unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP ANAMARIA BRANDI CURTÚ MMMÚÚÚSSSIIICCCAAA,,, EEEDDDUUUCCCAAAÇÇÇÃÃÃOOO EEE IIINNNDDDÚÚÚSSSTTTRRRIIIAAA CCCUUULLLTTTUUURRRAAALLL::: O LOTEAMENTO DO ESPAÇO SONORO NO ESPAÇO ESCOLAR ARARAQUARA - SP 2011 1 ANAMARIA BRANDI CURTÚ MMMÚÚÚSSSIIICCCAAA,,, EEEDDDUUUCCCAAAÇÇÇÃÃÃOOO EEE IIINNNDDDÚÚÚSSSTTTRRRIIIAAA CCCUUULLLTTTUUURRRAAALLL::: O LOTEAMENTO DO ESPAÇO SONORO NO ESPAÇO ESCOLAR Trabalho de Tese de doutorado apresentado ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação Escolar – exemplar apresentado para defesa de Tese. Linha de pesquisa: Estudos Históricos, Filosóficos e Antropológicos sobre Escola e Cultura. Orientador: Prof. Dr. Denis Domeneghetti Badia. ARARAQUARA - SP 2011 2 Curtú, Anamaria Brandi Música, educação e indústria cultural: o loteamento do espaço sonoro no espaço escolar / Anamaria Brandi Curtú – 2011 307 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Educação Escolar) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientador: Denis Domeneghetti Badia l. Indústria cultural. 2. Música. 3. Padronização musical. 4. Filosofia da educação. 5. Semiformação. 6. Loteamento do espaço sonoro. I. Título. 3 ANAMARIA BRANDI CURTÚ MMMÚÚÚSSSIIICCCAAA,,, EEEDDDUUUCCCAAAÇÇÇÃÃÃOOO EEE IIINNNDDDÚÚÚSSSTTTRRRIIIAAA CCCUUULLLTTTUUURRRAAALLL::: O LOTEAMENTO DO ESPAÇO SONORO NO ESPAÇO ESCOLAR Trabalho de Tese de Doutorado apresentado ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação Escolar - exemplar apresentado para defesa de Tese. Linha de pesquisa: Estudos Históricos, Filosóficos e Antropológicos sobre Escola e Cultura. Orientador: Prof. Dr. Denis Domeneghetti Badia. Data da defesa: 25/03/2011 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Denis Domeneghetti Badia UNESP – Professor do Departamento de Ciências da Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da FCL-UNESP-CAr Membro Titular: Prof. Dr. José Carlos de Paula Carvalho USP - Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - FEUSP Membro Titular: Profa. Dra. Myrla Fonsi Universidade de Girona – Espanha Membro Titular: Profa. Dra. Dulce Consuelo Andreatta Whitaker UNESP - Professora do Departamento de Ciências da Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da FCL-UNESP-CAr Membro Titular: Profa. Dra. Paula Ramos-De-Oliveira UNESP - Professora do Departamento de Ciências da Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da FCL-UNESP-CAr Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 4 Aos meus pais, Geraldo (in memoriam) e Gilda (in memoriam). Pelos naturais exemplos de integridade, amor ao conhecimento e à arte. 5 À Aray pelo “Já pra faculdade, menina”, junto com bolsa de estudos para graduação. À Silvia, pelos financiamentos para a Pós-Graduação. Vocês reacenderam em mim o desejo de estudar e com o desprendimento de irmãs me supriram de recursos materiais e afetivos. Pelas comemorações que ainda faremos, pela intimidade que o tempo construiu e distância não desfaz. À D. Lidia, D. Ilda, Terezinha (Tera) e D. Maria, pelas orações e palavras de inabalável ânimo. Ao José (Zezito) pela dedicação e humanismo cristão. Meire e Vando, a presença e a voz de vocês têm cheiro de feijão feito na hora, casa onde o amor é o melhor alimento, resistindo ileso às nossas briguinhas. Não é para menos que os chamo de Mamis e Papis, que telefono perguntando sobre remédios para o corpo e para a alma. Aos amigos (in memoriam) de plena doçura, competência e alegria. Havia uma festa para cada conquista minha. Além da festa, os conhecimentos acadêmicos Dr. Alessandro (Lê) e os tecnológicos e artísticos do Edenilson (Xuxa). Com vocês aprendi que a vida deve sempre ser celebrada. Aos amigos que por quatro anos foram incansáveis e infalíveis no transporte: Sr. Oswaldo (in memoriam), Silvana, Vagner, Lenita, José Carlos e Silvia. Transportando eu e bagagens se fizeram participantes deste sonho. Ao Marcelo (Celô), pelo apoio de chefe e artista desde a graduação. À Karina, guerreira de idéias, cuja persistência e desprendimento constantemente me reafirmam os ideais da Educação; À Ângela: “passarim quis voar”. E voamos! À Marilei: pelo recorrente envolvimento nas minhas andanças. À Mônica, Denise, Heloisa e Adriana: a amizade inestimável de cada uma. À Patrícia Maria, pela firmeza com que permaneceu ao lado de minha mãe em tempos tão difíceis. Seus cuidados deram a guarida sem a qual eu não teria podido me manter nesta pesquisa. É muito bom ter você por perto. À Silvana, Silvia, (de novo vocês aqui), Lucilene (Lucinha), Beatriz (Bia) e Vladimir (Vlad): diligências amigas em maus e bons tempos. À Claudia, personal trainning que virou amiga e “personal tudo”!; À Denise (Bebedouro) cujo divã ajudou a encarar a dor e a delícia de viver. Aos professores da graduação (excelentes!). Em especial à Lucy Mary: com você o primeiro passo, o mais importante e mais difícil; Nelson: para delinear hipóteses, deliciosas conversas com um sociólogo pianista; Luci Mara: cantar, tocar, procurar república, estudar na escrivaninha que você me deu, ter você numa 6 permanente e antológica banca de defesa, dentre outros feitos que não caberiam nestas páginas. Afinal, você está presente desde o início. Na hospitalidade de amigos, por causa das viagens que este curso exigiu, Patrícia (Paty) e Conceição: pelo impasse maravilhoso entre dormir numa cama macia ou desfrutar de inesgotável conversa. Aos amigos/funcionários que configuram a piscina do SESC-Araraquara: solução para refrescar as idéias e reaver os ânimos; À Edheine, cujas aulas musicais de francês me valeram na prova de proficiência. Ainda que na fragmentação dos tempos, encontros acadêmicos que trouxeram fôlego. Alexandre: ajuda para os gráficos, conversas banais e altos papos. Risadas, choro e canja de galinha na divertida e imprescindível hospitalidade; Maurício: com você aprendi que é a generosidade (compaixão!), e não o brilhantismo, que livra os homens da mediocridade. Sua maravilhosa Tese é só um prolongamento do seu jeito de ser. Carolina (Carol), Ademilson, Isabela, Maria de Fátima, Arlete; extensão universitária para essas amizades. Fátima, não encontrei palavras para lhe agradecer pela sua participação na Tese. Vou continuar procurando-as e peço que espere me concedendo o bônus de sua companhia. Ao CNPq pela bolsa de Mestrado. À Biblioteca da FCL-CAr, em especial Ana Paula e José: esclarecimentos e livros em ambiente acolhedor. À Lidiane e à Rosimar (Rose): foi (é) muito bom contar com vocês para deixar o difícil menos difícil. À Profa. Dulce: sua sensibilidade descobriu a moldura ideal para o texto final. Quando me lancei na reestruturação, as palavras fluíram naturalmente para a nova estrutura. Acompanha e apóia esta pesquisa desde a gestação; ao Prof. José Carlos: sempre encontrando o cerne das questões, o ethos do oculto revelado em poucas palavras e ainda, o presente da Aula no curso de música em educação; à Profa. Myrla: pelo olhar renovado e renovador e pela indicação de material; à Profa. Paula: pela simplicidade e firmeza teórica com que trata os temas complexos, prova de que Teoria Crítica e leveza combinam. Também ligada à minha vida acadêmica desde meus primeiros artigos. Prof. Denis, querido orientador: difícil saber o que ressaltar dentre aprendizados, orientações, conversas, leituras, idéias que tiveram liberdade para respirar e amadurecer, curso de extensão e batalhas ganhas. Você percebe as 7 ligações entre vida e pesquisa e esteve comigo em todas as questões. Logo nos primeiros dias de orientação você se posicionou com as seguintes palavras: “Aqui ninguém diz por favor nem muito obrigada. Estamos juntos nisso.” Desde então permaneço encantada. À Vera, minha querida irmã, revisora existencial e textual: clareando idéias escritas ou vividas. Sempre ajudando que eu enxergue a mim ao túnel e a luz no fim do túnel, por permanecer ao meu lado quando me decido por um novo caminho. À Doraci (Dora): em final de Tese só você para me tirar da frente do computador. Que a amizade com você e sua família seja sempre mais velha que os vinhos que tomarmos. Aos entrevistados, às diretorias e equipes pedagógicas das duas escolas pesquisadas: não posso citar os nomes, mas saibam que vocês viabilizaram esta pesquisa e transformaram coleta em agradável colheita. À Janaína, Izabel e Regina: por (in)plantar um sonho para que se colha música; aos professores de Educação Musical, em especial Claudia Helena e Daniel, pela forma como receberam o Programa de Ensino para a Educação Musical, e atuam para sua concretização; aos seus, (nossos) alunos: que alcem vôo cantando. A Deus, sem o qual nenhum de nós seria possível. A tantos outros que participaram direta ou indiretamente deste trabalho, que torcem por mim e por ele. Agradecer é reconhecer a presença de vocês, tomem essas palavras por abraço. Conseguimos. 8 RESUMO Esta pesquisa, intitulada “Música, Educação e Indústria Cultural: o loteamento do espaço sonoro no espaço escolar”, estudou o uso sistemático das possibilidades de comunicação sonora, com ênfase para as produções musicais padronizadas pela indústria cultural e para a presença da tecnologia. A este uso deu o nome de “loteamento do espaço sonoro”. A partir da Teoria Crítica – principalmente de Adorno – foi elaborado um trabalho de compatibilização paradigmática entre os fundamentos da Teoria Crítica, os estudos antropológicos de Garcia Canclini e entre autores e músicos contemporâneos. Tal compatibilização possibilitou cunhar, no ambito teórico, o termo “loteamento do espaço sonoro” como um dos fenômenos da indústria cultural hodierna. Na pesquisa de campo o mesmo termo assumiu a função e o sentido de categoria de análise, para a pesquisa qualitativa, com abordagem antropológica, que identificou especificidades do fenômeno do loteamento do espaço sonoro dentro do espaço escolar. Duas escolas de ensino fundamental, sendo uma pública e uma particular, foram os principais campos para a coleta de dados, que utilizou observação livre, observação do repertório musical, entrevistas semi- estruturadas, testes de percepção musical e levantamento do acervo sonoro- musical. Palavras - chave: Indústria Cultural. Música. Padronização Musical. Filosofia da Educação. Semiformação. Loteamento do Espaço Sonoro. 9 ABSTRACT This research, entitled "Music, Education and Culture Industry: the blending of the sound space in the school," studied the systematic use of the possibilities of acoustic communication with emphasis on music productions for the cultural industry and standardized for the presence of technology. In this usage gave the name "blend of sonic space." From the Critical Theory - mainly Adorno - was an elaborate work of compatibility between the paradigmatic foundations of Critical Theory, anthropological studies of Garcia Canclini and contemporary authors and musicians. This compatibilization allowed to mint, in the theoretical realm, the term "blend of the sound space" as one of the phenomena of cultural industry today. In the field research took the same term the function and meaning of a category of analysis for qualitative research, an anthropological approach, which identified specific characteristics of the phenomenon of blending the sound space within the school environment. Two elementary schools, one public and one private, were the main fields for data collection, which used free observation, observation of the musical repertoire, semi-structured interviews, tests of musical perception survey and collection of sound-musical. Key - words: Culture Industry. Music. Standardization Musical. Philosophy of Education. Half-formation. Key - words: Culture Industry. Music. Standardization Musical. Philosophy of Education. Half-formation. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................p.13 1 TEORIA CRÍTICA: ESCOLHER, ENCONTRAR OU RECONHECER-SE? ....................................................................................p.20 1.1 Da subjetividade do instrumento metodológico a um pensamento crítico e eticamente comprometido ....................................................p.24 1.2 Metodologia............................................................................................p.37 2 DA INDÚSTRIA CULTURAL À INDUSTRIALIZAÇÃO DA CULTURA: LIMITES E ALCANCES DA TEORIA CRÌTICA NESTA PESQUISA ...............................................................................................p.43 2.1 Contribuições da antropologia para a pesquisa.................................p.45 2.2 Atualidade do conceito de indústria cultural.......................................p.50 2.3 Elemento estético – conceitos adotados.............................................p.54 3 PADRONIZAÇÃO, REPETIÇÃO E RECONHECIMENTO.........................p.61 3.1 O procedimento protocolar na padronização musical .....................p.63 3.2 Semiformação e regressão da audição ..............................................p.67 3.3 Algumas conseqüências da semiformação no contexto da padronização musical .........................................................................p.70 4 LOTEAMENTO DO ESPAÇO SONORO ...................................................p.74 4.1 Papéis da tecnologia no loteamento do espaço sonoro....................p.83 4.1.1 Papéis da tecnologia na saturação do espaço psíquico ...............................................................................................p.85 4.2 Adorno e pesquisas em neuropsicologia: a objetividade da linguagem musical ..........................................................................p.88 4.2.1 Reações fisiológicas aos sons, independentes do gosto...............p.92 11 5 INTERPRETANDO OS DADOS ................................................................p.95 5.1 Relação de coletas realizadas ..............................................................p.95 5.2 Presença invariável da tecnologia: educação de massa, música de massa e veículo de comunicação de massa numa arquitetura favorável à massificação .......................................p.97 5.3 Da audição involuntária para a naturalização da audição compulsória .............................................................................................p.108 5.4 Inviabilização do silêncio com sons principais e secundários.....................................................................p.114 5.5 As músicas dos meios de comunicação de massa orientam o repertório da escola ...........................................................................p.115 5.6 A terceira programação no espaço escolar ......................................p.130 5.7 Testes de percepção de timbres da coleta realizada junto a educadores ..............................................................................p.132 6 SEIS REFLEXÕES COM CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA CRÍTICA ........................................................................................p.137 6.1 Sob o perigo da hybris epistemológica: ressalvas para a música popular brasileira (MPB)......................................................................p.138 6.2 “Fala de criança”, segundo Adorno, nas canções de axé e funk: observando a massificação musical no espaço escolar ...............p.143 6.3 Triângulo versus teclado eletrônico: a dimensão humana e concreta na percepção estética versus padronização e simulacro ..............p.152 6.4 Música no tempo livre: das diferenças entre lazer e entretenimento e da fruição ao consumo de sensações padronizadas ..................p.161 6.5 Aporia da arte ......................................................................................p.170 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................p.180 REFERÊNCIAS ...........................................................................................p.183 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .................................................................p.190 REFERÊNCIAS MUSICAIS ........................................................................p.191 REFERÊNCIAS MUSICAIS UTILIZADAS NO TESTE DE PERCEPÇÃO DE TIMBRES .......................................................................p.193 ANEXOS.......................................................................................................p.195 12 ANEXO A – Termos de consentimento livre e esclarecido (TECLEs)............................................................................p.196 ANEXO B - Formulários de coleta.............................................................p.200 ANEXO C – Coleta de dados e etnografia................................................p.206 ANEXO D – Letras de devaneios musicais; Outras músicas citadas .......................................................................p.284 ANEXO E – Referências das músicas utilizadas no teste de percepção de timbres ...........................................................................p.291 ANEXO F – Programa de ensino para a educação musical – proposta curricular e metodológica...................................p.293 ANEXO G – Cd de áudio com músicas do anexo D ...............................p.307 13 INTRODUÇÃO Hoje, nesta passagem de século, vemos este cimento – que unifica alicerces político-econômicos à produção da sociedade por atingir também seus estratos culturais – cada vez mais atuante em todos os domínios. A técnica moderna que cria e revoluciona constantemente instrumentos novos, dentre os quais o chamado ciberespaço, alia-se à agressiva globalização modelo único, tornando-se onipresente e oni-atuante. Constitui- se a indústria cultural, portanto, cada vez mais, num tema inescapável para quem se interessa pela educação tanto em sentido estrito de ação no espaço escolar quanto no sentido amplo de força maior deformante que se exerce sobre todos em todos os momentos. (RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2002, p. 137). Com olhares trazidos da Filosofia da Educação e da Antropologia aqui trouxemos e tratamos algumas questões sobre a padronização musical e seu uso pela indústria cultural. Aprofundamos teoricamente as idéias que orientaram a construção do conceito de “loteamento do espaço sonoro” (CURTÚ e VALENTIM, 2003) e verificamos o fenômeno do loteamento dentro do espaço escolar, investigando suas especificidades. Trabalhando desde 1987 com música e educação, observamos uma lacuna na capacitação dos ouvintes de modo geral para a apreciação autônoma da arte musical, bem como para distinguir arte de entretenimento. Esta lacuna estaria relacionada a deficiências no aprendizado da música enquanto linguagem, deficiências estas, em grande parte, causadas pela padronização dos produtos de baixa qualidade artística destinados sistematicamente ao consumo das massas. Segundo Adorno (1999, p.66): [...] não conseguiremos furtar-nos a suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao estado real [...] Ao invés do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser reconhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas. Tal indivíduo já não consegue subtrair-se ao julgo (sic) da opinião pública, nem tampouco pode decidir com liberdade quanto ao que lhe é apresentado uma vez que tudo o que se lhe oferece é tão semelhante ou idêntico. 14 Adorno atribui o consumo dos produtos culturais destinados às massas e o aprisionamento do gosto ao que chamou de semiformação. Contudo, antes ainda de apresentarmos melhor este conceito, convém alertar para o fato de que a submissão aos padrões da indústria cultural é diretamente proporcional ao grau de heteronomia dos sujeitos; isto é, sujeitos que buscam uma autoridade que lhes dirija as orientações estéticas, que lhes indique como e com o que podem sentir prazer, numa heteronomia tanto de apreciação como de denominação do que se aprecia. Almeida (2004, p. 27-28) nos permite uma análise objetiva neste sentido, a partir do que chamou de infância cultural: Infância cultural: metáfora que uso para um conjunto de estados sociais e psicológicos, tais como: interação com produtos da indústria cultural de maneira singela, repetitiva. A necessidade de sempre ver/ouvir o mesmo; absorção imediata e ingênua das novidades culturais, principalmente as de grande divulgação, e o conseqüente abandono quando a estimulação mercadológica diminui e a moda passa; rejeição às coisas da cultura que demandem esforço de entendimento, sensibilidade, ou atenção, como filmes ou textos considerados difíceis ou complexos; insegurança e medo ante objetos da cultura que não se apresentem já legitimados e autorizados pelos produtores de opinião ou pelo mercado. Dificuldades em ter uma visão pessoal, levando à busca de juízos de autoridade ou a defender-se em conceitos opacos como: elitista, popular, moderno, pós-moderno, conservador, progressista, avançado, de vanguarda, atual, etc., que produzem no usuário certa sensação de segurança intelectual. Conteúdos de violência e sexo na TV e na internet têm sido objeto de preocupação de sociólogos e educadores. Acreditamos que a música deva suscitar para a Educação o mesmo cuidado, uma vez considerados os valores contidos na dimensão estética e que ficam implícitos/explícitos na linguagem musical. Enquanto os discursos oficiais do governo indiquem, de modo geral, que os esforços concentrados na educação escolar sejam um dos veículos para uma sociedade mais democrática, a indústria cultural oferece padrões musicais cuja hegemonia conduz a valores e comportamentos que, juntamente com outros fatores, dificultam este desenvolvimento educacional desejado. Constatamos que a difusão destes padrões utiliza o espaço escolar, beneficiando-se de uma visão ingênua dos educadores. Essa visão não nos surpreende, visto que acreditamos ser reflexo de uma omissão generalizada dos governos, em relação à atuação da indústria cultural na produção e distribuição dos 15 bens simbólicos. Se aqui nos referimos especificamente ao espaço escolar e à visão dos educadores, e nos dispomos a tocar em pontos que nos parecem distantes das iniciativas mais concretas sobre educação, um paralelo pode ser feito com o relato abaixo em que o autor observa a dinâmica dos encontros internacionais a respeito de políticas culturais: O que aterrissa e o que decola nessas reuniões onde se trata das políticas culturais? Fala-se de pianistas que vão chegar e de pintores ou escritores que serão enviados, conversa-se sobre o patrimônio histórico que não deve ser mexido nem tocado e que começa a ser comercializado. Do que quase ninguém quer falar é das indústrias culturais. É como se há cem anos os presidentes se tivessem negado a mencionar as ferrovias; há cinqüenta anos, os carros, os caminhões e os tratores; há trinta, os eletrodomésticos ou as fontes de energia. O que se pretende ao excluir da esfera pública os recursos estratégicos para o desenvolvimento e enriquecimento das nações? Não há possibilidade de que os gigantescos lucros hoje obtidos com os usos industriais da criatividade cultural beneficiem as sociedades geradoras, além de permitir-lhes uma melhor compreensão e fruição de si mesmas, uma comunicação mais diversificada com um maior número de culturas? Sem dúvida, há razões políticas e econômicas para esse negligente descaso, típicas de um tempo em que governar se resume a administrar um modelo econômico que entende o global como subordinação das periferias a um mercado onipotente. Um tempo em que a política e a cultura – enquanto gestão das diferenças – são subsumidas na homogeneidade econômica. (GARCIA CANCLINI, 2007, p.174-175). Por isso, afirmamos também que os prejuízos resultantes na semiformação dos indivíduos, mediante a oferta de uma estética musical padronizada, têm escapado ao olhar dos educadores, uma vez que estes, de forma geral, encontram- se igualmente submetidos ao estado de audição regredida e de semiformação. Dado que a padronização musical atua como poderoso meio de comunicação e educação sobre ouvintes de diversos níveis sócio-econômicos, diríamos que todos são atingidos pela padronização musical e pelos valores que ela divulga, na medida em que sejam pessoas com possibilidades de apreciação musicais mais ou menos refinadas. A investigação do loteamento do espaço sonoro dentro do espaço escolar nos chamou a definir este ultimo. Dessa forma, por espaço escolar, abarcamos tanto os acontecimentos formais (aulas) como os informais (intervalos, festas e comemorações, entrada/saída das aulas), entendendo que tudo o que ocorre dentro do processo de escolarização, seja intencional ou não, tem alguma forma de 16 influência e de responsabilidade pedagógica. Pensamos que o espaço escolar não deva ser apenas preservado da atuação da indústria cultural, mas que deva ser usado para possibilitar experiências musicais formativas, uma vez que a escola é – ou deveria ser – o local de difusão do conhecimento, no qual se incluem as obras musicais e o domínio dos códigos necessários para maior capacidade de apreciação estética. Tendo sido constatada a sujeição da escola ao loteamento do seu espaço sonoro pela indústria cultural, de forma análoga aos espaços não escolares, se faz relevante esta pesquisa. Pensamos que, levantadas essas questões, a pesquisa beneficiará aos educadores no sentido de terem uma visão mais clara da problemática por eles vivida e por nós levantada, e conseqüentemente, uma preocupação em preservar a escola desta forma de assédio da indústria cultural colaborando, assim, para uma educação mais ampla, culturalmente mais democrática e formadora de pessoas com o comportamento musical mais livre, o que acaba se refletindo também em outros âmbitos da vida que não o musical. Entendendo a indústria cultural como um fenômeno do capitalismo e o espaço escolar como um local potencialmente interessante para os que se beneficiam da difusão dos valores capitalistas1, consideramos que: O capital, puro ou como mercadoria e mercado, tem moldado, constituído e integrado o ensino, às vezes com estardalhaço e outras, as ocasiões talvez mais perigosas, subterraneamente, imperceptivelmente. Exerce um encanto a que tudo invade. (RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2001a, p.20). Conforme o autor supracitado, algumas vezes, o ensino é influenciado pelo capital de modo não explícito. Entendemos que esta influência seja acompanhada por um caráter de subjetividade, não menos perigoso do que quaisquer outras intenções meramente comerciais e descomprometidas com a repercussão dos 1 A Lei Federal 11.769/08, torna obrigatório o ensino de música para todas as séries do Ensino Fundamental, a partir de 2012. Na seção 3 do capítulo 6 fizemos considerações a respeito da utilização do timbre sintético na imitação de timbres originalmente produzidos por sons acústicos, e, na pesquisa de campo, indicamos que foram encontrados nas escolas materiais didáticos que empregam timbres sintéticos. Ainda em campo, investigamos a percepção dos sujeitos (professores) sobre as duas formas de produção dos timbres (por instrumento acústico e por sintetizador eletrônico). Embora a abordagem deste tema não tenha se dado para uma discussão no âmbito da Educação Musical como conteúdo curricular, pensamos que, as considerações aqui feitas possam contribuir para a avaliação do material pedagógico destinado à Educação Musical que chegará às escolas. 17 valores estéticos sobre a educação, contidos na ação mercadológica de produção e venda de materiais destinados à educação. A semiformação musical se dá por elementos subjetivos, e, segundo nosso referencial teórico, um desses elementos é a padronização musical (ADORNO, 1996, 1986). Precisamente, quando abordamos neste trabalho a semiformação, levando em conta os elementos subjetivos no fenômeno da padronização musical – abarcados pelo estudo do loteamento do espaço sonoro, e as suas repercussões psicossociais – nosso estudo adquire a objetividade necessária, para tal abordagem, pois O fato de não podermos demonstrar com precisão como essas coisas funcionam, naturalmente não significa uma contraprova desse efeito, mas apenas que ele funciona de modo imperceptível, muito mais sutil e refinado, sendo por isso, provavelmente muito mais danoso. (ADORNO, 1995 p. 88). Dadas a complexidade e subjetividade do estudo do loteamento do espaço sonoro e as suas repercussões psicossociais as questões da pesquisa foram encaminhadas no sentido de compreender como a indústria cultural atinge o espaço escolar, se encontra barreiras, quais são, e como as supera. Dessa forma contemplamos a percepção dos sujeitos do espaço escolar: como e em que medida educadores e educandos percebem o processo de loteamento, o que pensam sobre ele – ainda que, provavelmente, sem conhecimento nominal dele – e como interagem com ele; quais os fatores/elementos que influenciam os sujeitos facilitando ou obstaculizando o loteamento do espaço sonoro nas escolas; se para os educandos a escola legitima os produtos da indústria cultural ou se, é a escola que, ao consumi-los é por eles legitimada e quais os critérios que os responsáveis pela escolha de repertório usam para selecionar as músicas executadas. Uma vez que a tecnologia é componente fundamental no processo de loteamento, pois foi encontrada em todas as situações de loteamento do espaço sonoro, ela foi objeto de especial atenção. Para tanto observamos como os equipamentos eletrônicos foram usados no contexto. De acordo com a revisão de literatura constatamos a presença da indústria cultural no espaço escolar. A hipótese inicial, então, originada de nossa práxis pedagógica, era de que parte dessa presença se fizesse pelo loteamento do espaço sonoro e que isso ocorresse sem que os educadores se dessem conta de tal processo e de sua relevância. Esta hipótese foi comprovada na análise de dados e 18 pudemos constatar, ainda, que as músicas chegam às escolas por caminhos alheios a qualquer critério formal de preocupação educativa sobre os hábitos musicais, e que esta ausência de critérios é beneficiada pela ingenuidade pedagógica e pela supracitada infância cultural. Notamos, ainda, que existem produtos musicais produzidos pela indústria cultural especificamente para as escolas – para atividades musicais de forma geral, bem como para a educação musical de forma específica – anunciados como música de boa qualidade, mas que, segundo os parâmetros de nosso referencial teórico, seriam qualificados como padronizados, o que equivale a um demérito da qualidade. Esses produtos dificultariam experiências estéticas mais amplas por conservarem as mesmas características de padronização dos elementos estéticos difundidos pela mídia, e responderiam não só à intenção da indústria cultural em expandir mercado, mas, à de superar possíveis obstáculos para entrar no espaço escolar. Neste sentido, em quatro escolas em que lecionamos pudemos encontrar este tipo de material, sempre com indicações, na embalagem ou no conteúdo, como sendo produto indicado para a atividade musical. A fim de ampliar o tratamento teórico, autores não pertencentes à Teoria Crítica foram trazidos para o debate. Dessa forma utilizamos os conceitos de CANCLINI (2007 e 1997) e BOURDIEU (2007). Além deles, músicos contemporâneos que não se pronunciam como intelectuais vinculados à Teoria Crítica também contribuíram para o diálogo, à medida que encontramos os pontos de convergência entre o que eles pensam – ou que se manifestou em suas produções artísticas, segundo nossa interpretação – sobre o fazer artístico e a Teoria Crítica. São eles: BRITO S.; MELLO B. (2001), WISNIK, J.M. (1999), GUDIN, E.; NATUREZA, S. (1994), SHURMANN, E.F. (1990), MEDAGLIA, J. (1988), TINHORÃO, J. R. (1986), TÁVOLA, A. 2(1996), COPLAND, A. (1974). Nosso intuito foi enriquecer a análise pela experiência desses músicos, e ao mesmo tempo, indicar a factualidade do pensamento teórico por nós escolhido. Por tratar-se de uma pesquisa no campo da música e pela relevância das experiências musicais no nosso processo particular de formação, usamos em alguns capítulos epígrafes musicais, direta ou indiretamente relacionadas à temática 2 Embora não sendo músico, pelo trabalho como crítico de arte e divulgador da arte musical, e, pela pertinência das referências por nós utilizadas para este estudo, foi incluído aqui na categoria de autores/músicos contemporâneos. 19 tratada. As epígrafes foram chamadas de “devaneios musicais”, todas trazendo letras de músicas. 20 1 TEORIA CRÍTICA: ESCOLHER, ENCONTRAR OU RECONHECER-SE? Meu3 encontro com Adorno e a Teoria Crítica deu-se ainda na graduação, (Pedagogia, 2001-2003) quando abordei a relação entre música, educação e padronização no trabalho de conclusão de curso intitulado: “Elemento Estético: a padronização na música pela Indústria cultural”, e que recebeu tratamento pela Filosofia. Naquela ocasião esbocei o conceito de “loteamento do espaço sonoro” e ao fazer um levantamento bibliográfico percebi a existência de pontos comuns entre os fundamentos da Teoria Crítica e o pensamento de alguns músicos e de alguns teóricos contemporâneos. Tenho percorrido o tema da padronização musical desde a entrada na graduação (2001), tomando como base minha prática musical anterior a este período. Professora de violão desde 1987, percebia que a maior parte dos meus alunos se interessava regularmente pelos produtos oferecidos pela mídia, no caso trilhas sonoras das novelas e músicas em evidência, muito executadas no rádio e na televisão, músicas estas que depois desapareciam, sendo sucedidas por outras que me pareciam muito semelhantes. No entanto, quando eu lhes apresentava uma canção de estilo diferente ao que estavam habituados a ouvir, e se esta apresentação fosse contextualizada – para tanto comentava a letra, associava a fatos do presente, indicava alguma passagem harmônica por interesse didático – eles ouviam de bom grado, gostavam e muitas vezes demonstravam arrebatamento. Outras vezes íamos a alguma apresentação musical que eu ocasionalmente lhes indicava, que embora não pertencendo ao estilo de música que lhes era familiar, recebia deles uma resposta que me parecia demonstrar interesse. Cantora e filha de cantora, tive contato com alguns músicos e artistas diversos. Perturbava-me comparar o nível técnico de músicos, concertistas e estudiosos que se empenhavam em divulgar seu trabalho para conseguir apresentações com cachês muito menores que os recebidos pelos músicos em evidência na mídia e de habilidades musicais que, por ordem técnica, eram visivelmente inferiores a dos músicos da categoria anterior. 3 Usaremos a primeira pessoa do singular, pela estreita relação com nossa história pessoal. 21 Além dessas situações, era eu mesma uma das musicistas que, com repertório de música popular brasileira tradicional4, numa cidade do interior de São Paulo, de cem mil habitantes, mal conseguia trabalho como cantora, o que me levou a lecionar para obter remuneração. Ainda assim, em 1999, participei de um programa de seleção musical de âmbito nacional, “Novos Talentos”, promovido pela Rede Globo de Televisão, dentro do programa do apresentador Fausto Silva. As eliminatórias eram regionais, não transmitidas pelo programa, mas, flashes delas iam ao ar nos telejornais das respectivas regiões. Classificada na fase eliminatória, um fragmento de aproximadamente quinze segundos de minha apresentação foi ao ar por três vezes e gerou um sensível – e temporário – aumento de oferta de trabalho, de valor de cachê, além de visibilidade na imprensa da cidade e muitas manifestações entusiasmadas de conhecidos meus. Telefonemas, flores e propostas de trabalho às quais eu aquiescia por razão financeira, mas com sensação interior de humilhação. Como podiam, após doze anos de trabalho, essas pessoas passarem a me dar mais valor por causa de quinze segundos na televisão? Quinze segundos que em nada mudavam minha forma de fazer música, e que na verdade representavam a menor parte disso. Eu estava indignada e intimamente menosprezava a capacidade de apreciação artística das pessoas que passaram a dar mais valor ao meu trabalho por causa dessa momentânea visibilidade na mídia. A isto se somavam outras questões: por que meus alunos, apesar do contato prazeroso com as músicas que eu lhes apresentava, não respondiam com uma efetiva mudança de comportamento, mas permaneciam comprando e ouvindo o mesmo repertório a que estavam habituados? Por que as pessoas valorizavam as músicas e os músicos que estavam em evidencia na mídia, por que lhes eram tão receptivas? Bourdieu, em “Esboço e Auto-Análise” (2005), vincula a escolha do objeto de estudo pelo pesquisador às problemáticas pessoalmente vivenciadas por este. Aponta que o olhar é tanto mais aguçado quanto mais experimentado e familiar lhe seja este objeto, sendo que o rigor científico está na precisão metodológica do estudo e não no distanciamento pesquisador/objeto. 4�Existe uma discussão sobre a aplicação do termo “música popular brasileira”.�Usamos o acréscimo “tradicional” para designar aqui, pontualmente, os estilos musicais em que predominam o choro, o samba, o baião, o samba canção e a bossa-nova – apesar da influência jazzística sobre ela – ficando excluídos, apenas para efeito dessa referência, a música nacional com influências do pop norte- americano. 22 Assim, uma vez na graduação, a Teoria Crítica me foi indicada para tratamento teórico das questões que eu trazia da minha experiência para o trabalho de conclusão de curso. Recordo-me que a um comentário dos professores de que eu estava compreendendo bem Adorno eu respondi que não. Era Adorno quem me entendia e explicava boa parte de minha vida. A leitura de Adorno me surpreendia frequentemente com a sensação de “isso aconteceu comigo”. Portanto minhas vivências musicais mais frustrantes na dimensão social foram elaboradas de forma inteligível e abrangente. Era um alento que uma teoria explicasse meu fracasso profissional como cantora, minha privação como apreciadora – eram muitos os eventos artísticos a que eu não tinha acesso por serem uma mercadoria que eu não podia comprar – e o conflito estético existente no campo da música entre o meu gosto musical e o de parte de meus amigos e alunos, os quais apreciavam as músicas divulgadas na mídia. Mas Adorno também explicou meus pequenos êxitos, episódios de fazer artístico que representam oásis de fruição estética na sociedade massificada. Êxitos que compuseram os motivos para me manter envolvida nessa pesquisa que, mesmo apontando fenômenos tão opressores como a padronização musical e o loteamento do espaço sonoro, experimentaram a ruptura deles, ainda que em breves e fragmentados momentos. Foram vezes em que, mesmo trabalhando com alunos na condição de semiformação – se é que esta não é igualmente, em alguma medida, a minha condição e/ou talvez não somente a deles – pude com eles construir momentos de arte genuína. Lecionei em escolas de ensino fundamental e superior, e sempre me chamou a atenção o contraste que havia entre o tipo de música que os alunos ouviam cotidianamente, suas práticas e preferências musicais e o repertório que usávamos nas aulas de Educação Musical. Eu costumava apresentar algumas opções de músicas para os grupos escolherem. Uma delas foi a canção “Onde está você”, de Luvercy Rodrigues e Oscar Castro Neves. Os alunos – de segunda a oitava série do ensino fundamental – não só a escolheram como pediram para ouvi- la no CD repetidas vezes, com demonstrações de enlevo e arrebatamento. Lembro- me ainda de ter sido surpreendida quando duas alunas, recém chegadas ao grupo de flautas doce, demonstraram familiaridade e quase total domínio do nosso repertório. Eram duas alunas residentes na zona rural, como praticamente um terço dos sessenta e quatro alunos que compunham um grupo musical formado por coro, 23 flauta doce, violão e algumas percussões. Mediante minha surpresa, responderam que desde que entraram para o grupo, um aluno mais experiente lhes ensinava as músicas e ensaiavam com as flautas enquanto esperavam o ônibus escolar buscá- los na fazenda. Os êxitos citados chamam a atenção para uma possibilidade altamente positiva em relação à massificação musical: a fragilidade da condição de semiformação, conforme encontramos no texto: [...] talvez possamos dizer que o mesmo esforço e determinação, que os homens empreendem para se deixarem enganar pelas fugazes satisfações da indústria cultural, que na verdade não o são, se empregados na contramão das imposturas e dos logros, possam gerar, quiçá, espaços de vida e de formação. (PUCCI 2003 p.27). A fragilidade percebida a partir das rupturas mencionadas justificaria a grandeza dos empreendimentos da indústria cultural a fim de manter cativos seus ouvintes que, se por um lado lhes são tão economicamente rentáveis, estão, por outro, mais próximos da autonomia do que supomos. Isto indica que a semiformação, mesmo sendo um estado limítrofe, requer elementos para sua manutenção, uma vez que os aspectos humanos pertencentes à apreciação e ao fazer artístico se conservam latentes, e o homem – quando em contato com material propício à fruição – almejará sempre caminhar na direção da autonomia, da reflexão e da transcendência. Conforme discorre Adorno (1986, p. 146) no texto Sobre a Música Popular, a força da vontade individual é ambivalente, podendo ser usada para submeter-se à massificação ou para revoltar-se contra ela: “Essa transformação da vontade indica que a vontade está viva neles, e que, sob certas circunstâncias, ela pode ser suficiente forte para os livrar das influências que lhes foram impostas e que perseguem os seus passos.” Resgatei aqui o caminho percorrido para a escolha teórica, porque, tratando- se de etnografia, objeto de pesquisa e pesquisador são igualmente importantes. 24 1.1 Da subjetividade do instrumento metodológico a um pensamento crítico e eticamente comprometido Devaneio musical Crer no que se cria / Ver o que não via / Ser onde a energia está Êxtase alegria / Sonho e fantasia / Coisa boa de cantar Nada que só doa / Tudo que se entoa / Voa como a voz no ar Ave quando migra / Corda quando vibra / Tudo que nos diga vá Pra fazer a liga / Da idéia ao fato / Doce ato de criar (GUDIN, E.; NATUREZA, S. Doce ato, 1994.). O valor objetivo dos significados subjetivos parece estar muito presente nessa canção. Contudo, os materiais musicais com finalidade didática, que encontrei nas escolas, não têm corda vibrando, pele percutindo. Apenas soam e simulam, numa audição entorpecida, anestesiada, regredida. Fim do devaneio musical A neutralidade científica dos postulados teóricos, de modo geral, já está desacreditada (AZANHA, 1992, p. 135-163), mas, de modo particular, entendemos que a Teoria Crítica pratica de forma explicita, certo juízo de valor, na medida em que fundamenta alguns de seus conceitos. Apesar de sabermos que tal postura esteja nas entrelinhas do nosso discurso, julgamos adequado explicitar nossa concordância em que a boa música deva atender a alguns aspectos, e em valorar positiva ou negativamente determinados processos e manifestações musicais. No exercício de fazer definições quantitativas acerca do caráter artístico de determinadas manifestações, nos deparamos com o antagonismo entre a facilidade de dizer na teoria, de forma geral, o que é a arte e a dificuldade de dizer se algo específico é ou não arte. Isto porque, enquanto sujeito interpretante, nossa subjetividade atua podendo atribuir significados artísticos ao objeto em análise. Também é possível que, ao dirigir um olhar analítico, interpretativo e classificatório a um determinado objeto, percebamos nele elementos que pertencem à arte, mas que não se fizeram notar num primeiro olhar. Na complexidade do julgamento estético, entendemos que: 25 Uma terceira “faculdade” deve mediar entre a razão teórica e a prática – uma faculdade que propicie uma “transição” do reino da natureza para o da liberdade e estabeleça a ligação das faculdades inferiores e superiores, as do desejo e as do conhecimento. A terceira faculdade é a do julgamento. Uma divisão tripartida da mente sublinha a dicotomia inicial. Enquanto a razão teórica (entendimento) fornece os princípios apriorísticos da cognição e a razão prática os do desejo (vontade), a faculdade de julgamento é a medianeira entre essas duas, em virtude do sentimento de dor e prazer. Combinando com o sentimento de prazer, o julgamento é estético, e o seu campo de aplicação é a arte. (MARCUSE, 1969, p.157). Apoiando nossa preocupação sobre a necessidade de uma visão crítica e – por que não? – valorativa das manifestações musicais, encontramos sínteses de pesquisas em neuropsicologia no campo da música5 que corroboram o pensamento de Adorno sobre o efeito pedagógico da audição musical. Estas pesquisas, ao estudarem os efeitos da audição musical nos indivíduos, agregam significativos dados de objetividade para nossos argumentos. O problema da padronização musical a que se refere nosso estudo é aquele que, pela ação pedagógica da audição musical, produz a regressão da audição, mediante os padrões musicais divulgados nos veículos de comunicação de massa, bem como a sistematicidade que encontramos nos modos de divulgação, aos quais chamamos de loteamento do espaço sonoro. A respeito da padronização aqui tratada, notamos que cada estilo musical conserva sua riqueza à medida que conserva também as variações no uso dos seus elementos característicos. Já os produtos da indústria cultural conservam somente os elementos mais marcantes ou os padrões estereotipados do estilo original. Quando esses produtos são divulgados na mídia, soam de forma semelhante a um dos estilos de arte oriunda do povo, mas não passam da mera reprodução dos padrões musicais básicos, sem oferecer as variações de elementos matizados que compunham a riqueza do estilo original6. Desse modo, pensamos que nem tudo o 5 Sínteses dessas pesquisas e a relação delas com o pensamento de Adorno estão apresentadas nos capítulo 4, na seção 2. 6 A exemplo disso, consideramos o pagode enquanto variação do samba de raiz um estilo musical da música popular, mas às canções dos grupos que contemporaneamente se autodenominam pagodeiros, consideramos como resultado do uso padronizado de alguns elementos do samba canção – sobretudo a divisão dos tempos dos compassos binários em grupos de oito semicolcheias em determinados instrumentos rítmicos – e não como um outro estilo pertencente à categoria da autêntica música popular. Um caso que ilustra os diferentes usos da designação de popular entre os folcloristas e os comunicadores do meio massivo, conforme Garcia Canclini (1997). 26 que se classifica como estilo é conseqüência da evolução musical por um processo histórico de criação artística, mas a derivação por padronização mediada pela indústria cultural. Esta mediação industrial e essa descaracterização da arte foram dois dos nossos parâmetros para avaliar e valorar os estilos musicais sobre ao quais se lançaram nosso olhar. Também utilizamos comparações referentes ao comportamento dos ouvintes de determinados estilos, no sentido de detectar os processos de reconciliação forçada e de adesão à massificação, para termos a indicação de que estávamos diante de música padronizada. Esses processos se evidenciam na conduta histérica dos ouvintes, em um comportamento a que Adorno & Simpson (1986, p.146) comparam a insetos nervosos (jitterbugs, os frenéticos do jazz): “Para ser transformado em inseto, o homem precisa daquela energia que eventualmente poderia efetuar a sua transformação em homem”. Interpretamos que a vontade necessária para a autonomia e a liberdade é usada na mesma intensidade, porém perversamente, no processo de abandono e de negação de si, ao aderir às massas: Entusiasmo pela música popular requer deliberada resolução do ouvinte que precisa transformar a ordem externa a que é submetido em uma ordem interna, implica uma decisão de se conformar, um “cerrar fileiras”. [...] Pelo contrário, a espontaneidade é consumida pelo tremendo esforço que cada indivíduo tem de fazer para aceitar o que lhe é imposto. (PUCCI, 2003 p. 25-26). O instrumento pelo qual fizemos a avaliação da mediação da indústria cultural na recepção e na padronização musical foi nossa experiência como ouvinte, musicista e educadora. É verdade que este instrumento pode ser questionado e, para comprovar o rigor metodológico de nossas avaliações, seria necessário fazer uma descrição histórica e objetiva do uso objetivo e subjetivo dos elementos estéticos de cada estilo musical avaliado, o que seria trabalho de pesquisa para uma vida toda, quiçá com uma equipe de pesquisadores. Neste aspecto observamos uma situação bastante desigual entre o poder da pesquisa acadêmica em analisar os procedimentos da indústria cultural e o da indústria cultural em realizar a padronização. A indústria cultural conta com um processo histórico que antecede a criação do seu conceito, em 1947, quando Adorno e Horkheimer lançam a Dialética do Esclarecimento. Se ela não tem uma equipe organizada de pesquisadores 27 acadêmicos para desenvolver formalmente a padronização musical, tem o objetivo comum do lucro como unificador de interesses, sendo isto o bastante para levar os agentes musicais (produtores, compositores, intérpretes e criadores de softwares musicais) a atuarem utilizando o mesmo meio – a padronização – para o mesmo fim – o lucro. Acreditamos que, mesmo não contando com um arcabouço equivalente, não iluminar esta questão com a análise científica seria o mesmo que omitir-se sobre ela, e isto equivaleria a legitimar a liberdade de atuação da indústria cultural no universo da subjetividade. Neste sentido, se os instrumentos metodológicos adotados em nosso trabalho vierem a ser questionados, responderemos que tanto esse questionamento, como o que estamos realizando em forma de autocrítica, foram, e continuam sendo inerentes ao campo epistemológico: Portanto, segundo me parece, questionar, radicalmente, a modernidade, implica, necessariamente questionar a autoridade da ciência, assim como questionar radicalmente a Idade Média foi questionar a autoridade dos textos sagrados, nas mesmas condições, doadores do sentido ao mundo medieval. (PALANCA 2003 p. 134). Se nossa pesquisa é ousada, é igualmente necessária por questionar um processo de danificação da sensibilidade (RAMOS-DE-OLIVEIRA 2002, 2001b), ao mesmo tempo em que questiona a tecnologia no tocante ao seu uso social, desenvolvida em paralelo – ou graças – à extrema instrumentalização da razão. Esta é uma lacuna da ciência para a qual reivindicamos a ação da sensibilidade artística somada ao pensamento reflexivo. É delicada nossa tarefa de empreender uma análise da subjetividade e da sensibilidade tendo nossa própria sensibilidade e subjetividade como instrumentos de avaliação, entretanto, nos respalda teoricamente Ramos-De-Oliveira (2002, p.137) ao dizer que: “Não chega a compreender a força da indústria cultural quem não mantém um forte vínculo com as artes. Se não há sensibilidade, não se pode aquilatar o prejuízo da dessensibilização.” Admitimos certa limitação no que se refere à subjetividade do instrumento de avaliação usado para dizer o que se entende como música padronizada. Cientes disso, consideramos que esta pesquisa seja então apenas um empreendimento para utilizar o pensamento adorniano a fim de criar o conceito de loteamento do espaço sonoro, tendo em vista ser este a mais comum das formas pela qual hoje a música 28 se faz cotidianamente presente na sociedade massificada. Contudo, em relação a abordar o campo da subjetividade estética, o autor supracitado nos diz que: Adorno analisou em profundidade várias modalidades de resistência artística [...] Quem não compreende o que é arte poderá compreender o que é desvirtuar a arte? Como resistir à indústria cultural e à sua conseqüente invasão semiformativa se não se atingiu a sensibilidade perante obras artísticas? (RAMOS-DE-OLIVEIRA 2002, p.144). É necessário compreende que, neste caso, subjetividade não equivale a imprecisão ou à falta de rigor científico. Além de questionar a subjetividade, quando se trata de avaliar a qualidade artística, também é comumente levantada a questão da legitimação/deslegitimação de culturas segundo valores etnocêntricos. Entretanto, se entendemos o conceito frankfurtiano de mas media, via a atuação da indústria cultural na criação de uma cultura para as massas, temos necessariamente que admitir que parte do que hoje se classifica como estilos da música popular não tem uma origem legitimamente popular (GARCIA CANCLINI, 1997), ainda que tenha se originado nas massas. A criação/veiculação do conceito de indústria cultural em 1947, possibilitou maior clareza na diferenciação entre cultura de massas e cultura para as massas e por isso, levamos em conta que as massas de hoje introjetaram de tal modo os elementos estéticos da industrial cultural, que toda sua produção musical está de certo modo comprometida (RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2002 p.135-146). Não questionamos a autenticidade e legitimidade social dos estilos musicais da atualidade, muitos deles engajados em movimentos sociais. A manifestação musical enquanto aparecimento legitimo de grupos sociais não está em discussão, mas sua qualidade artística sim. Também podemos encontrar a diferenciação entre objeto artístico e processo de produção social do objeto artístico Na perspectiva antropológica e relativista de Becker, que define o artístico não segundo valores estéticos a priori mas identificando grupos de pessoas que cooperam na produção de bens que ao menos eles chamam arte, abre caminho para análises não etnocêntricas nem sociocêntricas dos campos em que se praticam essas atividades. Sua dedicação aos processos de trabalho e agrupamento, mais que às obras, desloca a questão das definições estéticas que nunca chegam a um acordo sobre o repertório de objetos que merece o nome de arte, para a caracterização social dos 29 modos de produção e interação dos grupos artísticos. (GARCIA CANCLINI, 1997, p.41). Entendemos que a discussão em que nos lançamos solicite que se considere o processo social pelo qual determinado grupo se tornou grupo, e tudo que paralelamente ao seu processo de caracterização como grupo lhe tenha sido socialmente negado no campo da cultura, da educação e da estética. Pensamos existir manifestações culturais incontestáveis no que tange à legitimidade social, mas, ao pensar crítica e valorativamente, questionamos a validação da qualidade artística delas, se elas representarem um universo musical reduzido cuja redução tenha se dado por injustiça social. É base de uma sociedade democrática criar as condições para que todos tenham acesso aos bens culturais, não apenas materialmente, mas dispondo dos recursos prévios – educação, formação especializada no campo – para entender o significado concebido pelo escritor ou pelo pintor. Porém há um componente autoritário quando se quer que as interpretações dos receptores coincidam inteiramente com o sentido proposto pelo emissor. Democracia é pluralidade cultural, polissemia interpretativa. Uma hermenêutica, ou uma política que fecha a relação de sentido entre artistas e públicos é empiricamente irrealizável e conceitualmente dogmática. Tampouco se trata apenas de buscar uma comunidade cultural cooperativa e plural. As diferenças baseadas em desigualdades não se ajustam com democracia formal. Não basta dar oportunidades iguais a todos, se cada setor chega ao consumo, entra no museu ou na livraria, com capitais culturais e habitus dispares. Embora o relativismo cultural, que admite a legitimidade das diferenças seja uma conquista da modernidade, não podemos compartilhar a conclusão a que alguns chegam de que a democratização modernizadora não deve manipular valores nem hierarquizá-los. Podemos concluir que uma política democratizadora é não apenas que socializa os bens “legítimos”, mas a que problematiza o que deve entender-se por cultura e quais são os direitos do heterogêneo. (GARCIA CANCLINI, 1997, p.156). Além de considerar o surgimento de determinadas manifestações musicais, avaliamos também a desapropriação dessas manifestações. Com a atuação da indústria cultural, as músicas que surgem como produção de raiz popular, em muitos momentos, são separadas do contexto social de origem e se descaracterizam como prática folclórica ou popular: transformadas em produtos culturais segmentados na sociedade do espetáculo, custam mais caro e são acessíveis a poucos. A origem social não mais coincide necessariamente com a origem cultural. Ao contrário. Muito 30 comumente a produção musical ligada à cultura genuinamente popular é feita também por aqueles cuja educação privilegiada possibilitou acesso a um universo musical agora economicamente restrito, uma vez que na sociedade massificada o retorno às origens existe em forma de bem de consumo e o mais barato não é necessariamente o artesanal, mas o industrializado em grande escala. O popular não é monopólio dos setores populares. Ao conceber o folk como práticas sociais e processos comunicativos, mais que como amontoados de objetos, quebra-se o vínculo fatalista, naturalizante, que associava certos produtos culturais a grupos fixos. Os folcloristas prestam atenção ao fato de que nas sociedades modernas uma mesma pessoa pode participar de diversos grupos folclóricos, é capaz de integrar-se sincrônica e diacronicamente a vários sistemas de práticas simbólicas: rurais e urbanas, suburbanas e industriais, microssociais mass media. Não há folclore exclusivo das classes oprimidas, nem um único tipo possível de relações interfolclóricas, são as de dominação, submissão ou rebelião. (GARCIA CANCLINI, 1997, p.220). Devaneio musical Isso também o disseram João Bosco e Aldir Blanc em 1977, antes do sambódromo – esse cordão de isolamento feito concreto. Mas há muito estava o carnaval transformado em espetáculo. O que teria dito Adorno a esse respeito? Não põe corda no meu bloco, nem vem com teu carro chefe Não dá ordem ao pessoal Não traz lema nem divisa, que a gente não precisa Que organizem nosso carnaval Não sou candidato a nada, meu negócio é madrugada Mas meu coração não se conforma O meu peito é do contra e por isso mete bronca Nesse samba plataforma Por um bloco que derrube esse coreto Por passistas à vontade, que não dancem o minueto Por um bloco sem bandeira ou fingimento Que balance e abagunce o desfile e o julgamento Por um bloco que aumente o movimento Que sacuda e arrebente o cordão de isolamento Não põe no meu (BOSCO, J.; BLANC, A. Plataforma. 1977). Fim do devaneio musical 31 Se os diferentes grupos sociais produzem suas manifestações de uma determinada forma musical/estética utilizando seu repertório cultural, isto também nos remete à produção do belo na arte. A arte é linguagem. Sendo linguagem é cultural, portanto, em qualquer cultura podemos pensar em efeitos dessa cultura específica produzindo arte, mas, também, em elementos comuns a todas as culturas, que sejam considerados artísticos em todas elas. [...] a transformação estética revela a tradição humana no concernente à história (Marx: pré-história) da humanidade inteira, acima de qualquer condição específica; e a forma estética responde a certas qualidades constantes do intelecto, sensibilidade e imaginação humanos – qualidades que a tradição da estética filosófica interpretou como a idéia de Belo. (MARCUSE, 1973, p.88- 89). As manifestações se dão no campo da linguagem que contém elementos da estética, o que nos faz pensar que linguagem e estética sejam um binômio inseparável na comunicação. Portanto, consideramos que negar a pobreza das manifestações musicais comprometidas pela massificação é negar também a pobreza que essas mesmas manifestações denunciam; é legitimar a desigualdade social ignorando a privação cultural. Lançar essa produção na mídia e reproduzi-la no universo do entretenimento é torná-la inócua, desviando dela o caráter contestatório e reivindicador, tornando-a neutra e assimilada indistintamente como mais um dos modismos musicais. Neste sentido, notamos que os hits da música funk e do rap mais divulgados na mídia são os de maior apelo erótico e não os que narram os problemas sociais. Há um desvirtuamento dos movimentos. Adeptos do Hip-Hop denunciam essa descaracterização e reivindicam o retorno às origens do movimento: [...] me deparei com uma questão que para nós negros é extremamente preocupante. A falta de irmãos e irmãs negras usufruindo da atual situação em que o Movimento Hip-Hop se encontra. [...] vejo filósofos falando de um movimento “pluralista” SEM RAÇA, COR OU CREDO, que não se pode monopolizar a cultura pois o Hip-Hop é de Todos. Todos???? Pois te digo uma coisa o Hip-Hop tem cor sim! E essa cor é NEGRA, com Certeza! E nasceu pra tirar os negros e negros dos conflitos constantes que muitas vezes terminavam em morte. Hoje esse conceito “pluralista” na verdade faz de nós meros carregadores de piano enquanto outros grupos étnicos (brancos, japoneses) aparecem no cenário via mídia ganhando dinheiro explorando nossa cultura sem responsabilidade 32 social com o grupo racial que desenvolveu essa cultura: NÓS NEGROS! [...] Cadê a juventude negra do Hip-Hop? [...] Talvez boa parte dessa juventude não se vê mais nesse movimento estando sujeita a retroceder às ocorrências que fizeram o Hip-Hop nascer que é a violência, as drogas, a falta de perspectiva e identidade que fazem nossos irmãos e irmãs matarem uns aos outros...O que nos sobrou foi um Rap violento, sem solução, que incentiva o uso de drogas e a prática de delitos, e por outro lado um hip-hop que se diz underground que fala muito e não diz nada com nada, assuntos que os barões das gravadoras adoram pois a elas geram muitos lucros e a nós os prejuízos pela má assimilação desses temas. (OADQ, 2005).7 Considerando a complexidade de elementos contraditórios no mesmo fenômeno, conforme abordado no capítulo 2, é possível à música padronizada, originada nos grupos populares, ser libertária, se a análise partir da origem, do tempo/lugar social em que surge e da ação humana sobre os elementos estéticos disponíveis, bem como da aceitação e reconhecimento destes elementos como formadores da identidade de um grupo, refletindo sua problemática e também sua forma de diversão e diletantismo8. Mas se a análise for feita em outra direção, a produção dessa música pode ser considerada como aprisionadora, dada a mediação da indústria cultural na produção, gravação e divulgação em massa. A indústria cultural se apropria dos estilos musicais que surgem, e os divulga de modo que representem uma imagem estereotipada do grupo social de origem, com uma linguagem musical simbolicamente descontextualizada e com padrões musicais cada vez mais reduzidos. O comprometimento com a indústria cultural por parte dos artistas pode se dar tanto pela origem do material estético que utilizam nas suas criações como pela expropriação que a indústria cultural faz da produção artística deles, uma vez que é ela a quase absoluta agente de divulgação e veiculação. (RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2002 p.135-146). A respeito de contextualizações adequadas para a apreciação estética das manifestações musicais, podemos pensar que a forma como ouvimos blues é em certa medida descontextualizada, e alienada até. O fazemos em ambiente pacífico, 7 Retirado de um folheto de divulgação do movimento Hip-Hop. 8 Teixeira Coelho (1989) alerta para a postura elitista de se exigir que os pobres sempre façam uma arte engajada, enquanto aos ricos se permite o diletantismo socialmente descompromissado. Schurmann, (1990, p. 33) indica que a elite foi a classe que primeiro usou a música como puro entretenimento, numa fase em que ela ainda estava associada à produção agrícola, pela magia ou pela religiosidade. 33 nos remetendo apenas por saber literário ao cenário do passado americano negro. Não presenciamos a dor tornada canção, dor da morte de um negro morto por um branco, que por ser branco estaria supostamente autorizado a matar negros. Dor cantada no funeral repleto de negros que sabem não poder esperar por justiça ou punição e para suportarem-na cantam o que não podem reivindicar legalmente. Cantam, talvez, não só pelo morto, mas por estarem todos potencialmente sujeitos à mesma morte. Percebemos a linguagem estética do contexto, ainda que sublimado, nos elementos musicais: na blue note (nota bemolizada) que remete ao lamento, na escala pentatônica africana a negar o padrão musical europeu – mas que a ele se submete no espírito da junção forçada9, dolorida e conflituosa entre a música negra africana e a música branca de origem européia praticada na América do Norte – na estrutura em que o uso do coro possibilita o pranto coletivo, como era/é o canto coletivo no cotidiano africano. Não é uma música apenas sobre a dor da morte, mas da morte no contexto da escravidão negra americana. Se essa análise da representação dos elementos musicais do blues soa adequada, porque não fazer o mesmo com outros estilos? O processo de surgimento do rock a partir da expropriação branca do jazz no contexto da cultura de massa é assim indicado: A música viva tem, de fato, uma base autentica: a música negra como grito e caniço dos escravos e dos guetos. Nessa música, a própria vida e morte dos homens e mulheres negros são revividas: a música é corpo; a forma estética é o “gesto” de dor, sofrimento, mágoa, denúncia. Com a sua encampação pelos brancos, ocorreu uma mudança significativa: o “rock” é o que o seu paradigma negro não é, mormente, desempenho. É como se os gritos e prantos, os saltos e o balanço, a execução, tudo tivesse lugar num espaço artificial, organizado; como se tudo se dirigisse a um público (favorável). O que tinha sido parte da permanência da vida, converte-se num concerto, um festival, um disco. “O grupo” torna-se uma entidade fixa (verdinglicht), absorvendo os indivíduos; é “totalitário” no modo como subjuga a consciência individual e mobiliza um inconsciente coletivo, que permanece sem fundamento social. E à medida que a música perde seu impacto radical, ela tende para a massificação: os ouvintes e os co-interpretes numa platéia são massa fluindo para um espetáculo, uma performance. (MARCUSE, 1973, p.113). É necessária uma análise destemida de ser acusada de preconceituosa, para constatar a redução de elementos que ocorreu do jazz para o rock, do rock 34 para o tecno, e do tecno para um subproduto seu denominado de pancadão e, mais contemporaneamente, para o funk. Adorno (1986, p.115-146 e 1999, p. 65-108) já denunciava o jazz pelo seu potencial de redução de padrões, pela fetichização (ADORNO, 1999, p.77-78), pela exploração exibicionista que seu uso como entretenimento realiza. As manifestações culturais urbanas de hoje carregam a problemática das cidades. Ignorar isso em nome da neutralidade estética é ignorar também a opressão que afeta de maneira diversa os grupos sociais e, sobretudo, a miséria e a opressão – também estética – às quais estão submetidos. Mas, se há alguma riqueza em que o humano se mostra, é pela persistência humana em dizer, em dar- se a ver, em criar uma aparição que, de algum modo, se manifesta em arte. Riqueza em dizer sem poesia que há falta de poesia, riqueza quando usa o dizer erotizado para buscar uma pseudo-gratificação imediata, indicando que o ser desejante sobrevive. Novamente tomando o Hip-Hop, por objeto de análise ilustrativa, percebemos que, no sentido da reflexão aqui iniciada, ele não nos soa como arte, mas podemos entendê-lo como superação – e nesse sentido, transcendência – justamente da falta do que consideramos ser arte. Os desapropriados da sociedade que se apropriam da rua como espaço possível – espaço para estar e não apenas para transitar – desenvolvem, a partir da rua, um repertório gestual específico. Os movimentos que o corpo adquire na rua, pela intimidade do corpo com o chão, pela proximidade ou possibilidade da briga, pelo sentar-se na calçada ou na guia, exigem e oferecem um repertório gestual específico, forjado na interação entre corpo humano, espaço concreto da rua e códigos culturais trazidos pelo grupo que inicia o processo de apropriação da rua. Rua esta, lembramos, contemporânea: rua do concreto, do sol pela camada de ozônio esburacada, da fumaça, do barulho, dos carros, da violência e da multidão que permite e gera o anonimato. As manifestações do que se chama arte de rua (movimentos corporais que muitos podem considerar deselegantes, o grafite nos muros, a música urbana, a dança de rua) receberam todas, em alguma medida, a ação humana e podem, enquanto manifestação artística, indicar a transcendência. Indicam a ação humana, sobretudo, pela necessidade – suprida – em construir os códigos estéticos, de por 9 Lembrando que nessa adaptação o ouvido musical negro se depara com instrumentos europeus.�� 35 eles humanizar as relações, construindo um grupo cultural e reconhecendo-se nele por pertencimento. Entendemos que exista arte quando há transcendência, imaginação manifesta, transformação do mundo dado, fruição, autonomia e interdependência entre a criação artística e o criador10. Na arte, estão unidos pela fruição, ainda que em direções diferentes, criador e apreciador. Neste viés, entendemos que, mesmo numa forma de expressão padronizada, perceber o homem nessa expressão é perceber a arte e perceber a arte é constatar o homem. Podemos lembrar que os signos do belo, da subjetividade e da intersubjetividade de quem cria e de quem frui são forjados a partir de códigos compartilhados, socialmente construídos. Contudo, a construção social dos códigos delineia parte, mas não a totalidade da dimensão subjetiva em que a arte se expressa. Uma parte dessa dimensão se conserva única para cada pessoa, de modo a permitir que cada sujeito receba da arte significados pessoais. Embora o conhecimento dos códigos estéticos compartilhados que orientam a arte seja importante fundamento para a recepção/interpretação, o que cada sujeito sente no processo de recepção/interpretação e fruição não diz respeito apenas ao consciente, e aí está a dádiva da arte: a de, pelos sentidos, comunicar-se com o homem integralmente, unindo sentimento e razão. [...] se há no mundo diversidade e unidade de diferentes modos de existência sensível e no nível do corpo diversidade e unidade de sentidos, é porque há um só corpo, onde dois olhos vêem, duas mãos tocam, onde visão e tato se articulam sobre um único mundo que vem ecoar nesse mesmo corpo. Em outras palavras, há entre corpo e coisa, entre meus atos perceptivos e as configurações das coisas comunicação e reciprocidade. E isto porque corpo e coisa são tecidos de uma mesma trama: a trama expressiva do Sensível. Nessas condições desenha-se em paralelo uma teoria da expressão corporal e uma estética, considerando-se que o ato de expressão, isto é, a instituição do sentido que encontra sua origem em nossa corporeidade será comparável à realização propriamente estética que instaura a arte. (FRAYZE-PEREIRA, J. A., 2003, p.14). Na arte, o artista é aquele que nega o cotidiano concreto. Pode inspirar-se no cotidiano, como ocorre com a dança de rua, mas os dançarinos de rua não andam da mesma forma como dançam. Na dança seus corpos se movem de forma 10 No capítulo 2, seção 3: “Elemento estético: conceitos adotados”, tecemos alguns comentários sobre esta interdependência. 36 muito diferente de como o fazem no cotidiano. A poesia e o romance também nos oferecem um exemplo da diferença entre o cotidiano que inspira a arte e a arte inspirada no cotidiano. Um escritor não faz uma lista de compras para o supermercado, não escreve um bilhete doméstico da mesma forma que faz um poema ou um conto. Ainda que o escritor possa usar como tema para um poema algo trivial como uma lista de compras ou um bilhete doméstico, a escrita se concretiza na arte de forma diferente do cotidiano, incompatível com a necessidade instrumental deste. Essa incompatibilidade se mostra na ação humana, ação do artista-homem que, conhecedor e vivente da realidade concreta e cotidiana a transcende: Essa contradição nunca é “direta”, imediata e total; não assume a forma de um romance, poema, quadro etc. social ou político. Ou, quando assume [...] a obra permanece comprometida com a estrutura da arte, com a forma do drama, do romance, da pintura, articulando, por conseguinte, a distância da realidade. A negação está “contida” pela forma, é sempre uma contradição “interrompida”, ‘sublimada”, que transfigura, transubstancia a realidade dada – e a transubstanciação desta. [...] Nesse universo, o destino do individuo (tal como é retratado na obra de arte) é mais do que individual: é também o de outros. Não há obra de arte onde esse universal não se manifeste em configurações, ações e sofrimentos particulares. (MARCUSE, 1973, p.88). A transcendência e a ação humanas são dois elementos essencialmente artísticos e estes elementos podem ser percebidos com mais facilidade por quem tenha mais familiaridade com a linguagem artística e com os códigos estéticos da manifestação artística em questão. Então, tendo em vista as características de nosso campo de estudo e os referencias teóricos adotados, afirmamos que a subjetividade de nosso instrumento metodológico corresponde à qualidade necessária para ampliar a precisão e o rigor de nossas análises, dando conta das especificidades do objeto de estudo. 37 1.2 Metodologia A pesquisa realizou, no âmbito bibliográfico, um trabalho de compatibilização paradigmática, através do qual construímos a categoria de analise “loteamento do espaço sonoro”. No âmbito da pesquisa de campo realizamos uma investigação qualitativa, de cunho antropológico, a fim de verificar e compreender as particularidades do loteamento do espaço sonoro no espaço escolar. Torna-se apropriado, neste momento, pontuarmos os dois significados distintos – porém relacionados – que a expressão “loteamento do espaço sonoro” avoca em nosso texto. Nas seções em que realizamos o debate teórico, a nomenclatura adquire o sentido de fenômeno11, mas na pesquisa de campo o termo assume o sentido e a função de categoria de análise. Os campos de nossa pesquisa foram uma escola de ensino fundamental da rede municipal de ensino e uma escola particular, também de ensino fundamental, ambas em uma cidade do interior de São Paulo. Essas escolas foram escolhidas por representarem significativamente parte do universo escolar da cidade de vinte mil habitantes, de economia predominantemente rural.12 Não há intenção de comparação entre as escolas, e sim de reunir os dados coletados nestes dois espaços escolares. A rede particular municipal é composta por duas escolas e a escolhida por nós é a única que possui todas as séries da educação básica, iniciando no ensino infantil. Além desse fator, esta escola possui também um projeto de educação musical, oferecido a todas as séries, e uma rádio interna. Na rede pública, composta 11 Motivo de trabalho intitulado “Loteamento do espaço sonoro: especificidades e repercussões de um dos fenômenos da indústria cultural hodierna na semiformação das massas” apresentado no “VII Congresso Internacional de Teoria Crítica: Natureza, sociedade: crises.” Unicamp-2010. 12 Situa-se no centro-oeste no Estado de São Paulo, tem 20 mil habitantes e uma economia agrária (laranja, cana-de-açúcar e escritórios de agro-negócio). Tem apenas duas indústrias (de bombas submersas) e pequenas empresas de móveis manufaturados. A rede municipal local é formada por duas escolas de ensino fundamental, sendo que uma delas possui de 1ª à 4ª serie e a outra de 1ª à 8ª série, por uma escola de ensino infantil e por cinco creches. Além destas, o distrito que pertence ao município, possui uma escola de 1ª a 8ª série e uma creche. Na rede estadual, a cidade conta com duas escolas com todas as séries do ensino fundamental, médio e Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Na rede particular, há duas escolas com as salas iniciando na educação infantil, sendo que o ensino médio é oferecido apenas em uma dessas escolas. No início de 2010, uma terceira escola particular, de 1ª a 8ª série, e dois cursos à distância (Pedagogia e Administração) foram abertos no município. � 38 por duas escolas estaduais e duas municipais, escolhemos a escola municipal que possui os dois primeiros ciclos da educação básica. Esta escola também possui uma rádio interna e aulas de Educação Musical. As coletas que ofereceram o lastro aos nossos dados foram realizadas mediante autorização dos sujeitos entrevistados, bem como dos responsáveis legais – no caso dos sujeitos menores de idade – e dos responsáveis pelas escolas que foram campo, conforme expresso pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TECLE) assinado por essas pessoas. Por trabalharmos na Rede Municipal de Ensino da cidade da pesquisa desde 2000 e por conhecermos as outras escolas das redes municipal, estadual e particular da mesma cidade, algumas reflexões agregaram elementos para nossa análise sobre alguns outros espaços escolares da mesma localidade. Igualmente, ocasiões de trabalho às quais estivemos presente com a função de observar/assistir, somam dados à pesquisa. Realizamos observação livre, registro contextualizado do repertório escutado nas duas escolas e em outros espaços escolares, entrevistas semi-estruturadas com alunos, funcionários e professores, testes de percepção musical com professores e levantamento do acervo sonoro musical. Todas as coletas foram registradas por anotações de campo de natureza descritiva e reflexiva, entendendo-se que estes dois tipos de descrição são indissociáveis na abordagem antropológica. Considerando a complexidade da pesquisa, fizemos a observação em duas etapas: inicialmente, o campo foi objeto de observação livre, a fim de percebermos quais os elementos de relevância para a investigação. A partir desta observação elaboramos um formulário para os procedimentos de coleta, pois tendo criado a categoria de análise, foi necessário, também, instituirmos critérios específicos para tais procedimentos. Na maioria das vezes não preenchemos todos os campos dos formulários, ou por não nos parecer relevante no momento, ou por impossibilidade técnica, como freqüentemente ocorreu no caso de cronometrar cada evento sonoro/musical. Por evento sonoro/musical chamamos toda música ou todo efeito sonoro (trecho de músicas executadas, toque de celular, carro de som que passasse na rua) que ouvíssemos dentro do espaço escolar. Contudo, mesmo sem a relevância do 39 preenchimento completo dos formulários, percebemos que estes nos serviram eficazmente como um roteiro de coleta, a fim de mantermos claros nossos objetivos. Após a observação livre (Formulário 1 - Observação livre) iniciamos a coleta pelo registro contextualizado do repertório escutado, no qual foram relacionadas todas as músicas que ouvimos dentro do espaço escolar e a origem/contexto de sua execução: se no intervalo, nas aulas – de música ou de outras matérias – ou em outro momento, por iniciativa e responsabilidade de quem as músicas foram reproduzidas, e qual o papel desse sujeito (ou desses sujeitos) dentro da escola. Por este procedimento de pesquisa buscamos aferir se, e até que ponto, as músicas escutadas dentro do espaço escolar acontecem na forma de loteamento do espaço sonoro. Também após o período de observação livre, foram escolhidos – entre educandos, professores, e funcionários da escola – os sujeitos para entrevistas semi-estruturadas. (Formulário 3 - Entrevista semi-estruturada para professores e funcionários; Formulário 4 - Entrevista semi-estruturada para professores de música; Formulário 5 - Entrevista semi-estruturada para alunos). Foram também determinados o momento, a duração aproximada e o espaço físico para as entrevistas, o período de tempo e horário das observações para registro contextualizado do repertório escutado, estes seguindo um roteiro (Formulário 2 - Repertório escutado) elaborado após o primeiro contato com o campo. Para as entrevistas, tivemos ficha do informante em forma de questionário. Todas as transcrições – livres e textuais – foram realizadas, pela entrevistadora, durante as entrevistas e apresentadas para o entrevistado na intenção de conferir as informações registradas. O objetivo principal foi obter, pelos relatos, informações sobre o processo do loteamento, se e como os sujeitos interagem com ele e qual a percepção que possuem deste processo. Realizamos também um teste de percepção auditiva/musical com cinqüenta e sete professores, (Formulário 6 - Percepção de timbres) no qual estes sujeitos deveriam identificar se os timbres das músicas eram produzidos por instrumento acústico ou por sintetizador eletrônico. Fizemos uma breve exposição dos procedimentos deste teste e das duas formas de produção do timbre (por instrumento acústico e por sintetizador, indicando que o canto à capela é 40 considerado timbre acústico). Esta exposição se ateve aos aspectos técnicos/conceituais da origem e do modo de se produzir esses timbres, não se remetendo às nossas considerações a respeito neste estudo. O teste se dividiu em duas fases. Na primeira os sujeitos utilizaram apenas a escuta para distinguir os sons/timbres acústicos dos sintéticos. Na segunda fase os sujeitos receberam cópias xerocadas dos encartes dos CDs, dos quais as gravações foram retiradas. De posse desse novo elemento foi-lhes pedido que novamente indicassem se os sons/timbres eram acústicos ou sintéticos. O teste utilizou trechos iguais de três músicas, de gênero erudito, executados uma vez com gravação de instrumentos acústicos e uma vez com sintetizador, por meio de teclado eletrônico, e utilizou trechos de mais cinco músicas diferentes sendo dois de músicas à capela13 e três de músicas de roda. As respostas da primeira fase foram confrontadas com as da segunda fase, buscando avaliar em que medida os sujeitos conseguiram, pela escuta, fazer a distinção dos timbres e, pela leitura dos encartes, compreender as informações sobre a produção daqueles14. O teste conteve também questões sobre as impressões dos sujeitos para com o teste, e o conhecimento que os sujeitos tinham da diferença dos timbres, questões estas realizadas oralmente pela pesquisadora e respondidas pelos sujeitos no espaço para observações. As respostas permitiram registrar quantos dos sujeitos envolvidos neste procedimento não sabiam existir diferença entre timbre acústico e sintético e quantos sabiam. Perguntados se, uma vez sabendo dessa diferença, por qual tipo de timbre optariam, registramos também quantos responderam que optariam pelo timbre dos instrumentos acústicos, quantos pelos sons sintéticos, e quantos se pronunciaram indiferentes. A pertinência deste procedimento de pesquisa se deve ao fato de que, segundo nosso referencial teórico, o timbre sintético apresentado em lugar do acústico é considerado simulacro da música e objetivação desta15. Igualmente, o procedimento se faz pertinente por termos encontrado nas escolas, dentro de nossa prática educativa, materiais considerados como recurso 13 Em música, a expressão “à capela” indica o canto realizado sem acompanhamento instrumental. 14 Os arquivos sonoros, utilizados no teste, encontram-se anexados ao exemplar depositado para defesa de Doutorado. 15 Conforme as considerações do capítulo: “Triângulo versus teclado eletrônico: a dimensão humana e concreta na percepção estética versus padronização e simulacro.” 41 pedagógico para atividades musicais ou mesmo para a Educação Musical. Contudo, esses materiais empregam largamente os sons sintéticos nas músicas – eruditas e canções infantis – que integram o repertório desse material, sem deixar claro que o fazem. O desconhecimento dos professores sobre a diferença entre a origem dos sons (timbres) e/ou a aceitação dos timbres sintéticos, em lugar dos acústicos, constituiria, assim, um facilitador para o loteamento do espaço sonoro, uma vez que oferece uma abertura para o emprego da tecnologia na música, desconsiderando a necessidade de conteúdos artísticos e expressivos. Também os materiais (acervo de CDs, DVDs, e arquivos de natureza sonoro- musical) que a escola possui foram observados e relacionados (Formulário 7 - Levantamento do acervo sonoro-musical). Por este procedimento buscamos identificar quais os tipos/estilos de músicas chegavam à escola, por que tipo de mídia, em que medida elas eram utilizados na escola e se eram músicas peculiares ao loteamento do espaço sonoro. A apreciação dos dados foi procedida de modo a identificar pontos característicos ao fenômeno de loteamento do espaço sonoro e, a partir deles, identificar e registrar suas especificidades dentro do espaço escolar, utilizando então o loteamento do espaço sonoro enquanto categoria de análise. Para tanto, num primeiro momento, organizamos a etnografia segundo a cronologia da coleta, os campos e os procedimentos de pesquisa. Numa segunda ocasião analisamos estes materiais, destacando neles os trechos que melhor indicavam a presença de um, ou de mais de um, dos elementos característicos do loteamento do espaço sonoro, bem como registrando de qual, ou de quais, desses elementos se tratavam.16 Por este procedimento pudemos sistematizar tanto os elementos fundamentais – ou primários – do loteamento do espaço sonoro, quanto os elementos secundários, ou seja, as especificidades do fenômeno dentro dos espaços escolares estudados. Além destas duas classes de elementos, outros foram encontrados, indicando aspectos que interpretamos como pouco generalizáveis, mas de amplo valor etnográfico. Eles também foram elencados e utilizados para 16 A etnografia, bem como todo o material de coleta anexado a este exemplar, traz os trechos destacados com os registros dos respectivos elementos em negrito e entre parênteses. 42 compreender o fenômeno do loteamento do espaço sonoro nos espaços pesquisados. 43 2 DA INDÚSTRIA CULTURAL À INDUSTRIALIZAÇÃO DA CULTURA: LIMITES E ALCANCES DA TEORIA CRÌTICA NESTA PESQUISA Na atualidade a indústria cultural assume peso e espaço crescentes. Onipresente e atuante em todos os instantes e em todos os lugares, obriga-nos a refletir sobre suas velhas formas e a surpreender suas novas manifestações. (RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2002, p. 135). Se fôssemos estudar, pela teoria crítica, determinadas manifestações musicais contemporâneas estas poderiam – grosso modo – ser classificadas de música de massa, e, enquanto tal, causadoras e conseqüentes da semiformação e da regressão da audição. Contudo, um olhar mais atento e adequado à natureza do fenômeno, poderia detectar nessas músicas – e nos respectivos movimentos estéticos que as encerram – as mesmas ocorrências do fazer artístico, reflexão e transcendência que a teoria crítica reivindica para a categoria das artes. Possivelmente poderia, ainda, constatar a apropriação da indústria cultural17 na assimilação dos movimentos estéticos, da mesma forma como faz para transformar em mercadorias diversas criações artísticas. Neste aspecto foram as idéias de Garcia Canclini (1997), a respeito da hibridação entre o culto e o popular na contemporaneidade, que nos permitiram abranger teoricamente o objeto de pesquisa de forma apropriada ao contexto em que ele está inserido. Segundo Garcia Canclini (1997) os bens simbólicos produzidos atualmente sofrem influências diversas, cuja complexidade solicita um novo parâmetro para o estudo das artes: “Há uma mudança de estudo na estética contemporânea. Analisar a arte já não é analisar apenas obras, mas as condições textuais e extratextuais, estéticas e sociais, em que a interação entre os membros do campo gera e renova o sentido”. (GARCIA CANCLINI, 1997, p.151). Quando Adorno e Horkheimer conceituaram “cultura para as massas”, a indústria cultural atuava prioritariamente na música e no cinema. Na contemporaneidade esta atuação se modificou, justamente pelos desdobramentos da indústria cultural na geração de bens simbólicos, pelo que, Garcia Canclini (1997), usa na forma ampliada a expressão “indústrias culturais” para especificar a 44 atuação de ações específicas, em campos culturais específicos, campos estes que extrapolaram a música e o cinema. Assim, julgamos adequado acrescentar ao conceito de “cultura para as massas”, segundo Adorno e Horkheimer (1988), alguns dos principais conceitos que em Garcia Canclini (1997) elucidam o hibridismo cultural e o entrecruzamento dos campos culturais. A criação do termo indústria cultural (ADORNO; HORKHEIMER 1988), foi um marco paradigmático para os estudos sobre arte, cultura e educação. Atualmente, para avaliar a amplitude dessa indústria cultural, a partir do mesmo princípio que permitiu a concepção original do termo, foi necessário utilizarmos o conceito de “industrialização da cultura”, oferecido por Garcia Canclini. Desse modo, entendemos que hoje, além de manter-se uma produção específica de “cultura para as massas”, toda a cultura, de modo geral, está, em alguma medida, potencialmente sujeita à industrialização. A noção de indústrias culturais, útil aos frankfurtianos para produzir estudos tão renovadores quanto apocalípticos, continua servindo quando queremos nos referir ao fato de que cada vez mais bens culturais não são gerados artesanal ou individualmente, mas através de procedimentos técnicos, máquinas e relações de trabalho equivalentes aos que outros produtos nas indústrias geram; entretanto, esse enfoque costuma dizer pouco sobre o que é produzido e o que acontece com os receptores. Também ficam de fora do que estritamente essa noção abrange, os procedimentos eletrônicos e telemáticos, nos quais a produção cultural implica processos de informação e decisão que não se limitam à simples manufatura industrial dos bens simbólicos. (GARCIA CANCLINI, 1997, p.257). Associado à industrialização da cultura, há o hibridismo entre o popular e o culto e o cruzamento dos diferentes campos culturais, cujos universos simbólicos se comunicam, se alimentam e atingem novos campos. É o caso do filme que vende música, que se transforma em roupa, em moda e em grife. É também o caso do ator que transformado em marca se torna produto (cosmético, bebida, alimento, ou outros). Estes bens materiais, carregados de simbolismo, podem até mesmo se transformar em bens meramente simbólicos: jeito, gesto e comportamento. Pudemos perceber a problemática da pesquisa a partir de determinados fundamentos da teoria crítica, e, por isso, a convidamos para ser o instrumento 17 Ver capítulo 1, seção 1: “Da subjetividade do instrumento metodológico a um pensamento crítico e eticamente comprometido”.� 45 paradigmático com o qual tratamos o objeto de estudo. O que prioritariamente nos interessou nesse instrumento foram os fundamentos da teoria, na medida das potencialidades que tais fundamentos encerram. O que exploramos para compreender nosso objeto de estudo foram as potencialidades dos fundamentos. Ora, no objeto de estudo, essas potencialidades adquirem desdobramentos dinâmicos que chamam ao diálogo fundamentos de outras teorias. Desse modo, pela leitura aplicada da teoria à diligência da própria pesquisa, alcançamos a compatibilização paradigmática das teorias. Assim, por ilustração, o que fez sentido, para nós, ao tratarmos nosso objeto de estudo com o conceito de padronização formulado por Adorno, foi precisamente o desenvolvimento e o desdobramento das potencialidades desse conceito, manifestas no nosso objeto de estudo, ou seja, a tornação do elemento latente em patente. A gênese do trabalho de compatibilização paradigmática reside em nossa postura como leitora e pesquisadora. Adotamos uma leitura e uma escrita fundamentadas na teoria, sem, contudo, praticar a leitura e a interpretação fundamentalistas. Esta forma de utilizar o paradigma, como resultado de elementos que se articulam de modo dinâmico, nos permitiu uma fidelidade teórica proporcional aos limites da própria teoria. Permitiu que trouxéssemos fundamentos de outras teorias18, para dar continuidade ao estudo. As questões formuladas a partir dos conceitos de Adorno, só puderam ser respondidas pela pesquisa quando foram reelaboradas, e incorporaram os conceitos de Canclini que contemplavam as especificidades da imanência entre objeto de estudo e contexto. 2.1 Contribuições da antropologia para a pesquisa Pela leitura realizada do antropólogo Garcia Canclini percebemos que a pluralidade, o cruzamento e a sobreposição de influências na formação da 18 Garcia Canclini é o autor por quem mais significativamente ampliamos os conceitos da teoria crítica. Mas, além dele, conforme consta na introdução, o debate teórico deu-se também pela contribuição do trabalho de músicos contemporâneos. 46 linguagem estética são maiores na contemporaneidade que em períodos históricos precedentes, o que confere a qualidade de hibridismo cultural aos bens simbólicos atuais. Diz o autor: Ainda que muitas obras permaneçam dentro dos circuitos minoritários ou populares para que foram feitas, a tendência predominante é que todos os setores misturem em seus gostos objetos de procedências antes separadas. Não quero dizer que essa circulação mais fluida e complexa tenha dissolvido as diferenças entre as classes. Apenas afirmo que a reorganização dos cenários culturais e os cruzamentos constantes das identidades exigem investigar de outro modo as ordens que sistematizam as relações materiais e simbólicas entre os grupos. (GARCIA CANCLINI, 1997, p.209). Trouxemos, de forma introdutória, os conceitos sobre hibridismo cultural abaixo relacionados, acompanhados das citações em que estão mais objetivamente apresentados. Eles não foram indicados explicitamente no desenvolvimento dos capítulos, mas conforme o exposto, contribuíram significativamente para nossa reflexão. São eles: a) Não linearidade temporal na formação do campo cultural no presente: A cultura industrial massiva oferece para os habitantes das sociedades pós-modernas uma matriz de desorganização- organização das experiências temporais mais compatível com as desestruturações que supõem a migração, a relação fragmentada e heteróclita com o social. Enquanto isso, a cultura de elite e as culturas populares tradicionais continuam comprometidas com a concepção moderna da temporalidade, de acordo com a qual as culturas seria