UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO INSTITUTO DE ARTES FLÁVIA RUCHDESCHEL D’ÁVILA TEATRO DE OBJETOS: UM OLHAR SINGULAR SOBRE O COTIDIANO SÃO PAULO - SP 2013 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO INSTITUTO DE ARTES TEATRO DE OBJETOS: UM OLHAR SINGULAR SOBRE O COTIDIANO FLÁVIA RUCHDESCHEL D’ÁVILA SÃO PAULO - SP 2013 Dissertação apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes para obtenção do título de Mestre. FLÁVIA RUCHDESCHEL D’ÁVILA TEATRO DE OBJETOS: UM OLHAR SINGULAR SOBRE O COTIDIANO Esta dissertação foi julgada adequada à obtenção do título de Mestre em Artes e aprovada em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Artes da Universidade Estadual Paulista. Aprovado em (07) de (junho) de (2013). Banca Examinadora ______________________________________________________ Professor e orientador Wagner Francisco Araujo Cintra, Dr. Universidade Estadual Paulista ______________________________________________________ Prof. Tácito Freire Borralho, Dr. Universidade Federal do Maranhão ______________________________________________________ Prof. Agnaldo Valente Germano da Silva, Dr. Universidade Estadual Paulista Ao Paulo, Hanna e Aziz. AGRADECIMENTOS Quero expressar meus sinceros agradecimentos a Luís André Cherubini, Sandra Vargas e Agnaldo Souza, do grupo Sobrevento, por todo o apoio que me deram ao longo desta pesquisa. Aos caros amigos Cleber Laguna e Márcia Fernandes, da Cia Mevitevendo, pelo suporte de materiais e ideias. Aos artistas Carles Cañellas da companhia “Rocamora”; Christian Carrignon e Katy Deville do grupo “Théâtre de Cuisine”; Agnès Limbos da companhia “Gare Centrale”; Paola Serafini, Luì Angelini do grupo “La Voce delle Cose”; Paulo Martins Fontes da companhia Gente Falante; Jacques Templeraud do grupo “Théâtre Manarf”, pelo tempo, ideias, provocações e informações a mim disponibilizados. Ao meu orientador Wagner Cintra, pela confiança, por suas observações sempre pontuais e pela liberdade que me concedeu na realização desta pesquisa. Aos companheiros de mestrado e do grupo de pesquisa “Poéticas Híbridas”, pelo intercâmbio de ideias, especialmente a Danielle Semple, com quem tenho compartilhado minhas constantes inquietações e dúvidas. Ao Paulo, pela desmedida paciência e apoio, e aos amigos Renata, Guilherme, Lourdes, Ester, Cíntia, Cristiane, Domenico e Marta, por todo o incentivo que me proporcionaram. Ao Domenico também agradeço a assessoria como tradutor de textos em italiano; gratidão que igualmente se estende a Ghjuvan, Bete e Andreia, professores de francês que, diversas vezes, me orientaram nas traduções de textos utilizados nesta pesquisa. À Aliança Francesa de São José dos Campos, pela concessão de uma bolsa de estudos e à Capes, pela concessão de apoio financeiro. “É o benefício da incerteza que impulsiona nossas buscas; é o oscilar nas vagas de nossas dúvidas que nos mantêm atentos e nos ensina a nadar e, graças à multiplicidade de respostas que podemos obter para a mesma pergunta, é que podemos trilhar um caminho encantadoramente longo, mágico e instrutivo, tornando leve nosso caminhar” (Paulo Balardim). RESUMO Este trabalho tem como foco a história do teatro de objetos, com ênfase no encontro realizado na década de 80, que deu origem ao termo, e a sua disseminação por toda a Europa, por meio de intercâmbios entre artistas em laboratórios e festivais internacionais de teatro de animação. Apresentarei alguns dos preceitos fundamentais do teatro de objetos e, entre os espetáculos abordados, analisarei o processo de recriação dramatúrgica de “Pequenos Suicídios”, criado, no final da década de 70, por Gyula Molnár e remontado, em 2000, por Carles Cañellas da companhia “Rocamora Teatro”. Antes de discorrer especificamente acerca do teatro de objetos, esboçarei um breve itinerário do objeto nas artes do século XX. Com isso, pretendo ressaltar que o objeto gradativamente ganhou espaço de significação na arte do século passado e que o teatro de objetos não é uma manifestação isolada, pois articula temas discutidos por artistas do teatro, das Artes Visuais, poetas, pesquisadores e diretores de cinema. Desse modo, o teatro de objetos pode ser compreendido como a manifestação do pensamento de uma época. Ele traduz inquietações artísticas, existenciais e conceituais de seus fazedores, que preferem qualificá-lo como uma forma de pensar o espetáculo e interpretar a realidade, transgredindo-se o mero funcionalismo dos objetos, que se tornam capazes de singularizar o olhar e a realidade prosaica. Palavras-chave: Teatro de objetos. Teatro de animação contemporâneo. Objetos. RÉSUMÉ Ce travail se concentre sur l'histoire du théâtre d'objets, en mettant l'accent sur la rencontre dans les années 80, qui a donné naissance à l'expression, et sa propagation dans toute l'Europe, grâce aux échanges entre les artistes dans les laboratoires et les festivals internationaux de théâtre des marionnettes. Je présenterai quelques-uns des préceptes fondamentaux du théâtre d'objets et, entre les spectacles abordés, j'analyserai le processus de reconstitution de la dramaturgie "Petits Suicides", créé à la fin des années 70, par Gyula Molnar et remontée en 2000 par Carles Cañellas, de la compagnie “Rocamora Théâtre”. Avant de discuter spécifiquement à propos du théâtre d'objets, j’exposerai un bref parcours de l'objet dans l'art du XXe siècle. De cette façon, je veux souligner que l'objet a progressivement gagné importance dans l'art au cours du dernier siècle et le théâtre d'objets n'est pas une manifestation isolée, car il articule thèmes discutés par des artistes de théâtre, des arts visuels, des poètes, des chercheurs et des cinéastes. Ainsi, le théâtre d'objets peut être compris comme la manifestation de la pensée d'une époque. Il traduit les préoccupations artistiques, existentielles et conceptuelles de ses créateurs, qui préfèrent le qualifier comme une façon de concevoir le spectacle et d’interpréter la réalité, brisant le simple fonctionnalisme des objets, qui deviennent capables de singulariser le regard et la réalité prosaïque. Mots-clés: Théâtre d'objets. Théâtre de marionnettes contemporain. Objets. LISTA DE ILUSTRAÇÕES 2.1 Esboços de Oscar Schlemmer para o Ballet Triádico......................................................... 23 2.2 Ballet Triádico .................................................................................................................... 24 2.3 O presente, Man Ray, 1921. ............................................................................................... 27 2.4 Desjejum em pele, Meret Oppenheim, 1936. ..................................................................... 27 2.5 Onanistic Typewriter, Conroy Maddox, 1940. ................................................................... 28 2.6 A classe morta, Tadeusz Kantor. ........................................................................................ 31 2.7 Tragédia de papel, Ives Joly, 1956 ..................................................................................... 33 3.1 Espetáculo Paris-Bonjour, Théâtre Manarf, 1980 ............................................................. 41 3.2 Extrato de um painel histórico exposto durante a apresentação ......................................... 42 3.3 Espetáculo Théâtre de Cuisine. Ilustração feita por Carrigon .......................................... 45 3.4 Espetáculo Théâtre de Cuisine, FITO Curitiba 2012. Foto Flávia D’ávila ........................ 50 3.5 Espetáculo La grenouille au fond du puits croit que le ciel est Rond ................................ 57 3.6 Espetáculo Klikli, Cie Gare Centrale. Foto Flávia D'ávila. ................................................ 60 3.7 Espetáculo Catalogue de voyage ........................................................................................ 68 3.8 Expansão do espaço em Vingt minutes sous les mers. Fotos Flávia D'ávila. .................... 72 3.9 Vingt minutes sous les mers. Foto Ilana Bessler ................................................................ 73 3.10 Katy Deville em Vingt minutes sous les mers. Foto de Flávia D'ávila. ........................... 77 3.11 Fragmento do tríptico de Hieronymus Bosch O jardim das delícias terrenas ................. 78 3.12 Detalhe da obra de Pieter Brueghel Dulle Griet ............................................................... 78 3.13 Vingt minutes sous les mers. Foto de Ilana Bessler ......................................................... 79 4.1 Carles Cañellas e Gyula Molnár. Arquivo pessoal de Carles ............................................. 82 4.2 Gyula Molnár em Pequenos suicídios. Foto de Ilaria Scarpa ............................................. 83 4.3 Carles Cañellas em Pequenos suicídios. Foto de Flávia D'ávila ........................................ 83 4.4 Mesa preparada para o início de Pequenos suicídios. ........................................................ 85 4.5 Pequenos suicídios. Foto de divulgação do FITO .............................................................. 93 6.1 Louça Cinderella, Cia. Gente Falante. Foto de divulgação do espetáculo. ...................... 116 6.2. São Manuel Bueno, Mártir. Grupo Sobrevento. Foto de divulgação do espetáculo ....... 117 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11 1 ITINERÁRIOS DO OBJETO NA ARTE DO SÉCULO XX ....................................... 18 1.1 OBJETO SIMBÓLICO .................................................................................................... 18 1.2 OBJETO REAL ............................................................................................................... 24 1.3 OBJETO ESTRANHADO ............................................................................................... 26 1.4 OBJETO POBRE ............................................................................................................. 28 1.5 O TEATRO DE ANIMAÇÃO MODERNO ................................................................... 31 2 TEATRO DE OBJETOS: HISTÓRIA, PRINCÍPIOS E GRUPOS. ........................... 34 2.1 O ENCONTRO DA DÉCADA DE 80 ............................................................................ 35 2.1.1 Espetáculo “Le Petit Théâtre de Cuisine” ................................................................ 42 2.2 O TEATRO DE OBJETOS E A SOCIEDADE DE CONSUMO ................................... 51 2.3 PRINCÍPIOS DO TEATRO DE OBJETOS .................................................................... 56 2.3.1 O ator e objeto ............................................................................................................. 58 2.3.2 O espaço ....................................................................................................................... 65 2.3.2.1 Ampliação do espaço sugerida por imagens .............................................................. 70 2.3.3 O grotesco no teatro de objetos: uma abordagem de “Vingt minutes sous les mers” 74 3 EXPERIÊNCIA EM FOCO: PEQUENOS SUICÍDIOS – TRADUÇÃO E RECRIAÇÃO DRAMATÚRGICA ...................................................................................... 80 3.1.1 Primeiras impressões .................................................................................................. 85 3.2 UMA TRAGÉDIA EFERVESCENTE ............................................................................ 87 3.3 PITA E JÖRG, UMA HISTÓRIA DE AMOR IMPOSSÍVEL. ...................................... 94 3.4 O TEMPO: POESIA TRAGICÔMICA SOBRE O PASSAR DO TEMPO. ................... 98 3.4.1 Introdução .................................................................................................................... 98 3.4.2 Primeira estrofe – o retorno ....................................................................................... 99 3.4.3 Segunda estrofe – a memória ................................................................................... 102 3.4.4 Terceira estrofe – a finitude ..................................................................................... 103 3.4.5 Quarta estrofe – o tempo .......................................................................................... 104 3.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS DA ANÁLISE DE PEQUENOS SUICÍDIOS ............... 106 4 CONCLUSÃO ................................................................................................................. 109 6 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 111 ANEXOS ............................................................................................................................... 114 ANEXO I – TEATRO DE OBJETOS NO BRASIL. ............................................................. 115 ANEXO II – TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTAS ............................................................ 118 CONFERÊNCIA: O TEATRO DE OBJETOS E SUA UTILIZAÇÃO. CHRISTIAN CARRIGNON, FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE OBJETOS, CURITIBA, 23 DE MAIO DE 2012. .......................................................................................................... 118 ENTREVISTA COM CHRISTIAN CARRIGNON. FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE OBJETOS, CURITIBA, 26 DE MAIO DE 2012. ........................................... 129 ENTREVISTA COM CARLES CAÑELLAS, RECRIADOR DA PEÇA PEQUENOS SUÍCÍDIOS. FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE OBJETOS, RECIFE, 12 E 13 DE NOVEMBRO DE 2011. .............................................................................................. 132 MESA REDONDA: OBJETOS NO TEATRO CONTEMPORÂNEO. II SEMANA INTERNACIONAL DE TEATRO DE ANIMAÇÃO DO SOBREVENTO, SÃO PAULO, 1º DE JULHO DE 2012 (TRANSCRIÇÃO PARCIAL) ......................................................... 144 11 INTRODUÇÃO A primeira vez que ouvi1 a expressão teatro de objetos2 foi em 2010, na finalização da oficina “Teatro de Animação – Dramaturgia e Manipulação”, realizada pela SP Escola de Teatro e ministrada por Luís André Cherubini, do grupo Sobrevento. Naquela ocasião, eu desejava adquirir mais conhecimentos práticos e teóricos acerca do Teatro de Formas Animadas e, sabendo do mestrado em Artes oferecido pelo Instituto de Artes da UNESP, pedi a Luís André, por sua experiência na área, algumas sugestões de possíveis temas a serem investigados. Prontamente ele narrou partes dos espetáculos “Pequenos suicídios” e “Vinte minutos sob o mar”, e vislumbrei no teatro de objetos um entrelaçamento com as Artes Visuais, o que consequentemente se configurava como uma conexão com a minha formação acadêmica e um possível ponto de partida para a elaboração de um projeto de pesquisa. No Espaço Sobrevento há uma biblioteca especializada em publicações relacionadas ao Teatro de Formas Animadas. Esse material foi posto à minha disposição, além de um artigo sobre teatro de objetos, escrito por Sandra Vargas, que seria publicado na revista Móin-Móin daquele ano3. Tendo como base esse material, redigi meu projeto de pesquisa, cuja proposição inicial era abordar os processos de criação do ator no teatro de objetos, uma vez que notei naquelas dramaturgias traços autorais e íntimos, discutindo questões importantes do universo pessoal daqueles artistas. Entretanto, abordar processos de criação de atores que vivem, em sua maioria, na Europa mostrou-se um caminho pouco viável para uma pesquisa de mestrado. Assim, foi 1 Ao descrever vivências pessoais, especialmente ao narrar e analisar minhas experiências subjetivas enquanto espectadora, usarei tanto a primeira pessoa do singular quanto a primeira pessoa do plural. 2 Esta pesquisa não desassocia o teatro de objetos do Teatro de Formas Animadas. 3 Vargas, S. O Teatro de Objetos: história, ideias, visões e reflexões a partir de espetáculos apresentados no Brasil. Móin-Móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, Jaraguá do Sul , n. 7, 2010. p. 27-43. 12 necessário estabelecer novos rumos para a pesquisa. Enquanto buscava, por meio de leituras, ampliar a minha compreensão a respeito do teatro de objetos, decidi partir para pesquisas de campo, acompanhando grupos que se apresentaram e ministraram treinamentos no Brasil entre o ano de 2011 e o primeiro semestre de 2012, como tentativa de compreender suas motivações, inquietações e poéticas. Destaco três eventos que me possibilitaram o contato com artistas e espetáculos que aqui serão abordados: a II Semana Internacional de Teatro de Animação do Grupo Sobrevento, realizada em junho de 2011, e duas edições do FITO (Festival Internacional de Teatro de Objetos) – mostra itinerante patrocinada pelo SESI – ocorridas em novembro de 2011 em Recife e, em maio de 2012, em Curitiba. Nessas ocasiões, estabeleci contato com Katy Deville e Christian Carrigon, do grupo francês “Théâtre de Cuisine”; com a artista belga Agnès Limbos, criadora da companhia “Gare Centrale”; com Jacques Templeraud, do grupo “Théâtre Manarf”; com Carles Cañellas, da companhia catalã “Rocamora”, entre outros. Entrevistei alguns desses artistas, acompanhei seus espetáculos e participei de treinamentos ministrados pelo grupo “Théâtre de Cuisine” e por Agnès Limbos. Assim começou a se estruturar um arcabouço de experiências, histórias, leituras, inquietações e dúvidas. Mais dúvidas do que respostas. E, quanto mais eu adentrava esse território ainda desconhecido, maior se tornava o meu estado de maravilhamento, ao descobrir no teatro de objetos uma teatralidade capaz de fazer a percepção transcender a materialidade prosaica, restituindo aos objetos, conforme Pietro Bellasi e Pina Lalli4, “uma capacidade retórica autônoma” em que eles se tornam “protagonistas de uma própria aventura de sentido”. Acompanhando discussões, mesas redondas, treinamentos e conversando com artistas que se agrupam sob essa égide, percebi não haver consenso entre eles no que diz 4 Bellasi, P.; Lalli, P. Recitare con gli oggetti: microteatro e vita quotidiana. Bologna: Cappelli, 1987. p. 15. 13 respeito a princípios criativos, estéticos, dramatúrgicos e poéticos do teatro de objetos, o que gera espetáculos consideravelmente diferentes uns dos outros. A pluralidade de visões faz o teatro de objetos configurar-se como um campo aberto para experimentações artísticas e culturais, característica inerente ao Teatro de Formas Animadas contemporâneo e à arte contemporânea. Nesta dissertação assumo a escritura teatro de objetos com letras minúsculas, em concordância com Christian Carrigon, que assim se posiciona: “eu tenho muita hesitação em escrever Teatro de Objetos maiúsculo. Isso seria um gênero. (...) nós fazemos um teatro vivo, mesmo que nós não saibamos defini-lo melhor” 5. Em face da opinião de Carrignon, esta pesquisa se propõe apresentar princípios norteadores do teatro de objetos, mas sem a intenção de defini-lo ou enquadrá-lo como um gênero ou um novo movimento vinculado ao Teatro de Formas Animadas. Ao invés disso, opto por pensar o teatro de objetos como uma manifestação do pensamento de uma época, repleto de inquietudes artísticas, existenciais e conceituais; e uma maneira de encarar a realidade e conceber o espetáculo, ou seja, como processo de singularização do olhar e da realidade cotidiana. O termo teatro de objetos foi cunhado em 1980, na França, em uma tentativa de referenciar práticas não necessariamente inéditas, mas que, nos fins da década de 70, se tornaram caminhos investigativos de artistas europeus vinculados ao Teatro de Formas Animadas, muitos dos quais provenientes das Artes Visuais, como Gyula Molnár, Christian Carrignon e Jacques Templeraud. 5 Bellanza, M. et al., Des Théâtres par objets interposés. Normandia: Editora Mont-Saint-Aignan. 2006. p. 40. “J’ai beaucoup de scrupules à écrire Théâtre d’Objet majuscule. Ce serait un genre... (...) nous faisons du théâtre vivant, même si nous ne savons pas mieux le définir”. 14 Na perspectiva de Carles Cañellas6, o fator propulsor do teatro de objetos foi o movimento de buscas por novos caminhos expressivos gerados pelo Teatro Pós-Moderno7. Oriundos daquele contexto, artistas italianos e franceses focaram suas investigações na mínima expressão para alcançar um teatro em sua escala máxima, elementar. Movidos também pela casualidade e intuição, esses artistas perceberam nos objetos, deslocados para a cena e imbuídos de carga dramática, a capacidade de se transformarem em símbolos e de engendrar dramaturgias que convertiam a recepção de um conteúdo visual em pensamento simbólico, o que, para Mircea Eliade, precede a linguagem e a razão discursiva, uma vez que os símbolos revelam aspectos da realidade capazes de desafiar qualquer outro meio do conhecimento. Segundo o autor, as imagens, os símbolos e os mitos “respondem a uma necessidade e preenchem uma função: pôr a nu as mais secretas modalidades do ser” 8. Ana Maria Amaral também destaca o aspecto ritualístico no teatro de objetos. Segundo ela, os objetos levados para a cena passam por uma espécie de processo de sacralização: No teatro de objetos há como que uma sacralização do objeto quotidiano, ou seja, profano. Os objetos que num primeiro momento nos parecem simples coisas para serem usadas, em cena se transformam, surgem carregados de ambiguidades e de simbologias. Percebe-se então como é frágil essa diferença que distingue um objeto sacro de um profano. Um simples objeto do dia a dia, no palco (...) assume uma 6 Entrevista realizada com Carles Cañellas durante o Festival Internacional de Teatro de Objetos (Recife, 12 e 13 de novembro de 2011). Cf. página 132. 7 O Dicionário do Teatro Brasileiro define o termo Pós-Moderno da seguinte maneira: “Designa-se como pós- moderna a produção cultural nascida na era pós-industrial, genericamente engolfada pela lógica do capitalismo tardio e situada no contexto das sociedades altamente tecnológicas do Ocidente. Verificou-se que após os anos de 1950, manifestações como a arquitetura, a dança, a música e o cinema passaram a fornecer procedimentos de linguagem para as incontáveis novas mídias surgidas com a revolução cibernética, propiciando um amálgama de novos e inusitados formatos expressivos. Tais fatores engendraram uma pluralidade de manifestações junto à área artístico-cultural, dificultando as generalizações, os agrupamentos em séries; (...) Neste ambiente sociocultural ultradesenvolvido, novos procedimentos de linguagens marcam presença, estreitando o antigo fosso entre uma cultura erudita e outra de massa, tais como a intertextualidade, a citação, a paródia, a ironia, o humor, o entretenimento, a desconstrução de todos os discursos instituídos. Apontam eles para a falência das meganarrativas do passado (...), recobrindo todas as estruturas com a pátina do cotidiano, provocando a descrença nas utopias que impulsionaram o advento da modernidade. Do ponto de vista da recepção, opera-se uma revalorização do espectador, abordado através de uma retórica que privilegia a nova sensibilidade – aberta, provisória, capaz de deslocamento rápido entre múltiplos estímulos simultâneos.” Guinsburg, J.; Faria, J. R.; Alves de Lima, M. Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2009, p. 275-276. 8 Eliade, M. Imagens e Símbolos. Ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. Lisboa: Arcádia, 1979. p. 13. 15 carga de significados. Transforma-se em enigma. E à medida que é animado, vai adquirindo características humanas9. Assim, posto em cena nas experimentações daqueles artistas europeus, o objeto tornou-se singularizado, ou seja, deixou de ser percebido de maneira simplesmente automatizada para ser apreendido como símbolo, ou como imagem. Para Francis Wolff, “a imagem começa quando paramos de ver o que é materialmente dado, para ver outra coisa, para reconhecer uma figura conhecida” 10. Ou ainda como imagem poética, que, segundo Viktor Chklovski11, é um dos meios de criar uma impressão máxima, capaz de reforçar a sensação produzida por um objeto. Aqueles artistas não criaram exatamente algo inédito, mas potencializaram o poder simbólico dos objetos em cena. O emprego simbólico dos objetos sempre fez parte de rituais sagrados e, na Antiguidade, ele foi incorporado à representação teatral. Amaral ressalta: No Ocidente, o teatro teve sempre como modelo o teatro grego, que, por sua vez, sofreu influências da civilização egípcia. E no Egito, antes do palco, a cena acontecia no altar, onde as imagens inanimadas de deuses contracenavam com os sacerdotes12. Nesses rituais, a máscara, por exemplo, tinha o poder de transfigurar o seu portador em divindades sagradas ou em forças da natureza. E, nas tragédias gregas, de acordo com a autora, uma de suas características era a de encarnar “heróis divinos que lutavam contra as forças do destino” 13. No Ocidente, as motivações artísticas, sociais e ideológicas do fazer teatral passaram por muitas alterações ao longo dos séculos. Mas, considerando que, de acordo com a semiótica, todas as coisas têm poder de comunicação e que o teatro, subjetivamente ou não, 9 Amaral, A. M. Teatro de Formas Animadas: Máscaras, Bonecos e Objetos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. p. 213. 10 Wolf, F. Por trás do espetáculo: o poder das imagens. In: Muito além do espetáculo.São Paulo: Ed. Senac. 2005. p. 20. 11 Chklovski, V. A arte como procedimento. In: Teoria da Literatura: Formalistas Russos. Porto Alegre: Globo, 1973. p. 42. 12 Amaral, A.M. Teatro de Animação: Da Teoria à Prática. São Paulo: Ateliê Editorial, 1997. p. 15. 13 Idem. O ator e seus duplos – máscaras, bonecos, objetos. São Paulo: Editora SENAC / EDUSP, 2002. p. 13. 16 frequentemente buscou comunicar, é possível considerar que o caráter simbólico dos objetos não se extinguiu com o passar o tempo, embora a sua utilização tivesse variado de acordo com a época e com a cultura vigente. Acentuando a busca de uma nova teatralidade fundamentada, principalmente, na exploração do gesto, do símbolo e da imagem, artistas do final do século XIX e ao longo de todo o século XX também retomaram o objeto como símbolo expressivo. Edward Gordon Craig, Alfred Jarry, Maeterlinck, Meyerhold, Antonin Artaud, Tadeusz Kantor, Bob Wilson, Peter Schumann e Peter Brook são alguns dos nomes que se destinaram a buscar outras perspectivas para o acontecimento teatral, utilizando, para este fim, diversos suportes expressivos. Segundo Amaral14, a partir de então as manifestações artísticas se tornaram cada vez mais abstratas e visuais, recebendo influências do movimento simbolista e, mais tarde, do surrealista. Em decorrência dessas transformações, A matéria ganha (...) dignidade e o mundo material é visto sob outro ponto de vista. Cada vez mais, figuras inanimadas representam o ator vivo. E com as novas possibilidades que a tecnologia oferece, o homem acostuma-se a traduzir a vida por imagens, provocando no teatro profundas modificações. O ator agora divide o espaço com os seus duplos, contracenando com objetos, simulacros, reflexos e projeções da própria imagem15. Como será visto a seguir, o Teatro de Formas Animadas recebeu influências do pensamento das principais vanguardas europeias, e engendraram-se diversas transformações na segunda metade do século XX que o aproximaram do teatro de atores e das Artes Visuais. Foi em meio a essas mudanças que os artistas atrelados ao teatro de objetos desenvolveram suas experimentações, desvendando esse novo caminho expressivo. Tais questões serão discutidas no próximo capítulo, em que também será apresentado um breve itinerário do objeto nas artes do século XX. Com isso, pretendo ressaltar que o objeto gradativamente ganhou espaço de significação na arte do século passado e o teatro de objetos, ao atribuir especial atenção para os objetos utilitários, não é uma manifestação isolada, articulando temas 14 Amaral, A. M. Teatro de Animação: Da Teoria à Prática. São Paulo: Ateliê Editorial, 1997. p. 16. 15 Idem. O ator e seus duplos – máscaras, bonecos, objetos. São Paulo: Editora SENAC: EDUSP, 2002. p. 16. 17 discutidos por artistas do teatro, das Artes Visuais, poetas, pesquisadores e diretores de cinema. No segundo capítulo abordarei a história do teatro de objetos, com ênfase no encontro realizado na década de 80, que deu origem ao termo, e a sua disseminação por toda a Europa, por meio de intercâmbios entre artistas em laboratórios e festivais internacionais de teatro de animação. Também apresentarei alguns dos princípios fundamentais do teatro de objetos, como as alterações da escala espacial e temporal; a influência do cinema nas dinâmicas das cenas; a transformação dos objetos em suportes para a imaginação e para o pensamento poético; a presença do ator como um atuante16, que se autorrepresenta mais do que incorpora um personagem; a proximidade e o distanciamento que o ator vivencia com os objetos em cena. Esses princípios não se estabelecem como normas rígidas, mas como um apanhado de experiências, relatos e reflexões de artistas vinculados a essa manifestação. No teatro de objetos, é comum os espetáculos terem caráter autoral, revelando fatos, ideias e sentimentos de seus criadores. E, pela primeira vez, na história recente dessa manifestação, observamos um processo de recriação dramatúrgica. Esse fato aconteceu em 2000, quando o espetáculo “Pequenos suicídios”, de criação do húngaro Gyula Molnár, foi remontado por Carles Cañellas da companhia catalã “Rocamora”. Interessa-me analisar como ocorreu o processo de adaptação e recriação desse espetáculo. Desse modo, a tessitura dramatúrgica deste trabalho, assim como os caminhos trilhados por Carles para vestir-se de uma dramaturgia feita por outra pessoa e encontrar a própria poética, será posta em evidência no terceiro e último capítulo. Proponho, assim, metodologicamente, partir de um pressuposto geral para chegar à análise específica deste espetáculo. 16 Termo sugerido por Katy Deville, em entrevista realizada no dia 19 de abril de 2005: Marseille. Apud: Mattéoli, J.-L. L’objet pauvre, mémoire et quotidien sur les scènes contemporaines françaises. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2011. p. 87. 18 1 ITINERÁRIOS DO OBJETO NA ARTE DO SÉCULO XX E eis que para desenvolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção17. 1.1 OBJETO SIMBÓLICO A história da utilização dos objetos como elementos simbólico-dramáticos perde- se na genealogia dos seres humanos e em seus rituais primitivos. Mircea Eliade caracteriza esses objetos rituais como uma hierofonia, ou seja, o ato da manifestação do sagrado que transcende a materialidade das coisas: Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (...) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar- se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania. 18 Com o passar do tempo, os rituais se dessacralizaram no Ocidente, e os objetos perderam a capacidade de manifestar o sagrado no sentido religioso. Entretanto, eles continuaram a ser empregados como elementos artisticamente expressivos e, em algumas ocasiões da história da arte, inclusive a desempenhar papel simbólico. Segundo Felisberto Sabino da Costa, o objeto sempre esteve atrelado ao fazer teatral, sendo utilizado de diferentes maneiras, como 17 Chklovski, V. A arte como procedimento. In: Teoria da Literatura: Formalistas Russos. Porto Alegre: Globo, 1973. p. 45. 18 Mircea, E. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 13. 19 o deus ex machina (soluções dramatúrgicas e plataformas visuais) do teatro greco- romano, os pageant dos espetáculos medievais, os objetos alusivos aos personagens- tipo da Commedia dell´Arte, a maquinaria cênica do teatro barroco, o mobiliário do “quase despido” teatro clássico francês ou os “objetos reais” do realismo- naturalismo.19 No entanto, a partir do final do século XIX e durante o século XX, o objeto readquiriu um estatuto mais abrangente no campo das artes e também voltou a ser simbolicamente utilizado. Essa retomada do objeto foi simultânea às buscas por meios expressivos que dessem conta de abordar questões mais profundas do ser. Eliade ressalta que o processo de dessacralização caracteriza as experiências do homem não religioso nas sociedades modernas, o qual, por essa razão, sente uma dificuldade cada vez maior em reencontrar as dimensões existenciais do homem religioso das sociedades arcaicas.20 E, no que concerne ao teatro, Paulo Balardim destaca: O desconforto com a exacerbada interferência dos sentimentos humanos na obra de arte teatral, sem manifestar plenamente o poder do invisível, levam as novas tendências em busca da substituição do homem natural pelo artificial. Nos trabalhos de Maeterlinck, Meyerhold, Craig, Kleist, entre outros, ulula a busca por um ator mais adequado a expressar o sentimento indizível da arte. 21 Esses artistas buscavam, de certo modo, reencontrar as dimensões existenciais daquele homem primevo, imerso na experiência do sagrado, restituindo à arte o seu caráter simbólico, ritual e transcendente. Eliade assegura que “graças aos símbolos o homem sai de sua situação particular e se “abre” para o geral e o universal”, e que eles têm a capacidade de transmudar a experiência individual “em ato espiritual, em compreensão metafísica do mundo” 22. A primeira metade do século XX foi marcada por proposições de renovação da arte. Nesse período surgiram diversas correntes artísticas que engendraram experiências de aproximação e distanciamento entre os diferentes domínios artísticos. Apesar de suas 19 Costa, F. S. O Objeto e o Teatro Contemporâneo. Móin – Móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas. Jaraguá do Sul: SCAR/UDESC, ano 3, v. 4, 2007. p. 111. 20 Mircea, E. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 13. 21 Balardim, P. Relações de vida e morte no teatro de animação. Porto Alegre: Edição do Autor, 2004. p. 26-27. 22 Ibid. p. 100. 20 diferenças, essas correntes guiavam-se pela busca de novas experiências perceptivas, capazes de transpor a realidade prosaica. No âmbito teatral, entre as propostas de renovação e com o intento de expressar o “sentimento indizível da arte”, a presença cênica do ator passou a ser questionada, pois ela representava um empecilho para que se alcançasse um estado expressivo transcendental. Alguns artistas propuseram, então, a substituição da figura humana pelo inanimado, capaz de desempenhar papel simbólico. Conforme Amaral, para Maeterlinck – um dos principais representantes do movimento simbolista –, “toda obra de arte é um símbolo e o símbolo não admite a presença ativa do homem”23. Contiguamente, para Gordon Craig, a presença humana configurava-se uma interferência na estrutura abstrata da obra de arte. Assim, Craig fez uma proposição radical de substituir os atores por manequins, desprovidos de vida e do intento imitativo. Esse seria um mecanismo de conservação da coerência da obra de arte e um meio de eliminar as vaidades e as emoções supérfluas dos atores. Excluam o ator e excluirão os meios pelos quais esse aviltante realismo de palco é produzido e floresce. Não mais se terá a figura humana para nos confundir conectando a realidade e a arte. Não mais a figura viva, na qual as fraquezas e tremores da carne são tão perceptíveis. O ator deve sair e em seu lugar surgir a figura inanimada, a Supermarionete, podemos chamá-la assim, até que tenha conquistado para si um nome melhor.24 Craig considerava a marionete como uma descendente das imagens presentes nos templos antigos, diretamente conectada com o sagrado. Em seu estado inerte, ela estava carregada pelo mistério da morte, e tal mistério deveria ser capturado como meio de “resgatar as coisas belas do mundo imaginário”25. A supermarionete, nas palavras de Craig, “não competirá com a vida, ela irá além dela. Seu ideal não será carne e osso, mas o corpo em 23 Amaral, A. M. Teatro de Formas Animadas: Máscaras, Bonecos e Objetos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. p. 180. 24 Craig, E. G. O ator e a supermarionete (versão integral), tradução de Almir Ribeiro. Sala Preta, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 101-124, Jun 2012. p. 116 25 Ibid. p. 112 21 êxtase. Ele buscará vestir-se com uma beleza mortuária e, simultaneamente, exalar um espírito vivo”26. Amaral destaca que o ator perfeito para Craig deveria ser capaz de se “fundir em alguma coisa fora de sua pessoa”, conseguindo despersonalizar-se, tornando-se, em cena, “um elemento plástico a mais, juntamente com objetos que se converteriam também, por sua vez, em ideias e símbolos” 27. Por conseguinte, no começo do século XX, o inanimado como portador de carga simbólica – bonecos, objetos, máscaras e manequins – abriu-se para o intercâmbio com outras artes e para novas experimentações inseridas em um contexto marcado por rupturas. Antonin Artaud, por sua vez, reivindicou que bonecos, máscaras e objetos em grandes proporções tivessem o mesmo grau de importância das imagens verbais na encenação. Para Artaud, os objetos possuíam importante poder expressivo, e, segundo Roubine28, a presença cênica do objeto era capaz de provocar um “efeito de choque, de sacudidela sobre a psique do espectador” despertando nele algo que estivesse “profundamente recalcado” e adormecido. Ou seja: aquela experiência simbólica e ritual há muito tempo perdida. As vanguardas históricas foram igualmente uma fonte de inspiração para a presença do inanimado no teatro do século XX. As diversas experiências dos cubistas, futuristas, dadaístas e dos surrealistas tornaram tênues os limites entre arte e realidade. Consequentemente, os conceitos de homogeneidade e de coerência da obra de arte, postulados pelos simbolistas e por Craig, segundo Tadeusz Kantor29, foram suplantados com a introdução 26 Craig, E. G. Op. cit., p. 118 27 Idem. 28 Roubine, J.-J. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 145. 29 Kantor, T. O teatro da morte; textos organizados e apresentados por Denis Bablet. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2008. p. 197. 22 de elementos estranhos à obra de arte, por meio das colagens, assemblages e da realidade “toute prête”30. Os dadaístas e os surrealistas, segundo Henryk Jurkowski, colocavam em cena personagens com nomes de objetos ou de partes do corpo humano, testando novos meios expressivos com o intuito de provocar o público, alterar a lógica da percepção e ampliar o campo da imaginação: Tristan Tzara introduz em Le Coeur à Gaz (Coração a Gás), criado em Paris em 1921, personagens como Senhora Boca, Senhor Pescoço, Senhora Orelha e Senhor Sobrancelha. André Breton e Philippe Soupault, num esquete de 1920 intitulado Vous m’Oublierez (Você me Esquecerá), puseram em cena Guarda Chuva, Roupão e Máquina de Costura. Todos os personagens eram representados por atores31. Caminho semelhante foi proposto por Maiakovski na peça “A revolta dos objetos”, em que as personagens, tomando emprestadas as palavras de Mário Bolognesi32, “apresentam-se mutiladas, transformadas, como se fossem coisas”. Os objetos, por sua vez, “abandonam o seu lugar e uso cotidianos, e ganham existência humana”. Postos em situação de metáforas e metonímias, nessa peça de Maiakovski os objetos receberam o foco de atenção, antes centralizado na presença do ator em cena, tornando-se capazes de traduzir propriedades especificamente humanas. Ao analisar esse espetáculo, Valmor Beltrame também destaca: Tais objetos, transformados em personagens, são sintéticas, tipificadas, não têm aprofundamento psicológico, não representam um homem específico, mas o sentimento possível de ser reconhecido em todos os homens e mulheres. Por isso são arquetípicas, são máscaras que representam o mundo do trabalho, da sobrevivência, solidariedade, esperança e felicidade. 33 Em meio a esses movimentos de redefinição da arte, as relações entre palco, ator e espectador também foram repensadas. A Bauhaus, por exemplo, influenciada pelo construtivismo russo, iniciou um período no teatro considerado por Amaral como antinaturalista, com a inserção de “espaços funcionais, escadas, andaimes, diferentes planos, 30 “Réalité toute prête” configura-se como a realidade pronta, aos elementos da vida, aos objetos prontos elevados à categoria de arte, principalmente pelos dadaístas e surrealistas. 31 Jurkowski, H. Métamorphoses: La Marionette au XX Siécle. 2ª. ed. Charleville-Mezières: Éditions L’Entretemps, 2000. p. 106-107. 32 Bolognesi, M. F. Tragédia: uma alegoria da alienação. Trans/Form/Ação [online], São Paulo, v. 12, p. 23-35, 1989. p.26. 33 Beltrame, V. A animação do inanimado na dramaturgia de Maiakóvski. Revista Linguagem em (Dis)curso, v. II, n. 2, janeiro/julho 2002. s/p. 23 enormes estruturas metálicas”34 na cena. De igual modo, buscava-se investigar as relações entre ator e o espaço – compreendido não apenas como experiência visual, mas também como experiência corporal. Seguindo esses princípios e atrelando-os a estudo do design, das linhas, das cores, dos volumes e da geometria, Oscar Schlemmer criou, em 1921, uma série de figurinos para o Ballet Triádico, colocando corpos geometrizados em movimento e, a um só tempo, limitando a liberdade de ações dos dançarinos e aproximando-os de uma condição corporal marionetizada. 1.1 Esboços de Oscar Schlemmer para o Ballet Triádico 34 Amaral, A. M. Teatro de Formas Animadas: Máscaras, Bonecos e Objetos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. p. 181. 24 1.2 Ballet Triádico35 1.2 OBJETO REAL No âmbito das Artes Visuais, a busca por processos de redefinição da arte possibilitou, ao longo do século XX, que o objeto deixasse de ser representado para ser apresentado ao observador. A introdução de materiais estranhos à pintura, como fragmentos de jornais e revistas, papéis, tecidos e madeiras, provou que a técnica imitativa do pincel não era essencial e permitiu que todos os materiais se tornassem susceptíveis à utilização plástica, substituindo a representação pictórica pelo objeto deslocado da realidade. Mais tarde, Kurt Schwitters criou o Merzbau (merz = fragmento proveniente da palavra alemã kommerz + bau = construção), feito com objetos e fragmentos de objetos 35 Imagens disponíveis em: www.theremainsoftheweb.com. Acesso: 14 de fevereiro de 2013. 25 descartados, retirados do lixo. O contexto pós Primeira Guerra Mundial, com a Alemanha devastada moralmente e economicamente, foi a tônica para os trabalhos de Schwitters. Segundo Mattéoli, suas composições são “um ponto de confluência entre preocupação artística e vida cotidiana”, e o Merzbau constitui “uma escultura de ruínas” 36 por ser essencialmente composto de fragmentos descartados de outras realidades vividas, com os quais o artista construía a própria realidade. Ferreira Gullar afirma que, “nessa altura, a obra de arte e os objetos parecem confundir-se” 37 e aponta outro exemplo do “extravasamento entre a obra de arte e o objeto”, o readymade “A Fonte” que Marcel Duchamp enviou para a Exposição dos Artistas Independentes em Nova Iorque. A obra em questão era um urinol branco em que Duchamp assinou “R. Muth, 1917” e foi rejeitada pelo júri do Salão da Sociedade Nova-iorquina de Artistas Independentes. “A Fonte” foi uma provocação bem humorada que Duchamp encontrou para pôr em questão a noção da arte vigente. A sua crítica dirigia-se às galerias, salões, críticos, mecenas e demais pessoas e instituições legitimadoras do sistema de arte que transforma a arte em mercadoria. Tadeusz Kantor vê no readymade a aparição de um novo objeto, liberto de suas funções de uso: UM OUTRO OBJETO APARECE. Não aquele para o qual o artista oferece os seus serviços, imitando-o fielmente em sua tela. Surge um objeto ARRANCADO DA REALIDADE DA VIDA, SUBTRAÍDO À SUA FUNÇÃO VITAL, QUE MASCARAVA A SUA ESSÊNCIA, SUA OBJETIVIDADE. Isto acontecia em 1916. Marcel Duchamp fez isso. Ele o despiu de todo o sentido estético. Ele o chamou de “OBJETO PRONTO”. O objeto puro. Se poderia dizer: ABSTRATO!” 38 Por intermédio de Duchamp, o objeto teve o seu status ironicamente elevado a objeto de arte, e o fazer artístico foi radicalmente definido. A arte passou a ser encarada, 36 Mattéoli, J.-L. Op. cit., p. 16. 37 Gullar, F. Etapas da arte contemporânea. Do cubismo à arte neoconcreta. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 292. 38 Tadeusz. K. in Cintra, W. No limiar do desconhecido – Reflexões sobre o objeto no teatro de Tadeusz Kantor. São Paulo: [s.n.], 2008. p. 332. 26 desde então, não mais como produto final a ser contemplado, mas como processo e pensamento crítico. 1.3 OBJETO ESTRANHADO Os dadaístas e os surrealistas, em um contexto marcado pela expansão da sociedade de consumo, pretendiam ironizar o princípio de funcionalidade dos objetos cotidianos. Assim, diversos artistas buscaram, cada um a seu modo, deslocar o objeto de seus significados habituais, perturbando suas funções de uso e suas qualidades estéticas inerentes, carregando-o de signos divergentes, ironias e provocações. Tais objetos estranhados abalavam o senso da realidade e levavam o espectador a questionar-se sobre a própria percepção das coisas. Tem-se, como exemplos, “Desjejum em pele” de Meret Oppenheim – composto por uma xícara, um pires e uma colher revestidos de pele animal; “Onanistic Typewriter”, de Conroy Maddox – uma máquina de escrever com pregos no teclado; e “O presente” de Man Ray – um ferro de passar com pregos afixados em sua base. As metáforas que surgem desses objetos alterados podem ser surpreendentes, e eles continuam causando “estranhamento” ao olhar e constituindo uma fissura na percepção da realidade prosaica. 27 1.3 O presente, Man Ray, 1921. 1.4 Desjejum em pele, Meret Oppenheim, 1936. 28 1.5 Onanistic Typewriter, Conroy Maddox, 1940. 1.4 OBJETO POBRE Tadeusz Kantor foi um artista múltiplo e pôs o objeto no cerne de suas preocupações artísticas. Ele teve como formação oficial a pintura e a cenografia, mas logo percebeu o teatro como lugar propício para desenvolver uma arte única, sua, que dialogaria com as principais vanguardas artísticas do início do século XX e com questões próprias do seu tempo. A Polônia foi brutalmente atingida pelas duas guerras mundiais, o que fazia a realidade de Kantor estar permeada por destruição e morte, realidade transposta para seus trabalhos artísticos. Nas lições de Milão, Kantor descreve com clareza os traumas que a guerra causou. O ano a que ele se refere é 1944, momento em que parecia impossível fazer arte e sobretudo pensá-la enquanto abstração, pois uma realidade monstruosa se impunha: 29 O furor do homem encurralado pelo monstro humano exclui a ARTE. Nós tínhamos força somente para agarrar AQUILO QUE ESTAVA SOB A MÃO, O “OBJETO REAL”, e o proclamar como obra de arte! No entanto era: um objeto miserável, POBRE, incapaz de servir na vida, bom para ser jogado às sujeiras. Liberto de sua função vital, protetora, nu, desinteressado, artístico! Apelando à piedade e à EMOÇÃO! Este era um objeto completamente diferente do outro. Uma roda lamacenta de carroça. Um pedaço de madeira podre. Um andaime de pedreiro borrado de cal. Um horrível alto-falante urrando comunicados de guerra... Sem voz... Uma cadeira de cozinha...39 Era preciso encontrar outros caminhos expressivos que dessem conta de exorcizar a morte, não pela negação, mas por sua apropriação artística, como meio de reorganizar a realidade e de poder voltar a pensar na vida. Para isso, Kantor recorreu aos objetos degradados, recuperados das latas de lixo, também marcados pela destruição da guerra. Esses objetos foram denominados como “objetos pobres”, o que, para Kantor, propunha o apego àquelas coisas que foram descartadas pela civilização, que estariam destinadas ao esquecimento e à degradação nas lixeiras, seu último lugar antes da desaparição. Em um diálogo indireto com os readymades de Duchamp, Kantor elevou esses objetos recuperados da sarjeta à condição de objetos de arte, trazendo-os para a cena e conferindo-lhes a mesma importância dada aos atores. De acordo com Cintra40, os próprios atores eram considerados por Kantor como readyman, no sentido de permanecerem eles mesmos em cena. Kantor orientava seus atores a encararem os objetos não como acessórios ou suportes para o jogo, e sim como parceiros. Aldona Skiba-Lickel complementa: Na definição tradicional, o ator é a pessoa que interpreta um papel, enquanto que Kantor recusa a interpretação e os papéis. Ele os substitui por pessoas “tout prêts”, que permanecem elas mesmas. Elas não são atores profissionais. Nos espetáculos de Kantor, nós não podemos mais dizer que o ator é um protagonista, porque não há 39 Kantor, T. Leçons de Milan. Paris: ACTES SUD – PAPIERS. 1990. Tradução de Wagner Cintra. p.19. 40 Cintra, W. No limiar do desconhecido – Reflexões sobre o objeto no teatro de Tadeusz Kantor. São Paulo, 2008. Tese apresentada à escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial do Curso de Pós-Graduação para obtenção do título de Doutor em Artes. p. 23. 30 papel principal. Em seu teatro, todos os elementos tem o mesmo valor. E o ator é frequentemente colocado no mesmo nível dos outros elementos do espetáculo41. Kantor retomou as ideias postuladas por Maeterlinck e Craig, quando afirmavam que a vida não poderia se expressar na arte, senão através da morte. Todavia, Kantor deu um passo adiante, propondo que o ator não fosse substituído pelo manequim, mas que este funcionasse como modelo para o ator. Assim, Kantor os fez coexistir no espaço do acontecimento teatral: Não penso que um MANEQUIM (ou uma FIGURA DE CERA) possa ser o substituto de um ATOR VIVO, como queriam Kleist42 e Craig. Isso seria fácil e ingênuo demais. Eu me esforço por determinar as motivações e o destino dessa entidade insólita, surgida inesperadamente em meus pensamentos e em minhas ideias. Sua aparição combina-se à convicção, cada vez mais forte em mim, de que a vida só pode ser expressa na arte pela falta de vida e pelo recurso à morte, por meio das aparências, da vacuidade, da ausência de toda mensagem. Em meu teatro, um manequim deve tornar-se um MODELO que encarna e transmite um profundo sentimento da morte e da condição dos mortos, um modelo para o ATOR VIVO.43 Um exemplo da presença da morte como matéria expressiva é o espetáculo “A classe morta”, em que pessoas idosas retornam a uma sala de aula, irremediavelmente unidos a seus duplos (crianças-manequins). Os manequins, segundo Tadeusz Kantor, são exatamente esses próprios velhos em estado de larvas, de despojos de lembranças da época da infância, esquecida e rejeitadas pela insensibilidade e pelo pragmatismo que nos tornam ineptos a fruir a nossa vida em sua plenitude 44. Cintra destaca que “esses velhos indissociáveis de seus manequins” geram uma “estranha contaminação do presente pelo passado e dos vivos, ou aparentemente vivos, pela mecânica dos manequins que (...) exalam um profundo sentimento de morte” 45. 41 Skiba-Lickel, A. L’acteur dans le Théâtre de Tadeusz Kantor. Bouffonneries, Paris, n. 26-27, 1991. p. 6. 42 Aproximadamente 100 anos antes de Craig, Heinrich von Kleist já havia preconizado a substituição do ator por marionetes, compreendidas como atores perfeitos, capazes de realizar movimentos sem as limitações e a fragilidade do ser humano. 43 Kantor, T. O teatro da morte; textos organizados e apresentados por Denis Bablet. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2008. p. 201. 44 Ibid. p. 215. 45 Cintra, W. Op. cit., p. 175. 31 1.6 A classe morta, Tadeusz Kantor.46 1.5 O TEATRO DE ANIMAÇÃO MODERNO A metamorfose do teatro de animação, no sentido de esta prática tornar-se menos realista e mais poética, de acordo com Henryk Jurkowski, ocorreu efetivamente apenas depois da Segunda Guerra Mundial: As tendências poéticas e antirrealistas só se manifestaram com força após a Segunda Guerra Mundial. Essa época traz, inegavelmente, a marca da metamorfose e da história do teatro de bonecos no século XX. Ele se torna uma arte por inteiro. Desde então, os bonequeiros deram prova de uma energia sem limite, deixaram seu encrave e desenvolveram ideias originais, fazendo empréstimos à arte dramática e às artes plásticas47. Essas transformações, segundo o autor, foram mais perceptíveis na virada dos anos cinquentas para os anos sessentas, com uma nova geração de artistas que romperam com 46 Imagem disponível em: http://dalmor.blogspot.com.br/2010/05/kantor.html. Site consultado em: 06 de março de 2013. 47 Jurkowski, H. Métamorphoses: La Marionette au XX Siécle. 2ª. ed. Charleville-Mezières: Éditions L’Entretemps, 2000. p. 09. 32 teatro de bonecos tradicional e desencadearam “uma avalanche de experimentações criadoras e divertidas, das quais ninguém (...) podia prever o resultado”, embora contivessem os germes de “todas as grandes ideias dos anos 90” 48. Tal “avalanche de experimentações” possibilitou o surgimento de espetáculos não textuais, bonecos não figurativos, assim como a inserção de todo tipo de materiais para a criação dos personagens e, inclusive, de objetos empregados de formas semelhantes às dos grupos que, desde a década de 80, se associaram em torno do termo teatro de objetos. Tomarei emprestados de Jurkowski dois exemplos em que o objeto foi empregado como matéria poética: Yves Joly foi um artista francês que se apresentava em cabarés e criou os próprios meios de expressão, rompendo com as técnicas clássicas do teatro de animação. Em 1949, ele introduziu objetos e figuras de papelão para representar histórias curtas. Jurkowski salienta que “a qualidade de seu espetáculo não repousava na intriga, mas na maneira metafórica de contar a história”. Joly criava personagens diante do público, introduzia-os na ação para, em seguida, destruí-los. Em uma dessas pequenas histórias, chamada “Tragédia de Papel”, o artista criava figuras em papelão e, num dado momento trágico, um deles era picotado por tesouras para, logo em seguida, ser queimado. Jurkowski evidencia que “Joly foi o primeiro a romper o tabu da fidelidade icônica utilizando objetos” para expressar suas ideias e contar suas histórias de modo metafórico, conferindo ao objeto uma “nova mobilidade encarregada de significar um acontecimento humano” 49. 48 Jurkowski, H. Op. cit., p. 46. 49 Ibid., p. 36. 33 1.7 Tragédia de papel, Ives Joly, 1956 50 Outro precursor da metamorfose no teatro de animação foi o francês George Lafaye, que trilhou um caminho semelhante ao de Joly. Influenciado pelas teorias de Craig, nos anos cinquentas ele também criou números de cabaré em que formas geométricas e objetos eram empregados para representar situações humanas. Dois exemplos dados por Jurkowski são uma cena de amor vivenciada por um boá de pena e uma cartola, e um número de strip-tease em que uma mulher é representada “por um espartilho, luvas um colar de pérolas e três pares de pernas femininas que se cruzam uma sobre a outra verticalmente” 51. Assim, essa nova geração de artistas iniciou um processo de ruptura com a poética tradicional do teatro de bonecos, buscando não restringir o seu campo de criação. A reforma no teatro de animação punha, em primeiro plano, o jogo do ator, levando o espetáculo gradativamente a se abrir para outros meios de expressão, como a máscara, a dança, as técnicas do teatro oriental, as Artes Visuais, as imagens e os objetos. 50 Imagem disponível no Portail des Arts de la Marionnette: www.artsdelamarionnette.eu/app/photopro.sk/marionnettes/detail?docref=JOLY%2C+Yves. Site consultado em: 06 de março de 2013. 51 Jurkowski, H. Op. cit., p. 37. 34 2 TEATRO DE OBJETOS: HISTÓRIA, PRINCÍPIOS E GRUPOS. No final da década de 70, em meio a experimentações que engendravam transformações progressivas no teatro de animação, “cada vez menos naturalista, menos técnica, com menos personificação e mais abstração” 52, artistas franceses e italianos levaram para o espaço da encenação objetos, miniaturas, brinquedos, embalagens vazias, pequenos fragmentos do cotidiano, com os quais eles passaram a interagir em cena. Dessas experiências surgiram espetáculos curtos, íntimos – idealmente apresentados para 50 pessoas no máximo e voltados para o público adulto. Era o nascimento efetivo do que viria a ser o teatro de objetos, manifestação vinculada ao teatro de formas animadas que se consubstanciou ao longo da década de 80, graças a encontros entre os grupos desses artistas e festivais de teatro, que criaram uma rede de compartilhamento de ideias e até mesmo projeto coletivos. Neste capítulo abordarei o surgimento dessa manifestação, discutirei alguns de seus princípios e apresentarei grupos que investigaram ou investigam o potencial expressivo do objeto enquanto imagem poética, vinculando suas práticas sob a égide do teatro de objetos. De acordo com Carrignon, o teatro de objetos é um sistema que produz linguagem e, para isso, as coisas cotidianas devem ser postas em situações poéticas, transformando-se em figuras de linguagem, principalmente em metáforas e metonímias. O artista é quem faz esse trabalho de transmutação, ao mesmo tempo que exerce diversos papéis: “O ator, deverá “carregar o objeto”. Ele será um pouco marionetista, dançarino, mímico, narrador, ator”. 53 Esse objeto “carregado” deixa de ser presença funcional, tornando-se um “objeto bom para pensar”54. Inflado de uma nova existência, singularizada, o objeto converte-se em metáfora da existência humana, apresentando questões profundamente arraigadas no inconsciente coletivo 52 Mattéoli, J.-L. Op. cit.,. p. 90. 53 Carrignon, C.; Mattéoli, J.-L. Le théâtre d´objet: mode d´emploi. Dijon: Ed.Scèrén, CRDP de Bourgogne, 2006. p. 10. 54 Lévi-Strauss C. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Cia. Editora Nacional/ Ed. USP, 1970. 35 da cultura em que ele está inserido. Conforme Véronique Ejnès, o teatro de objetos “nos convida a mudar de ponto de vista, a deslocar o olhar, a interrogar a representação, o lugar do ator e o do espectador, no teatro e na vida”.55. Proponho, a partir de então, um percurso pelas entrelinhas dessa manifestação, com o intuito de desvendar suas poéticas e tornar mais conhecidos os seus princípios norteadores. 2.1 O ENCONTRO DA DÉCADA DE 80 Em 1980, aconteceu na França uma soirée cultural de que participaram os grupos “Vélo Théâtre” (Tania Castaing, Charlot Lemoine), “Théâtre de Cuisine” (Katy Deville, Christian Carrignon) e “Théâtre Manarf” (Jacques Templetaud). Naquela ocasião, os integrantes desses grupos discutiam uma possível denominação que servisse de identidade para suas práticas artísticas e que abarcasse as preocupações estéticas e éticas por eles compartilhadas. Segundo Carrignon, eles buscavam outro nome para outra relação com a prática teatral, liberta da onipotência do texto teatral e também das restrições impostas pelo teatro de animação tradicional, como o antropoformismo e a preocupação com os princípios técnicos da manipulação. Naquela noite, diversas sugestões foram apresentadas, mas nenhuma delas conseguia abranger a complexidade e a simplicidade do que vinha sendo experimentado desde a década de 70: Eu estava lá quando a expressão foi criada, posso até precisar a data, foi no dia 2 de março de 1980 (...) falávamos de nossos novos espetáculos, Le Pêcheur, Le Petit Théâtre de Cuisine, Paris-Bonjour. Espetáculos de mesa para os quais nós não encontrávamos uma definição. Eram minúsculas bricolagens, contando histórias com objetos encontrados, para no máximo 50 pessoas (...). Fazíamos associações de ideias. Katy sugeriu: “teatro de objetos”, e nós ficamos desanimados porque “teatro” 55 Ejnès, V. Cahier partages: des thèâtres par objets interposés. Mont-Saint-Aignan, Normandie: Ed. ODIA, 2006. p. 12. 36 remete a grandes textos, o que nos causava medo, e “objeto” é frio, falta-lhe a vida. Mas entre a grandiosidade da palavra teatro e a pequenez do objeto, há um precipício. E para preencher este abismo, necessita-se da energia poética do espectador. 56 Em uma conferência realizada por Christian Carrignon durante o Festival Internacional de Teatro de Objetos em Curitiba, percebi que esse encontro desencadeou um processo de reconhecimento entre iguais: Encontrávamos-nos entre umas 5 ou 6 pessoas, havia o “Vélo Théâtre”, o “Théâtre Manarf” e o “Théâtre de Cuisine”, e nos demos conta de que nós havíamos criado pequenos espetáculos, sem nos conhecermos, e que possuíam, entre eles, qualquer coisa de familiar. Foi então que nós dissemos: temos que encontrar um nome para este teatro. 57 Nessa mesma conferência, Carrignon afirmou que a expressão teatro de objetos não foi unanimemente aceita; opinião igualmente expressa por Jacques Templeraud durante a II Semana Internacional de Teatro de Animação do Sobrevento. Para Jacques58, o termo não conseguia traduzir a diversidade dos espetáculos apresentados, uma vez que os grupos não se guiavam exatamente pelo mesmo princípio de criar encenações com objetos extraídos da realidade utilitária. Entretanto, a sugestão apresentada por Katy, conectando todas aquelas práticas ao universo dos objetos, ainda foi a mais abrangente e pareceu, naquele momento, a melhor opção. Segundo Carrignon59, uma casualidade também contribuiu para sedimentar o termo teatro de objetos: duas semanas depois do encontro, eles se depararam com a expressão publicada em um jornal, referindo-se às apresentações daquela soirée. A partir de então, tal denominação começou a difundir-se por meio de intercâmbios entre artistas e pela participação desses grupos em festivais europeus de teatro. 56 Carrignon, C.;Mattéoli, J.-L. Le théâtre d'objet, a la recherche du théâtre d'objet. Paris: Themaa, 2009. p. 25. 57 Carrignon, C. “O teatro de objetos e sua utilização” – conferência proferida no FITO-Curitiba, Curitiba, 23 de maio de 2012. Cf. página: 118. 58 Entrevista realizada com Jacques Templetaud durante a II Semana Internacional de Teatro de Animação do Sobrevento (São Paulo, 1º de julho de 2012). 59 Carrignon, C. Cf. página: 118. 37 Antes desse encontro histórico, Jacques Templeraud, Tania Castaing e Charlot Lemoine já se conheciam, e o “Théâtre Manarf” foi fundado por Templeraud em parceria com Lemoine, no ano de 1978, quando ambos eram estudantes de Artes Visuais60. Jacques Templeraud e eu vínhamos os dois das Artes Visuais onde, sem saber, nós já praticávamos esse gênero de expressão. Era mais fácil apresentar diretamente para as pessoas aquilo que nós bricolávamos do que passar pelo sistema de exposições61 Desse modo, pouco a pouco esses artistas foram se encontrando, se aglutinando, se visitando, trocando suas experiências e criando um vocabulário até então pouco investigado no teatro de animação. Desacredito que o teatro de objetos tenha se configurado como um novo movimento dentro do teatro de animação contemporâneo, pois não me parece que havia essa intenção. Antes disso, observo inquietações semelhantes – artísticas, filosóficas, políticas, existenciais, econômicas – e, de fato, “qualquer coisa de familiar” entremeando os caminhos expressivos percorridos por estes grupos. Como já mencionado, o teatro de objetos difundiu-se principalmente mediante intercâmbios entre artistas e também por intermédio de festivais internacionais de teatro. No final de 1980, por exemplo, o grupo “Teatro delle Briciole” estreou o seu primeiro espetáculo voltado exclusivamente para o público adulto. Conforme Gabriele Ferraboschi, então diretora do “Teatro delle Briciole”, 62 além de ter grande aceitação na Itália, o grupo passou a apresentar esse espetáculo no exterior, o que possibilitou o contato com outras companhias e a constatação de que seus espetáculos possuíam alguma sintonia: “quando vimos o espetáculo do grupo “Théâtre de Cuisine”, descobrimos os mesmos objetos, as mesmas coisas que faziam 60 Informação disponível no Portail des Arts de la Marionnette: http://www.artsdelamarionnette.eu/app/photopro.sk/marionnettes/detail?docref=LEMOINE%2C+Charlot#ses sionhistory-ready. Site consultado em: 02 de março de 2013. 61 Lemoine, C. (diretor do “Vélo Théâtre”) em entrevista com Roger Wallet, Marionnettes, nº 7, Charleville- Mézières, 1985, p. 46. In: Mattéoli, J.-L. L’objet pauvre, mémoire et quotidien sur les scènes contemporaines françaises. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2011. p. 91. 62 Ferraboschi, G. Storia de un percorso. In: Bellasi, P.; Lalli, P. Recitare con gli oggetti: microteatro e vita quotidiana. Bologna: Cappelli, 1987. p. 19. 38 parte do nosso trabalho” 63. E o contato com outros grupos reverberou na organização dos festivais de teatro de animação do grupo “Teatro delle Briciole”. A primeira edição do festival foi em 1979 e chamava-se “Burattini ai Giardini” – pode ser traduzida como marionetes para parques, ou espaços verdes. Na edição de 1981, os integrantes do “Teatro delle Briciole” começaram a articular lugares intimistas pela cidade, capazes de proporcionar “um encontro entre pequenos espetáculos e um pequeno público” 64. Nas edições seguintes do festival, a participação de espetáculos com objetos foi crescendo gradativamente, assim como o interesse do público por esses trabalhos. No decorrer dos primeiros anos da década de 80, o “Teatro delle Briciole” desenvolveu uma profunda investigação sobre o objeto no teatro e, em 1984, mudou de nome de seu festival, para festival “Micro Macro”, configurando-se como lugar para onde convergiam espetáculos de diferentes modalidades expressivas. O festival, de acordo com Ferraboschi, pretendia mostrar o universo dos objetos tanto no aspecto teatral quanto em uma abordagem vinculada às Artes Visuais: “o objeto não mais visto em seu imediatismo de uso, mas sim em sua autonomia de evento, transforma-se em “objeto da visão”, através da mediação do artista e do ator” 65. Para Ferraboschi, foi por meio do festival “Micro Macro” que o teatro de objetos se tornou internacionalmente reconhecido como acontecimento artístico: O festival ganha uma nova roupagem a partir de 1984, primeira edição do “Micro Macro”, que se tornou um lugar de encontro de pessoas que com histórias diferentes, vindos de países diferentes e sem se conhecerem, haviam percorrido percursos semelhantes, fazendo convergir projetos, ideias, sintonias (...). O primeiro ano do “Micro Macro” torna-se também o ano em que o teatro de objetos encontra, penso eu, pela primeira vez no mundo, o seu reconhecimento: ele já não é um teatro subterrâneo, não é mais um teatro para alguns amigos próximos; mantém a suas características, mas finalmente encontra uma moldura, um contexto em que este acontecimento artístico pode ser lido em todos os seus sentidos, com todas as capacidades expressivas identificadas, e eu acho que este é um dos aspectos mais importantes do Festival. 66 63 Ferraboschi, G. Op. cit., p. 20. 64 Ibid.. p. 19. 65 Ibid.. p. 23. 66 Ibid.. p. 20 – 23. 39 Jurkowski também informa que as companhias de teatro de objetos se distinguiram, desde os anos oitentas, nos festivais internacionais de teatro de animação67. Por influência direta ou não desses eventos, que “faziam convergir projetos, ideias, sintonias”, ao longo dos anos oitentas, os grupos “fundadores” do teatro de objetos – “Théâtre Manarf”, “Vélo Théâtre” e “Théâtre de Cuisine” – desenvolveram, inclusive, espetáculos em parceria, como “3 hommes” em 1984 e “Transit” em 1985. Não encontrei registros de como ocorreu esse processo de criação coletiva nem informações sobre os espetáculos. De modo geral, é bastante escasso o registro dos espetáculos desses grupos, sobretudo no que diz respeito às produções da década de 80. Nos sites das companhias “Théâtre de Cuisine” e “Vélo Théâtre”, é possível encontrar a sinopse de quaisquer trabalhos desse período e algumas poucas fotos. Jurkowski tece breves citações acerca de determinados espetáculos, como “Intime, intime”, de Jacques Templeraud, e “Appel d’Air”, do grupo “Vélo Théâtre”: Manarf construiu seu renome com o espetáculo Intime, Intime (Íntimo, Íntimo) que nada mais é do que uma nova interpretação de Chapeuzinho Vermelho. O fundador da companhia, Jacques Templereaud, joga o papel do clown Giglo, que conta esta história clássica numa cozinha (...). Chapeuzinho Vermelho é representada por uma maçã verde, o lobo por uma verdadeira cabeça de bacalhau de dentes poderosos, a avó por uma batata cozida. Templereaud utiliza objetos personagens e outros acessórios em situações incomuns que suscitam todo tipo de associação de ideias. 68 Aos objetos comuns, que, de fato, utilizam raramente, eles preferem brinquedos ou miniaturas da realidade. Assim em Appel d’Air (Pedido de Ar), o menino (um ator) vive em sonho suas experiências e suas quimeras cotidianas. Ele está cercado de imagens de arranha céus de cimento de onde só é possível escapar de avião. O menino alimenta os aviões como se alimentasse pombos, amarga metáfora das necessidades atávicas do ser humano. Um poeta pode exprimir seu talento em qualquer tipo de teatro e, sobretudo no teatro de objetos. 69 Do mesmo modo, Ana Maria Amaral faz uma abordagem sucinta de produções dessas companhias, mencionando, em linhas gerais, as sinopses dos seus espetáculos. A pesquisadora assim se manifesta: Poucos foram os espetáculos de teatro de objetos aqui mencionados a que pudemos assistir. Mas sobre eles coletamos informações através de releases, programas de festivais, entrevistas, informações recebidas por correspondências, etc. As sinopses 67 Jurkowski, H. Métamorphoses: La Marionette au XX Siécle. 2ª. ed. Charleville-Mezières: Éditions L’Entretemps, 2000. p. 109. 68 Ibid., p. 110. 69 Idem. 40 que se seguem foram tiradas de releases publicados nos programas dos Festivais Micro-Macro de Reggio Emília de 1985-1987, e do programa do Festival La semaine de la marionnete à Paris, 1984. 70 Fazendo uma abordagem geral focada no caráter pobre71 dos objetos presentes no teatro contemporâneo francês, Jean-Luc Mattéoli discute, com mais profundidade, alguns espetáculos de teatro de objetos surgidos nos anos oitentas, especialmente as produções do grupo “Théâtre de Cuisine”, possivelmente pela proximidade com Christian Carrignon – em parceria eles têm publicado reflexões acerca do teatro de objetos, configurando-se o principal material teórico sobre o tema. Christian Carrignon, por sua vez, desenvolveu um método bastante original para apresentar a síntese poética de alguns espetáculos e princípios do teatro de objetos. Ao invés de descrevê-los, ele prefere desenhá-los e acrescentar-lhes alguns poucos comentários: 70 Amaral, A. M. Teatro de Formas Animadas: Máscaras, Bonecos e Objetos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. p. 218. 71 No sentido kantoriano. Jacques Templeraud Paris-Bonjour! Cie Manarf 1980 Ele assopra: A roupa voa. 1- Muito delicadamente, Jacques instala a situação sobre o seu pequeno mundo. A figurinha em plástico, apenas colocada, pouco tocada, dá a escala do plano amplo. Jacques coloca um fio de lã verde e a pradaria está lá! 41 2.1 Espetáculo Paris-Bonjour, Théâtre Manarf, 1980 72 72 Ilustração feita por Christian Carrignon. In: Carrignon, C.; Mattéoli, J.-L. Le théâtre d'objet, a la recherche du théâtre d'objet. Paris: Themaa, 2009. s/p. 3- A tempestade molha a roupa com longos jatos marroquinos. Mas a água não para no nível da ficção, ela também cai sobre o solo da realidade. Ela forma uma lagoa onde Jacques patinha. Vítima do próprio feitiço! 2- O pequeno homem dorme sobre a escova de roupas transformada em cama. Jacques é a tempestade que se aproxima com o seu bule. Mudança de plano, mudança de personagem. Dimensão cosmológica. 42 2.1.1 Espetáculo “Le Petit Théâtre de Cuisine” O espetáculo “Le Petit Théâtre de Cuisine”, atualmente denominado “Théâtre de Cuisine”, é dos trabalhos que motivaram o encontro de 1980. Ele continua sendo apresentado por Christian Carrignon, e, em 2012, pude assistir a ele na edição do FITO-Curitiba, ocasião em que também realizei uma breve entrevista com o ator. 2.2 Extrato de um painel histórico exposto durante a apresentação do espetáculo Théâtre de Cuisine. Foto de Flávia D’ávila. O germe do espetáculo “Théâtre de Cuisine” surgiu em 1978, antes de Christian Carrignon fundar o grupo “Théâtre de Cuisine” com Katy Deville. Naquela época, ele integrava um grupo de teatro de marionetes e, segundo o artista, o diretor do grupo pediu que cada ator construísse uma marionete. Durante três ou quatro meses, Christian trabalhou com (...) O tudo: Théâtre de Cuisine Rolha de garrafa Tampa disfarçada em... Percevejos brincando de olhar Lata de açúcar: casa de boneca de cortiça O sonho do moinho de café: simplesmente tornar-se café A garrafa de xarope toma-se por um calabouço, A lata de chá por um teatro De nada a tudo, tudo é nada. Sob a mesa, um indivíduo agachado faz as rolhas rirem. Sobre a mesa as tampas riem com escárnio quando as latas engolem as rolhas O pesadelo desta história: o abridor de garrafas A boa menina sai a lanterna para o Théâtre de Cuisine No final do espetáculo as pessoas fantasiam-de de indivíduo E se metem sob a mesa 43 embalagens, elaborando uma cena de cinco minutos. Depois deixou o projeto de lado. Aos poucos, durante um ano, ele concebeu novas situações com base naquele pequeno projeto. Num certo dia, Carrignon levou tudo o que havia construído para a rua e surpreendeu-se completamente, ao perceber a reação das pessoas. “Foi um pouco mágico! Porque todo mundo ficou tocado, em um estado de sensibilidade” 73. O poder expressivo desses objetos, postos diante dos espectadores, foi uma descoberta reveladora para Carrignon. Algo semelhante se passou com Gyula Monár, no espetáculo “Pequenos Suicídios”. De acordo Carles Cañellas 74, Molnár não tinha uma noção exata daquilo que ele estava concebendo, da força simbólica de seu espetáculo. Seguindo mais a intuição do que a razão, esses dois artistas, assim como os outros que trilharam caminhos semelhantes, se espantaram com a dimensão de suas criações e com a força expressiva dos objetos quando postos diante dos espectadores. Duchamp elucida que o artista nunca tem plena consciência de sua obra, pois ele não a faz sozinho: O ato criador toma outro aspecto quando o espectador experimenta o fenômeno da transmutação; pela transformação da matéria inerte numa obra de arte, uma transubstanciação real processou-se (...). O ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador. 75 Ao longo do século XX, o espectador tornou-se determinante para o acontecimento teatral no Ocidente, sendo até mesmo reivindicado como cocriador do espetáculo. Em “Théâtre de Cuisine”, Carrignon tem uma preocupação latente com a relação entre o espectador e o espaço da representação. Assim que os espectadores entram na sala do espetáculo “Théâtre de Cuisine”, sem nenhuma formalidade, Christian apresenta-se como ele mesmo, diz que está ali para 73 Entrevista realizada com Christian Carrignon, durante o Festival Internacional de Teatro de Objetos (Curitiba, 27 de maio de 2012). Cf. página: 129129. 74 Entrevista realizada com Carles Cañellas durante o Festival Internacional de Teatro de Objetos (Recife, 12 e 13 de novembro de 2011). Cf. página 132. 75 Duchamp, M. O ato criador. Trabalho apresentado à Convenção da Federação Americana de Artes, em Houston, Texas, abr. 1957. In. Battcock, G. A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva, 1986. p. 74. 44 contar a história de uma pequena vila, previne o espectador sobre as direções para chegar a tal localidade, mostra um mapa, afixa na parede instruções de saída da sala, e assim por diante. Esse tom informal permanece durante todo o espetáculo, tanto que, quando acontecem alguns incidentes não previstos, em vez de embaraçar-se, o ator brinca com tais fatalidades e dá continuidade ao jogo poético. Carrignon não interpreta um personagem, ele dirige-se ao público na primeira pessoa do singular, representando-se a si mesmo, lembrando o conceito de readyman, anteriormente mencionado. Não há construção de personagens em “nosso” teatro. Existe, sobretudo, um personagem central, presente o tempo todo, que tem o nome do ator. Em Trois petits suicides76, Mémoire de mammouth77, L’histoire de l’art racontée aux enfants78, isso é explicitamente dito e é perturbador entrar em uma ficção pelo verdadeiro nome do ator. 79 Ao longo da apresentação, Christian fica embaixo da mesa, sobre a qual se desenrolam histórias singulares e improváveis. Os objetos escolhidos são, em sua maioria, embalagens vazias que já cumpriram a função para a qual foram concebidos. Usando rolhas, latas de metal, um moedor de café, papéis de bala, uma garrafa de vinho, uma “língua de sogra”, um termômetro, um balão de assoprar e brinquedos em miniatura, Carrignon apresenta situações cotidianas de um pequeno vilarejo francês por meio de ações muito simples. Onomatopeias e algumas frases curtas caracterizam os personagens, cuja materialidade é predominantemente simples, ressaltando as suas condições de coisas próprias para serem descartadas. As situações apresentadas são simples, mas fortes e capazes de tirar o espectador de um lugar comum, envolvendo-o em um jogo cujas imagens mais potentes são aquelas construídas pela sua imaginação, pelas relações mentais e simbólicas que ele estabelece com aquilo que vê e ouve. 76 Peça criada pelo húngaro Gyula Molnár e que será discutida no próximo capítulo. 77 Espetáculo do grupo “Théâtre de Cuisine” criado por Christian Carrignon. 78 Espetáculo da companhia “Picolli Principi”, com colaborações dramatúrgicas de Christian Carrignon. 79 Carringon, C. La Caverne est um cosmos, carta enviada ao “Théâtre de la marionnette” em Paris. Marseille, não publicado, 10 de junho de 2003. p. 12. In: Mattéoli, J.-L. L’objet pauvre, mémoire et quotidien sur les scènes contemporaines françaises. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2011. p. 88. 45 2.3 Espetáculo Théâtre de Cuisine. Ilustração feita por Carrigon 80 81 Assim, objetos cotidianos ganham uma nova existência e invertem a ordem da realidade. Tornam-se objetos de sonho, sob o olhar dos espectadores envolvidos pela presença das coisas, que antes eram banais e que depois, vistas em outra perspectiva, tornaram-se pessoais e afetivas, capazes de lhes fazer pensar e ver além das aparências e do mero funcionalismo. O espetáculo “Théâtre de Cuisine” possibilita ao espectador descobrir que os limites entre o real e o imaginado podem se (con)fundir. Todavia, embora o espectador se envolva com as situações inusitadas que acontecem no vilarejo criado sobre a mesa, com personagens um tanto singulares, ele também vê o manipulador daquela realidade sob a mesa, em ação. Logo, o espectador está 80 In: Carrignon, C.; Mattéoli, J.-L. Le théâtre d'objet, a la recherche du théâtre d'objet. Paris: Themaa, 2009. s/p. 81 Daniel Spoerri foi um artista múltiplo: pintor, escultor, escritor, bailarino e artista de instalações. Sua concepção variada da prática artística possibilitou que ele participasse dos principais movimentos de vanguarda do pós-guerra, entre eles os Novos Realistas, o grupo Fluxus e o círculo de artistas italianos da Arte Povera. Fez uma série de trabalhos intitulados “tableaux piège”, afixando elementos cotidianos a tampos de mesa e pendurando-os em paredes, com a intenção de tornar tridimensional a obra pictórica. Informações extraídas de: http://www.mcnbiografias.com/app-bio/do/show?key=spoerri-daniel. Site consultado em 12 de março de 2013. Uma mesa de cozinha à maneira de Spoerri. As coisas que se movem sobre. Um homem que move as cordas, (...) 46 constantemente dentro e fora do jogo, transitando entre a própria realidade e a realidade poética criada por Carrignon. A diferença do que acontece sob e sobre a mesa remete-nos ao princípio brechtiano de estranhamento (Verfremdungseffekt), procedimento utilizado por Bertolt Brecht para evitar a total identificação do espectador com o espetáculo, conduzindo-o a uma experiência crítica e de descoberta ante a obra teatral. Francimara Nogueira Teixeira esclarece: Os efeitos-V são um dos meios artísticos que o teatro épico dispõe para distanciar o espectador dos acontecimentos representados. Seu emprego é condição indispensável para que não se estabeleça entre palco e plateia nenhuma espécie de magia, de campo hipnótico. O ator, sem renunciar completamente à identificação (é preciso que isto fique claro), deve antes apresentar do que representar um comportamento a seu público, deve oferecer uma forma acabada dos acontecimentos, dando-lhes o caráter de coisa mostrada. Assim o ator pode expor uma opinião sobre os acontecimentos relacionados ao personagem e convidar o espectador a também desenvolver um olhar crítico. 82 Relacionando o teatro de objetos ao teatro narrativo, Carrignon destaca a importância do efeito de estranhamento e, igualmente, da presença do ator-narrador para criar e quebrar a noção do tempo e do espaço da representação. Gostaria de falar rapidamente sobre Bertolt Brecht. Porque é um artista que inventa no teatro uma nova maneira de contar as histórias. (...) vocês conhecem o efeito de distanciamento? É o efeito da estranheza. Ele permite ao espectador dizer: não, mas isso não acontece assim! E as pessoas começam a ter uma opinião sobre a encenação. Eles têm uma força de participação. Eles continuam sentados, mas eles pensam bastante. E eles dizem: isso pode acontecer, estou de acordo. Não, isso não pode acontecer de jeito nenhum! Muito frequentemente, nas peças encenadas pelo Brecht, ao lado do palco, há um narrador. Ele está lá e é completamente exterior à cena. Ele está do outro lado da lã vermelha e conta muito tranquilamente a história. E no interior tudo se move, há mortes, há confusão. E ele está lá para dar o tempo e o espaço. 83 Carrignon também ressalta a importância da participação do espectador no teatro de objetos, que constrói cenários mentais por meio dos objetos e do que é proposto verbalmente. Outro ponto que acerca o teatro de objetos do teatro de narradores, segundo o ator, é a necessidade da proximidade com os espectadores para que todos possam se ver, reconhecerem-se e tornarem-se cúmplices do que é apresentado: 82 Teixeira, F. N. Prazer e crítica: o conceito da diversão no teatro de Bertolt Brecht. São Paulo: Annablume, 2003. p. 69-70. 83 Carrignon, C. “O teatro de objetos e sua utilização” – conferência proferida no FITO-Curitiba, Curitiba, 23 de maio de 2012. Cf. página: 118. 47 Eu acho que o teatro de objetos é, de fato, um teatro de narradores84. Quando temos uma história para contar, posso contá-la sem objetos. Mas se eu coloco o castelo do Macbeth ali (coloca uma miniatura da casa sobre a mesa e senta-se sobre uma cadeira atrás da mesa) e digo: a floresta avançava em direção ao castelo. E se observo o castelo, vocês em suas cabeças, constroem o cenário. E isso me parece muito importante. Quando temos objetos grandes como este (a casa em miniatura), todos o reconhecem. Vocês veem o chalé, mas quando temos muitos espectadores, as pessoas mais detrás começam a dizer: o que é aquilo? E como este é um teatro de narradores, a assistência é pequena. Para a cumplicidade. Porque eu tenho a necessidade de olhar, pelo menos uma vez, olhar todas as pessoas nos olhos. Para que nos reconheçamos na mesma cultura, na mesma cultura dos objetos pobres. 85 A sala onde acontece o espetáculo “Théâtre de Cuisine” é intimista, deixando a audiência bem próxima da mesa sob a qual Carrignon manipula os objetos. Essa proximidade também faz os espectadores se sentirem em um ambiente acolhedor e informal, como se eles estivessem na própria casa do ator. É importante que eu esteja tranquilo antes de começar o espetáculo, para que as pessoas tenham a impressão que eles estão na minha casa e de que lhes conto uma história. (...) Mas eu não inventei isso. Os narradores fazem isso há muitos anos. Talvez o que fazemos de novo é atrair a atenção das pessoas para coisas que elam conhecem: “ah isso é uma mesa! Ah, é uma refeição! Ah, é o final de uma refeição! Ah, isso se move! Ah, isso se torna uma vila!” Então nós fizemos a mesa, a vila, o plano fechado, o plano aberto. E quando nós começamos a compreender esta dupla visão, com Katy eu fiz outro espetáculo, maior, em que os efeitos eram os efeitos do cinema, como você viu, por exemplo,86 a montanha, E nós começamos, pouco a pouco, a compreender aquilo que estávamos fazendo. 87 A proximidade com o espectador soma-se à gestualidade, ao olhar, à informalidade desse “ator encarnado”, que aciona as potencialidades metafóricas das coisas postas em cena. Com isso, a memória e a imaginação do espectador são reivindicadas, e ele passa a desempenhar a função de parceiro ou de semelhante, com quem o ator compartilha suas histórias. Com mestria Carrignon comprime e alarga o espaço da representação, ora concentrando-o nas miniaturas e nos pequenos objetos que são inflados de ânima88 sobre a 84 Conteurs, no original. 85 Carrignon, C. “O teatro de objetos e sua utilização” – conferência proferida no FITO-Curitiba, Curitiba, 23 de maio de 2012. Cf. página: 118.. 86 Esta cena está descrita nos anexos e é um fragmento do espetáculo “Catalogue de Voyage” de 1981. Cf. página 118. 87 Entrevista realizada com Christian Carrignon, durante o Festival Internacional de Teatro de Objetos (Curitiba, 27 de maio de 2012). Cf. página: 129. 88 Frequentemente utilizada no Teatro de Formas Animadas, a palavra ânima ou sua variação animus é originária do latim, e pode ser traduzida por "alma" ou "mente", dependendo do contexto em que se encontra. A raiz latina animus é cognato em grego de anemos, vento, respiração; e do sânscrito aniti, ele respira. Em 48 mesa – o que ele denomina de plano fechado –, ora expandindo-o e evocando um lugar muito mais amplo que aquele da sala de representação – plano aberto. Um exemplo dessa alteração do espaço: um avião em miniatura chega à cidade “voando” sobre o público – na verdade ele desliza em cordas estendidas acima dos espectadores, sendo puxado pelo artista por meio de um gatilho. O espectador, ao mesmo tempo em que vê o avião em miniatura, torna-se cúmplice do jogo, permitindo-se estar sob um avião imaginado como verdadeiro. Com isso, um ambiente muito mais amplo é evocado, fora da sala de representação. O pequeno avião que desliza sobre a audiência, enquanto o ator narra a sua chegada à cidade, é suficiente para desencadear essa mudança de lugar, sem alterações efetivas no espaço da representação. Carrignon acredita que esse fenômeno de deslocamento do espaço está diretamente vinculado à arte da colagem, em especial à arte cinematográfica: Penso que minha formação, se eu tive uma formação cultural foi, sobretudo, pelo cinema. Então, o que é o cinema? É um novo meio de contar as histórias, representando sobre o espaço. Os irmãos Lumière fabricaram a película. Era uma película muito frágil e muitas vezes ela se quebrava. Então os irmãos Lumière pegavam a película, cortavam um pouco aqui, um pouco ali e a colavam. Colar é uma palavra muito importante. E nos encontrávamos em uma cena de rua e, de repente, sobre a outra parte da película nos encontrávamos no interior de uma usina. Dessa forma, a gente se deu conta que podia passar de um espaço a outro em segundos. E esta é verdadeiramente a força do cinema. 89 Assim, de acordo com Carrignon, no teatro de objetos, pode-se adequar uma técnica especificamente cinematográfica para o domínio efêmero do acontecimento teatral e com recursos mínimos. Basta um objeto (real ou evocado) e a presença do ator, somados, é claro, à imaginação do espectador, para se processar essa mudança de espaços. Segundo o artista 90, a natureza dos objetos é significativa para processar esse deslocamento, ou seja, a capacidade de eles serem facilmente reconhecidos por todos. Os objetos guardam memórias italiano e espanhol, a palavra ânima é traduzida como "alma". Informações extraídas de: http://www.anadaraujo.com.br/detalheconteudo.asp?idconteudo=106. Site consultado em 12 de junho de 2013. 89 Carrignon, C. “O teatro de objetos e sua utilização” – conferência proferida no FITO-Curitiba, Curitiba, 23 de maio de 2012. Cf. página: 11. 90 Idem. 49 de experiências que as pessoas tiveram em duas vidas cotidianas. Ao identificar o que é posto sobre a mesa, o espectador fica perto e distante do que é sugerido na apresentação. Ele distingue a dupla realidade dos objetos – metafórica e funcional – e complementa aquilo que vê com os seus signos culturais e suas memórias. Às vezes, propositalmente, o ator também lhe deixa lacunas a serem preenchidas. No espetáculo “Théâtre de Cuisine”, uma dessas lacunas são os trocadilhos visuais e sonoros que o ator constrói com os objetos. Um moinho de café, por exemplo, posto sobre a mesa é o café da cidade; a caixa de chá (thé) torna-se o teatro (théâtre) e a rolha da garrafa de vinho está sempre estourada – no sentido de ter pouca paciência. Essas relações são explícitas, mas não explicadas. Assim, a percepção de cada espectador varia de acordo com a sua capacidade de ler as entrelinhas do espetáculo e estabelecer conexões com a própria experiência de vida. Os jogos de duplo sentido, a perturbação da noção espacial e o olhar diferenciado sobre a estrutura do cotidiano são qualidades que Carrignon afirma ter herdado de escritores franceses modernos, como Raymond Queneau, Jacques Prévert e Georges Perec. Em “Exercícios de estilo”, por exemplo, Queneau narra uma história corriqueira de noventa e nove formas diferentes, imprimindo olhares diversos sobre um fato ordinário. A escritura de Prévert, por sua vez, caracteriza-se pelos jogos de palavras e um apurado senso de humor. É, inclusive, bastante difícil traduzir Prévert, justamente por causa de seu estilo pleno de jogos sonoros, como se pode perceber em seu poema “Être Ange”: «Être ange C’est étrange Dit l’ange Être âne C’est étrâne Dit l’âne Cela ne veut rien dire Dit l’ange en haussant les ailes Pourtant Si étrange veut dire quelque chose étrâne est plus étrange qu’étrange Dit l’âne Étrange est Dit l’ange en tapant des pieds Étranger vous-même 50 Dit l’âne Et il s’envole.» Na conferência ministrada durante o FITO-Curitiba, o ator afirmou ser obrigatório conhecer Perec para compreender as relações com o espaço no teatro de objetos: Ele conta as histórias, mas faz explodir completamente o espaço. São frequentemente pequenos módulos, pequenas cenas que não terminam obrigatoriamente. Não é uma história que começa do princípio e que vai subindo, subindo e que termina com uma morte ou um casamento. São todas pequenas imagens que nos permitem compreender tudo, mas sem dramaturgia. 91 Christian refere-se à ausência da dramaturgia tradicional, cuja presença de um texto com falas de personagens e instruções de cena é determinante. Não obstante, ele ressalta ser muito importante, no teatro de objetos, a existência de outra dramaturgia, não textual e vinculada à imagem. 2.4 Espetáculo Théâtre de Cuisine, FITO Curitiba 2012. Foto Flávia D’ávila 91 Carrignon, C. “O teatro de objetos e sua utilização” – conferência proferida no FITO-Curitiba, Curitiba, 23 de maio de 2012. Cf. página:118. 51 2.2 O TEATRO DE OBJETOS E A SOCIEDADE DE CONSUMO Perec é significativo para Carrignon, tanto pelo seu estilo de escritura quanto pelas ideias expressas em suas obras. A expansão da sociedade de consumo, o rápido processo de descartabilidade dos objetos e a sua relação com o teatro de objetos são uma questão bastante presente nos discursos de Carrignon. Ele interpreta o teatro de objetos como fruto e também como crítica a um sistema que aliena as pessoas, deixando-as fascinadas com a imagem da felicidade associada ao poder de compra. Em “As coisas”, livro frequentemente citado por pelo artista, Perec apresenta um retrato da classe média parisiense da década de 60, imersa nesses valores de consumo e seduzida pela publicidade da época: No mundo deles (dos protagonistas da história) era quase regra desejar mais do que se podia comprar. Não eram eles que tinham decretado isso; era uma lei da civilização, um dado fato, de que a publicidade em geral, as revistas, a arte das vitrines, o espetáculo da rua, e até, sob certo aspecto, o conjunto das produções comumente chamadas culturais eram as expressões mais adequadas. Sendo assim, eles estavam errados de se sentir, em certos instantes, atingidos em sua dignidade: essas pequenas mortificações – perguntar num tom meio inseguro o preço de alguma coisa, hesitar, tentar regatear, espiar as vitrines sem se atrever a entrar, ter vontade, ter um ar mesquinho – também faziam o comércio funcionar. Orgulhavam-se de ter pagado alguma coisa mais barato, de tê-la conseguido por dois tostões, por quase nada. Orgulhavam-se mais ainda (mas sempre se paga um pouco caro demais pelo prazer de pagar caro demais) de ter pagado muito caro, o mais caro, logo de saída, sem discutir, quase com embriaguez, pelo que era, pelo que só podia ser a coisa mais bela, a única coisa bela, o perfeito. Essas vergonhas e esses orgulhos tinham a mesma função, carregavam em si as mesmas decepções, as mesmas raivas. E eles compreendiam, porque em todos os lugares, em torno deles tudo os fazia compreender, e porque lhes enfiavam isso na cabeça todo santo dia, à força de slogans, cartazes, neons, vitrines iluminadas, que eles estavam sempre um pouquinho mais baixo na escala, sempre um pouquinho baixo demais. Mas ainda tinham a sorte de não serem, longe disso, os mais aquinhoados.92 No começo dos anos sessentas, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, segundo Mattéoli, ocorreu um fenômeno de celebração da “natureza do século XX, tecnológica, industrial, publicitária, urbana” 93. Conforme o autor, os fatores que contribuíram para tal fenômeno foram a transferência em massa das pessoas para as cidades, acarretando manifestações de outros modos de vida e pensamento, e o progressivo desenvolvimento do 92 Perec, G. As coisas: uma história dos anos sessenta. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 37-38. 93 Mattéoli, J.-L. Op. cit., p. 25. 52 consumismo, “colocando o indivíduo e suas necessidades no centro do sistema” 94. Ainda segundo o pesquisador, a busca pela felicidade imediata passou a orientar o comportamento social, ditado por intensas campanhas publicitárias que pregavam as vantagens e praticidades que a modernidade oferecia. Giulio Carlo Argan acrescenta que, naquele momento, a realidade passou a se dividir “entre o a-consumir e o consumido” 95. O fenômeno da crescente produção dos objetos na sociedade tornou-se realidade significati