UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS - RIO CLARO NOEMI GUIMARÃES ROSALES O ENSINO DA ARTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: o que dizem as imagens das crianças? Rio Claro 2016 LICENCIATURA PLENA EM PEDAGOGIA NOEMI GUIMARÃES ROSALES O ENSINO DA ARTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: o que dizem as imagens das crianças? Orientador: Prof. Dr. César Donizetti Pereira Leite Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Câmpus de Rio Claro, para obtenção do grau de Licenciada em Pedagogia. Rio Claro 2016 Rosales, Noemi Guimarães O ensino da arte na educação infantil : o que dizem as imagens das crianças? / Noemi Guimarães Rosales. - Rio Claro, 2016 39 f. : il., fots. Trabalho de conclusão de curso (licenciatura - Pedagogia) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro Orientador: César Donizetti Pereira Leite 1. Educação pré-escolar. 2. Artes. 3. Imagem. 4. Infância. 5. Educação infantil. 6. Escola. I. Título. 372.218 R788e Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP Dedico este trabalho a minha irmã mais nova Débora, pois ela foi minha primeira inspiração na escolha deste tema. AGRADECIMENTOS Agradecer é um ato nobre, porém complexo, pois a memória é falha e posso deixar de citar alguém especial, portanto, por favor, não me julgue injusta, mas deixarei aqui registrada minha eterna gratidão a todos que fizeram parte de minha caminhada até aqui. Primeiramente sou grata a Deus, por estar sempre me guiando, dando sabedoria e me fortalecendo nos momentos difíceis, em seguida aos meus pais Valter e Regina, irmãos Matheus e Débora, avós, tios, tias e familiares que sempre estiveram ao meu lado, me apoiando, incentivando, ajudando e acreditando em meu potencial, cabe aqui também meu amigo Fernando que, além de confiar em mim, ajudou, incentivou e esteve ao meu lado nos dias de estresse e cansaço causados pela rotina, reconheço que foram muitos. Agradeço ao meu grande professor, mestre e orientador César Donizetti Pereira Leite, pelo seu apoio, dedicação, confiança e paciência durante todos esses anos de minha graduação, pela oportunidade de participar do grupo I-mago e das pesquisas como sua aluna bolsista, pelos seus sábios ensinamentos e principalmente por me apoiar no decorrer deste trabalho. Sou grata ao Programa Institucional da UNESP – Núcleo de Ensino – e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) por me proporcionarem a oportunidade de ser bolsista e com isso vivenciar a universidade integralmente me lançando na pesquisa. Registro também aqui minha gratidão a todos da Escola Municipal “Hélio Jorge” pela parceria e por ter aberto as portas para nossa pesquisa, incluindo aqui todas as crianças que me afetaram, sensibilizaram e permitiram adentrar ao mundo delas através da experiência, convivência e das produções imagéticas. Um agradecimento especial a minha tia Rebeca e ao meu amigo Guilherme, que me auxiliaram nos momentos de desespero e pesadelos com a escrita deste trabalho. A todos os integrantes do grupo I-mago, pelos conhecimentos, risadas, churrascos, experiências e momentos compartilhados, e pelas afetações e incentivos, além de todos os parceiros de pesquisa que se lançaram na escola junto comigo e partilharam diversas experiências, em particular ao Vinícius, que também me acompanhou em eventos e apresentações, e Luana e Bianca que muito me inspiraram e ensinaram. Não posso deixar de agradecer também á todos os professores do curso de Licenciatura Plena em Pedagogia, pelos conhecimentos transmitidos, entretanto aos que estiveram mais próximos, um carinhoso agradecimento por cada momento de dedicação, afetividade e ensinamentos que vão para além dos conhecimentos científicos. Aos colegas de curso e sala, obrigada pelas discussões e trocas de experiências e em especial sou grata a Nathalia que se tornou uma verdadeira amiga, foi companheira em momentos difíceis, parceira de trabalhos e esteve ao meu lado nesta caminhada. Por fim, porém não menos importante agradeço ao pessoal da cantina por todas as conversas e risadas que compartilhamos e ao pessoal da biblioteca pelos momentos de instrução. (...) “E de que serve a escola”, pensou Noemi, “sem o ensino da arte?” (...) “E de que serve a vida”, pensou Noemi, “sem a presença da arte?” (Bricolagem do texto de CARROLL, Lewis. 2015. p. 13) RESUMO A partir da pesquisa intitulada “Do outro lado da cerca: Experiência com imagens, infância e educação. Reflexões e olhares para o Desenvolvimento Infantil a partir de produções imagéticas de professores e crianças”, desenvolvida pelo grupo de estudo “IMAGO-Laboratório da Imagem, Experiência e Criação”, algumas questões em torno da arte tem chamado minha atenção e despertado o interesse em refletir sobre essa temática dentro da escola. Essa referida pesquisa tem como propósito refletir acerca de temáticas do desenvolvimento infantil a partir da produção de imagens por crianças e professores e teve como percurso metodológico três momentos: (1) o trabalho em três salas em uma escola de Educação Infantil, da Rede Municipal de Ensino de Rio Claro, contemplando crianças de 3 a 5 anos, as quais capturavam imagens espontâneas dentro do ambiente escolar; (2) encontros com gestores de toda a rede e (3) em HTPCs (Horário de trabalho pedagógico coletivo) na escola onde foi desenvolvida. Nestes momentos muitas problemáticas e discussões emergiram a partir das imagens e se configuram como propósito deste projeto que apresento, focando sobretudo no olhar do professor e do aluno de Educação Infantil, para pensar o papel da escola no processo de abordagem da arte dentro da educação infantil. Este trabalho científico se apoiará nos documentos obtidos pela pesquisa citada inicialmente, se desdobrando em momentos de verificação de referenciais teóricos, observação das imagens, estudo de entrevistas com professoras participantes da primeira pesquisa e leituras de registros feitos em encontros com gestores, professores e grupo de estudos. Pretende-se com este trabalho verificar qual a valorização do ensino da arte dentro das escolas e investigar se tal ensino influencia ou não a visão artística. Palavras-chave: Artes. Imagem. Infância. Educação Infantil. Escola. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8 2 CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA BASE......................................................... 12 2. 1 A Coleta .......................................................................................................... 13 3 A ARTE .................................................................................................................. 14 3.1 Currículo e prática escolar ............................................................................... 15 4 INFLUÊNCIAS OUTRAS ........................................................................................ 21 5 A CRIANÇA E SEUS MODOS DE DEMONSTRAR, HABITAR, EXPERIMENTAR, CRIAR E PROFANAR A ESCOLA, A ARTE, O MUNDO .......................................... 24 6 INFÂNCIA ............................................................................................................... 28 7 DESLOCAR O OLHAR E SE LANÇAR NO CAMINHO .......................................... 33 8 POSSIBILIDADES .................................................................................................. 36 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 38 8 1 INTRODUÇÃO Durante minha graduação em Licenciatura Plena em Pedagogia estive envolvida em dois projetos de pesquisa desenvolvidos juntamente com o Professor Doutor César Donizetti Pereira Leite. Ambos os projetos tiveram temáticas parecidas, porém um ocorreu com crianças de 4 meses a 3 anos, professores e monitores de uma creche municipal de Rio Claro, enquanto o outro foi desenvolvido com crianças de 3 a 6 anos e professores em uma escola municipal de Educação Infantil no mesmo município. As pesquisas foram desenvolvidas a partir da coleta de imagens e vídeos feitos pelas crianças e professores/monitores e a participação dos pesquisadores em reuniões de horário de trabalho pedagógico (HTPCs). Procurávamos não direcionar as coletas, para isso, apenas disponibilizávamos os tablets, as câmeras fotográficas e as filmadoras e deixávamos os participantes livres para registrar e fazer o que quisessem, e durante os HTPCs visualizávamos essas imagens juntamente com os professores e discutíamos temas que emergiam no momento. A partir dessas produções imagéticas buscamos refletir sobre possibilidades de construção de caminhos e reflexões acerca das práticas educativas e dos processos de desenvolvimento infantil. Essas experiências, as imagens das crianças e as discussões provocaram e criaram, em mim, a necessidade de um deslocamento nos modos de olhar e pensar. A emergência de um olhar provocativo e diferenciado do comum, pensamentos, ideias que levaram a um deslocamento do lugar em que eu me encontrava, além de suscitarem questionamentos diversos, e mais especificamente acerca da arte e seus significados na Educação Infantil. Foi a partir dessas experiências e desses questionamentos que surgiu este novo trabalho de “pesquisa como experiência”, o qual não teve a intenção de interpretar as imagens ou as crianças. Para isso me ofereci a experienciar, me envolvi no processo e deixei que as crianças se tornassem autoras dos resultados. Busquei pensar a partir das imagens, olhando para elas com um olhar desprovido, desnudado das representações e interpretações, sem procurar por verdades, mas encontrar potências do pensamento infantil. Isso quer dizer que 9 busquei pensar com a infância, pensando-a de uma forma diferente daquela que pensa o sujeito da infância como um ser incompleto e incapaz (CHISTÉ, 2014a). As imagens revelaram para mim uma potência artística. Potência que acredito ser natural do homem, mas que, se não for trabalhada e intensificada no decorrer da vida, pode ser perdida. As crianças demonstraram ser livres para experimentar e explorar; durante as coletas de imagens, elas não se preocupavam com técnicas fotográficas ou com o produto final. Criavam fotografias através de momentos de descuidos, sem sentidos prévios, sem sentido algum, livre de interpretação. Porém as crianças mais velhas começam a demonstrar uma pequena preocupação em classificar as imagens como feias ou belas, certas ou erradas, e começam a deixar de lado os descuidos e liberdades. Já nas coletas realizadas com as professoras, foi possível perceber uma total preocupação com a técnica, uma necessidade de enquadramento, de sentidos. Muitas vezes elas experimentavam tirar imagens desfocadas e cortadas, porém, também utilizavam uma “técnica” nessa atividade e ignoraram essas imagens quando propomos que escolhessem imagens que pudessem servir para construir um filme, optando sempre pelas imagens enquadradas e focadas. Acredito que essa diferença decorre do fato de que, durante a vida, processos de modulação se fazem presente e com a influência do capitalismo ditam os padrões de beleza – para a moda, para a arte, para a televisão – ditam o certo e o errado, e até mesmo como devemos viver. Modulando, portanto o modo de vida do homem, afirmando assim o que diz André BRASIL (2008) “o capitalismo pós-industrial [...] transborda os limites da empresa para se expandir a outros domínios da vida cotidiana. O que se produz e se reproduz agora não são apenas mercadorias, mas modos de vida.” (p. 3). Isso pode ocasionar a perda da liberdade e do espaço para o imprevisível – descuido –, alastrando a necessidade de sentidos, significados e finalidades. Por isso me atentei a refletir acerca das possibilidades e oportunidades oferecidas às crianças no ambiente escolar para compreender as seguintes questões: por que a espontaneidade artística da criança se perde com o tempo? 10 Qual o papel da escola nesse processo? Qual é o valor que os professores atribuem às crianças e ao ensino da arte? Para responder a essas problemáticas foi preciso investigar a forma na qual a arte é abordada dentro da Educação Infantil; investigar o que realmente acontece com o olhar infantil no decorrer do tempo cronológico, a fim de pontuar fatores que influenciam para que ocorram mudanças positivas ou negativas; investigar como a escola pode auxiliar para que esse movimento ocorra de forma reversa ao ditado pelo capitalismo estético; investigar a valorização do ensino da arte dentro das escolas e investigar se tal ensino influencia ou não a visão artística na Educação Infantil. Por fim, este estudo visa destacar outras possibilidades que as imagens produzidas pelas crianças nos apresentam, a fim de pensar a arte na Educação Infantil. Os dados deste trabalho se constituem a partir de um banco de dados de uma pesquisa desenvolvida e intitulada “Do outro lado da cerca: Experiências com imagens, infância e educação. Reflexões e olhares para o Desenvolvimento Infantil a partir de produções imagéticas de professores e crianças”, que é composto por 19350 imagens feitas por crianças de 3 a 6 anos em uma escola municipal de Rio Claro. Baseada nas pesquisas que já participei, é possível afirmar que é uma dificuldade trabalhar com crianças a partir de conceitos tradicionais que permeiam os modos de fazer pesquisa, pois elas nos convidam a espaços de experimentação, sem controles, análises ou interpretações. Levam-nos a trocar o pensamento baseado nesses conceitos, pelo pensamento das sensações, dos olhares, das ideias de leitura, além de fazer com que percamos a certeza dos caminhos previstos e seguros. Nesse sentido, definimos a presente pesquisa como pesquisa documental, partindo do princípio que as imagens da pesquisa “Do outro lado da cerca: Experiências com imagens, infância e educação. Reflexões e olhares para o Desenvolvimento Infantil a partir de produções imagéticas de professores e crianças” se caracterizam como documentos de investigação e se classificam como documentos de primeira mão. Pois, como apontado por GIL (2002), 11 O desenvolvimento da pesquisa documental segue os mesmos passos da pesquisa bibliográfica. Apenas cabe considerar que, enquanto na pesquisa bibliográfica as fontes são constituídas sobretudo por material impresso localizado nas bibliotecas, na pesquisa documental, as fontes são muito mais diversificadas e dispersas. Há, de um lado, os documentos "de primeira mão", que não receberam nenhum tratamento analítico. Nesta categoria estão os documentos conservados em arquivos de órgãos públicos e instituições privadas, tais como associações científicas, igrejas, sindicatos, partidos políticos etc. Incluem-se aqui inúmeros outros documentos como cartas pessoais, diários, fotografias, gravações, memorandos, regulamentos, ofícios, boletins etc. (p. 46). Apesar da ideia principal ter sido produzir leituras a partir do que emergem das imagens a respeito da arte e de seu ensino, sem interpretações, as imagens se tornaram os dados documentais que deram apoio para essa pesquisa. 12 2 CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA BASE A pesquisa intitulada “Do outro lado da cerca: experiências com imagens, infância e educação. Reflexões e olhares para o desenvolvimento Infantil a partir de produções imagéticas de professores e crianças” teve seu desenvolvimento em uma escola municipal de Educação Infantil de Rio Claro - SP na qual, primeiramente, foi realizada uma coleta de imagens e vídeos com crianças de 3 a 6 anos, depois houve a participação dos pesquisadores nos HTPCs, levando para as professoras uma proposta de coleta similar a que foi realizada com as crianças, finalizando com uma montagem de filmes em pequenos grupos a partir daquelas imagens. O objetivo central desta pesquisa era [...] refletir sobre as possibilidades que as imagens e as produções imagéticas realizadas por crianças e professores/monitores de Educação Infantil, no contexto das práticas educativas, oferecem para construção de caminhos e para reflexões a cerca dos processos de desenvolvimento infantil e das práticas educativas do professor. (LEITE, 2014, p. 7). Além desses dois momentos, pude me envolver com reuniões de dois grupos de estudos, (1) o I-MAGO, que é um grupo amplo e focado em estudos e pesquisas e conta com a participação de alunos do doutorado, mestrado e graduação, no qual observarmos as imagens produzidas pelas crianças e compartilhamos textos de autores que remetem a pontos discutidos durante a visualização das imagens. (2) Um grupo reservado apenas a alunos bolsistas da pesquisa, em que as atividades foram totalmente voltadas à leitura de referências bibliográficas contidas na pesquisa e registros escritos acerca das imagens analisadas. Em ambos os grupos trabalhamos com variados autores, alguns possuem uma intervenção mais presente como Giorgio Agamben, Gilles Deleuze, Walter Benjamin, Jacques Rancière, Lev Vygostsky, Jorge Larrosa, Michel Foucault e René Schérer. A partir destes, outros textos são vinculados a nossa discussão e diversos temas emergem em nossos debates, os mais recorrentes são os corpos que se misturam, se atravessam e se constituem, além das discussões de infância, experiência, tempo e arte que são possíveis de observar através das imagens e por meio de nossa participação na escola. 13 2. 1 A Coleta A coleta de imagens citada acima se sucedeu, em um primeiro momento com crianças de 4 a 5 anos em uma sala de infantil I, porém após o início achamos pertinente ampliar a pesquisa para crianças de 3 a 4 anos de um maternal II e de 5 a 6 anos de um infantil II. As visitas na escola foram feitas em dois dias da semana no período da manhã e em um dia no período da tarde, com duração de duas horas e meia, nas quais as crianças tinham liberdade total de explorar ou não os tablets, as câmeras fotográficas e as filmadoras. Ao final, relatórios eram escritos com o intuito de descrever o que havia ocorrido naquele dia e pontuar acontecimentos que mais despertavam a atenção dos pesquisadores. Ao todo foram 24 encontros realizados com as crianças, contabilizando um total de 21121 produções, na qual 19350 são imagens e 1771 são vídeos somados em 12 horas 21 minutos e 50 segundos. Após o tempo destinado a coleta, fizemos mais uma visita em cada sala para permitir que as crianças olhassem algumas de suas imagens e tentassem, a partir de tais, trabalhar com a montagem de vídeos, finalizando com 12 vídeos totalizados em 08 minutos e 44 segundos. Nos HTPC’s, a ideia a ser realizada foi a mesma, porém em 5 encontros, sendo estes uma vez por semana; foram divididos em 2 dias para coleta, 2 dias para elaboração dos filmes e 1 dia para visualização destes e discussões sobre a experiência que tiveram ao realizar as coletas. No total foram 291 produções, sendo 263 imagens e 28 vídeos somados em 28 minutos e 15 segundos e 04 filmes montados, totalizando em 17 minutos e 23 segundos. A experiência de estar dentro da escola foi incrível e o envolvimento com as crianças inevitável, visto que já chegam abraçando, pulando em você e demonstrando um carinho enorme que te prende e faz com que você se envolva completamente com elas e consequentemente com o que a pesquisa promove para tais. 14 3 A ARTE [...] É disso mesmo que é feita a arte: de invenção, criação, imaginação que vai bem mais além do que cremos ser a realidade. A arte talvez seja feita da matéria de uma experiência e linguagem que dançam e sobrevoam os sentidos das coisas, sem se preocupar se há mesmo uma verdade a que se deva bater continência.” (LOPONTE, 2008, p. 119) A arte, a partir do que conhecemos hoje, teve seus primeiros indícios nas pinturas rupestres, as quais eram feitas pelos “homens das cavernas”, nome popular dado aos primeiros homens citados na história da humanidade. Historiadores afirmam que essas pinturas surgiram como uma forma de linguagem, pois é o primeiro registro que temos de comunicação. Com o tempo, o homem foi se desenvolvendo e consequentemente foram criadas novas formas de se comunicar e se expressar. A arte, apesar de ainda ser conhecida como uma linguagem, passou a ser definida e restrita à obras de arte como pintura, escultura, instalações e arquitetura ou à expressões artísticas como música, dança e teatro e mais recentemente à fotografia e ao cinema. Durante a evolução da humanidade, a arte foi perdendo seu espaço, sendo empobrecida, se transformando em algo técnico, especializado e em técnicas reprodutivas. Perdendo sua essência, sua ligação com a criação, o indivíduo, as emoções, as sensações, o prazer, enfim... Perdeu sua ligação com a vida e a razão passou a tomar conta do homem (FRANCO, 2010; OSTETTO, 2011). Entretanto, ainda existem aqueles que acreditam que outras formas de acesso ao mundo, além da razão, são possíveis. Dentre eles a arte. Mas não a arte técnica e especializada, e sim aquela que traz possibilidade de criação, invenção, experiência, a arte que rompe com os padrões impostos pela sociedade. Uma arte que se apropria de espaços e tempos outros (espaços e tempos “não capitalistas”), que possibilitam um equilíbrio entre o intelecto e as emoções. Franco (2010) relata que “Fazer arte é expressar sentimentos, relatar sensações, descobrir emoções; é uma forma de expor o que sentimos por meio de atividades prazerosas.” (p. 10). Enquanto Couto (2010) defende que a arte está vinculada ao imaginário e por isso ela “[...] revela a possibilidade de criar, desenvolver e recriar mundos [...]” (p. 175). 15 As duas afirmações supracitadas, apesar de não estar escrita pela mesma pessoa, podem ser pensadas em conjunto, sendo utilizadas para compor e completar uma a outra. Visto que a arte pode nos possibilitar a criação de um mundo paralelo, no qual experimentamos a vida intensamente e de forma prazerosa e a partir disso descobrimos emoções e vivenciamos sensações. Ao pensar dessa forma e retornar para as imagens e vídeos, feitas pelas crianças na pesquisa utilizada como base, vem à sensação de que as crianças vivem “na arte”, pois elas demonstram criar e viver um mundo paralelo ao do adulto, experimentando, sentindo, brincando e se apropriando de outros espaços e outros tempos, escapando ao olhar adulto e vivendo intensamente cada momento. Talvez, seja por isso que muitos artistas buscaram e buscam até hoje, na infância, inspiração para seus trabalhos. E que escultores, pintores, atores, músicos façam sua arte brincando com o barro, os instrumentos, as tintas, as notas musicais e até com o próprio corpo de forma intensa (LOPONTE, 2008; PINHEIRO, 2010). LOPONTE (2008), em seu texto “arte e metáforas contemporâneas para pensar infância e educação”, relata que o artista Picasso afirmou “[...] que na sua infância era capaz de desenhar como o artista renascentista Rafael, mas precisou de toda uma experiência para aprender a desenhar como uma criança” (p. 114). Através desta afirmação, é possível identificar que entre a criança e o adulto existe um ou vários fatores que interferem na habilidade e no processo criativo do homem. Para abordar mais afundo essa questão e compreender o que acontece no percurso de uma criança até chegar à fase adulta, busquei respostas na escola de Educação Infantil, no currículo escolar, nas leis e nas práticas educativas envolvendo a arte. 3.1 Currículo e prática escolar Toda criança desenha, mas ao longo da vida, influenciada sobretudo pelos processos escolares, vai abandonando sua produção e então chega a vida adulta sem saber qual é o seu traço, qual é a sua marca. Vai perdendo a capacidade de designar, de afirmar-se produtora de sentidos, sujeito criador de mundos. (OSTETTO, 2011, p. 10) 16 Para escrever este capítulo analisei diversos documentos, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (2º versão), o Estatuto da criança e do Adolescente (ECA), os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil, a Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009, a qual fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e o Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (RCNEI), em busca de conhecer qual o lugar da arte na escola. Contudo, foi possível notar que pouco espaço há para a arte, pois em grande parte dos documentos ela é designada apenas a uma matéria já posta como inferior, não valorizada e que serve apenas como um momento de lazer e descontração. FRANCO (2010) afirma que A arte nunca foi uma matéria importante na escola aos olhos de todos, porque as outras matérias, como Português, Matemática, História e Geografia, são matérias consideradas sérias e fundamentais para o conhecimento dos alunos, pois com elas pode-se obter formação, entrar numa faculdade ou ter um bom emprego. (p. 7). Apesar de pouco encontrar sobre a arte no currículo, percebi que alguns pontos da teoria incentivam e defendem momentos de liberdade, experiência e exploração para o desenvolvimento da criança, possibilitando que ela “viva na arte” como citado anteriormente. Porém essa teoria imposta no currículo acaba por se contradizer dentro do próprio documento e principalmente quando é levada para a prática, pois se mostra como uma liberdade vigiada; a criança experimenta o que o adulto permite e explora aquele espaço pré-definido também pelo adulto. Na segunda versão da Base Nacional Comum Curricular podemos encontrar os seguintes fragmentos: Nas ultimas décadas, a área da Educação Infantil vem consolidando uma nova concepção sobre como educar e cuidar de crianças pequenas em instituições educacionais, assegurando a educação em sua integralidade, entendendo o cuidado como algo indissociável do processo educativo. Essa concepção busca romper com dois modos de atendimento fortemente marcados na historia da Educação Infantil: o que desconsidera o potencial educativo das crianças dessa faixa etária, limitando-se a tarefas de controle e de guarda e, também, o que se orienta por praticas descontextualizadas, centradas em conteúdos fragmentados e na decisão exclusiva do/a professor/a. (BRASIL, 2016, p. 53) O compromisso dos/as professores/as e das instituições de Educação Infantil é observar e interagir com as crianças e seus modos de expressar e elaborar saberes. Com base nesse processo dinâmico de acolhimento dos saberes infantis, esta a ação dos/as docentes em selecionar, organizar, refletir, mediar e avaliar o conjunto das praticas cotidianas que se realizam 17 na escola, com a participação das crianças. A partir disso, o/a professor/a promove interações das crianças com conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, por meio do planejamento de possibilidades e oportunidades que se constituem a partir da observação, dos questionamentos e do dialogo constante com as crianças. (BRASIL, 2016, p. 59) Ambos fragmentos supracitados demonstram dar liberdade e voz ao aluno, permitindo que seus conhecimentos sejam levados em conta, mas na prática raramente isso acontece. As atividades geralmente são dirigidas e padronizadas, a ordem é que todos façam a mesma coisa ao mesmo tempo e infelizmente isso tira a liberdade. A escola se transformou em um lugar que despeja “conceitos pré- fabricados” (FRANCO, 2010, p. 20) e as práticas estão mais relacionadas à [...] modelos educativos sendo reproduzidos, e exercícios de poderes sendo cristalizados, seja em uma perspectiva das ditas práticas tradicionais, seja nas chamadas progressistas, ou seja, a educação se apresenta como uma tecnologia que modula a modulação da vida (LEITE, 2011, p. 77). O ensino da arte se atrelou apenas ao ensino de técnicas, limitando a imaginação da criança e impondo regras para fazer arte, se rendendo aos padrões impostos pela sociedade. “[...] Na Educação Infantil, frequentemente, a arte mostra- se com a roupagem de um conteúdo a ser ensinado em determinados momentos ou um conjunto de técnicas e instruções para o exercício de habilidades específicas [...]” (OSTETTO, 2011, p. 5), com isso ditam qual o conteúdo a ser passado, o momento ideal, as instruções de como fazer e as habilidades específicas que devem ser adquiridas e utilizadas. As atividades propostas “simplificam e empobrecem a arte” (OSTETTO, 2011, p. 5) e o ensino como um todo, dita um modelo para que todos sigam, produzam, reproduzam, representem. O professor se responsabiliza por ensinar “como” deve se fazer aquela atividade e a partir disso [...] todas as crianças de uma classe ficam arregimentadas no mesmo modo de expressão. Tornam-se iguais. Nenhuma diferença individual é permitida. Em tal atmosfera o indivíduo perde a confiança em sua expressão pessoal. Condicionada a determinado modelo, a criança sempre se mantém na expectativa de que lhe apresente o modelo que deve seguir. Quando este é retirado, a criança sente-se perdida e sem confiança para usar, independentemente, sua imaginação. (LOWENFELD, 1977, p. 29) A escola passou a ser uma fábrica, da qual as pessoas saem moduladas, formatadas e padronizadas. E consequentemente os conteúdos e conhecimentos 18 transmitidos também passaram a ser apenas reproduzidos, objetivando sempre um mesmo produto final. Nas aulas de artes, são produzidas práticas comuns que servem para “descontrair”, “relaxar”, guardar em uma pasta, colar na parede da escola e depois mostrar para os pais. Essas práticas geralmente se limitam em oferecer uma folha A4 em branco ou com um desenho já impresso para a criança colorir ou desenhar o que lhe é solicitado; disponibilizar revistas para cortar ou rasgar algo pré- determinado; brincar de massinha de modelar; usar pincel e tinta para pintar ou desenhar o que já foi decretado pelo professor; confeccionar cartões e lembrancinhas para datas comemorativas e ensaiar uma música, dança ou teatro para alguma apresentação. O volume três do Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil critica a forma que as escolas abordam o ensino da música e das artes visuais, relatando que [...] Constata-se uma defasagem entre o trabalho realizado na área de Música e nas demais áreas do conhecimento, evidenciada pela realização de atividades de reprodução e imitação em detrimento de atividades voltadas à criação e à elaboração musical. Nesses contextos,a música é tratada como se fosse um produto pronto, que se aprende a reproduzir, e não uma linguagem cujo conhecimento se constrói. (BRASIL, 1998, p. 47) Especificamente sobre as artes visuais, descreve que A presença das Artes Visuais na educação infantil, ao longo da história, tem demonstrado um descompasso entre os caminhos apontados pela produção teórica e a prática pedagógica existente. Em muitas propostas as práticas de Artes Visuais são entendidas apenas como meros passatempos [...]. Outra prática corrente considera que o trabalho deve ter uma conotação decorativa, servindo para ilustrar temas de datas comemorativas, enfeitar as paredes com motivos considerados infantis, elaborar convites, cartazes e pequenos presentes para os pais etc. Nessa situação, é comum que os adultos façam grande parte do trabalho, uma vez que não consideram que a criança tem competência para elaborar um produto adequado. As Artes Visuais têm sido, também, bastante utilizadas como reforço para a aprendizagem dos mais variados conteúdos. São comuns as práticas de colorir imagens feitas pelos adultos em folhas mimeografadas, como exercícios de coordenação motora para fixação e memorização de letras e números. (BRASIL, 1998, p. 87). 19 Esse tipo de arte não possibilita que a criança experimente, se expresse, seja livre, crie, extravase e ao tentar romper com isso a criança é corrigida. Os adultos, pais e professores interferem nas criações dos alunos, julgam como certo ou errado, colocam legendas, rótulos, enquadram, demonstram uma necessidade de nomear os desenhos e corrigir as proporções (OSTETTO, 2011; LOPONTE, 2008). As interferências no modo de ser e agir das crianças não acontecem apenas dentro das salas de aulas, mas no ambiente escolar como um todo. No volume dois dos Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil, o documento declara que Quanto à infra-estrutura das instituições de Educação Infantil: [...] 15.4 instigam, provocam, desafiam a curiosidade, a imaginação e a aprendizagem das crianças; [...] 15.7 As paredes são usadas para expor as produções das próprias crianças ou quadros, fotos, desenhos relacionados às atividades realizadas visando a ampliar o universo de suas experiências e conhecimentos. 15.8 As cores e as tonalidades de paredes e mobílias são escolhidas para tornar o ambiente interno e externo das instituições de Educação Infantil mais bonito, instigante e aconchegante. [...] (BRASIL, 2006, p. 42). Entretanto, é possível notar que os prédios escolares não alcançam esses objetivos, pois as crianças não demonstram sentir-se provocadas, instigadas e desafiadas. Contrariando ao descrito no documento, os espaços educativos estão cada vez mais rendidos ao “educar” e padronizar, com isso acabam utilizando imagens espalhadas, por sua infraestrutura de personagens da mídia, que carregam significados e sentidos que ditam modos de ser, de agir, de pensar e até ditam padrões de beleza e gostos (OSTETTO, 2011). Isso faz com que cada vez mais o olhar da criança seja modulado, tirando sua sensibilidade e liberdade de criação. Atualmente a escola é praticamente o lugar onde as crianças ficam por mais tempo e por isso se torna responsável por apresentar grande parte do mundo para elas, entretanto a “escola contemporânea reproduz a lógica do consumo e indústria cultural, tornando-se um lugar de propagação da sociedade do espetáculo” (SILVA; BITTENCOURT, 2014, p. 524). Por conseguinte, acaba formatando o modo de perceber e apreciar o mundo, prendendo a criança nesse movimento. 20 O tempo cronológico e a sociedade capitalista regem a educação e com isso limitam, por vezes até impede as experiências, este tempo “[...] rouba o momento do devaneio, da entrega, impede a construção do olhar sensível” (OSTETTO, 2011, p. 7). No início, as crianças lutam contra essas imposições, elas demonstram escaparem ao tempo, ao espaço, ao olhar o mundo como um adulto, porém com o tempo ela aparenta não querer mais lutar e se permite ser influenciada. A criança deixa de “viver na arte”, pois [...] torna-se inflexível porque tem de seguir o modelo que lhe foi dado; este não lhe proporciona alívio emocional, pois não lhe dá oportunidade de expressar sua própria experiência, com a qual daria vazão às suas emoções; não favorece sequer a destreza e a disciplina, uma vez que o desejo e o impulso da criança para aperfeiçoar-se nascem do seu próprio anseio de expressar-se; finalmente, esse modelo condiciona a criança aos conceitos dos adultos [...] (LOWENFELD, 1977, p. 26). Assim sendo, as crianças começam a ser transformadas e preparadas para se tornarem adultos que sigam sempre o padrão imposto e passem a habitar apenas o mundo da razão. 21 4 INFLUÊNCIAS OUTRAS Como visto no capítulo anterior, a escola influencia e padroniza a visão de mundo das crianças, porém existem influências externas que auxiliam neste movimento de padronização que também interferem nas escolas, ditando os modos de agir, ser, viver. Podem-se pontuar neste caso as ideologias impostas pelo capitalismo e suas relações de produção de mercadoria e consumo. O mundo econômico e social foi totalmente modificado pelo capitalismo, com isso pensamentos, ações, comportamentos e propósitos foram alterados. A cultura e a arte, que antes eram consideradas movimentos de expressão e contestação, passaram a se tornar mercadorias reproduzidas em série e se renderam totalmente aos interesses do sistema (SILVA; BITTENCOURT, 2014). O homem alienou-se de seu trabalho, de si mesmo e das possibilidades de criar. A indústria cultural passou a repreender e manipular o processo criativo e consequentemente interferiu nas percepções humanas e na visão de mundo atual. Padrões foram impostos para serem disseminados e reproduzidos em todos os contextos a fim de se produzir e reproduzir um mundo idealizado. Segundo BENJAMIN (1994), “[...] uma nova indústria surgiu, que muito contribuiu para confirmar a tolice em sua fé... de que a arte é e não pode deixar de ser a reprodução exata da natureza... [...]” (p. 107). Portanto, a reprodução que as escolas impõem às crianças parte desse mundo idealizado, capitalista, com isso, desvaloriza o aqui e o agora e faz com que a autenticidade se perca. Esta técnica da reprodução “[...] substitui a existência única da obra por uma existência serial. [...]” (BENJAMIN, 1994, p. 168). A partir disso, o mundo, a educação, a vida, são reproduzidos como uma indústria, na qual se criam e padronizam comportamentos, desejos, ideias, gostos, experiências, modos de sentir e viver, modos de vida. Como dito por André BRASIL (2008), o capitalismo pós-industrial, “[...] possui a particularidade de transbordar os limites das fábricas e da empresa, para se disseminar por todos os domínios da vida cotidiana. Mais do que vender produtos, trata-se de criar mundos, nos quais se inventam e se experimentam modos de vida. Nesse sentido, o capitalismo dito pós- industrial e cognitivo pode ser caracterizado também como capitalismo estético. [...]” (p. 10) 22 Este capitalismo estético modula e regula tudo o que nos possibilitaria projetar outros mundos possíveis, nos impedindo de ser o que desejamos e de experienciar o diferente. Visto que a experimentação proporciona atuação, intervenção, afetação entre o homem, o objeto e os signos e isso pode se tornar em uma ameaça ao sistema capitalista imposto a nós. O atual modelo capitalista captura tudo aquilo que é diferente e lhe apresente uma ameaça, se apropriando daquilo e a transformando em algo regulado, modulado. Em seu discurso, o capitalismo estético se mostra como possibilidade de liberdade, experiência e autonomia, porém ele torna isso um roteiro e o transforma em informações e produtos (BRASIL, A., 2008). O capitalismo estético disfarça suas intenções, utiliza o marketing, a tecnologia e a mídia como forma de controle, se apropriando do risco, da incerteza e da insegurança para administrar e regular a vida da coletividade, vida em “liberdade” (BRASIL, A., 2008). Ele mapeia, antecipa e modula as possibilidades, restringindo assim possíveis escapes. Assim, “[...] O marketing será então o conjunto de estratégias que permite tornar produto em uma forma de vida e, em via inversa, transformar formas de vida em produtos. [...]” (BRASIL, A., 2008, p. 115). Partindo disso, podemos pensar que a vida se constitui através da mídia e dos avanços da tecnologia, pois ela está a serviço do capitalismo e do valor de venda. Ela condiciona modos de ser e estar no mundo, o cinema, por exemplo, transmite modos de sensibilização pré definidos (LEITE, 2011). Walter BENJAMIN (1994) relata que o condicionamento da compreensão da imagem começou com a fotografia e o cinema, afirmando que foi tirado do observador o poder de uma livre contemplação das fotografias a partir do momento em que elas começaram a ser fotografadas com uma finalidade e um sentido prévio. A partir disso, as legendas explicativas se fizeram necessárias em revistas e jornais ilustrativos, e com o início do cinema, esse processo se intensificou. Os filmes são escritos e feitos com as emoções já previstas, com elementos como a trilha sonora, que auxilia para que essas emoções realmente sejam despertadas nos telespectadores. Partindo desta discussão, penso que a busca por sentido se iniciou com esse processo e se tornou característica adquirida do homem, 23 sendo transferida, através da sociedade e do cotidiano, para a criança e contribuindo para que aquele olhar infantil, livre, se perca. Partindo dessas discussões é possível notar que “[...] o capitalismo modula a modulação do ser: ele atua no âmago do processo de individuação, controlando, regulando suas defasagens, suas errâncias.” (BRASIL, A., 2008, p. 110). Com isso a escola se rende a esse movimento e modula a educação das crianças, controlando e regulando toda e qualquer diferença. “[...] Hoje, as formas de controle são tão mais intensas quanto mais autonomia se garante.” (BRASIL, A., 2008, p. 112). O capitalismo busca por todos os meios transformar as coisas, os espaços, os tempos e o corpo em algo sacro, entretanto as crianças demonstram viver rompendo com isso, profanando tudo o que é sacralizado e experienciando a vida em uma totalidade que vai além do que é permitido pela atual sociedade. 24 5 A CRIANÇA E SEUS MODOS DE DEMONSTRAR, HABITAR, EXPERIMENTAR, CRIAR E PROFANAR A ESCOLA, A ARTE, O MUNDO [...] de algum modo, de alguma forma, a arte diz, pinta, canta, dança, imagina, fantasia o que dizem as crianças. Ou melhor, poderíamos dizer que o modo com o qual a arte diz coisas sobre a vida e o mundo tem a ver com o modo com o qual as crianças dizem, com que interpretam esse mesmo mundo. (LOPONTE, 2008, p. 112). Durante meu envolvimento com a pesquisa, pude notar que as crianças nos convidam a espaços de experimentação, sem controles, análises ou interpretações, além de nos convidarem a um deslocamento de lugar, pensamentos e tempos. Por isso é difícil fazer um trabalho usando conceitos tradicionais, pois as crianças nos levam a trocar o pensamento baseado nesses conceitos, por um pensamento das sensações, dos olhares, das ideias de leitura, além de fazer com que percamos a certeza dos caminhos previstos e seguros. Segundo LEITE (2014) [...] a infância nos convida a nos colocarmos nos inícios das coisas, naquilo que ainda não é, naquilo que pode vir a ser, a infância coloca de forma certeira, precisa, não onde devemos chegar, mas sim o ‘lugar’ de onde partimos, criando a necessidade de, estando no início, no começo, nos colocar a caminhar, a experimentar. [...] (p. 8). As imagens feitas pelas crianças nos perpassam, trazem novas sensações; os vídeos causam vertigens e incômodo. As câmeras nas mãos das crianças viram brinquedo e às vezes até se tornam parte do corpo. Por isso são exploradas, vivenciadas ou até esquecidas, ocasionalmente uma criança ou outra esquecia que estava com uma câmera pendurada no braço e saia correndo e brincando. 25 As crianças não usam técnicas, suas imagens [...] tocam a pele, cortam, suavizam, embaralham, confundem. Na verdade, essas imagens são confusas, são muito confusas, pois que nelas e por nelas nunca sabemos o que é ou o que pode ser, nelas e com elas ouvimos do fotógrafo: são lindas, mas elas (as crianças) só podem fazê-las uma vez, apenas uma vez, eu poderia produzir este efeito quantas vezes você quiser. É isso que me interessa, o único, o singular, o fora da técnica, a experiência.” (LEITE, 2011, p. 118 e 119) Através dos conteúdos imagéticos podemos ver do mesmo lugar que a criança vê, vemos a escola e o mundo através dos olhos deles. Com isso é possível perceber que “[...] As crianças não só enxergam, observam, veem outros corpos de natureza outras, mas também tem uma relação íntima com eles. Os tocam, os acariciam, exploram suas formas como verdadeiras descobridoras, são tocadas por eles.” (CHISTÉ, 2014b, p. 623). Para elas, como dito por OSTETTO (2011), quando podem se entregar inteiras a exploração, tudo se transforma em matéria de encantamento. [...] elas, são seduzidas pelos seres pequenos, pelos pequenos seres, seres do chão, encontrados no pátio, no quintal, na terra, na areia, na grama. Elas percebem que o mundo, as coisas, os objetos, as palavras, não estão à nossa disposição para nos obedecer. Parece que elas sabem que tudo isso pode ser outras coisas, que como adultos, tentamos instrumentalizar. As crianças vem o mundo com olhos sensíveis, por isso enxergam o invisível, o que nada mais é do que o demasiadamente visto, o não observado, o desprezível e o desprezado. (CHISTÉ, 2014b, p. 622) 26 Ao lançar-me nessa “pesquisa experiência”, pude observar crianças artistas, que sem técnicas, sem intencionalidade, são capazes de criar “obras artísticas” maravilhosas, sem esforço algum, às vezes até por um descuido. Crianças curiosas, atuantes, que se arriscam e se aventuram por novos territórios, profanando tudo por onde passam. Se mostram cheias de desejos, imaginação, criam mundos, transformam objetos, fantasiam, inventam, constroem, desconstroem. Transpassam fronteiras, transgridem regras, resistem ao tempo. Fogem e escapam aos modelos impostos, às representações, reproduções, aos olhares e mundo adulto. As crianças não se limitam a regras, mas buscam liberdade, modificam as coisas, viram do avesso, povoam outros tempos e percorrem “entre lugares” (LEITE; CHISTÉ, 2015). Ao pensar o criar do artista e olhar para a infância através das imagens, percebo que ambos se colocam a experimentar, imaginar, criar, buscar o novo, intensamente e sem medo ou amarras; porém a criança faz isso com mais facilidade, visto que, o artista precisa se deslocar até a infância para então poder produzir. SCHÉRER (2009), em seu livro “Infantis”, relata que o artista ao se encontrar com a criança “[...] recebe da criança o que deixou de ter, a franqueza de um olhar não obstruído pelos clichês.” (p. 209). TARKOVSKI (1998) relata que O poeta tem a imaginação e a psicologia de uma criança, pois as suas impressões de mundo são imediatas, por mais profundas que sejam as suas ideias sobre o mundo. [...] O poeta não usa "descrições" do mundo, ele próprio participa da sua criação. (p. 45) 27 Assim como o poeta participa de sua criação, as crianças demonstram se lançar por completo em sua vida e em tudo que ela propõe, através de experiências, sentimentos, movimentos, olhares, partindo do simples, abertas ao imprevisível e aos encontros e desencontros de corpos. Tudo isso de forma brincante e singular, nos convidando sempre, de diversas maneiras, para habitar na infância e na arte juntamente com elas. 28 6 INFÂNCIA No decorrer da história da humanidade, diversos pensadores relatam inquietações em relação à criança, porém a infância era entendida apenas como uma fase de transição para a vida adulta, consequentemente era desconsiderada e esquecida. Por conta disso Ariès é citado como o primeiro a estudar a infância, visto que ele trata a infância de forma diferente, desde então outros pensadores e educadores abordam e discutem a infância como a entendem, buscando compreende-la e conhecer suas singularidades, com o objetivo de “[...] regular, normatizar, formar, moldar a criança, a infância, em todos os espaços, em todos os tempos, sempre com a intenção do que será melhor para ela, para a formação ‘de uma sociedade melhor’” (LEITE; CHISTÉ, 2015, p. 273). Ariès, no livro “História Social da Criança e da Família” relata diversas formas pelas quais a criança foi vista pela sociedade, como por exemplo, a percepção da criança como um animal que precisava ser domado e controlado para perder a natureza selvagem; e como adultos em miniaturas que se vestiam e possuíam as mesmas obrigações que os homens adultos. No final do século XVI e durante o século XVII a infância passou a ser significativa e os adultos começaram a reparar nas crianças, principalmente na forma como elas falavam, seus hábitos e corpos, com isso algumas mudanças ocorreram e possibilitaram que a criança fosse percebida de outra forma, ela “[...] não era mais vestida como os adultos. Ela agora tinha um traje reservado à sua idade, que a distinguia dos adultos.” (ARIÈS, 2006, p. 32). Segundo ARIÈS (2006), neste momento dentro das famílias, a criança assume um lugar central e Um novo sentimento da infância havia surgido, em que a criança, por sua ingenuidade, gentileza e graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento para o adulto, um sentimento que poderíamos chamar de “paparicação”. (p. 200). Entretanto outro novo sentimento também surge, concomitantemente, no meio dos homens da lei e dos moralistas, este estava mais ligado à irritação, raiva e exasperação (ARIÈS, 2006). A partir de então emerge uma necessidade no adulto de disciplinar a criança para ensinar a moral, concepção que associava a fraqueza 29 infantil à inocência, dessa maneira incutindo “[...] nas crianças princípios que as moldassem. Estes princípios eram formulados pelos adultos: pais, religiosos, preceptores e professores, que procuravam, a todo custo, suprimir a espontaneidade própria da infância.” (LOPES, 2014, p. 225). No final do século, procurou-se conciliar dentro das escolas a doçura e a razão, porém a visão dos moralistas ainda estava sobreposta, vale ressaltar que segundo ARIÈS (2006) o modelo de educação inspirado na exasperação durou até o século XX. Apesar das mudanças nas concepções da infância, muitas são as marcas trazidas até hoje em algumas práticas que perduram. Principalmente na necessidade de inventar e impor um lugar para a criança na sociedade, sem levar em consideração as vontades e necessidades dela própria. Atualmente, na maioria das concepções, a criança é vista como um ser inacabado e inferior que precisa de cuidado e proteção, marcada pela ausência da fala e incapacidade de comunicação e conhecimento da verdade, aspectos que caracterizam o início da vida do homem. A criança não é vista como ela realmente é, pois é pensada dominantemente como um devir, “como ser que será, como ser incompleto e incapaz [...] como etapa de vida pré-estabelecida” (CHISTÉ, 2014a, p.13) como ser ainda inexistente, em formação e desenvolvimento. Alguns autores discutidos por LEITE (2002), em sua tese de Doutorado intitulada “Labirinto: Infância, Linguagem e Escola”, defendem que essa atual concepção de infância vem sendo formada desde a Antiguidade e se fortaleceu no fim da Idade Média. A palavra Infância se origina da palavra grega in-fans que significa não fala, portanto podemos notar que a criança é considerada um ser sem voz, dominado e que não tem conhecimento da verdade - pensando que, durante um tempo, para os gregos o discurso oral era sinônimo de transmissão da verdade – e por isso precisa ser formado a partir de uma relação de poder, na qual o adulto é o instrutor da criança e dono da verdade, até que a criança alcance a idade adulta. Olhando para as práticas da Pedagogia e da Psicologia encontramos dois sentidos diferentes para essa verdade citada anteriormente, O primeiro indica que esta relação está vinculada à idéia de verdade, e deste modo, que o in-fans seria aquele que não possui a verdade, porque não possui a palavra. 30 O segundo caminho indica que a idéia da palavra está ligada não mais a uma verdade que é revelada, mas sim a uma verdade como produto da atividade racional. (LEITE, 2002, p. 61). Ambas noções de verdade estão ligadas à relação de poder e colocam a criança como ser inferior ao adulto, reproduzindo exatamente as relações entre governantes e governados que acontecem desde o tempo de nossos ancestrais. Com isso é possível notar os contextos históricos e culturais interferindo na concepção e formação da infância dentro da sociedade e principalmente dentro das escolas, transformando-a em um ser dominado. As concepções de infância supracitadas ou as baseadas em outros pensadores como Locke, Kant, Rousseau e Durkheim, ditam a forma como se deve lidar com as crianças, tanto fora da escola como dentro, e com isso limita o trabalho do professor. Muitas delas se baseiam em cuidados, palavras de ordens e censura, quase sempre autoritárias, sem diálogos, debates, nem democracia. Determinando dentro das salas de aula e na sociedade, a criança como a que não possui a razão ou conhecimento. LEITE (2002) mostra em seu texto alguns outros pensamentos sobre a infância, que se diferem daquele que pensa a criança como um ser incompleto e sem fala. Além de indicar que mesmo alguns sociólogos que tinham aquela concepção supracitada modificaram suas opiniões e defenderam que “[...] entre os vários elementos necessários para uma compreensão mais apurada em relação à criança hoje está o fato de não vê-la como um devir, mas como um ser que é com suas próprias especificidades [...]” (p. 32). SCHÉRER (2009) é um desses autores que olha para a infância com outros olhos, ele contraria a pedagogia libertária e alega que a criança precisa ser livre desta “infância” que controla e prevê um amadurecimento. O autor também fala sobre o sistema de Fourier, que visa a harmonia e defende que as crianças não devem aprender apenas por aprender, mas que elas precisam desenvolver suas potencialidades para serventia de seus próprios interesses. Possibilitando que cada criança aprenda em seu próprio tempo e busque sempre conteúdos que são pertinentes para ela naquele momento a partir de suas próprias experiências. 31 Ele defende que ao entrar em contato com o adulto, a criança desperta a virtude da inocência nele, porém não olha para essa inocência como algo ruim e preocupante, mas diz que “[...] Por intermédio dessa virtude, tudo o que parecia ignorância ou fraqueza, ganha sentido e valor no que diz respeito à origem, antes da instituição da regra humana, seja ela Natureza, seja Espírito.” (SCHÉRER, 2009, p. 21). Em seu livro “Infantis: Charles Fourier e a infância para além das crianças”, o autor propõe [...] Pensar o devir-criança, pensar a infância a partir dele, em sua esfera, é rejeitar o acervo de ideias, os pesados grilhões e disfarces impostos à infância pela tradição pedagógica e psicológica, bem como pelo universo psicanalítico com seus estágios, suas transferências, suas castrações, sua subordinação da infância à uma significação única, à verticalidade de uma única ereção. (SCHÉRER, 2009, p. 193). Ele retrata o “devir-criança” como abertura, deslocamento, movimento de escapada, linha de fuga da infância, infância esta que é imposta pelo adulto e obrigada a se retrair pela educação (SCHÉRER, 2009). Além de Schérer, pesquisadores da atualidade também discutem e expõem seus conhecimentos sobre a infância e experimentam trabalhar com um novo olhar para a criança, rompendo a perspectiva da relação dominante e dominado. Permitindo [...] pensá-la a partir do que ela tem, como presença, como afirmação, como força, instaurada em uma temporalidade imensurável, a infância como devir, como possibilidade de mudança, como experiência, experiência em vida, vida em experiência, ou seja como condição humana [...] (CHISTÉ, 2014a, p. 13). Essa outra concepção de infância, parte do princípio da experimentação. Experimentação esta que a criança convida a viver, sem controles, análises ou interpretações, um deslocamento de lugar, pensamentos e tempos. Rompendo totalmente os conceitos tradicionais, segundo LEITE (2014) [...] a infância nos convida a nos colocarmos nos inícios das coisas, naquilo que ainda não é, naquilo que pode vir a ser, a infância coloca de forma certeira, precisa, não onde devemos chegar, mas sim o ‘lugar’ de onde partimos, criando a necessidade de, estando no início, no começo, nos colocar a caminhar, a experimentar. [...] (LEITE, 2014, p. 8). 32 A partir disso é possível deixar as crianças vivenciarem a vida à sua maneira, através de experiências, sentimentos, movimentos, olhares, partindo do simples, aberta ao imprevisível e aos encontros e desencontros de corpos. Profanando os lugares que são determinados a elas e tudo isso de forma brincante e singular, convidando sempre o adulto para habitar na infância juntamente com eles. Durante este trabalho, busquei colocar em prática essa nova forma de olhar para a criança, a infância, deslocando meu olhar para vê-las de outro lugar. Um lugar não interferido pela visão adulta, mas sensível, infantil, rompendo com regras impostas, possibilitando que as crianças mostrem como e quem elas realmente são. Lançando-me a experimentar juntamente com as crianças um mundo outro, paralelo ao mundo adulto, o qual permite que ocupemos outros espaços, outros tempos e que não necessitam de explicação ou sentidos. Para viver neste mundo basta experimentar, como as crianças, a vida intensamente. Pois como dito por LEITE (2011), [...] A infância pela criança nos apresenta um mundo de reticencias, um mundo partilhado de possibilidades pelo ritmo cortado, sem sentido fixo, sem sentido dado, sem sentido previsto, sem sentido. É assim que a infância aparece e parece ser para nós, como esse tempo curto e intenso, mas também como tempo presente que nos deixa abertura e espera. (p. 116). 33 7 DESLOCAR O OLHAR E SE LANÇAR NO CAMINHO Na sociedade atual pouco tempo e possibilidade nos restam para sonhar e fantasiar e a escola apenas firma esse movimento ao ditar o que temos que fazer e como devemos pensar. (FRANCO, 2010, p. 18) Através de minha participação nas pesquisas “Infância, Pesquisa e Experiência: Reflexões e olhares para o Desenvolvimento Infantil a partir de produções imagéticas de professores e crianças” e “Do outro lado da cerca: Experiências com imagens, infância e educação. Reflexões e olhares para o Desenvolvimento Infantil a partir de produções imagéticas de professores e crianças” e após meu aprofundamento para o atual trabalho, notei que teorias e metodologias muitas vezes impedem que o adulto se envolva, seja afetado e tocado pela criança. Isso ocorre não apenas em pesquisas, mas também em salas de aulas, nas quais professores estão tomados pelo sistema, pelas regras, pelas formatações e modulações, por isso se prendem a teorias e práticas já postas e olham para a criança como um ser incompleto e inferior. Essas práticas impossibilitam que o professor ouça e seja afetado pelas crianças, pois elas trazem controle e imposições, enquanto tiram a infância da criança (LEITE, 2011), além de inibir e bloquear muitas vezes o lado criativo e artístico delas. Para fugir e romper com essa educação modulada, precisamos profanar a ordem das coisas, nos sensibilizar, deixar de lado o medo do desconhecido e do que não podemos controlar. É necessário um esvaziamento de práticas, abrir mão do poder controlador, [...] É preciso transver a infância, a criança. É preciso um deslocamento sensível e vê-las de outro lugar. Do lugar que rompe com a ‘adultez’ que, fruto da modernidade, se vê, tão somente, imaturidade, incompletude, dependência. É preciso olhá-las do lugar da infância, da criança, reconhecer-se como infantes, como seres inacabados. As próprias crianças veem o mundo de outro lugar, do lugar da coisa, do próprio mundo; elas ‘trasveem’ o mundo, quebram as regras estabelecidas. (LEITE; CHISTÉ, 2015, p. 273) Nós, enquanto adultos, precisamos abandonar as amarras e nos lançar ao campo da fantasia, do afeto, da sensibilidade; precisamos criar, recriar, inventar, reinventar sempre fugindo das regras, assim como as crianças. Devemos deslocar nosso olhar para o lugar da infância, para um lugar que “propicia a experiência”, como diz MASSCHELEIN (2008). 34 Para tal, o imprescindível é “[...] não é se colocar de um outro ponto de vista, de uma outra perspectiva, o que temos é que educar o olhar, é colocar em dúvida as perspectivas, ou lugares, as certezas.” (LEITE, 2011, p. 128). Para MASSCHELEIN (2008) "[...] E-ducar o olhar não significa adquirir uma visão crítica ou liberada, mas sim libertar nossa visão. Não significa nos tornarmos conscientes ou despertos, mas sim nos tornarmos atentos, significa prestar atenção." (p. 36). “E-ducar o olhar” é, portanto, se lançar a caminhar sem destino, estando aberto ao mundo e suas afetações, sensações, atravessamentos; é “estar presente no presente” (MASSCHELEIN, 2008, p. 40) se relacionando com o mundo. Enquanto “[...] Caminhar significa colocar essa posição em jogo, significa ex-posição, estar fora-de-posição.” (MASSCHELEIN, 2008, p. 37). Quando nos colocamos a caminhar desta forma exposta ao mundo, nos distanciamos das amarras da certeza e da razão e nos permitimos experimentar o tempo todo. Visto que [...] Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “imposição” (nossa maneira de impormos), nem a “proposição” (nossa maneira de propormos), mas a “exposição”, nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre. (LARROSA, 2002, p. 25) “[...] A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova.” (LARROSA, 2002, p. 25). Ela “[...] é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. [...]”(LARROSA, 2002, p. 21). Essa experiência se aproxima do jeito que as crianças, em suas produções imagéticas, nos relatam viver, expostas ao mundo, sendo afetadas pelas relações, experimentando e habitando outros espaços e vivenciando tempos saturados de agora. Essa experiência é espontânea e acontece por acaso, [...] a experiência comum não é mais que uma vassoura desmantelada, um proceder tateante como o de quem perambulasse à noite na esperança de atinar com a estrada certa, enquanto seria mais útil e prudente esperar pelo dia ou acender um lume, e só então pôr-se a caminho. (AGAMBEN, 2005, p. 25). 35 Portanto, devemos nos lançar a caminhar de forma atenta como dito por MASSCHELEIN (2008), porém sem intenções. A experiência quando buscada passa a ser um experimento (AGAMBEN, 2005), e quando falamos sobre ela, já a perdemos, pois a transformamos em razão. Enquanto professores, precisamos nos modificar e mudar nosso olhar, para então conseguirmos mudar a educação para “[...] uma educação infantil sempre por vir, uma educação porvir, sempre presente, não pronta, sempre inacabada, uma educação que experimenta, que se deixa experimentar.” (LEITE; CHISTÉ, 2015, p. 278). Em outras palavras, isso quer dizer que nossas novas práticas educacionais devem estar atreladas a uma “pedagogia pobre”, a qual é [...] cega (não tem destino, não tem um fim, não vai a lugar nenhum, não está preocupada com o além, não tem um olhar numa terra prometida), ela é surda (não escuta qualquer interpelação, não obedece “leis”) e muda (ela não tem ensinamento a oferecer). Ela não oferece qualquer possibilidade de identificação (a posição de sujeito, seja ela a de professor ou de aluno, está, por assim dizer, vazia), não há conforto. (MASSCHELEIN, 2008, p. 43) Esta pedagogia nos proporciona meios para experimentar, não controla, não vigia, não impõe condições para a entrada e nos possibilita ir a todos os lugares (MASSCHELEIN, 2008). 36 8 POSSIBILIDADES Apesar da arte da criança sofrer influências do capitalismo estético, da mídia e da sociedade, cabe a nós, professores, unir forças com as crianças e lutar para profanar os padrões e as modulações. Desta maneira, surgiram pensamentos sobre possibilidades de modos de escape para o trabalho com a arte dentro da Educação Infantil, rompendo com o que é e está pré-posto, permitindo que a autenticidade, originalidade, criação, liberdade e o olhar artístico da criança não se percam e nem sejam inibidos por interferências dos adultos. Procedendo que “[...] não há regras fixas no modo de produção da arte, suas linguagens são territórios sem fronteiras.” (OSTETTO, 2011, p. 3), podemos deixar de simplificar e empobrecer a arte a momentos e atividades isoladas e controladas. Vamos então, incentiva-la, pensa-la de forma integrada aos demais conteúdos e torna-la parte do cotidiano da criança, descartando a uniformidade, imitação e impulsionando a expressão artística livre. O professor pode encorajar a experimentação, disponibilizar repertórios e materiais diversificados, buscando sempre trazer o novo e desconhecido que possibilite enriquecer a experiência. Ao invés de se preocupar com o controle absoluto, é possível dar liberdade e poder de escolha para as crianças, permitindo que ela vivencie “a” e “na” arte, criando, explorando, expressando e conhecendo o mundo através de suas próprias experiências. Criar livremente a partir de seu próprio repertório é necessário, para que não haja modelos, sentidos. A criação a partir da imaginação e experiência individual possibilita a diferença, não traz necessidade de categorizar algo como feio ou bonito a partir do padrão imposto pela sociedade. É necessário criar para saber sua própria marca, se reconhecer enquanto autor e se tornar sujeito sensível, criador de mundos e que não deixa de se lançar a explorar e experienciar. Através da arte é possível desconstruir, ressignificar e profanar o que o capitalismo impõe e diz ser sacro. Portanto, “[...] a arte talvez seja muito maior do que se pode dizer. É um dos conceitos mais indefiníveis da história da humanidade.” (COUTO, 2010, p. 176). Desta forma, não devemos “conteudizar” a arte, nem tão 37 pouco controlar o modo como ela é produzida ou expressada, afinal, cada rabisco é original e pode ser visto enquanto arte por alguém. Ao invés disso, arte poderia ser deixar as crianças fazerem arte, discutirem sua arte, arte de criança, criança que faz arte... Criança sendo arte, “vivendo na arte”, criança sendo criança. Uma arte-criança. Criança. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2005 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (Primeira versão). 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas v. 1). BRASIL, André. Modulação/Montagem: Ensaio sobre biopolítica e experiência estética. 2008. 206 f. Tese (Doutorado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Referencial curricular nacional para a educação infantil. Brasília: MEC/SEF, (v. 3).1998. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. (Proposta preliminar - Segunda versão revista). Brasília, DF, 2016. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros nacionais de qualidade para a educação infantil. Brasília, DF, (v. 2). 2006. CARROLL, Lewis. Alice: edição comemorativa – 150 anos. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. CHISTÉ, Bianca. Devir – criança da matemática: experiências educativas infantis imagéticas. 2014. 106 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Instituto de Geociência e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2014a. CHISTÉ, Bianca. Infância e criança e imagens – travessias do universo infantil. Linha Mestra, n. 24, p. 622-625, jan/jul. 2014b. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2016. COUTO, Yara. Arte na educação: brincar, dançar, rodar... Tempos e espaços da infância. In: PINHEIRO, Maria (Org.). Intensidades da Infância: corpo, arte e o brincar. Goiânia: FRANCO, Larissa. A educação através da arte e uma experiência inovadora de arte-educação. 2010. 48 f. Trabalho de conclusão de curso (licenciatura – Pedagogia) – Instituto de Biociências de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2010. FUNAPE/DEPECAC, 2010. p. 175-191. (Coleção Lavor; 04). GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro , n. 19, p. 20-28, abr. 2002 . Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782002000100003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 01 ago. 2016. LEITE, César. Do outro lado da cerca: Experiências com imagens, infância e educação. Reflexões e olhares para o Desenvolvimento Infantil a partir de produções imagéticas de professores e crianças. FAPESP – Projeto de Pesquisa. 2014. LEITE, César. Infância, experiência e tempo. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2016. LEITE, César. Labirinto: Infância, Linguagem e Escola. 2002. 181 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002. LEITE, César; CHISTÉ, Bianca. Imagens de criança: travessias do universo infantil. Educação (Porto Alegre, impresso), v. 38, n. 2, p. 272-279, maio/ago. 2015. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2016. LOPES, Francisca. Infância: concepções, educação e formas de brincar. In: RISCAROLI, Eliseu (Org.). Infãncia e educação: teorias, práticas e costumes. 1. ed. Curitiba: CRV, 2014. p. 215-245. LOPONTE, Luciana. Arte e metáforas contemporâneas para pensar infância e educação. Rev. Bras. Educ. (Rio de Janeiro, online), v. 13, n. 37, p. 112-122, abr. 2008. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2016. LOWENFELD, Viktor. A criança e sua arte. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1977. MASSCHELEIN, Jan. E-ducando o olhar: a necessidade de uma pedagogia pobre. Educação e Realidade, v. 33, n.1, p. 35-48, jan/jun. 2008. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2016. OSTETTO, Luciana. Educação infantil e arte: sentidos e práticas possíveis. Caderno de Formação: formação de professores educação infantil princípios e fundamentos. Acervo digital Unesp, v. 3, p. 27- 39, mar. 2011. Disponível em: Acesso em: 01 ago. 2016. PINHEIRO, Maria. Experiência estética amiga da infância. In: ______. Intensidades da Infância: corpo, arte e o brincar. Goiânia: FUNAPE/DEPECAC, 2010. p. 227-244. (Coleção Lavor; 04). SCHÉRER, René. Infantis: Charles Fourier e a infância para além das crianças. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. (Educação: Experiência e Sentido). SILVA, Anilde; BITTENCOURT, Cândida. Processos de criação em arte e o trabalho docente na educação infantil imersos nas relações de consumo. Linha Mestra, n. 24, p. 523-525, jan/jul. 2014. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2016. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.