesse sobrevivido, conectando Portbou (ESP) à Lisboa (POR). Foto: Frame do Google Maps. Fonte: Acervo pessoal Possivelmente incompleto em decorrência de sua morte e repleto de tempo-de-agora7, as Teses sobre o conceito da História (1940) é um curto texto onde são apresentadas elaborações a respeito de uma visão revolucionária da História tal qual a conhecemos. Partindo de suas assumpções do mate- rialismo histórico dialético e contrapondo-se a um panorama positivista da história, Benjamin levanta uma série de conceitos sobre o fazer histórico e os deveres de alguém comprometido a analisá-los através da perspectiva daqueles que, assim como ele, foram vítimas das barbáries da humanidade, realizando assim, uma história que viria a chamar de a contrapelo. Em um bilhete enviado para sua amiga pessoal e assim como ele, intelectual alemã, Gretel Adorno, juntamente com o original das teses (que mais tarde, ironicamente, tornaria-se a versão publicada), Benjamin conta a respeito da obra que fizera: A guerra e a constelação que a gerou. Levou-me a pôr no papel ideias das quais posso dizer que andavam comigo, ou melhor, de mim próprio escondidas, há perto de vinte anos [...] Não preci- so te dizer que nem de longe penso na publicação destes apontamentos, e muito menos na forma em que tos mando. Iriam abrir todas as portas aos mais inflamados equívocos. (BENJAMIN, 2012, p. 169)8. Como muito bem previu o autor, sua abordagem hete- rodoxa e disruptiva, de fato, abriu espaço a algumas incompre- ensões que suscitam, até hoje, debates dos mais variados a respeito da gênese de seus pensamentos. Ainda assim, não só é possível encontrar seus conceitos nos trabalhos dos mais diversos autores de sua época, como Hannah Arendt, Gershom Scholem, Bertold Brecht e Theodor Adorno9, como também suas concepções sobre a História permanecem cada vez mais presentes nas produções filosóficas, históricas e artísticas de nossos tempos. Walter Benjamin não teve tempo de responder a imensa maioria das perguntas que levantou, e muito menos esmiuçar boa parte dos conceitos trazidos em suas teses. Cabendo, portanto, aos que arriscam-se adentrar a complexa teia de pensamento do filósofo, articular de algum modo suas ideias à luz do presente, para o presente. 7O conceito de tempo-de-agora ou Jetztzeit é, segundo Michael Lowy, um “autêntico instante que interrom- pe o contínuo da história, que lhe parece visivelmente inspirado em um "amálgama' entre experiências surrealistas e temas da mística judaica”. (LÖWY, 2005, p.15). 8Correspondência à Gretel Adorno de 7 de maio de 1940. 9Obras desses autores a respeito de Benjamin: ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Tradu- ção Denise Bottmann. 6ªreeimpres- são. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: A História de uma Amizade. Tradução Geraldo Gerson de Souza, Natan Norbert Zins e J. Guinsburg. 1.ed. São Paulo: Compa- nhia das Letras, 2008. BRECHT, Brecht. Arbeitsjournal, primeiro volume 1938-1942, ed. Werner Hecht, Frankfurt, Suhrkamp, 1973, p. 294) [ed. bras.: Diário de trabalho, Rio de Janeiro, Rocco, 2002]. ac im a ab ai xo 20 Figura 10 - Escavação no Campo das Cebolas (2016), pormenor. Foto: João Pedro Pincha. Fonte: https://observador.pt/2016/05/21/campo-das-cebolas-ir-busca -o-carro-ao-parque-por-uma-escadaria-pombalina/ ac im a ab ai xo 21 Figura 9 - Padrão dos Descobrimentos, pormenor (1940). Foto: Mário Novais. Fonte: https://www.flickr.com/photos/bibla rte/albums/72157606234802424 A constelação benjaminiana define, por fim, o destino dessa outra linha invisível que criará um vínculo explicativo aos termos que definem a relação entre monumento e ossada, acima e abaixo. Contudo, por se tratar de uma constelação, não se resume apenas à seleção de um aspecto específico de sua vida ou obra, e sim de todas as imagens que, juntas, compõem a cena de seu pensamento revolucionário sobre o mundo. Imagens que partem, portanto, de sua necessidade de escrita ainda que no instante de perigo, por causa do instante de perigo; de sua condição de refugiado que o levou precocemente à morte; de suas teses sobre o conceito da História, condensadoras de vinte anos dos mais variados pensamentos; e, também, de tantos outros textos que escreveu ao longo de sua vida com a intenção de se pensar a interrupção deste mundo para criação de um outro. As obras, situações e circunstâncias benjami- nianas, serão as responsáveis por conceituar a histó- ria acima-abaixo e alguns dos termos entrelaçadores (Exibir/transmitir, Vencedor/vencido, História/his- tória, herança/tradição, luta/guerra, lembrar/es- quecer, tempo/espaço) do Padrão dos Descobrimen- tos com o corpo encontrado. Além disso, encontra- rão lugar para desvendar-se em Walter Benjamin, tanto a criação desse fio como uma ação educacional, quanto seu percurso enquanto história - passando por diversas imagens e tempo-espaço distintos. IV sobre identificação afetiva: Figura 11 - Grupo escultórico do Padrão dos Descobrimentos - pormenor do Infante D. Henrique (1940). Foto: Mário Novais. Fonte: https://www.flickr.com/photos/biblarte/albums/72157606234802424 id en tifi ca çã o af et iv a 22 3 Infante Dom Henrique e a inauguração da primeira versão do monumento em sua homenagem, Padrão dos Descobrimentos, eram separados historica- mente por quatrocentos e oitenta anos. Quatrocentos e oitenta anos soam, à qualquer lembrança, como uma eternidade. Àquela altura, os quase cinco séculos não haviam sido capazes de turvar a memória de quem ele foi, carregando consigo, até aquele momento, seu nome, sua história e seus feitos - levando à construção de um monumento em seu tributo que o mesmo nunca pôde conhecer. Uma homenagem realizada tantos anos após a morte de Infante de Sagres, já evidencia, portanto, a força de sua presença no imaginário de todos aqueles que nutriam gloriosamente o passado colonial portu- guês. No entanto, é somente com a concretização do monumento, que a figura do conquistador expande-se para um caráter substancialmente maior do que sua memória até aquele momento. Se antes registros, docu- mentos, biografias e lendas eram representantes das lembranças de Dom Henrique na terra, o monumento é propriamente seu retorno à vida. Ainda que debaixo da terra há demasiado tempo, é através do Padrão que a figura do conquistador transmuta, de pertencente a um magnânimo passado remoto para um abrigo de sua vida no presente. No agora, simbolicamente vivo na superfície, o Infante viverá mais uma vez todas as imagens, ações e conceitos de sua época, não somente atiçando a lembrança de seus feitos como uma glória do passado, mas inscreven- do, no presente, tudo aquilo que o circundava em seu tempo. Sua imagem não vem, portanto, sozinha. Não somente porque figuram abaixo do conquistador tantas outras personalidades pertencentes ao espaço-tempo colonial, mas porque, além de sua glorificação individu- al, gravam-se às margens do Tejo, também, a glorifica- ção de seus ideais. Ideais que tão bem conhecemos: extrativismo, escravização, catequização, colonialismo e genocídio. Por fim, ideais da barbárie. id en tifi ca çã o af et iv a 23 I A sobrevivência lúcida desses ideais ao longo das centenas de anos que separam homenagem e homenageado, nos faz pensar se algum dia a barbárie ou qualquer uma dessas ações de fato chegaram a cessar. Decerto, ainda que perma- necessem acontecendo, a construção do Padrão dos Descobrimentos atestou a necessidade de instauração de, se não o retorno desses ideais, ao menos a reafir- mação de sua glorificação. O que nos resta é tentar desvendar quais agentes teriam interesses em trazer de volta, ou perpetuar através de um monumento, tais ideais de barbárie à superfície. id en tifi ca çã o af et iv a 24 Figura 12 - Frontal do túmulo do infante Dom Henrique 1394 - 1460, no Mosteiro da Batalha (1994). Fonte: https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/309647/ id en tifi ca çã o af et iv a 25 Figura 13 - Imagem retirada do catálogo do Padrão dos Descobrimentos (1960), pormenor. Fonte: https://padraodosdescobrimentos.pt/wp-content/uploads/2019/03/Brochura-Padr%C3%A3o-dos-Descobrimentos-1960.pdf Quatrocentos e oitenta anos também separaram a morte de Infante Dom Henrique à vida do responsável por prover os meios para a realização de sua monumental homenagem: Antônio de Oliveira Salazar10. O primeiro-ministro de Portugal, ao comemorar o V Centenário da morte do conquistador, 22 anos após a primeira versão do monumento11, corrobora em sua fala para glorificação da vida e legado do homenageado - portanto, também, à todas as causas que o cercavam: Completar-se-ão em 1960, 500 anos sobre a morte de Dom Henrique e o meio milênio decorrido é por si justificação bastante para comemora- ções especiais. Nada mais justo que entre os actos comemorativos se conte um monumento condigno que celebre a pessoa do infante e a sua obra. O Infante de Sagres é, não só um dos maiores vultos da história nacional, como certamente o português de maior projecção do mundo. O curso da história e da civilização ocidental não seria o que foi sem ele, ou, o que é o mesmo, sem os descobrimentos dos portugueses, que se devem na máxima parte ao seu esforço e engenho. (CATÁLOGO..., 1960, p. 3). II 10António de Oliveira Salazar (1889 — 1970) - ditador militarista e ex-Presidente do Conselho de Ministros de Portugal. 11O Monumento foi realizado inicialmente em 1940, com materiais precários e de forma desmontável, em ocasião da Exposição do Mundo Português. Vinte anos depois, em comemoração do aniversário de 500 da morte de Infante Dom Henrique, foi construído de forma definitiva, de armação e concreto. id en tifi ca çã o af et iv a 26 De fato, tal como disse Salazar, o curso da história e da civilização ociden- tal não seria o que foi sem a figura de Infante Dom Henrique, assim como de tantos outros conquistadores portugueses. O que nos difere de seu pensamento, no entanto, é justamente a compreensão de que esse “esforço e engenho” não é, como defende o ditador, de forma alguma, positivo ou digno de glorificação - já que foi esse mesmo esforço o fundante de um dos maiores genocídios da história da humanidade: o colonialismo. Frente a isso, como seria capaz de existir a remota possibilidade de condecoração, tal qual fez Salazar, de uma figura cristalizadora de um período de tamanha barbárie? Temos por nós, aqui e ao longe, o direito – da ocupação, da conquista, da descoberta, da ação colonizadora, da fazenda e sangue dos portu- gueses regando a terra por todas as partes do mundo, cultivando solo, desbravando a floresta, comerciando, pacificando, instruindo. É a vontade do povo; é o imperativo da consciência nacional. (SALAZAR, 1931 apud SARAIVA, 2018, p. 13). Figura 13 - Imagem retirada do catálogo do Padrão dos Descobrimentos (1960), pormenor. Fonte: https://padraodosdescobrimentos.pt/wp-content/uploads/2019/03/Brochura-Padr%C3%A3o-dos-Descobrimentos-1960.pdf Figura 14 - Imagem retirada do catálogo do Padrão dos Descobrimentos (1960), pormenor. Fonte: https://padraodosdescobrimentos.pt/wp-content/uploads/2019/03/Brochura-Padr%C3%A3o-dos-Descobrimentos-1960.pdf id en tifi ca çã o af et iv a 27 A possibilidade da condecoração de Dom Henrique existe à Salazar porque seus pensamentos são efetivamente os mesmos. Essas centenas de anos que os separavam historicamente poderiam parecer suficientes para a diluição de tamanhos equívocos sobre a humanidade, mas a verdade é que se alimentou durante todo este tempo, geração após geração, por meio de ações tais quais a de Salazar, a compreensão de que esse processo opressivo, imperialista e rumando à um progresso sem fim, seria o vitorioso. Na percepção de Salazar, não só o curso da civilização ocidental nada seria sem os grandiosos esforços de Infante Dom Henrique, como também ele próprio devia, ao conquistador, tudo aquilo que acreditava e defendia. De modo que o ditador encontrava na figura do navegador, a gênese de sua própria ideologia. Carregando para si, a missão e o dever de ser o herdeiro dessa tradição. De uma tradição do vencedor da História. Figura 15 - Página do Álbum da Exposição do Mundo Português - 1139, 1640, 1940, (1940), pormenor. Fonte: https://www.livraria-trindade.pt/uploads/produtos/6lbumdaexposiodomundoportugus1940.jpg A construção do monumento pode ser pensada, dessa forma, como a reafirmação de tal tradição ideológica herdada de Dom Henrique por Sala- zar. Uma reafirmação que se deu através de um fazer histórico específico. Enquanto líder político e ocupante de uma posição estrutural, Sala- zar foi agente da história dezenas de vezes, intervindo diretamente na vida de milhões de pessoas e na própria trajetória de Portugal. Todavia, na ocasião da elaboração do monumento, sua presença na História não se deu apenas enquanto agenciador da mesma. id en tifi ca çã o af et iv a 28 III Antes que Benjamin e suas perspectivas da História possam esta- belecer finalmente uma relação com monumento/Dom Henrique/Salazar, será necessário relembrar que o próprio autor não esclareceu as muitas definições que pautou em suas Teses sobre o conceito da História. Portanto, por vezes será necessário ao longo de todo este percurso, a utilização das palavras daqueles que de alguma forma, somam para a construção de bases mais sólidas a respeito de seus conceitos da história. Assim sendo, para compreender, a essa altura, qual teria sido a outra presença na História que teria tido Salazar (em ocasião da constru- ção do monumento), os pensamentos de Michel Rolph Trouillot, historia- dor haitiano, evidenciam melhor alguns dos conceitos de Walter Benjamin sobre história. Em seu livro Silenciando o passado (1995), o historiador define o uso da palavra “história” como tendo um duplo sentido, signifi- cando “tanto os fatos em questão quanto uma narrativa sobre estes fatos; tanto “o que ocorreu” quanto “aquilo que se diz ter ocorrido.” Deste modo: Tendo os seres humanos duas ações frente a história, partici- pando não apenas como atores (o que ocorreu), mas também como narradores (aquilo que se diz ter ocorrido). (TROUILLOT, 2016, p. 21). Eis a segunda presença de Salazar na História. Quando o ditador português (re)inscreve o passado colonialista nas margens do rio Tejo, condensando seus muitos pensamentos reacionários em um monumento em homenagem ao navegador Infante Dom Henrique, decerto fez história como agente, mas também agiu enquanto narrador. Com o Padrão dos Descobrimentos, Salazar atuou como historiador, contando uma determi- nada história a respeito daquelas pessoas e de seus ideais. Ao tecer um fio que conectaria seu presente fascista imperialista com o passado colonial de Infante Dom Henrique, o ditador eternizou, de pedra e concreto, uma visão que glorificava e exaltava esses aparentes distintos momentos da civilização humana - separados por quase cinco séculos - mas que na realidade, eram pertencentes à uma mesma ideologia: da ocupação, da conquista, da descoberta, da ação colonizadora. A assumpção de Salazar como o construtor e historiador de uma narrativa gloriosa que reafirma a barbárie para aquele presente - e, portanto, o monumento não só como documento dessa história, mas como viabilizador de seu acontecer - é um dos conectores de Walter Ben- jamin com a trajetória dos que possuem o poder de acima permanecerem (e o direito da ação colonizadora) e aqueles designados a perecerem abaixo. Fi gu ra 1 6 - F ol de r a tu al d o P ad rã o do s D es co br im en to s co m a d es cr iç ão d e su as fi gu ra s (2 01 9) , p or m en or . Fo nt e: h ttp s: //p ad ra od os de sc ob rim en to s. pt /w p- co nt en t/u pl oa ds /2 01 9/ 05 /A fc _P D _F ol G er al 52 0x 13 0. pd f IV (...) Qual é, afinal, o objeto de empatia do historiador de orientação historicista? A res- posta é, inegavelmente, só uma: o vencedor. Mas em cada mo- mento, os detentores do poder são os herdeiros de todos aque- les que antes foram vencedores. (BENJAMIN, 2012, p.12).12 12Trecho retirado da tese VII id en tifi ca çã o af et iv a 29 Fi gu ra 1 6 - F ol de r a tu al d o P ad rã o do s D es co br im en to s co m a d es cr iç ão d e su as fi gu ra s (2 01 9) , p or m en or . Fo nt e: h ttp s: //p ad ra od os de sc ob rim en to s. pt /w p- co nt en t/u pl oa ds /2 01 9/ 05 /A fc _P D _F ol G er al 52 0x 13 0. pd f id en tifi ca çã o af et iv a 30 Para Benjamin, a feitura da história se dá através de um processo empático entre aquele que conta algo e aquele que é o objeto do contar. A essa ação, ele nomeia identificação afetiva, Einfühlung13. O primeiro olhar de Infante Dom Henrique sobre os mares, o sopro dos ventos nas velas de uma nau ou o pisar em um chão estrangeiro eram, à Salazar, o princípio da criação de tudo aquilo que ele acreditava e defendia em seu presente. O ditador só foi capaz de construir uma narrativa épica das glórias colo- niais desse passado português, justamente porque olhava para as histórias de Infante Dom Henrique tal como fossem de seu próprio pai. Afetivamente, identificava-se enquanto herdeiro do mesmo, enquanto sucessor de sua tradição colonialista. Neste momento, é necessário ressaltar qual seria o caráter dessa identificação. Por certo que não se daria simplesmente em um campo de identificação pessoal, tal como “Salazar veria em Infante Dom Henrique a si mesmo, seu próprio retrato,” e isto bastaria. A Einfühlung, apesar de ser tão afetiva, como se fosse meramente pessoal, não se limitaria a isso, dando-se sobretudo como uma identificação no campo ideológico. O historiador, para Benjamin, em seu processo de criação de um linha conectora entre seu presente com algum passado, tem grande simpatia com a tradição ideológica de um determinado grupo, privilegiando em sua narrativa determinada ideologia. No entanto, se essa narração acontece partindo de um sentimento afetivo com os ideais de algum determinado grupo, o que acontece, nessa narrativa, com aqueles que não são o objeto de simpatia do historiador? Trouillot, considera que pertence também a narração dos fatos, aquilo que nela não se consegue ver e ouvir - seus silên- cios: Primeiro, fatos jamais são desimportantes, com efeito, tornam-se fatos apenas porque importam em alguma medida, por mínima que seja. Segundo, fatos não nascem iguais; a produção de indícios é sempre também a criação de silêncios. (TROUILLOT, 2016, p. 62). Naquela ocasião, enquanto historiador, como um contador de história, Salazar tomou decisões na construção de sua narrativa, privilegiando aqueles com os quais se identificava, selecionando seus ideais em comum e condensando-os em forma de monumento. Foi por meio dessa comemoração, que o retorno definitivo do navegador, e de sua ideologia, deu-se à superfície como marca de uma história única, esplendorosa e de muitas conquistas e, justamente por isso, repleta de silêncios. A própria construção monumental, tal como seu catálogo de relançamento (1960), não fazem qualquer menção a nenhuma outra das partes correspondentes ao lado oposto da epopeia marítima colonial portuguesa, ou seja, aos que não foram dignos da simpatia de Salazar: as vítimas. As lacunas visíveis e vácuos sonoros dessa narrativa do monumento, são preenchidas simbolicamente pelas atrocidades cometidas no perí- odo colonial: os epistemicídios culturais, as milhões de almas e vidas roubadas, junto às explorações e esgotamentos ambientais. Esse silêncio paira como uma borracha na história das vítimas daqueles que têm o afeto de Salazar, apagando suas trajetórias no passado e perpetuando seus corpos debaixo da superfície no presente. 13Traduzido como identificação afetiva por Michael Löwy em Walter Benjamin: aviso de incêndio: Uma leitura das teses "Sobre o conceito de história". id en tifi ca çã o af et iv a 31 Portanto, têm o poder e virtude de existir em superfície, exercendo seu direito à posse, domínio e controle sobre corpos, terras e culturas, aqueles que sabemos os nomes e fazemos de suas vidas uma glória eterna, aqueles tal como Infante Dom Henrique e Salazar. São estes os que permanecem vivos ainda que mortos, perpetuados no imaginário dos que estão no presente. São eles os vencedores da História: aqueles que a escre- vem e nela estão representados. Para o filósofo e estudioso da obra benjaminiana, Michael Löwy, em seu livro Walter Benjamin: aviso de incêndio: Uma leitura das teses "Sobre o conceito de histó- ria" (2005) , onde analisa tese por tese sobre o conceito da História, o termo “vencedor,” constantemente empre- gado por Benjamin, não se refere exclusivamente aos que ganharam as batalhas ou as guerras comuns, mas sim “aos vitoriosos da ‘guerra das classes’14, em que um dos campos - a classe dirigente - não cessou de vencer os oprimidos.” (LÖWY, 2005, p. 71). Deste modo, para Benja- min, essa classe dirigente não chama-se vencedora necessariamente porque ganha as batalhas através dos massacres opressivos na humanidade e sim consagra-se vencedora graças a História hegemônica e aos que com ela se identificam afetivamente. É na História que tragé- dias de uns são narradas como vitórias de outros, possuindo o poder de nutrir para as futuras gerações a simpatia com essa classe. No entanto, ainda que respon- sável por afirmar eternamente como vencedor um deter- minado grupo, esse espaço garantido na História só pode se dar porque os agentes feitores da mesma já são, em vida, os vencedores da luta de classes à qual fala Benjamin e, logo, os possuidores do poder de contar e ser ouvido. Isso nos mostra que a importância e visibilidade de certos grupos dependem dos responsáveis que produ- zem certa história. E: Se assim pensarmos, essa produção de narrati- vas históricas envolveria a desigual contribui- ção de grupos e pessoas concorrentes, que teriam acesso desigual aos meios dessa produ- ção. (TROUILLOT, 2016, p. 18). Figura 17- Mulheres posam em frente a caravela exposta em ocasião da Exposição do Mundo Português (1940). Foto: Casimiro Vinagre. Fonte: https://www.flickr.com/photos/ biblarte/albums/72157606234802424/page1 14Traduzido como identificação afetiva por Michael Löwy em Walter Benjamin: aviso de incêndio: Uma leitura das teses "Sobre o conceito de história". Acima e abaixo, vencedores e vencidos são concorrentes da disputa de classes, produzindo, portanto, histórias distintas já que identificam-se com tradições passadas conflitantes entre si. Mesmo que ambos produzam narrativas, é a história dos vencedores - realizada pelo conquistador da vez, detentor dos meios oficiais de sua produção, tal como Salazar enquanto primeiro-ministro de Portugal - que vive e respira no nosso presente. Difun- de-se por meio dos nomes das ruas e avenidas de nossas cidades, dos livros escolares e, claro, dos monumentos, uma história dos vencedores que, em razão disso, torna suas principais figuras e seus ideais, vivos na superfície. Enquanto as narrativas construídas pelos herdeiros de uma tradição dos oprimidos, dos vencidos, estão para nós no presente assim como os mesmos estão inscritos na difundida narrativa vencedora: ausentes, apagados, silen- ciados. Salazar, isto posto, escreve uma história dos vencedores enquanto narrador, porque afetivamente identifica-se com a ideologia daqueles que o antecederam nas mesmas funções e espaços de poder. Já esta história vencedora, que é capaz de glorificar os massacres como conquistas e, assim sendo, que aviva o vazio e silêncio daqueles que nela não constam, têm a Walter Benjamin um nome: chama-se historicismo - uma história com H maiúsculo; uma história hegemônica. O trecho que abre essa seção, correspondente da tese VII sobre o conceito da História, utiliza- -se desse termo para designar a orientação de um historiador que realiza história partindo daqueles que vencem a luta de classes. id en tifi ca çã o af et iv a 32 Figura 18 - Apresentação de hip-hop para o Campeonato Interclasse da Escola Estadual Infante Dom Henrique, na cidade de São Paulo (2018). Fonte: http://infantedomhenrique.blogspot.com/ id en tifi ca çã o af et iv a 33 V O historicismo limitou-se a estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas um fato, por ser causa de outro, não se transforma por isso em um fato histórico.(BENJAMIN, 2012, p.20) 15. O historicismo é um fazer história do curso, do prosseguimento, do avançar para onde quer que isso venha a dar. Dos dias que se sucedem, de um fato após o outro e o outro e o outro. Do “era uma vez” 16. Há uma pretensão em tentar especular quais foram as principais necessidades que as Teses sobre o conceito da História clamavam, mas talvez a urgência por uma interrupção desse fluxo contínuo e nexo causal da história, viesse a ser uma delas, daí seu caráter revolucionário. Estas abordagens benjaminianas, sobre o historicismo, partem de uma brutal oposição a sua existência e práti- ca nas ciências humanas. A pensar essa oposição, a filósofa benjaminiana, Jeanne Marie Gagnebin em seu livro Lembrar, escrever, esquecer (2009), vê nas teses uma: (...) recusa clara ao ideal da ciência histórica que Benjamin, pejorativamente, qualifica de histori- cista e burguesa, ciência esta que pretende fornecer uma descrição, a mais exata e exaustiva possível, do passado. (GAGNEBIN, 2009, p. 40). Desta análise da autora, parte também a possi- bilidade de dois momentos para pensar o historicismo na concepção de Walter Benjamin. Um em seu conteúdo e outro em sua forma. Segundo Gagnebin, para o filóso- fo existe: (...) uma cumplicidade entre o modelo dito objetivo do historicismo, nós diremos hoje o paradigma positivista, e um certo discurso nivelador, pretensamente universal, que se vangloria de ser a história verdadeira e, portan- to, a única certa e, em certos casos, a única possível. Sob a aparência da exatidão científica (que é preciso analisar com circunspecção), delineia-se uma história, uma narração que obedece a interesses precisos. (GAGNEBIN, 2009, p. 40). Figura 19 - infante Dom Henrique no Padrão dos Descobrimentos (1997), pormenor. Fonte: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/ SIPAArchives.aspx?id=092910cf-8eaa-4aa2-96d9-994cc361eaf1&nipa =IPA.00009750 FOTO AMASSADA 15Trecho retirado do Apêndice A. 16Termo usado po Walter Benjamin enquanto crítica ao historicismo. Visto na tese XVI. id en tifi ca çã o af et iv a 34Figura 20 - Escavações do Campo das cebolas, em Alfama - Lisboa, (2018) Fonte: Frame do filme Rotas da escravidão (2018) Figura 19 - infante Dom Henrique no Padrão dos Descobrimentos (1997), pormenor. Fonte: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/ SIPAArchives.aspx?id=092910cf-8eaa-4aa2-96d9-994cc361eaf1&nipa =IPA.00009750 O positivismo apontado por Gagnebin é, para Benjamin, a base estrutu- rante dessa história de identificação com o vencedor e culmina, como tinha de ser, na história universal 17. Com seus preceitos de evolução e progresso, o positivismo conceitua a história com H maiúsculo - uma história totalizante, hegemônica e controladora que, enquanto única possível, tem como interesse preciso assegurar ideologicamente seus ideais dominantes para as próximas gerações, garantindo assim a manutenção eterna de seus lugares de/no poder. Para tal, necessita reprimir, através dos silêncios gerados por sua unicidade, a existência do contar dos vencidos - tornando enterrados, juntamente com seus corpos, todos seus ideais de resistência e revolução. O conceito de progresso positivista, enraizado dentro do fazer histori- cista, é, de fato, um assunto recorrente à Benjamin e grande foco de suas críti- cas. Em principal, essa aversão ao progresso viria, pois, seria em seu nome que essa elite dominante, historiadora do historicismo, cria ao longo dos anos as mais impensáveis justificativas para a manutenção da posição de alguns na superfície e outros debaixo da terra. Ficcionando, portanto, através desse modo de contar a história, justificativas para a barbárie. Encontra-se aí a razão para tamanho antagonismo de Walter Benjamin à essa história hegemônica, que não vê qualquer embaraço, por exemplo, no encontro de um corpo negro escravizado abandonado a esmo à centenas de anos, sem direito a passado, sem salvação no futuro. À tradição historicista, a vida dessa pessoa desenterrada por acaso em Alfama, somada às milhões de almas perdidas pelo colonialismo, seriam uma pequena e inevitável consequ- ência do progresso para a evolução humana. Nada significando, portanto, as tantas histórias que nunca puderam ser contadas (que permanecem enterra- das) se comparadas com a grandiosa epopeia marítima de Infante Dom Henri- que que, como em um conto de fadas, torna-se o herói responsável por mudar o curso da história para sempre. 17Termo usado po Walter Benjamin enquanto crítica ao historicismo. Visto na tese XVIi. VI A ideia de um progresso do gênero humano na história não se pode separar da ideia da sua progressão ao longo de um tempo homogêneo e vazio. (BENJAMIN, 2012, p. 17)18. Tendo o positivismo, e suas concepções evolucionistas de progresso, como bases conceituais do historicismo, sua instauração no mundo dá-se à Benjamin pela criação de um tempo homogêneo e vazio. Homogêneo porque, como assim descreve Ganegbin (2013, p. 96) em seu livro História e narração em Walter Benjamin, é “esse tempo indiferente e infinito, que corre, sempre igual a si mesmo, que passa engolfando o sofrimento, o horror, mas também o êxtase e a felicidade”. Um tempo que acaba por pasteurizar todas as dores e alegrias, inscrevendo-as em uma cronologia causal, ano após ano, massacre após massacre, como justificativa da evolução da humanidade. Homogêneo porque contempla, passivamente, os horrores e conquistas de forma igual. Ademais, um tempo que se encontra vazio, pois não é preenchi- do pelo tempo de urgência do presente, pelas experiências humanas transformadoras. Porque se cala “frente a cadeia de fatos que aparece diante de seus olhos, que incessantemente amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés” (BENJAMIN, 2005, p. 87). Vazio pelo o que lhe falta: em seus silêncios, encontram-se as tantas milhares de histórias perdidas das vítimas da barbárie. Esse historicismo - positivista, vazio e pasteurizador - assim o é porque precisa criar uma lógica que seja capaz de justificar aquilo que deveria ser inadmissível à humanidade. Para isso, se apresenta tal como uma linha do tempo que vemos na escola: cronologicamente, postula datas, nomes e conquistas, um atrás do outro, de modo a nada nos contar de fato sobre aqueles que nos antecederam, apenas descrevendo enquanto vitória, os destroços produzidos pelos vencedores. id en tifi ca çã o af et iv a 35 18Trecho retirado da Tese XIII id en tifi ca çã o af et iv a 36 VII Este exemplo a respeito da linha do tempo escolar enquanto forte represen- tante do historicismo em nossas vidas não se dá à toa. Parte fundamental para com- preender como acontece o historicismo, está na maneira a qual ele é transmitido. Ora, se a história é feita por meio de uma identificação afetiva que objetiva a perpe- tuação no presente de ideologias e ações do passado, ela necessita de certos veícu- los para que possa ser passada adiante. São, portanto, através das celebrações dos vencedores - vistas em linhas do tempo na escola ou monumentos pela cidade - que a imensa maioria das pessoas, ainda que sendo da classe oprimida, se identifica com uma narrativa que almeja designá-las para debaixo da terra, gerando uma identifica- ção não com o antecessor direto de sua luta, mas sim com seu próprio opressor. Deste modo, a criação de uma história historicista, intenciona necessaria- mente, ainda que de forma velada, a transmissão de uma maneira de se enxergar o mundo que seja capaz de reprimir as possibilidades de libertação e revolução daqueles que são os vencidos da luta de classes no presente - ao mesmo tempo que visa garantir o poder para aqueles que já o detêm. É nesse processo de transmissão de uma geração para outra, que vemos como o fazer Histórico e os veículos respon- sáveis por perpetuar seus ideais hegemônicos estão completamente prescritos em uma prática educacional. Figura 21 - Folder atual do Padrão dos Descobrimentos - cronologia da expansão portuguesa (2019), pormenor. Fonte: https://padraodosdescobrimentos.pt/wp-content/uploads/2019/05/Afc_PD_FolGeral520x130.pdf id en tifi ca çã o af et iv a 37 A exemplo do Padrão dos Descobrimentos, podemos pensar que Salazar, ao narrar uma determinada história a partir da implantação do retorno definitivo das concepções colonialistas portuguesas, visava não só a perpetuação de uma tradição hegemônica da barbárie, mas sobretu- do, instruir a população à assimilar enquanto comum o silêncio em torno das tantas narrativas recalcadas do passado que, a luz daquele presente, poderiam ameaçar a manutenção de uma ordem que o privilegiava. Para isso, educou a população primeiramente a partir da mostra poética histórica, Exposição do Mundo Português (1940) - onde o Padrão dos Descobrimentos fora cons- truído pela primeira vez, de forma improvisada - e depois com sua instalação definitiva de concre- to armado, em ocasião do V Centenário de morte de Infante Dom Henrique, em 1960. Sendo, portanto, atos transmissionais educacionais como estes, reafirmados durante anos, os responsá- veis por nutrir a identificação com ideais vencedores. Essa narração educacional, através da cons- trução do monumento, instaurou naquele momento não só a volta definitiva de Infante Dom Hen- rique, mas também o ensino da indiferença em relação à história das vítimas do período colonial. Eis talvez, uma das maiores crueldades do processo de transmissão, e mais um motivo para atuar ao lado de Walter Benjamin na oposição direta ao modelo historicista. A História hege- mônica não é apenas ensinada para que os detentores do poder agora, possam corresponder-se com o passado que fala à sua ideologia do presente, mas sobretudo, tem a finalidade de ensinar aos vencidos a esquecerem-se de si próprios. Nutrindo empatia não com uma história vencida que busca a emancipação de seu presente, mas sim com a tradição justamente responsável por aprisioná-los, por designá-los sempre para debaixo da terra. Figura 22 - Comemorações henriquinas - reconstrução do Padrão dos Descobrimentos (1960). Foto: Amadeu Ferrari. Fonte: https://padraodosdescobrimentos.pt/galeria/comemoracoes-henriquinas/ Figura 22 - White Buffalo antes da colonização. Foto: John Nicholas Choate. Fonte: https://carlisleindian.historicalsociety.com/images/white-buffalo-before/ Figura 23 - White Buffalo depois da colonização. Foto: John Nicholas Choate. Fonte: https://carlisleindian.historicalsociety.com/images/white-buffalo-before/ so br e o tr an sm iti r 38 4 sobre o transmitir: me ensinam a esquecer de você Fi gu ra 2 4 - W hi te B uf fa lo a nt es d a co lo ni za çã o. F ot o: J oh n N ic ho la s C ho at e. Fo nt e: h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es Fi gu ra 2 3 - W hi te B uf fa lo d ep oi s da c ol on iz aç ão . F ot o: J oh n N ic ho la s C ho at e. Fo nt e: h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es I Porque é irrecuperável toda a imagem do passa- do que ameaça desaparecer com todo o presente que não se reconheceu como presente intencio- nado nela. (BENJAMIN, 2012, p. 128) 19. so br e o tr an sm iti r 39 19Trecho retirado do texto Eduard Fuchs, colecionador e historiador. A primeira vez que li este trecho de Walter Benjamin, acendeu como em um flash, alguns fragmentos de uma história que um dia ouvi ser contada, em ocasião do Encontro Científico do Mestrado Profis- sional PROF-ARTES da UNESP, realizado em 2019 na cidade de São Paulo. Esta história, decerto, já havia sido relevante para mim no instante em que a ouvi, posto que fui capaz de recordá-la e aqui a contarei. Porém, percebo que só efetivamente pude compreender seu cerne quando a mim revelou-se em conexão com o trecho acima. Em minha mente, a conexão entre as duas é tão bem estabelecida que torna-se impraticável sua separação. Elas misturam-se e fundem-se de tal modo a criar uma nova imagem, agora única. Essa relação instantânea em lembrar-se de uma imagem de seu passado, condensando-a a um pensamento ou situação do presente, é o que Benjamin chamou de imagem dialética. Em uma de suas muitas definições sobre o conceito, o autor diz: A imagem dialética é um relâmpago em forma de cone que atravessa todo o horizonte do passado. (...) Na medida em que o passado se concentra no instante – na imagem dialética –, ele entra na memória involuntária da humanidade. (BENJAMIN, 2012, p. 179). so br e o tr an sm iti r 40 so br e o tr an sm iti r 41 Deste modo, como ajuda a explicar Ganegbin, a imagem dialé- tica é o “encontro súbito entre dois (ou mais) acontecimentos que, de repente, são (com)preendidos pela interrupção da narração e se cristalizam numa significação inédita” (GAGNEBIN, 2013, p. 105). Ou seja: uma imagem que, de modo instantâneo e involuntário, aparece em nossas mentes atravessando passado, presente e futuro, relacio- nando aparentemente distintos acontecimentos que, juntos, solucio- nam questões do aqui e agora. Para citar a própria alegoria benjami- niana, a imagem dialética aparece tal qual o processo de revelação de uma fotografia, mas que tendo sua imagem gravada no passado, só encontrou os químicos capazes de revelar-se de fato, no presente, logo, em seu futuro: (...) o passado depositou imagens comparáveis às que foram fixadas numa chapa sensível à luz. “Só o futuro tem reveladores suficientemente fortes para fazer emergir a imagem em todos os seus pormenores (...). (BENJAMIN, 2012, p. 184). Ainda que a imagem dialética possa requerer um coletivo para poder ser apreendida pela humanidade, tal como postulava Benjamin, essa minha revelação, mesmo que individual, e ainda com a duração de um instante, foi capaz de transformar-se em uma memória involuntá- ria, que já não sou capaz de esquecer. E portanto, também por esta razão, não deixarei de compartilhá-la. Além disso, a escrevo porque acredito ser por meio dessa imagem cristalizada, que passei a questio- nar sobre a crueldade de construções educacionais que geram a empatia do oprimido com seu opressor e, também, sobre a necessida- de de buscar possíveis caminhos alternativos à essa transmissão. Esta história, portanto, não é uma transcrição; e sim uma memória. Na sala em que estávamos, o teto alto e os espaços vazios projetavam a voz de qualquer um que falasse. Atrasada como sempre, consegui chegar a tempo de ouvir ecoar da metade para o fim as pala- vras da professora doutora musicista Ethel Batres, da Guatemala. Prontamente, sua eloquência e didática me cativaram de tal forma, que mal me lembro de escutá-la em espanhol. Passando por exemplos de sua professoralidade, seus conhecimentos sobre culturas amerín- dias e críticas ao currículo escolar, sua fala buscava pensar os proces- sos de decolonização da escuta, as políticas públicas para o ensino so br e o tr an sm iti r 42 II so br e o tr an sm iti r 43 formal e os cânones artísticos coloniais. Ainda que me arrependa amargamente do fato de ter perdido o início daquela conversa, muitas dessas reflexões construídas podem ser encontradas em um texto seu desenvolvido naquela ocasião para a Revista CLEA, número 8. No entanto, a história por ela narrada naquele dia, que aqui contarei enquanto lembrança, não consegui encontrar registrada em nenhum outro lugar, temendo a mim mesma, tê-la puramente imaginado. Recordo-me de muitas de suas palavras, sobretudo das diver- tidas interações por ela proporcionadas. Me lembro de rasgarmos uma partitura de Beethoven ou Mozart, ao som de um grande “VIVA!”. Também de quando apresentou uma cerâmica incógnita para muitos pesquisadores. Objeto que, abaixo do manto colonial, era lido por uns como ocarina e por outros enquanto recipiente para armazenar água. Desvelando-se dessa definição exclusiva - ou um ou outro - a peça era na verdade os dois (por que não?): um instrumento musical que ao se colocar água, emitia um som tal como o de uma ocarina. Divertida e entusiasmada, em um dado momento, tomou um tom mais sóbrio para a discussão. Em minha memória, a imagino levantando e indo sentar-se à beira da mesa, ou talvez quem sabe, de pé, perpassando as cadeiras espalhadas que tentavam preencher as lacunas da sala. Ainda que dificilmente isto tenha acontecido, apenas a enxergo assim em minha memória. Minha atenção naquele instante redobrava-se. Então, começo ouvi-la contando a tal história que, registrada naquele dia em minha mente, revelou-se mais tarde com os pensamentos de Walter Benjamin. A memória se passa na altura em que Ethel terminava de aprender a ler e escrever em sua língua materna, o espanhol. Na escola, todas as crianças, assim como ela, estavam aprendendo essa mesma língua. A língua que falavam com seus pais, que ouviam no rádio, que viam nas placas das ruas e que, portanto, significava suas vidas. Junto dela nesse aprendizado, Ethel conta que se lembra muito bem de uma garotinha em especial. A menina vinha de um pouco longe, todos os dias, para alfabetizar-se assim como ela. Mas recorda-se particularmente dela porque era um pouquinho diferente das outras alunas e alunos. Vestia roupas diferentes, falava um pouco diferente, comia comidas diferentes e se comportava também um pouco diferente. A todo tempo, a pequena Ethel questionava a si mesma, sem nunca perguntar àquela coleguinha ou a qualquer outro, o porquê dessa diferença. Neste momento, lembrando de si criança, a musicista começa interpretar para nós, algumas dessas perguntas que passavam em sua mente aos 8 anos de idade: “Essas roupas lindas… Por que essas roupas? Esse jeito de falar… Por que fala desse jeito esquisito? Essas comidas… De onde vem essas comidas?” Com a pulga atrás da orelha, so br e o tr an sm iti r 44 so br e o tr an sm iti r 45 mas tímida para perguntar, permaneceria por muito tempo sem saber a resposta para essas dúvidas. Ethel faz uma pausa após essa introdução e começa a nos contar sobre alguns dos exercícios e temas que aprendia na escola e, partindo disso, narra uma situação específica a qual se lembra muito bem. Em um dos tantos exercícios de ditado que fazia, Ethel recorda de um singularmente. O dia em que sua professora lhe contou uma histori- nha, sobre um povo que há muito tempo pisou nos lugares que agora ela pisava, que habitou os espaços que agora eram de sua casa, de sua escola, de seu parque favorito. A professora falava sobre o povo maia. Sobre suas divertidas festas, múltiplas línguas, músicas alegres e como contavam ótimas histórias para dormir. Mas foi com profunda tristeza, que a educa- dora apresentou às crianças que, dada a colonização, os maias não mais existiam na Guatemala. A partir disso, explicou os diversos motivos que levaram isso a acontecer, entre eles, a conquista dos colonizadores, a escravização desses indígenas, a sua conversão ao catolicismo e as tantas doenças trazidas da Europa para as Américas. As mesmas explicações que apren- demos nos livros didáticos. Por fim, a professora ditou algumas frases sobre essa história contada, sendo uma delas a seguinte: “Os maias não mais existem na Gua- temala”. Desse modo, Ethel, sua diferente coleguinha e todos os seus outros amigos, escreveram repetidamente para fixação em suas apostilas: “Os maias não mais existem na Guatemala” so br e o tr an sm iti r 46 Muitos anos se passaram sem que Ethel ao menos se recordasse da garotinha, do ditado e de seus dizeres. Esta memó- ria, descansando em sua mente a arrebatou de repente em um futuro distante de quando aconteceu. A medida em que cresciam suas pesquisas sobre o pensamento decolonial e a prática colonia- lista nas escolas, percebeu-se em posse da requerida resposta para a pergunta que permeava sua infância. Tinha, anos mais tarde, encontrado a razão para o porquê das lindas e diferentes roupas de sua coleguinha de escola; do porquê de sua fala esquisi- ta e com sotaque carregado; do porquê de sua comida cheirosa e com diferentes ingredientes. so br e o tr an sm iti r 47 Neste momento, de volta a sala do simpósio, Ethel, com um ar soturno, revela a todos que a ouviam a resposta encontrada: A garotinha de sua escola se vestia diferente, falava diferente e comia diferente, porque era uma garotinha maia. Fi gu ra 2 5 - T rê s pe ss oa s do P ov o La gu na a nt es d a ca te qu iz aç ão . F ot o: J oh n N ic ho la s C ho at e. F on te : h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es so br e o tr an sm iti r 48 “Os maias não mais existem na Guatemala, Os maias não mais existem na Guatemala, Os maias não mais existem na Guatemala Os maias não mais existem na Guatemala” Para ler e falar espanhol, a menina percorria de seu vilarejo à escola, um longo caminho, com a esperança de adquirir um tal conhecimento que em teoria pudesse garantir à ela uma vida que entendia-se como sendo melhor da que viviam seus pais. A sala em silêncio e meus olhos cheios de lágrimas. Ethel direciona seu pensamento para uma crítica ao currículo escolar e sobretudo, ao papel do professor. Em síntese, nos perguntando: “O que ensinou a professora à garotinha maia?” Ethel começa a aprofundar suas críticas, mas já não consi- go me concentrar em ouví-la, nem em respondê-la. Abalada, a pergunta continua ressoando em mim. Imagino uma cena. Vejo essa garota, a frequentar aquele espaço escolar à ela muito dife- rente, gravando em seu caderno, repetidas vezes, este ensinamen- to transmitido pela professora: Fi gu ra 2 6 - T rê s pe ss oa s do P ov o La gu na d ep oi s da c at eq ui za çã o. F ot o: J oh n N ic ho la s C ho at e. F on te : h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es so br e o tr an sm iti r 49 Quando voltava para casa, como forma de assimilação daquilo que aprendeu durante o dia, a imaginei sentando com seus pais, irmãos e irmãs, abrindo seu caderno com tantas frases repetidas e, na língua colonial em que ouviu esses dizeres, reproduzia o que havia aprendido durante o dia. Sua família, sem saber ao certo o que dizia, sem decifrar o significado daquele aprendizado, admirava-se com sua pronúncia e habilidade. No entanto, ao dizer repetidas vezes essa mesma frase, a garotinha, agora em posse dessa língua, via-se impos- sibilitada de lê-la, pois compreendia por fim aquilo que lhe foi passa- do. Esforçou-se mais uma vez, para repetir aqueles escritos, mas não conseguia. Então em voz alta, olhou para sua família, contou até três e disse o que havia aprendido na escola naquele dia: Fi gu ra 2 7 - C ria nç as e sq ui m ós a nt es d a ca te qu iz aç ão n a es co la C ar lis le In di an S ch oo l. Fo to : J oh n N ic ho la s C ho at e. F on te : h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es so br e o tr an sm iti r 50 “Nós maias não mais existiremos na Guatemala” Fi gu ra 2 8 - C ria nç as e sq ui m ós d ep oi s da c at eq ui za çã o na e sc ol a C ar lis le In di an S ch oo l. Fo to : J oh n N ic ho la s C ho at e. F on te : h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es III Porque é irrecuperável toda a imagem do passado que ameaça desaparecer com todo o presente que não se reconheceu como pre- sente intencionado nela. so br e o tr an sm iti r 51 Fi gu ra 2 9 - T om T or lin o do P ov o N av aj o an te s da c at eq ui za çã o. Fo to : J oh n N ic ho la s C ho at e. F on te : h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es “O que ensinou a professora à garotinha maia?” Depois de tudo que vimos, do Padrão dos Descobrimentos à ossada encontrada em Alfama, de Salazar e sua identificação afetiva e, especialmente, da maneira com que o historicismo é transmitido, não teríamos qualquer dificuldade em esboçar uma resposta para a pergunta de Ethel. Porém, na altura em que a ouvi, essas concepções eram a mim desconhecidas. Ainda que tivesse me emocionado muito com a narração, sentindo sua imensa potência a ponto de partilhá-la sempre que podia, ainda não havia encontrado nitidamente os quími- cos para revelar sua essência. Foi apenas meses depois, no instante em que li este trecho benjaminiano de Eduard Fuchs: colecionador e historiador (1937) (prelú- dio para a tese V), que condensou-se uma límpida imagem daquela garota em minha mente - suas roupas destacavam-na dos demais colegas, sentada em sua carteira, olhando para a apostila. Ouvindo atentamente, escrevia linha por linha daquilo que à ela era transmitido pela professora. Dado momento, apercebendo-se que a repetição das frases haviam completado uma página inteira, tentou virar a folha para continuar a escrever, mas ao fazê-lo, desapareceu. Agora, a sala preenchida com alunos iguais, tinha uma carteira vazia. Enfim pude responder a pergunta de Ethel: a professora ensi- nou-a a esquecer. so br e o tr an sm iti r 52 Fi gu ra 3 0 - T om T or lin o do P ov o N av aj o de po is d a ca te qu iz aç ão . Fo to : J oh n N ic ho la s C ho at e. F on te : h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es so br e o tr an sm iti r 53 A cada “Os maias não mais existem na Guatemala”, a garota transparecia-se, até não mais ali estar. Com ela, desapareceria também a imagem daqueles que a antecederam. Porque o tempo não é linear e progressivo, como clama o historicismo e, portanto, o passa- do não cessou; o passado tem volta, e, exatamente por isso, também pode desaparecer. Na ocasião em que apresentava aos alunos a triste notícia que os maias não mais existiam na Guatemala, a professora listava as várias razões que culminaram no extermínio de línguas, culturas e almas indígenas. Dentre elas, a vitória dos colonizadores. Contudo, se este processo foi tão doloroso como intencionou a educadora com seu pesar, teriam os indígenas maias aceitado essa derrota e seu triste destino e, deste modo, abstiveram-se de resistir à ação colonial, ainda que perdendo? Neste momento, faz-se necessário retomar o materialismo histórico dialético de Benjamin e seus aprendizados com Marx, que compreende a história da humanidade como a história da luta de clas- ses. Regimes violentos de exploração, tal como o colonialismo, foram a todo momento percorridos por muita luta, disputa, combate e confronto. Deste modo, a fim de não apenas possuir a chance de narrar a história, como vimos, os oprimidos lutam também pela possi- bilidade de vida sob a terra para si mesmos e para aqueles que os suce- derão. Portanto, não. Os indígenas maias, como todas as classes que Fi gu ra 3 1 - E st ud an te s do P ov o N av aj o an te s da c at eq ui za çã o. Fo to : J oh n N ic ho la s C ho at e. Fo nt e: h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es Fi gu ra 3 2 - E st ud an te s do P ov o N av aj o de po is d a ca te qu iz aç ão . Fo to : J oh n N ic ho la s C ho at e. Fo nt e: h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es sofrem com a opressão e exploração, em nenhum momento deixaram de lutar. Ainda que a professora tentasse transmitir a ação colonizado- ra em toda sua barbaridade, ela a conta omitindo ou desconhecendo essa luta dos que à revelia, teimaram em resistir. Nota-se que, mesmo tentando pontuar o horror colonial, a educadora não deixa de realizar em sua prática, a perpetuação de violências coloniais tais como as realizavam também os muitos conquistadores espanhóis na Guatema- la. Isso porque, foi por meio da luta política de resistência dos povos maias, com as milhares de vidas, histórias e nomes enterrados na terra - e com aqueles que ousaram narrar suas histórias para os que vieram depois - que aquela garotinha maia poderia estar ali, viva sob a superfície. Viva e vestindo aquelas roupas, comendo aquela comida e falando daquele jeito. E é porque sua professora desconhece esses processos de resistência e a brava permanência sob a terra dessas etnias maias, que não a reconhece como indígena naquele presente. Deste modo, praticando uma das maiores violências do colonialismo: o ensinamento pela negação de si. Ao passo que a garotinha vai aos poucos desaparecendo no presente, aquele passado de luta que havia traçado o caminho para que ela ali estivesse também se esvai, porque não consegue encontrá-la, não se vê intencionado por ela. Fi gu ra 3 3 (e sq ue rd a) e F ig ur a 34 (d ire ita ) - S he ld on J ac ks on , H ar ve y To w ns en d e Jo hn S hi el ds a nt es e de po is d a ca te qu iz aç ão re sp ec tiv am en te . F ot o: J oh n N ic ho la s C ho at e. Fo nt e: h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es so br e o tr an sm iti r 54 so br e o tr an sm iti r 55 Ao aprender - na língua que outros tantos indígenas tiveram que forçadamente saber - que ela, sua família e cultura não pertencem ao presente e, portanto, não serão vistas no futuro guatemalteco, também esquece da memória de um passado revolucionário que clama por ser resgatado; que quer ver-se intencionado no presente de alguém. Nas palavras de Ganegbin “A lembrança do passado desperta no presente o eco de um futuro perdido do qual a ação política deve, hoje, dar conta.” (GAGNEBIN, 2013, p. 69). O historicismo se perpetua porque compreende a importância do reconhecimento do passado esquecido para uma promessa de transformação no presente. E é assim, temendo a fúria e revolta de todos os descendentes que se reconhecessem empaticamente naque- les que resistiram e lutaram, que transmite o desaparecimento, o fim. Não são somente os detentores do poder que são os herdeiros de todos aqueles que um dia foram vencedores. A própria educadora, distante das instâncias de poder, não teria motivos para identificar-se empaticamente com uma narrativa colonial, mas ainda assim o faz. Isso porque, como apresenta Batres (2019, p. 71) de modo geral, agora em seu texto, a transmissão da tradição colonialista não se dá apenas pelo trabalho de um único profissional. Fi gu ra 3 5 - C ria nç as d o po vo P ue bl o an te s da c at eq ui za çã o. Fo to : J oh n N ic ho la s C ho at e. F on te : h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es Existe um “sistema político institucional” que opera para que isso ocorra: os ministérios públicos da educação e cultura de um país, os currículos escolares, os planos e programas de estudos universitá- rios, os materiais educativos e, em especial, a formação de professo- res. Portanto, sua professora, responsável por cristalizar na musicista essa dura memória sobre a prática colonialista educacional e que, aqui, interpreto também enquanto historicista, é só um dos muitos exemplos de transmissão colonial. Isto posto, assimilamos que o processo histórico calca-se na ação educacional para existir. Na mesma medida em que a educação não se desvencilha de modo algum de uma prática histórica que, portanto, necessita definir uma identificação com algum passado que se pretende intencionar naquele presente. A professora de Ethel, apenas respondeu a uma educação que a ela também foi transmitida, educando seus alunos, por meio de uma tradição que na verdade não a pertence. Dois apuros surgem, no entanto, ao educador que identifica- -se com a tradição do vencedor. O primeiro, é que na ilusão de que se está construindo a memória de um aprendizado significativo e trans- formador, ensina ao outro, e a si mesmo, a esquecer-se. E por essa razão, o segundo - igualmente cruel - consiste no desaparecimento de todo o passado de luta e resistência que não consegue encontrar-se no presente de seus sucessores, porque estes, ensinados a esquecer, agora não mais existem. so br e o tr an sm iti r 56 Fi gu ra 3 6 - C ria nç as d o po vo P ue bl o de po is d a ca te qu iz aç ão . Fo to : J oh n N ic ho la s C ho at e. F on te : h ttp s: //c ar lis le in di an .h is to ric al so ci et y. co m /im ag es so br e o co nt ra pe la 57 I Por isso o materialismo histórico se afasta quanto pode desse processo de transmissão da tradição, atribuindo-se a missão de escovar a história a contrapelo. (BENJAMIN, 2012, p. 13) 20. 5 sobre o contrapelar: preciso te procurar 20Trecho retirado da Tese VI. Figura 37 - Caçar pulgas. Fonte: https://blog.cobasi.com.br/wp-content/uploads/2020/10/pulga-em-cachorro.png so br e o co nt ra pe la r 58 Depois de aplicar um anti pulgas, ainda que a propaganda do produto prometa resultado imediato e especialistas não recomendem a prática, não basta esperar que os parasitas pulem enfileirados, um por um: você deve caçá-los. A tarefa não é simples. Seu cachorrinho irá se mexer, resmungar e pode até te morder. Por parte das pulgas, ainda que lentas, elas farão questão de se esconder, evitando a todo custo seu fim. Para poder achá-las, é necessário acalmar o animal, prometê-lo alguns petiscos e bem devagar, com um pente fino e com muito cuidado, escová-lo a contrapelo. Somente contra a direção do pêlo é que se abrirão os espaços necessários para enxergar com nitidez onde escondem-se as pulgas que estão a causar tanta coceira em seu bichinho. A transmissão da tradição historicista, fazendo o presente esquecer-se de si ao mesmo tempo que desaparece com o passado, não cessa com um simples antipulgas. Para interromper esse proces- so educacional, é necessário fazer uma história que observe atenta- mente a abertura de novos espaços, não antes vistos a olho nu, na esperança de ali encontrar aquilo que estava escondido. Eis o histo- riador benjaminiano: um caçador de pulgas. Figura 37 - Caçar pulgas. Fonte: https://blog.cobasi.com.br/wp-content/uploads/2020/10/pulga-em-cachorro.png so br e o co nt ra pe la r 59 Para Michael Löwy (2005, p. 74), a história a contrapelo benjaminiana pode ser analisada a partir de dois caminhos. Pelo campo histórico e/ou político: a) histórico: trata-se de ir contra a corrente da versão oficial da histó- ria, opondo-lhe a tradição dos oprimidos (...). b) político (atual): a revolução não acontecerá graças ao curso natural das coisas, “o sentido da história”, o progresso inevitável. Será necessá- rio lutar contra a corrente. Deste modo, a história a contrapelo - histórica - busca identificar-se com aqueles que lutaram e resistiram à serem designados para baixo, tendo os venci- dos, enquanto objeto de empatia. Bem como, opondo-se a versão oficial da histó- ria, esperançar o encontro com a narrativa não apenas daqueles que foram recal- cados e desprezados pela História, mas também os propositalmente esquecidos. Já de forma a atuar politicamente no presente, a história a contrapelo visa interromper o fluxo dessa tradição que guia a humanidade à barbárie através de um tempo homogêneo e vazio. De modo a distanciar-se da história hegemônica, nada contracorrente e ainda intenciona paralisar seu fluxo. Benjamin considera essa interrupção papel fundamental para a transformação do presente e necessá- ria para garantir que haverá um futuro à humanidade: Marx havia dito que as revoluções são a locomotiva da história mun- dial. Mas talvez as coisas se apresentem de maneira completamente diferente. É possível que as revoluções sejam o ato, pela humanidade que viaja nesse trem, de puxar os freios de emergência. (BENJAMIN apud LÖWY, 2005, p. 94). Figura 39 - Foto turística no fim da linha de trem para Auschwitz-Birkenau (2018). Fonte: https://www.abc.net.au/news/2019-03-21/auschwitz-museum-urges- people-to-stop-balancing-on-train-tracks/10923408 so br e o co nt ra pe la r 60 Figura 38 - Fim da linha de trem para Auschwitz-Birkenau (1940-1945). Foto: Stanisław Mucha. Fonte: https://pt.aleteia.org/2018/11/07/quer-ver-como-era-auschwitz-de-verdade/ Figura 39 - Foto turística no fim da linha de trem para Auschwitz-Birkenau (2018). Fonte: https://www.abc.net.au/news/2019-03-21/auschwitz-museum-urges- people-to-stop-balancing-on-train-tracks/10923408 A história a contrapelo procura a cesura do tempo. Interrompe a transmissão de identificação com o vencedor, do progresso evolucio- nista, da perpetuação dos ideais de um passado reacionário no presen- te e, acima de tudo, interrompe o esquecer. Ao passo que, puxa também, os freios de emergência da locomotiva do sistema capitalista. Na época de Benjamin, a discussão acerca das conexões entre o modo de vida capitalista e o esgotamento dos recursos naturais, juntamente com a crise climática, ainda engatinhava. Mas o medo, agora para nós muito próximo, da extinção da humanidade que viaja nesta locomotiva, foi, de alguma forma, antecipado pela urgência de interrupção a qual clama o autor. Deste modo, a história a contrapelo é também uma forma drástica de oposição ao capitalismo e a todas as ideologias que de alguma forma, contemplam esse sistema de esgota- mento, como o liberalismo e a social democracia. Portanto, enxerga no marxismo e em um revolucionário materialismo histórico dialético, o plano metodológico para que essa interrupção de fato se dê. so br e o co nt ra pe la r 61 Sendo Benjamin um pensador muito mais heterodoxo, e por isso, mais radical do que seus colegas materialistas, pensava, junta- mente com o marxismo, outras duas teorias: o messianismo judaico e o romantismo alemão. Assim, “utilizava a nostalgia romântica do passado como método revolucionário de crítica do presente” e “salvação messiânica” (LÖWY, 2005, p. 15, 17). Seu pensamento mate- rialista histórico, portanto, era tal como uma imagem dialética, concebida especialmente para aquele presente e profundamente original, ainda que advinda de três perspectivas que a princípio soas- sem incompatíveis. Tal materialismo histórico dialético, embebido dessas refe- rências, portanto, teria a difícil tarefa de parar com a transmissão historicista através da história a contrapelo. No entanto, como de fato opor-se a uma ação histórica educacional que é universal e hegemô- nica, e opera através de um sistema político institucional utilizador de estratagemas educacionais descritivas, lineares, pasteurizadas e celebrativas? Ainda que seja complicado (e ninguém disse que procurar por pulgas não seria), Löwy (2005, p. 131) explica que a esse tempo histori- cista “de progresso, “feito à imagem e semelhança do espaço,” reduzi- do a uma linha “absoluta, infinita,” Benjamin opõe o tempo da memó- ria, o tempo da “rememoração orgânica,” que não é homogêneo.” O processo de rememorar, especialmente, seria a saída para a prática de uma contação de história a contrapelo e, portanto, o caminho para a interrupção da transmissão historicista e de seus ideais de barbárie. so br e o co nt ra pe la r 62 II A celebração ou apologia está empenhada em encobrir os momen- tos revolucionários do curso da história. Ela almeja intensamente a produção de uma continuidade, e dá importância apenas àqueles elementos da obra que já fazem parte da influência que ela exer- ceu. Escapam a ela os pontos nos quais a tradição se interrompe e, com isso, escapam-lhe as asperezas e saliências que oferecem um apoio àquele que pretende ir além. ( BENJAMIN, 2009, p.516)21. Figura 40 - Queima de fogos na abertura da Exposição do Mundo Porutguês (1940). Foto: Mario Novais. Fonte: https://www.flickr.com/photos/biblarte/albums/72157606234802424/page1 21Trecho retirado da Passagens (N, 9a, 5). so br e o co nt ra pe la r 63 Para o historicismo, o jogo não é uma questão de participação. Arrogante e presunçoso, à ele a vitória deve sempre ser garantida e, por isso, assim eternamente o faz. Por outro lado, os bons perdedores - recep- tivos e reconhecedores dos méritos daqueles que os venceram - só exis- tem em contos moralistas do “era uma vez”. Ninguém que é violentado, acossado e reprimido pela derrota, celebra, em nome do jogo, a vitória de seu combatente. Acima e abaixo. Entre o monumento Padrão dos Descobrimentos e a pessoa encontrada em Alfama, quem tem seu passado celebrado no presente? E quem tem sua história ainda mais fundo enterrada a cada presente que não se reconhece como presente intencionado por ela? Para Benjamin (2005. p. 65), obviamente, a comemoração é exerci- da para aquele que venceu e ainda vence. A fim de agradecer as figuras do passado pelas grandes conquistas realizadas, os herdeiros da tradição dos vencedores celebram as vidas e carreiras de seus antecessores, por meio de um “cortejo de triunfo” que os conduz" (a marcharem) por cima dos que jazem por terra”. A presa, como sempre de costume, é conduzida no cortejo triunfante. Chamam-na bens culturais (...). Sua existência não se deve somente ao esforço dos grandes gênios, seus criado- res, mas, também, à corveia sem nome de seus contemporâ- neos. Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. (BENJAMIN, 2005, p. 70). Os bens culturais, segundo a tese VII de Walter Benjamin, são conduzidos pelos contemporâneos empáticos da tradição vencedora acima das vítimas de sua barbárie. Deste modo, o monumento do Padrão dos Descobrimentos, ainda que historicamente e espacialmente distante do corpo enterrado, navega por cima deste e em um mar de cadáveres de suas vítimas. E assim o faz, por responsabilidade dessa “corveia sem nome,” que perpetua a transmissão dos ideais vencedores e, assim, celebra a garantia de sua vitória eterna. Lê-se, por corvéia sem nome, o transmissor, o historiador, o professor. Aquele que ainda pertencente à classe oprimida, identifica-se afetivamente com a tradição hegemônica e, sem perceber, carrega a celebração de uma tradição que o silencia e enterra. so br e o co nt ra pe la r 64 Figura 41 - C om em orações henriquinas - reconstrução do Padrão dos D escobrim entos (1960), porm enor Foto: Am adeu Ferrari. Fonte: https://padraodosdescobrim entos.pt/galeria/com em oracoes-henriquinas/ Essa celebração, por sua vez, apresenta-se vazia. Isso porque glorifica as maiores atrocidades dos vencedores, marchando sobre a brutal indiferen- ça às dores de suas vítimas. Uma celebração condensada em um documento da cultura hegemônica é incapaz de arrancar da contemporaneidade “a trans- missão da tradição ao conformismo” (BENJAMIN, 2005, p. 65). Deste modo, a comemoração dos vencedores torna-se um dos maiores atos educacionais do esquecer e desaparecer, pois impede qualquer chance de liberdade aos venci- dos da vez. Porém, há na história a contrapelo uma oportunidade de oposição à comemoração dos vencidos e, assim sendo, ao impedimento de uma tradição do esquecer. Uma possível brecha para a realização de uma autêntica perspec- tiva histórica e, portanto, à prática de oposição da ação histórica de glorifica- ção do vencedor: {Exemplo de autêntica perspectiva histórica : Aos que virão a nascer [poema de Brecht]. Esperamos dos que virão a nascer não o agradecimento pelas nossas vitórias, mas a rememoração das nossas derrotas.} Isto é consolação: a única consolação que pode existir para aqueles que já não têm esperança de consolo. (BENJAMIN, 2012, p. 186). so br e o co nt ra pe la r 65 Figura 42 - Padrão dos Descobrimentos (1940), pormenor Foto: Mario Novais. Fonte: https://www.flickr.com/photos/biblarte/11582612263 Figura 43 - Barco encontrado nas escavações do Campo das Cebola, em Alfama (2016), pormenor Foto: Diário de Notícias PT. Fonte: https://www.dn.pt/sociedade/o-cais-e-o-barco-revelados-pelas-obras-no-campo-das-cebolas-5558991.html É com ajuda do belo trecho do poema de seu amigo Bertold Brecht, que Benjamin mostra o caminho para a realização desse outro fazer história, em oposi- ção a transmissão pela comemoração. Em toda sua simplicidade e humildade, aquele que luta e resiste, inconsolável pela vida de sobrevivente, não pede aos que virão a nascer por homenagens de suas conquistas, mas sim que se lembrem de suas derrotas para que elas não mais ocorram no futuro que virá. Portanto, encon- tra-se aqui a principal tarefa dos que identificam-se com os que resistem: reme- morar. Jeanne Marie Gagnebin propõe, desta forma, uma distinção entre a ativida- de de comemoração e a de rememoração. “Firmada nas celebrações de Estado, com paradas e bandeiras,” a atividade de comemoração é uma ação vazia, que “des- liza perigosamente para o religioso” (GAGNEBIN, 2009, p. 55), e consequentemente pertence aos vencedores. Já a rememoração “abre-se aos brancos, aos buracos, aos esquecidos, ao recalcado (...), aquilo que ainda não teve direito nem à lembran- ça nem às palavras.” Logo, se o Padrão dos Descobrimentos é a celebração e registro da barbá- rie, o corpo encontrado não tão distante do monumento - sem nome, sem história, sem imagem - é o rastro, a ruína dessa barbárie. E, por assim ser, é o foco da histó- ria a contrapelo, que deve a essa pessoa, o direito a sua rememoração. Aquele historiador, educador das grandes conquistas, celebrador de uma tradição vazia e violenta, confronta-se agora, com a figura de um educador, histo- riador e artista que é o narrador benjaminiano, “muito mais humilde, bem menos triunfante” (GAGNEBIN, 2009, p. 55), que busca, sobretudo, colecionar o vestígio. Segundo a autora: Esse narrador sucateiro não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação (...). O narrador e historiador deveriam trans- mitir o que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao passado e aos mortos, mesmo - principalmente - quando não conhecemos nem seu nome nem sentido. (GAGNEBIN, 2009, p. 54). so br e o co nt ra pe la r 66 Figura 45 - Horizonte para o Oceano Atlântico na zona portuária próximo ao Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, Brasil (2022). Foto: Frame de tela do aplicativo Google Maps. Fonte: Acervo pessoal Figura 44 - Horizonte para o Oceano Atlântico no Padrão dos Descobrimentos, em Belém, Lisboa.(2022) Foto: Frame de tela do aplicativo Google Maps. Fonte: Acervo pessoal so br e o re m em or ar 67 6 sobre o rememorar: a gente não gosta de lembrar so br e o re m em or ar 68 Nem ao menos sei o nome do sítio arqueológico em que foi encontrada. Talvez a especulação mais assertiva fosse o Campo das Cebolas. Presumo, assim, que encontraram seu corpo entre as ruínas de um forte do século XVIII e artefatos multiculturais da China, Itália, Índia e de tantos outros lugares. Uma mulher de algum lugar da imensa África, que viveu durante algum período da colonização, que foi encon- trada em algum momento da década 2010, em algum campo arqueológi- co da região de Alfama, em Lisboa. Esses possíveis vestígios de sua história só chegariam até mim através da série documental Rotas da escravidão (2018) e desde então, nada mais pude encontrar a respeito de sua história. Apenas que, deixada para trás, restou a ela no presente, um passado repleto de lacunas, envolto em “alguns”. O oceano Atlântico, ao passo que separa em um desenho trian- gular geográfico três continentes - Europa, África e América - é também a ponte responsável por uni-los nesses “alguns” de incertas lembranças. Foi por seu passado de travessia do esquecimento - ou como é popular- mente conhecido, tráfico escravagista - que existem hoje, similaridades e repetições de muitas histórias cheias de vazios em cada parte distante que ele separa. É a vivência afro diaspórica que possibilita, por exemplo, à nossa imagem do corpo enterrado em Alfama atravessar esse oceano, no agora, em conexão com a outra ponta do triângulo: as Américas. I 69 II Comissionado pela 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Vi- deoBrasil, o artista beninense Thierry Oussou, desenvolveu em sua estadia no Brasil um vídeodocumentário a respeito do trabalho de pesquisa em torno do Instituto dos Pretos Novos (IPN). A obra WHAT IS LEFT OF THE SUGAR CUBES? (2019), em livre tradução