UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS VINICIUS CRANEK GAGLIARDO UMA “PARIS DOS TRÓPICOS”? PERSPECTIVAS DA EUROPEIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO NA PRIMEIRA METADE DO OITOCENTOS FRANCA 2011 VINICIUS CRANEK GAGLIARDO UMA “PARIS DOS TRÓPICOS”? PERSPECTIVAS DA EUROPEIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO NA PRIMEIRA METADE DO OITOCENTOS Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura. Orientador: Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França. FRANCA 2011 Gagliardo, Vinicius Cranek Uma “Paris dos trópicos”? : perspectivas da europeização do Rio de Janeiro na primeira metade do oitocentos / Vinicius Cranek Gagliardo. –Franca : [s.n.], 2011 146 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Jean Marcel Carvalho França 1. Europeização – História – Rio de Janeiro(RJ), séc. 19. 2. Viajantes estrangeiros – Brasil, séc. 19. 3. Medicina – História – Rio de Janeiro. 4. Policia – História – Rio de Janeiro. I. Título. CDD – 981.541 VINICIUS CRANEK GAGLIARDO UMA “PARIS DOS TRÓPICOS”? PERSPECTIVAS DA EUROPEIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO NA PRIMEIRA METADE DO OITOCENTOS Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História. BANCA EXAMINADORA Presidente:________________________________________________________________ Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França, UNESP/Franca 1º Examinador:____________________________________________________________ Profa. Dra. Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, UERJ 2º Examinador: ___________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira, UNESP/Franca Franca, 12 de dezembro de 2011. À minha família. AGRADECIMENTOS Durante o desenvolvimento desta dissertação, foram muitas as pessoas que, de algum modo, contribuíram para sua realização. Assim, não poderia deixar de agradecer: À minha família, pelo apoio e confiança durante todos esses anos. Ao professor Jean Marcel Carvalho França, cuja orientação foi fundamental para o resultado final deste trabalho. À professora Susani Silveira Lemos França, pela simpatia e gentileza com que sempre me recebeu em sua casa. Aos professores Nelson Schapochnik e Pedro Geraldo Tosi, pelos caminhos para o prosseguimento da pesquisa indicados durante o exame geral de qualificação. À professora Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e ao professor Ricardo Alexandre Ferreira, pelas valiosas sugestões dadas durante a defesa da dissertação. Ao amigo Renato Aurélio Mainente, pela leitura da dissertação e pelas sugestões. Ao amigo Marcelo Raimundo da Silva, pela ajuda e hospedagem durante a aquisição da documentação no Rio de Janeiro. Aos funcionários da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, do Arquivo Edgar Leuenroth/UNICAMP, da Biblioteca da Faculdade de Ciências Médicas/UNICAMP, da Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros/USP, da Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP e da Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais/UNESP-Franca. À CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -, pela bolsa concedida. “Rigorosamente falando, nada há que não possa ser feito de forma ‘civilizada’ ou ‘incivilizada’”. Norbert Elias, O processo civilizador: uma história dos costumes GAGLIARDO, Vinicius Cranek. Uma “Paris dos trópicos”? Perspectivas da europeização do Rio de Janeiro na primeira metade do Oitocentos. 2011. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2011. RESUMO Com o desembarque da corte portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, tornou-se necessário assegurar o funcionamento da monarquia lusitana em terras brasileiras. Constituir um novo império no Brasil significava dotar a cidade do Rio de Janeiro, escolhida como sede da monarquia, de contornos um pouco mais europeizados, tendo em vista a precariedade da urbe encontrada pela casa de Bragança. Durante a primeira metade do século XIX, entre as instituições fundadas no Rio de Janeiro com a finalidade de “civilizar” a cidade e seus habitantes, destacam-se a Intendência Geral de Polícia da Corte e a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, instituições cujos registros legaram a imagem de uma cidade cada vez mais civilizada. No entanto, esta perspectiva de um Rio de Janeiro em processo de modernização não foi a única construída pelos homens oitocentistas. Isso porque alguns viajantes estrangeiros, em suas narrativas de viagem, destacaram em detalhes a imagem de uma urbe de aspectos predominantemente coloniais e atrasados. Diante deste quadro, proponho analisar os discursos policial, médico-higiênico e dos viajantes estrangeiros com o objetivo principal de mapear a convivência de diferentes perspectivas da europeização do Rio de Janeiro construídas por aqueles que viveram ou passaram pela cidade durante a primeira metade do Oitocentos. Palavras chaves: Rio de Janeiro. europeização. polícia. medicina. viajantes estrangeiros. GAGLIARDO, Vinicius Cranek. Uma “Paris dos trópicos”? Perspectivas da europeização do Rio de Janeiro na primeira metade do Oitocentos. 2011. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2011. ABSTRACT With the arrival of the Portuguese court in Rio de Janeiro, in 1808, it became necessary to ensure the functioning of the Lusitanian monarchy on Brazilian lands. To establish a new empire in Brazil meant to provide the city of Rio de Janeiro, chosen as the seat of the monarchy, the contours a little more Europeanized, in view of the precariousness of the town found by the house of Bragança. During the first half of the nineteenth century, among the institutions founded in Rio de Janeiro in order to “civilized” the city and its inhabitants, stand out the General Stewardship of the Court Police and the Medical Society of Rio de Janeiro, institutions whose records bequeathed the image of a city increasingly civilized. However, this perspective of a Rio de Janeiro in the process of modernization was not the only one built by the nineteenth-century men. This is because some foreign travelers, in their travel narratives, highlighted in details the image of a city with aspects predominantly colonial and backward. Given this situation, I propose to analyze the police, the medical-hygienic and the foreign travelers’ discourses with the principal objective of mapping the coexistence of different perspectives of the Europeanization of the Rio de Janeiro built by those who lived or passed through the city during the first half of the Eight hundred. Keywords: Rio de Janeiro. Europeanization. police. medicine. foreign travelers. SUMÁRIO PERSPECTIVAS DA EUROPEIZAÇÃO ........................................................................... 10 1. POLÍCIA E MEDICINA NA COLÔNIA ........................................................................ 16 2. POLÍCIA E MEDICINA NO SÉCULO XIX .................................................................. 48 3. O OLHAR DOS VIAJANTES ESTRANGEIROS .......................................................... 88 UMA “PARIS DOS TRÓPICOS”?..................................................................................... 134 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 137 PERSPECTIVAS DA EUROPEIZAÇÃO “que a verdade é demonstrada de forma diferente da veracidade, e que esta não é, de modo nenhum, argumento a favor daquela!” Friedrich Wilhelm Nietzsche, Aurora: reflexões sobre os preceitos morais O alvorecer do século XIX marcou o início de um novo momento para a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, pois, em 1808, o príncipe regente Dom João e sua corte desembarcaram na capital fluminense. Tal acontecimento desencadeou profundos impactos sobre a cidade, que a partir de então deixou sua condição de possessão colonial para consolidar-se como a sede de uma monarquia europeia e de um vasto império. Malgrado o Rio de Janeiro já figurar entre as mais importantes cidades do reino português antes da transladação da família real para o Brasil, principalmente a partir da transferência do vice- reinado em 1763, quando desponta um novo tipo de preocupação com a cidade, a urbe encontrada pela casa de Bragança ao aportar no Novo Mundo não possuía ainda as condições necessárias para abrigar “dignamente” uma família real. Até então, a aglomeração urbana em que se localizava o principal porto da América portuguesa não podia ser considerada mais do que um mesquinho espaço citadino dotado de características pouco civilizadas, onde a sociedade caracterizava-se por seus traços essencialmente extra-europeus e patriarcais.1 De certo modo, quaisquer aspectos da cidade que se tornassem alvo da observação dos fidalgos recém-chegados certamente seriam marcados pela ausência dos padrões de modernização tanto de cidades como Paris e Londres, epicentros das medidas de urbanização que se desenvolviam na Europa, quanto de Lisboa, reconstruída após o terremoto de 1755. Desse modo, tornou-se imprescindível para a monarquia lusitana transformar esta cidade colonial ainda sem muitos atrativos na sede da coroa portuguesa, uma sede que deveria ser dotada de padrões de sociabilidade e de civilidade típicos de uma sociedade de corte do Velho Mundo. Assim, coube ao monarca edificar um aparato institucional capaz de adaptar o Rio de Janeiro ao ideal de civilização - ideal resultante do pensamento ilustrado - que se 1 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2003, p. 139. procurava estabelecer nas mais notáveis urbes europeias.2 Com essa finalidade, o então herdeiro do trono português criou em solo americano algumas instituições que deveriam atender a tais propósitos, como a Intendência Geral de Polícia da Corte e Estado do Brasil, instituída ainda no ano de sua chegada, 1808. A Intendência de Polícia foi o primeiro órgão criado pelo regente com fins civilizatórios, pois, além de zelar pela manutenção da ordem pública, era encarregada de promover a urbanização e a ordenação da cidade. Nos anos em que serviu a estes desígnios, a Intendência procurou levar a cabo uma verdadeira revolução no perfil da cidade: cuidou das questões relacionadas à salubridade pública, abriu ruas e praças, construiu pontes, casas e muitas obras essenciais à infraestrutura citadina, trouxe a iluminação pública, promoveu a inspeção sanitária dos navios que desejavam ancorar no porto da cidade, encarregou-se do recrutamento de indivíduos para desempenhar os afazeres policiais, além de desempenhar um sem número de outras atividades relacionadas ao policiamento da cidade, ou seja, à civilização do Rio de Janeiro.3 Entretanto, a Intendência Geral de Polícia, gradativamente, deixou de lado as tarefas ditas civilizatórias e passou a priorizar as intervenções de caráter repressivo voltadas para a seguridade pública, uma vez que outras instituições começaram a se ocupar das referidas medidas de civilização.4 Assim, ao ser transformada, em 1839, na Chefatura de Polícia, a Intendência se abdica, de uma vez por todas, das ocupações relacionadas à urbanização da cidade, resguardando apenas as atribuições relativas à tranquilidade pública e ao policiamento citadino.5 No decorrer do Oitocentos, entre as novas instituições que ganharam destaque no processo de civilização da cidade e de seus habitantes, encontra-se a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, instituição que, ao ser fundada em 1829, marcou o início do estabelecimento da medicina social no Brasil por meio da institucionalização da higiene pública.6 Encarregada de elaborar um projeto higiênico de intervenção no espaço urbano, a Sociedade propôs uma série de medidas administrativas relacionadas à ordem sanitária, 2 Cf. CARVALHO, Marieta Pinheiro de. Uma ideia de cidade ilustrada: as transformações urbanas da nova corte portuguesa (1808-1821). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003. 3 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. “A Intendência-Geral da Polícia: 1808-1821”. In: Acervo: Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, julho-dezembro, 1986, p. 187-204. 4 FRANÇA. Jean Marcel Carvalho. A higienização do povo: medicina social e alienismo no Rio de Janeiro oitocentista. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, 1990, p. 44. 5 RIOS FILHO, Adolfo Morales de los. O Rio de Janeiro imperial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000, p. 131. 6 MACHADO, Roberto et. al. Danação da norma: medicina social e construção da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 184-185. incorporando a cidade e a população ao campo do saber médico, o qual se consolidou, ao longo do século XIX, sempre vinculado à construção da ordem.7 Entre as medidas tomadas pela Sociedade destaca-se sua participação como consultora do governo: a instituição era encarregada de identificar possíveis focos anti-higiênicos na cidade e de notificá-los às autoridades, cobrando medidas e sugerindo soluções para a resolução dos problemas apontados. Mesmo ao ser transformada, em 1835, na Academia Imperial de Medicina, esta instituição manteve seu projeto de higienização e organização do espaço urbano até 1850, quando então foi criada a Junta Central de Higiene Pública, ocasião em que perde seu papel de conselheira do Estado em relação aos assuntos de saúde pública e ordenação social. Além da organização de instituições que visavam a modernizar a capital brasileira, o desembarque da família real instigou uma série de outras modificações no cotidiano do Rio de Janeiro, como as que resultaram de uma das primeiras medidas tomadas por Dom João: ainda na cidade de Salvador, primeiro local de parada da corte real ao atingir o Novo Mundo, o monarca abriu os portos do Brasil às nações aliadas à casa de Bragança. Com isso, a coroa aboliu o sistema colonial de restrições comerciais, concedendo aos países ligados à atividade mercantil portuguesa ampla liberdade comercial, bem como pôs fim a uma série de empecilhos referentes à entrada, circulação e permanência de estrangeiros no país, fatores que teriam contribuído para tornar o Rio de Janeiro “um ponto de encontro de estrangeiros distintos”.8 Estes europeus e norte-americanos que viajaram para a América tropical promoveram um novo “descobrimento”9 do território brasileiro, tornando-se responsáveis, por meio da publicação de seus livros de viagem, pela construção e divulgação de imagens do Brasil em seus países de origem. De modo geral, os visitantes se preocuparam em descrever desde a fauna e a flora brasileira até as particularidades da vida social, tanto rural como urbana, refletindo, por comparação com suas experiências vivenciadas em suas terras natais, sobre o cotidiano do grupo local encontrado.10 Diante de tal quadro, o objetivo principal deste trabalho é mapear a convivência de diferentes perspectivas da europeização do Rio de Janeiro, especificamente as visões da polícia, da medicina e dos viajantes estrangeiros, desde a criação da Intendência de Polícia, em 1808, até o momento em que a Sociedade de Medicina perde suas atribuições de 7 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1989, p. 28. 8 LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 70. 9 HOLANDA, Sérgio Buarque de. “A herança colonial - sua desagregação”. In: ______. (dir.). História geral da civilização brasileira: o Brasil monárquico. São Paulo: Difusão Européia do Livro, tomo II, v. 1, 1965, p. 11-13. 10 LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Livros de viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 15. ordenação urbana, em 1850, com o intuito de analisar como alguns homens deste período registraram as supostas transformações que deveriam dar ao Rio de Janeiro os contornos de uma “Paris dos trópicos”, como por vezes se referiram à cidade certos contemporâneos oitocentistas.11 Parto da hipótese de que os discursos policial e médico-higiênico, formulados nos registros da Intendência Geral de Polícia da Corte e da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, teriam arquitetado a imagem do constante progresso da urbe fluminense, em oposição à perspectiva construída pelos viajantes estrangeiros, que pintaram o Rio de Janeiro como uma cidade de aspectos predominantemente coloniais, exóticos e atrasados. Ao analisar diferentes perspectivas da europeização do Rio de Janeiro não procuro, de modo algum, identificar quais delas seriam mais ou menos próximas a uma suposta “realidade” do período. Ao contrário, pretendo, sim, evitar o condicionamento da “verdade” dos discursos investigados à “verdade” dos acontecimentos extra-discursivos. Assim, retomando a epígrafe nietzschiana citada no início, segundo a qual a veracidade não é, de modo nenhum, argumento a favor da verdade,12 as perspectivas da europeização da cidade interessam-me na medida em que procuraram se afirmar como legítimas durante a primeira metade do século XIX. Além disso, não acredito ser possível reconstituir plenamente as visões que serão analisadas a seguir, mas apenas que seja possível, através do corpus documental selecionado, avaliar como os grupos referidos construíram a realidade para si próprios, ou melhor, como procuraram definir o que deveria ou não ser aceito como verdadeiro. Em vista disso, pretendo elaborar uma narrativa histórica interessada na convivência de diferentes perspectivas da europeização do Rio de Janeiro durante a primeira metade do Oitocentos, perspectivas que, uma vez que tomo o discurso “como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”,13 procuraram se estabelecer como verdadeiras. Mas antes de analisar estas diversas visões edificadas durante o século XIX, proponho primeiramente uma reflexão acerca das condições do Rio de Janeiro colonial, no sentido de identificar qual a cidade encontrada pelos Bragança ao aportar nos trópicos; ou ainda, como São Sebastião foi visto, antes da chegada de Dom João, por aqueles que viveram ou estiveram no Brasil. Esta reflexão, inclusive, abre caminho para a problematização da existência ou não 11 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Literatura e sociedade no Rio de Janeiro oitocentista. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1999, p. 10. 12 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora: reflexões sobre os preceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 58. 13 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 55. de alguma tentativa mais efetiva de construção da ordem urbana antes do desembarque da corte portuguesa. Desse modo, o primeiro capítulo da dissertação terá como objetivo principal analisar a situação da polícia e da medicina no Rio de Janeiro antes de 1808, até porque é preciso que fique clara a mudança de estratégia e de atuação na sociedade destes dois campos de poder após o início do século XIX, precisamente o que justifica a escolha da polícia e da medicina como foco de análise da europeização da cidade. Mas, ao recuar a análise para o período colonial, com especial atenção para o tempo dos vice-reis, não intenciono “restabelecer uma grande continuidade para além da dispersão do esquecimento”,14 na busca infindável de uma “origem” colonial que permitiria compreender os discursos e as práticas policiais e médicas oitocentistas. Ao contrário, pretendo, na verdade, uma análise “genealógica”, nos moldes propostos por Nietzsche e Foucault, em que investigar os anos que precederam o desembarque da corte joanina visa a demarcar uma descontinuidade prática e discursiva que se estabeleceu a partir do Oitocentos nos campos da polícia e da medicina, identificando a “emergência” de novos significados, de novas forças que procuraram se apoderar de um “sistema de regras que não tem em si significação essencial e lhe impor uma direção, dobrá-lo a uma nova vontade, fazê-lo entrar em um outro jogo e submetê-lo a novas regras”.15 Nesse sentido, algumas questões merecem destaque no direcionamento do primeiro capítulo: qual o campo de atuação da polícia e da medicina antes da chegada de Dom João? Quais as preocupações da polícia e da medicina no período colonial? Em que condições urbanas viviam os moradores? Já havia alguma tentativa de ordenação da urbe? Qual a relação dos habitantes locais com a violência e a criminalidade urbanas? Há algum tipo de controle sanitário do Rio de Janeiro neste período? E, sobretudo, que percepção tiveram do Rio de Janeiro aqueles que estiveram na cidade antes da chegada da corte? Depois de refletir sobre a situação da polícia e da medicina no período colonial e sobre sua relação com a cidade, passarei, no segundo capítulo, à análise das transformações do Rio de Janeiro após 1808, a qual se concentrará, de maneira geral, na atuação da polícia e da medicina no processo de europeização de São Sebastião, tendo em vista suas novas atribuições, que suscitaram práticas de poder centradas em estratégias inéditas de controle e normatização do espaço social. Para isso, privilegiarei as instituições citadas anteriormente: a Intendência Geral de Polícia e a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro. Assim, pretendo 14 FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008, p. 21. 15 Ibid., p. 26. analisar a emergência de inovações na configuração da polícia e da medicina em relação ao modelo colonial, identificando o novo tipo de intervenção, característico destas duas instituições, que se estabelecerá no século XIX: o civilizatório. Em seguida, tratarei propriamente da análise dos registros dos editais da polícia e dos periódicos médicos, objetivando mapear o projeto de europeização da cidade a que estes dois tipos de poder se atrelaram durante o Oitocentos. No entanto, é preciso esclarecer que não é minha intenção construir uma história destas duas instituições. Apesar de avaliar parte de seus métodos de intervenção social, isto só será feito na medida em que reconhecê-los signifique identificar o modo pelo qual foram propostas as inovações urbanas pela Intendência e pela Sociedade. Finalmente, no terceiro capítulo, a análise incidirá sobre a visão dos viajantes estrangeiros do processo de urbanização e do grau de civilização do Rio de Janeiro construída em seus livros de viagem, visão que ganhará contornos bastante diferentes daqueles traçados pelas autoridades policiais e pelos médicos. Todavia, antes de tratar propriamente das descrições dos visitantes, farei uma análise sobre a presença estrangeira em São Sebastião, refletindo sobre os seguintes pontos: qual a relação dos visitantes com a cidade antes e depois de 1808? Qual a importância do aumento do número de estrangeiros que passaram a circular no Rio de Janeiro após o desembarque da corte? Quais são as características das narrativas de viagem antes e depois da abertura dos portos? Quais são os tipos de descrições presentes nos escritos dos viajantes? Em relação aos livros de viagem, estipulei como critério de seleção a sua não composição, originalmente, em língua portuguesa. Isto se deve ao fato de que a perspectiva dos viajantes que será mapeada no último capítulo deve atender à seguinte exigência: ao contrário das visões da cidade construídas pelas autoridades policiais e pelos médicos, a dos viajantes não deve ser formulada por nenhum português ou brasileiro que integraria, até 1822, o império lusitano e, após esta data, o Brasil independente. Procurei esquadrinhar aí, por um lado, a visão de homens que, na maioria das vezes, possuíam interesses no progresso do território - polícia e medicina - e, por outro lado, a perspectiva de indivíduos - viajantes estrangeiros - que, quase sempre, estavam apenas de passagem ou desejavam, simplesmente, conhecer e observar o até então incógnito Novo Mundo. 1. POLÍCIA E MEDICINA NA COLÔNIA “Então as famílias faziam os seus farnéis, convidavam os amigos e na tarde da véspera dos dias sem trabalho, lá iam para Mata-Cavalos ou para a Gamboa, como atualmente se vai para Petrópolis e para Nova Friburgo. Aqueles lugares eram solidões, retiros mal povoados, para onde não havia ruas, e apenas azinhagas difíceis, e tinham fama de perigosos pela lembrança dos roubos e assassinatos que algumas vezes ali fácil e impunemente se davam”. “A descrença da justiça pública inspirava a vindita particular e um homem honrado, perdendo a razão pela impunidade do perverso algoz de sua honesta filha, ia ser criminoso de assassinato”. “Bem poucos, bem raros eram aqueles que tinham suas famílias morando em chácaras, e entre esses contava-se Jerônimo, que provavelmente, como os outros, assim procedia pelo justo receio da insalubridade e das moléstias contagiosas que com freqüência eram o flagelo da cidade. Duas causas principais contribuíam para empestar a capital do Brasil: a vala que deu tão feio nome à rua que apenas ultimamente recebeu o de Uruguaiana, em lembrança de outra importante vitória, era vala aberta, imunda, que servia para escoamento das águas e para despejos, sendo, portanto, foco perene de infecções”. Joaquim Manuel de Macedo, As Mulheres de Mantilha: romance histórico Durante o período colonial, o sistema produtivo instituído pela coroa portuguesa, que privilegiou o desenvolvimento de uma economia essencialmente agrária e de exportação, acabou por desprestigiar a formação de núcleos urbanos no Brasil.1 Excetuando-se as cidades litorâneas em que se encontravam os principais portos, a cidade de São Paulo e as concentrações urbanas resultantes das zonas de mineração, que se tornariam as mais importantes urbes em fins dos tempos coloniais, a situação da América portuguesa era predominantemente rural, prevalecendo as grandes propriedades latifundiárias, comandadas pelas famílias senhoriais.2 Devido à política de ocupação do território praticada pela corte lusitana, que transferiu à iniciativa privada o encargo de povoar os trópicos, os colonos impuseram à terra a ordem 1 Como diz Sergio Buarque de Holanda, “não devia ser muito favorável às cidades a comparação entre a vida urbana e a rural”. Segundo o autor, “ainda durante a segunda metade do século XVIII persistia bem nítido o estado de coisas que caracteriza a nossa vida colonial desde os seus primeiros tempos. A pujança dos domínios rurais, comparada à mesquinhez urbana, representa fenômeno que se instalou aqui com os colonos portugueses, desde que se fixaram à terra”. HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 91. 2 COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 236. social que lhes pareceu mais adequada aos seus interesses, governando, em larga medida, de acordo com suas vontades durante os três primeiros séculos de colonização. À metrópole coube o papel de controlar os excessos dos colonos quando seus interesses destoavam dos da monarquia portuguesa. Desse modo, a família latifundiária, estruturada em torno dos senhores de engenho, acumulou, no decorrer do tempo, uma quantidade de poder que passou a rivalizar com o poder da coroa. Foi em razão desta situação que os mesmos senhores rurais criaram os primeiros núcleos urbanos no Brasil, imprimindo suas marcas em toda a estrutura citadina colonial, moldada como a extensão da grande propriedade e meio de afirmação das famílias rurais.3 Assim, durante o século XVIII, as cidades tornaram-se o principal centro de contestação dos interesses metropolitanos, obrigando Portugal, que até então havia sido bastante negligente em relação à política de povoamento e de urbanização do Brasil, a investir em medidas que reconduzissem as cidades à antiga ordem colonial, despertando um novo tipo de interesse pelas urbes de suas possessões da América.4 Na segunda metade do Setecentos, o exemplo mais significativo deste novo interesse da metrópole pelas cidades foi São Sebastião do Rio de Janeiro, interesse que não se deu somente pelo perigo da contestação vindo da cidade. Na verdade, desde o início do século XVIII, o Rio de Janeiro transformara-se no centro de controle dos objetivos da metrópole na América, protagonizando o papel de grande articulador da região centro-sul da colônia, tanto devido à sua posição estratégica nos conflitos fronteiriços com a Espanha, na região sul do Brasil, como pela situação de seu porto, o mais bem localizado para a exportação da produção aurífera.5 É esta centralidade do Rio de Janeiro que foi reforçada com a transferência da capital do Brasil e o estabelecimento da sede do vice-reinado,6 em 1763, para a cidade fluminense;7 posição central que o Rio de Janeiro manteria durante todo o século XIX, 3 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p. 36-39. 4 Ibid., p. 19-20. 5 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 84-85. 6 Foram os seguintes os sete vice-reis do Brasil: Antônio Álvares da Cunha, o Conde da Cunha (1763-1767); Antônio Rolim de Moura Tavares, Conde de Azambuja, (1767-1769); Luiz de Almeida Portugal Soares d’Eça Alarcão Silva Mascarenhas, 2° Marquês de Lavradio (1769-1779); Luiz de Vasconcelos e Souza (1779-1790); José Luiz de Castro, 2° Conde de Rezende (1790-1801); Fernando José de Portugal (1801-1806); e Marcos de Noronha e Brito, 8° Conde dos Arcos (1806-1808). BARRETO FILHO, Mello; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro: aspectos da cidade e da vida carioca (1565-1831). Rio de Janeiro: Editora S. A. A NOITE, 1939, p. 81. 7 Cabe ainda complementar que, de acordo com Maria Fernanda Bicalho, a transferência da sede do vice-reinado para o Rio de Janeiro não se deu apenas devido a sua posição na América portuguesa, mas em relação a sua centralidade em todo o Império português, dentro do quadro da geopolítica ultramarina e das disputas continentais europeias, uma vez que estas ameaçavam a própria preservação dos territórios coloniais no ultramar. Segundo Bicalho, “pela primeira vez na história da Europa os embates pioneiros e precursores dos conflitos continentais tiveram como palco privilegiado o espaço marítimo colonial. [...] Assim, em meados do século XVIII, os conflitos extracontinentais, ou seja, ultramarinos e coloniais, ganhavam vida própria, antecedendo e principalmente após o estabelecimento da monarquia na cidade, evento que desencadeou um processo de “reeuropeização” da América portuguesa, renovando e ampliando o contato do Brasil com a Europa e transformando sua paisagem social que se encontrava “com muita coisa de asiático, de mourisco, de africano: os elementos nativos deformados num sentido francamente oriental e não puramente português”.8 Com isso, ao recuar o olhar aos anos anteriores à transmigração da família real ao Brasil, sugere-se que a transferência do vice- reinado para o Rio de Janeiro, em 1763, inaugurou um novo tipo de preocupação com a cidade, pois, como afirma Jurandir Freire Costa, “datam dessa época os primeiros esforços sistemáticos para controlar a cidade e a população em função dos interesses do Estado”.9 A despeito de seu grau de urbanização, fato é que o Rio de Janeiro passou a ocupar uma posição estratégica durante todo o século XVIII, posição que determinou um novo tipo de atenção com esta região por parte da metrópole, dando início a um período, em comparação com o restante do período colonial, de maior cuidado com a cidade. No entanto, tal centralidade da urbe não atraiu somente a atenção de Portugal, atraiu também a cobiça de outras nações europeias, o que intensificou as ameaças aos interesses portugueses no Atlântico e à própria segurança da cidade e de seus habitantes, constantemente tomados pelo medo de uma invasão de seus domínios.10 Desde sua fundação, o Rio de Janeiro viveu cercado por rumores acerca da invasão de seu território por inimigos estrangeiros, motivo pelo qual a preocupação com a segurança externa esteve sempre presente na sua construção e desenvolvimento.11 Franceses, holandeses e ingleses foram considerados os principais inimigos a combater, pois eram potenciais invasores dos domínios ultramarinos lusitanos.12 Por ser uma cidade portuária e por seus maiores oponentes se encontrarem do outro lado do Atlântico, naturalmente o maior perigo para o Rio de Janeiro vinha do mar. No entanto, os portos coloniais portugueses no Brasil em parte determinando a própria guerra no território europeu, perdurando para além das negociações propriamente continentais”. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império, p. 70. 8 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2004, p. 430. 9 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar, p. 20. 10 BICALHO, Maria Fernanda. op. cit., p. 181. 11 Na verdade, a própria fundação da cidade foi decorrente da ocupação da região por estrangeiros, ocupação que ficou conhecida como a França Antártica. Comandados pelo vice-almirante da Bretanha, Nicolau Durand de Villegaignon, os franceses se estabeleceram na região da Guanabara em 1555. Depois de algumas tentativas de rever o território, Portugal enviou uma expedição para expulsar os franceses do Brasil e dar início a colonização do local. Desse modo, Estácio de Sá, comandante da frota, funda, em 1° de março de 1565, a cidade do Rio de Janeiro, dando início à expulsão dos franceses, que só se concretizaria em 1567. CRULS, Gastão. Aparência do Rio de Janeiro: notícia histórica e descritiva da cidade. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, v. 1, 1965, p. 27-47. 12 CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 42. fizeram-se parada obrigatória para qualquer embarcação que velejasse em direção às Índias, uma vez que as condições de navegação impostas pelos ventos e correntes marítimas deslocavam as naus rumo à América, fazendo com que aqueles navios que necessitassem de água limpa, mantimentos, tratamento dos doentes, reparos estruturais por danos causados pelas longas travessias ou qualquer outra providência indispensável ao prosseguimento da viagem estacionassem nos portos das cidades brasileiras por alguns dias.13 É neste ponto que se instaurava o perigo, ou melhor, o medo: a cada aparição de um ou mais navios na entrada da baía de Guanabara, a população do Rio de Janeiro era acometida pelo temor de um ataque estrangeiro; como salienta o historiador Nireu Cavalcanti: [...] por isso, a cada embarcação que apontava na entrada da baía, a primeira reação era de ansiedade e dúvida: quem vinha lá? Amigo ou inimigo? Se embarcação inimiga, reacendiam-se o medo, a angústia e o pânico; se amiga, o alívio e a alegria. Nesse balouço dos humores das relações diplomáticas, nesse pendular sentimento de amizade e ódio, cresceu a população, e com ela a cidade. Não é outra a razão de, na encruzilhada de um partido urbanístico a ser tomado, ter prevalecido o viés militar da fortificação e da defesa; e, no planejamento das políticas e das ações públicas, ter dominado a preocupação com a segurança interna e externa da região.14 Desse modo, o Rio de Janeiro teve sempre como pano de fundo do seu crescimento o cuidado com a defesa e a segurança da região citadina frente aos possíveis ataques dos inimigos dos portugueses. O seu projeto urbanístico, desde os primórdios da colonização, sempre contemplou a construção de fortalezas e muralhas espalhadas por pontos estratégicos da malha urbana, bem como a organização de regimentos e tropas militares, aspectos que despertaram ainda mais atenção após as invasões francesas de Duclerc (1710) e Duguay- Trouin (1711). Isso ocorreu porque, se na primeira invasão parecia que o Rio de Janeiro era capaz de suportar as investidas estrangeiras, vencendo e aprisionando Duclerc e seus aproximadamente mil comandados, o mesmo não se deu durante o ataque de Duguay-Troin: melhor preparado, com seus dezessete navios e cinco mil homens bem armados, o francês sitiou a cidade por cerca de quarenta dias. Assim, em razão do constante medo de uma nova invasão, a São Sebastião do século XVIII foi aparelhada pela metrópole com um sistema defensivo muito mais portentoso do que aquele que havia até então nas cidades coloniais brasileiras; o que não significa, necessariamente, que tal política tenha sido eficiente.15 13 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império, p. 113. 14 CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista, p. 42. 15 CRULS, Gastão. Aparência do Rio de Janeiro, v. 1, 1965, p. 133-146. Quando o Rio de Janeiro tornou-se sede do vice-reinado, em 1763, apesar dos esforços empreendidos durante o Setecentos para dotar a urbe de um poderio militar maior em relação ao encontrado por Duclerc e Duguay-Troin, as defesas locais ainda eram consideradas frágeis para deter um ataque inimigo. O primeiro vice-rei, Conde da Cunha, descreve, em sua correspondência com Portugal, a decadência das fortificações encontradas quando tomou posse do governo, afirmando que visitou “as fortalezas deste porto e todas elas precisam de reforma, assim nas muralhas como nos reparos de artilharia”.16 A mesma precariedade estrutural podia ser percebida na organização das tropas, que enfrentavam dois problemas principais: a falta de gente e de disciplina. O Conde da Cunha afirma que, nos arredores do Rio de Janeiro, não há: [...] tropa que as possa defender de nossos inimigos porque entre os oficiais destes regimentos não acho nem um só que tenha completo préstimo para o ofício, todos são moles, preguiçosos e ignorantes, e com tal aversão à vida militar que todos (ainda aqueles mais graduados) terão por ventura escusarem-se do real serviço; os soldados têm a mesma falta, assim porque todos são brasileiros, como porque só os homens inúteis e inábeis são os que se podem meter nos regimentos.17 O vice-rei ainda complementa: [...] o Brasil não pode esperar que as potências da Europa nossas aliadas nos venham auxiliar a tempo oportuno, nem se pode defender com os cariocas porque são moles e faltos de valor, além do que servem com tal violência que nem um só homem quer ter este modo de vida, nem houve nem um só que me não atormentasse para lhe mandar dar baixa, pelo que V. Ex. me fará a mercê de me dizer se posso esperar socorro desse reino ou se devo tirar recrutas deste continente, que sendo assim não posso assegurar a Sua Majestade esta importante conquista, porque estou certo que nem um só soldado acharei ao pé de mim, se me forem necessários.18 A falta de soldados e de disciplina das tropas encontradas pelo Conde da Cunha, somadas ao terrível estado em que se mantinham as fortalezas, foram alvo de grande preocupação até o final do vice-reinado. Mas por que dedicar estas linhas à análise da situação militar e de defesa do Rio de Janeiro? A resposta é simples: as forças militares foram extremamente importantes não apenas para a segurança externa de São Sebastião, mas também para a sua 16 “Correspondência do Conde da Cunha”. In: Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 254, jan-mar 1962, p. 260. 17 Ibid., p. 299. 18 Ibid., p. 278. ordenação interna, uma vez que a própria instabilidade externa gerava problemas e desordens no cotidiano da cidade. Antes de tudo, é preciso deixar claro que foi somente com a criação, pelo príncipe regente Dom João, da Intendência Geral de Polícia da Corte e Estado do Brasil e do cargo de Intendente Geral de Polícia, em 1808, que as atribuições policiais no Rio de Janeiro, que até então eram exercidas por diversas autoridades, puderam ser centralizadas.19 Isso significa que a polícia, na forma da instituição como a conhecemos hoje, com todo o campo de atuação que lhe compete e todas as obrigações que lhe são devidas, não existia até então. Durante o período colonial, o policiamento não era profissionalizado e confundia-se com a organização militar, o que quer dizer que a segurança interna da cidade estava ou nas mãos dos quadrilheiros20, espécie de esboço do que viria a ser a polícia, ou nas mãos de civis desarmados, contratados pelo governo municipal para fazer o patrulhamento regular de vigilância, ou, ainda, nas mãos dos regimentos de tropas militares, em tempos e ocasiões em que a força armada profissionalizada se fazia necessária.21 Além dos citados, havia os capitães-mores de estradas e assaltos, vulgarmente conhecidos como capitães-do-mato, e os alcaides, oficiais de justiça encarregados de efetuar prisões, ambos ligados à Câmara Municipal.22 Mas os problemas militares e de defesa externa da cidade, como dito anteriormente, conjugavam-se com a desordem nas ruas. A simples aproximação de um navio desconhecido no porto carioca, ou apenas um boato de que alguma nau inimiga dirigia-se ao Rio de Janeiro, já era motivo de insegurança por parte dos fluminenses. E não somente por parte dos homens de governo, que tinham a preservação da colônia entre suas atribuições fundamentais, mas por parte de toda a população. O medo de um ataque estrangeiro era algo extremamente presente no imaginário dos habitantes locais, podendo até causar momentos de pânico e subversão da ordem interna, ainda mais pela lembrança das invasões francesas de 1710 e 1711. Tal sensação de insegurança tinha suas razões de ser: primeiramente, porque o ataque e a posterior ocupação do território por Duguay-Troin “em nada influiu na organização 19 BARRETO FILHO, Mello; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro, p. 161. 20 “Quadrilheiros eram oficiais inferiores de justiça, criados em Lisboa em 1603 e que existiram em Portugal até fins de 1700. Formavam a polícia civil, diligenciavam sobre a descoberta de furtos e investigavam, na zona de sua jurisdição, a existência de vadios, pessoas de má reputação, casas de tavolagem, alcouces, etc. Era-lhes facultado também efetuar prisões de pessoas envolvidas em contendas e conflitos ocorridos em lugares públicos, podendo penetrar em qualquer casa, mesmo nas de pessoas nobres e poderosas, afim de capturarem delinqüentes que porventura nelas estivessem homiziados”. Ibid., p. 27. 21 HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 43-44. 22 NARO, Nancy; NEDER, Gizlene; SILVA, José Luiz Werneck da. A polícia na Corte e no Distrito Federal. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, 1981, p. 11. policial da cidade, que continuou a mesma, isto é, deficiente e sem preparo, [sendo que] consideravelmente aumentou o número de crimes”;23 em segundo lugar, porque a péssima conservação das fortalezas e a ineficiente organização dos regimentos militares continuavam a reforçar a sensação de fragilidade da cidade.24 Assim, durante todo o século XVIII, ocorreram vários conflitos entre os habitantes locais e as tripulações estrangeiras que, antes de atingirem seus destinos finais de viagem, desembarcavam em São Sebastião; como ressalta Maria Fernanda Bicalho: [...] a própria cidade era repositório de todo um amplo mundo da desordem, sensível aos discursos matizados por uma certa xenofobia, ávido por um pretexto para poder se manifestar naquilo que melhor sabia fazer: perturbar a ordem e a tranqüilidade pública. [...] Eram comuns, portanto, as desordens provocadas pela circulação na cidade de oficiais, soldados e marinheiros das mais diferentes nacionalidades. De pequenas altercações de rua, troca de insultos e correrias, chegavam a incidentes mais graves, provocados por cutiladas mortais e assassinatos traiçoeiros. Os crimes e mortes decorrentes desses episódios eram tão freqüentes que levaram os oficiais da Câmara, já no final do século XVIII, a escrever diretamente ao secretário de Estado afirmando que nos últimos dez anos [1789-1799] a “gente de mar” havia cometido mais crimes e assassinatos do que os moradores daquele distrito. Alegavam que, apesar dos processos militares e dos conselhos de guerra instaurados para julgá-los, os delitos continuavam, provocando a total falta de sossego e de segurança pública na cidade.25 Um episódio ocorrido no tempo do primeiro vice-rei, Conde da Cunha, precisamente em 21 de junho de 1767, ilustra bem a insegurança dos fluminenses e os conflitos travados entre os moradores locais e os estrangeiros: com a finalidade de suprir a carência de víveres em que a embarcação se encontrava para prosseguir sua viagem às Índias Orientais, entrou na baía de Guanabara a fragata real francesa Boudeuse, comandada pelo capitão Louis Antoine de Bougainville. O aportar deste navio francês, que por si só já seria motivo de preocupação dos habitantes, instigou ainda mais a desconfiança da população, já abalada por causa de outro acontecimento ocorrido poucos dias antes: o capelão de outra fragata francesa, a Etoile, embarcação que havia atracado no porto carioca em 15 de junho com a finalidade de esperar a Boudeuse, havia sido assassinado. Desde os tempos de Duclerc e de Duguay-Troin, somente a presença de um navio francês já era razão suficiente para suspender a tranquilidade da urbe. O que dizer então do assassinato de um capelão e do aparecimento de mais um navio da França em águas fluminenses? O fato é que, durante a permanência de Bougainville no Rio de 23 BARRETO FILHO, Mello; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro, p. 71. 24 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império, p. 259-260. 25 Ibid., p. 262-263. Janeiro, o vice-rei ordenou que se reforçasse o policiamento das ruas, inclusive durante a noite, aumentando também a vigilância de seu palácio.26 As medidas preventivas, porém, não pararam por aí; como relata o próprio capitão Bougainville: “soubemos que a patrulha fora dobrada e que ordens tinham sido dadas no sentido de deter todo e qualquer francês que fosse encontrado nas ruas da cidade após o pôr-do-sol”.27 Além de Bougainville, que conferiu alguma atenção em sua narrativa de viagem para o assassinato do capelão da Etoile, muitos foram os visitantes que mencionaram a violência urbana como uma prática comum no Rio de Janeiro. De acordo com o memorialista Luiz Edmundo: [...] o fato é que tinham de que se impressionar seriamente os estrangeiros que visitavam a capital da colônia, e onde, por qualquer coisa se feria, por qualquer coisa se matava. As facas e os punhais andavam, sempre, fora das bainhas; as sarjetas, empoçadas de sangue. Choviam alvarás proibindo os capuzes, o uso de facas, de punhais, de choupas e sovelas. Ninguém queria saber de alvarás, todos se embuçavam, todos traziam entre as dobras da saragoça, no mínimo, o seu meio palmo de aço brilhante e rijo. Não se esperava sequer pela cumplicidade da treva para arrancar a vida ao próximo: à luz do dia, sob as janelas do palácio do vice-rei, mata-se o capelão do Etoile. Duclerc é assassinado na casa da Rua General Câmara por quatro embuçados, apesar da guarda numerosa que o cerca. Turba multa de desordeiros e assassinos.28 Mas a desordem das ruas não tinha sua origem apenas no conflito entre os habitantes locais e os visitantes estrangeiros. Simples desentendimentos, confusões entre escravos, intrigas amorosas, roubos, vingança, qualquer que fosse o motivo não era de espantar que a querela terminasse em assassinato. Ainda mais com o sistema judiciário29 vigente, em que a justiça era sinônimo de sentença, constituindo-se de maneira “irregular e falha, pessoal e feroz, cera que se amolda à vontade pessoal do juiz, que, quando não é arbitrário, é ignorante, e, quando não é ignorante, é venal. Há exceções, claro. Essas, porém, são bem raras”.30 Desse modo, o que se viu no Brasil colonial foram mais sentenças do que leis, o que sugere o caráter 26 BARRETO FILHO, Mello; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro, p. 82-83. 27 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1531-1800. Rio de Janeiro: Ed. UERJ/José Olympio, 1999, p. 121. 28 EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. Rio de Janeiro: Editora Aurora, v. 2, 1951, p. 467. 29 A organização judiciária no vice-reinado era centralizada nas mãos do vice-rei, que presidia a Relação, espécie de conselho que estipulava e regularizava os atos de justiça. Além do vice-rei, a Relação era composta por um chanceler, por nove ou onze desembargadores, um ouvidor do Crime, um ouvidor da Comarca, um juiz de fora do Cível e Crime, e um juiz dos Órfãos, com os relativos escrivães e oficiais. Cf. SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir à história do reino do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zelio Valverde, 1943, p. 55-56. 30 EDMUNDO, Luiz. op. cit., p. 451. essencialmente punitivo da justiça colonial, que não se preocupou com a prevenção, mas em sentenciar os delitos e crimes cometidos pelos infratores; sentenças estas, muitas vezes, arbitrárias, pois a lei ou punição que caberia a determinado crime poderia ser aplicada de modo diferente, dependendo dos benefícios e privilégios pessoais de cada um dos envolvidos. O que quer dizer, por exemplo, que um marido que “encontrasse a mulher nos braços de um sedutor, podia matar, licitamente, qualquer dos dois. Apenas se o sedutor era um desses privilegiados, já a lei mudava, punindo o marido, que matara sem ter olhado a quem”.31 O fato é que muitos dos que viveram ou passaram pelo Rio de Janeiro durante o vice- reinado não deixaram de registrar a violência das ruas, como é o caso dos viajantes estrangeiros. Entre estes visitantes, o capitão inglês James Cook, que esteve no Rio de Janeiro em 1768, descreve “uma cena assaz significativa” vista por um de seus tripulantes, o cozinheiro de sua embarcação: “dois homens pareciam conversar amigavelmente, quando subitamente, um deles sacou um canivete e desferiu um golpe no peito do outro; como a vítima resistiu a esse primeiro golpe e não foi ao chão, o criminoso desferiu um segundo e pôs-se em fuga”.32 O inglês ainda comenta que alguns negros que estavam próximos à cena do crime perseguiram o agressor, mas seu cozinheiro não obteve nenhuma informação se o fugitivo teria ou não sido apanhado. Também John White, cirurgião-mor da esquadra que se dirigia para Botany Bay, que atracou no porto carioca em 1787, relata que ao visitar o hospital da cidade, na companhia do cirurgião geral da Armada, [...] trouxeram-nos um soldado que tinha sido ferido do lado direito do abdome. O instrumento cortante tinha penetrado o órgão, mas não chegara a atingir o intestino. Pela forma e pela natureza do ferimento, era possível perceber que ele tinha sido causado por um golpe de estilete. Após os primeiros curativos terem sido feitos, o acidentado contou-nos que, na noite anterior, ele tivera uma querela com dois camaradas por causa de uma mulher e que um deles, aproveitando-se da escuridão, o tinha golpeado com um instrumento pontiagudo. A partir dessa história, deduzi que os assassinatos eram bastante comuns no Brasil.33 Os crimes envolvendo intrigas amorosas são frequentemente mencionados pelos viajantes. Samuel Holmes, soldado que navegava a bordo do navio britânico Hindostan, que chegou ao Rio de Janeiro em 30 de novembro de 1792, alerta para o perigo resultante da combinação entre o olhar severo dos patriarcas, que isolavam suas mulheres e filhas do mundo externo aos domínios da casa, e a inclinação das mulheres da América “ao amor”. Diz 31 EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis, v. 2, 1951, p. 468. 32 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro colonial, p. 135. 33 Ibid., p. 187. o soldado que “é difícil e mesmo perigoso obter os seus favores. O ciumento sexo oposto as vigia de perto e pune, com extremo rigor, a mais pequena falta”. Mas também adverte que “o viajante, porém, se está disposto a trilhar certos caminhos e despender algum dinheiro, consegue divertir-se no Rio de Janeiro”.34 Partilha desta mesma opinião o cirurgião inglês George Hamilton, que passou pela cidade fluminense no início de 1791 e afirmou: [...] as intrigas amorosas, contudo, vêm sempre acompanhadas de grandes perigos. Aqui, os estiletes são muito utilizados, os assassinatos são frequentes, os homens são possuídos por um ciúme sanguinário e as mulheres, que nunca aparecem em público sem a proteção de um véu, são muito dadas à galanteria. Bougainville, o circunavegador francês, quando passou por este porto, teve seu capelão assassinado em virtude de uma querela amorosa.35 Também não é raro encontrar nos relatos dos estrangeiros alguma menção aos roubos que se praticavam no Brasil. Como narra Friedrich Ludwig Langstedt, que desembarcou em São Sebastião em abril de 1782, “a populaça local é um tanto ladra”.36 Parte desta preocupação recaía sobre os escravos e vadios que habitavam a urbe, uma vez que, como diz Sir George Leonard Staunton, secretário da embaixada inglesa que se dirigia à China em missão diplomática comandada pelo Lorde George Macartney e que esteve no Rio de Janeiro em fins de 1792, “procura-se coibir a prática do roubo e da mentira entre os escravos brasileiros, mas parece que esses vícios pertencem à sua própria condição”.37 Outro integrante do navio de Staunton, o intendente da missão diplomática John Barrow, afirma que a prática de impor um soldado para acompanhar os estrangeiros que desembarcavam em solo fluminense “tem como objetivo protegê-los dos roubos e agressões perpetrados por negros e vagabundos que se escondem nas imediações da cidade”.38 Em linhas gerais, este é o quadro da criminalidade urbana encontrado por aqueles que estiveram na cidade de São Sebastião durante o vice-reinado, ou, ao menos, o quadro pintado, em sua maior parte, por alguns dos viajantes estrangeiros que passaram pelo Rio de Janeiro neste período. Diante deste cenário, marcado pela precária organização das defesas externas e pelo alto índice de violência referenciado pelos viajantes, qual era a atitude assumida pelas 34 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1582-1808. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p. 254. 35 Ibid., p. 242. 36 Id. Visões do Rio de Janeiro colonial, p. 168. 37 Ibid., p. 204. 38 Ibid., p. 218. autoridades que governavam a urbe frente à inexpressiva estrutura militar, à criminalidade das ruas e à facilidade com que a tranquilidade urbana era abalada e transformada em desordem? Entre os vice-reis, um merece destaque pela tentativa de controlar esta situação e de organizar a estrutura militar e policial da cidade: o Marquês de Lavradio, que governou a colônia entre 1769 e 1779. Isto porque foi Lavradio, por meio da militarização da população, realizada com a criação de “terços auxiliares”39, espécie de milícia civil, que procurou incorporar parte dos civis fluminenses à ordem militar, estabelecendo um dispositivo disciplinar de controle da cidade que combatesse os três grandes inimigos da metrópole de uma só vez: o inimigo externo, a indisciplina nas ruas e a desordem política impulsionada pela contestação do projeto colonial por parte da nova elite fluminense em formação, que estabelecia seu novo foco de poder no mundo urbano.40 Diz o próprio Marquês de Lavradio: [...] além de V. Ex. ver, pelo que tenho a honra de repetir-lhe, a utilidade de que podem ser os terços auxiliares para a defesa e segurança deste Estado, devo dizer a V. Ex., que para mim é uma razão mais forte para formar com todos os povos, assim os terços auxiliares com todos aqueles indivíduos que estão em idade, forças e agilidade para poderem tomar armas, como as das ordenanças, com aqueles que estão mais impossibilitados; e vem a ser a razão, que é reduzir todos estes povos em pequenas divisões a estarem sujeitos a um certo número de pessoas, que se devem escolher sempre das mais capazes para oficiais, e que estes gradualmente se vão pondo no costume da subordinação até chegarem a conhecê-la todos na pessoa que S. M. tem determinado para os governar. Estes povos em um país tão dilatado, tão abundante, tão rico, compondo-se a maior parte dos mesmos povos de gentes de pior educação, de um caráter mais libertino, como são negros, mulatos, cabras, mestiços e outras gentes semelhantes, não sendo sujeitas mais que ao governador e aos magistrados, sem serem primeiro separados e acostumados a conhecerem mais junto, assim outros superiores que gradualmente vão dando exemplo uns aos outros da obediência e respeito, que são depositários das leis e ordens do soberano, fica sendo impossível o poder governar sem sossego e sujeição a uns povos semelhantes. As experiências o tem mostrado, porque em todas as partes aonde [não] tem havido de reduzir os povos a esta ordem, tem sido as desordens e inquietações imensas, e ainda depois de cansado o executor da alta justiça de fazer execuções nos a quem a lei tem condenado pelos seus delitos, nem isto tem bastado para eles se diminuírem, e pelo contrário se tem visto que naquelas partes onde os povos estão reduzidos a esta ordem, tudo se 39 “Os terços eram tropas auxiliares do corpo regular do exército e caracterizavam-se pela menor exigência de disciplina física e ocupação do tempo dos soldados. A solução dos terços, do ponto de vista estritamente militar, respondia às fugas dos indivíduos ao alistamento. Além do mais representava uma grande economia para o reino, pois, ao contrário das tropas regulares, os recrutas fardavam-se às próprias custas, não recebiam soldo e pagavam as armas que lhes eram fornecidas. A população preferia servir nos terços por motivos de prestígio e poder, pelo menor tempo que lhes era exigido e pelas eventuais vantagens econômicas de que podiam usufruir”. COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar, p. 24. 40 Ibid., p. 23. conserva com muito maior sossego, e são menos frequentes as desordens, e são mais respeitáveis as leis.41 Assim, Lavradio, por um lado, aumentou as tropas, ampliando as defesas da cidade frente a um inimigo externo; por outro, colocou a população sob as normas da disciplina militar, reduzindo os conflitos urbanos e reintegrando os habitantes em torno da hierarquia metrópole- colônia. Mas o que foi posto em cheque pela militarização proposta por Lavradio? Na verdade, é projetado um novo tipo de entendimento acerca do sistema jurídico-policial, cuja proposta, que visava à própria estratégia de repressão colonial, era pautada pela prevenção e integração. Isso porque, até então, polícia e justiça eram essencialmente punitivas, uma vez que a ideia de prevenção do delito ainda não existia.42 Desse modo, ficou claro para Lavradio que a “condição para que a dominação se mantivesse era a partilha do poder. A população engajada nas tropas auxiliares extraía benefícios econômicos (proteção nos negócios, preservação do tempo em função dos interesses privados) e de poder (participação na repressão)”.43 Mas não foi só isso: a militarização dos habitantes colocou os locais em contato constante com o poder, habituando a população a respeitar hierarquias que, começando em pequenos grupos, se ampliaria até a autoridade máxima da figura do rei, cada vez mais contestada na colônia. Assim, “a militarização atualizava permanentemente o poder, ora submetendo os indivíduos à autoridade de maneira contínua, ora mostrando-lhes como o poder premia os que dele participam”.44 O projeto de ordenação militar da população, nesse sentido, não visava à punição, mas, sim, educar a população, apresentando novas possibilidades e estratégias para a eficácia do poder político e para o controle da vida social e da desordem das ruas.45 No entanto, todo este projeto arquitetado por Lavradio não conseguiu criar mecanismos para se concretizar, transferindo para o século XIX a desordem urbana dos tempos coloniais; como afirma o já citado Jurandir Freire Costa: [...] a militarização, contudo, permaneceu ilhada e paralisada em meio aos dispositivos punitivos da Colônia. A timidez de sua expansão explica-se pelas limitações intrínsecas aos seus mecanismos de controle da população e a restrição que o sistema sócio-econômico da Colônia lhe impunha. [...] 41 “Relatório do Marques de Lavradio, vice-rei do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luiz de Vasconcellos e Sousa, que o sucedeu no vice-reinado”. In: Revista Trimestral de História e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 16, jan. 1843, p. 424-425. 42 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar, p. 22. 43 Ibid., p. 26. 44 Ibid., p. 26. 45 MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978, p. 115. Além do mais o serviço militar retinha os homens por um tempo muito curto. Fora das tropas, eles voltavam a conviver com a indisciplina urbana. [... Mas] um motivo mais forte inibia o alcance do dispositivo militar. Na Colônia, o poder político era dividido entre o Estado, as famílias e o clero. As relações destes três poderes sempre foram tensas, sobretudo na segunda metade do século XVIII. Naquele período, os antagonismos entre os representantes da metrópole, clero e famílias brasileiras alcançaram pontos altamente delicados. [...] Neste sentido, armar a população representava um grande risco. A militarização, embora eficiente, não podia ultrapassar certos limites, sob pena de gerar resistência ao poder.46 Desse modo, como manter os indivíduos dentro da ordem requerida pelos governantes sem cair na armadilha de uma insurreição armada? O século XIX trouxe algumas soluções, que serão discutidas no próximo capítulo, a saber: tanto um novo tipo de organização da polícia, que deixou de se preocupar somente com as questões punitivas oriundas da violência urbana para integrar-se num projeto mais amplo de urbanização e controle social, quanto novas estratégias de normatização da sociedade, caso da medicina social e suas táticas higiênicas, que complementaram o novo tipo de abordagem e de projeto urbanístico desenvolvido pela polícia. Mas se a medicina social e seus mecanismos de controle somente se afirmaram no Brasil durante o Oitocentos, que tipo de medicina era praticada antes do desembarque de Dom João no Rio de Janeiro? Dito de outro modo, qual a relação entre a medicina e a sociedade neste período, relação esta que se modificaria a partir do século XIX com o advento da medicina social? O projeto de colonização instituído pela metrópole, como mencionamos, tomou novos rumos em meados do século XVIII, com um interesse maior pelas cidades e a adoção de novas estratégias, tanto para o controle da vida social quanto para manutenção do pacto metrópole-colônia. Assim, no campo da medicina, durante o século XIX, estabeleceu-se no Brasil uma nova política de saúde de abrangência social, com o deslocamento de seu objeto de intervenção do indivíduo para a sociedade, processo este que teve seu desenvolvimento na Europa desde o Setecentos.47 A higiene pública foi o grande pilar desta nova política de 46 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar, p. 27. 47 Michel Foucault refere-se a três etapas na formação da medicina social na Europa: a “medicina de Estado”, que se desenvolveu, sobretudo, na Alemanha, desde o início do século XVIII, “com a organização de um saber médico estatal, a normalização da profissão médica, a subordinação dos médicos a uma administração central e, finalmente, a integração de vários médicos em uma organização médica estatal”; a “medicina urbana”, que se desenvolveu na França em fins do século XVIII e que “não é verdadeiramente uma medicina dos homens, corpos e organismos, mas uma medicina das coisas: ar, água, decomposições, fermentos; uma medicina das condições de vida e do meio de existência”, com o controle dos espaços comuns e dos lugares de circulação; e a “medicina dos pobres”, desenvolvida na Inglaterra, no início do século XIX, “que é essencialmente um controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas”. FOUCAULT, Michel. “O nascimento da medicina social”. In: ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 79 et. seq. saúde, a qual estabeleceu um novo momento para a medicina no Brasil - nomeadamente o de constituição da medicina social -, ao distinguir-se do modelo praticado desde os primórdios da ocupação portuguesa da América.48 Mas que tipo de medicina era esta praticada nos três primeiros séculos antes do estabelecimento da medicina social? Desde o início da colonização do Brasil, os portugueses e os demais povos que vieram para os trópicos trouxeram consigo um grande número de doenças, desconhecidas dos nativos da região. Assim, a partir do século XVI, a América portuguesa foi sempre alvo das mais variadas epidemias e endemias;49 como explica Lycurgo Santos Filho: [...] as entidades patológicas existentes no momento da descoberta, tais como a bouba ou piã, o bócio endêmico, parasitoses e dermatoses várias, disenterias e talvez o paludismo e a lues - o que ainda não se provou - outras vieram ajuntar-se, carregadas pelos brancos colonizadores e pelos negros escravos. O branco veiculou varíola, o sarampo, a escarlatina, a tuberculose, a lepra, as doenças venéreas, parasitoses como a sarna e outras afecções, enquanto do continente africano provieram a filariose, a dracunculose ou bicho-da-costa, a febre amarela, a ancilostomíase e outras verminoses, o tracoma, o maculo, o ainhum ou mal perfurante plantar e o gundu ou exostose para-nasal. Somem-se a essas as diversas afecções dos aparelhos do corpo humano e estará mais ou menos delineada a patologia brasileira nos três primeiros séculos.50 Apesar do acentuado e diversificado volume de doenças existente, a medicina que se praticou no Brasil foi pautada pela carência de médicos51 e pela proliferação de todo tipo de curandeirismo. Antes do século XIX, não era possível encontrar, dentro do aparelho colonizador, a relação que hoje tanto parece nítida entre saúde e população, pois a administração portuguesa não se dedicou a construir uma sociedade na qual o combate às causas das doenças e a manutenção de um estado contínuo de saúde coletiva fosse uma preocupação. Diferentemente do que se verá a partir do Oitocentos - quando a medicina, atuando como dispositivo para o exercício do poder pelo Estado, incorpora o social, trazendo para seu campo de saber o mundo urbano e intervindo positivamente sobre as cidades e seus habitantes -, os primeiros séculos de colonização serão pautados pela ausência da ideia de 48 MACHADO, Roberto et al. Danação da norma, p. 18-19. 49 RIBEIRO, Lourival. Medicina no Brasil colonial. Rio de Janeiro: GB, 1971, p. 15-32. 50 SANTOS FILHO, Lycurgo. “Medicina colonial”. In: HOLANDA, Sergio Buarque de (dir.). História geral da civilização brasileira: a época colonial. São Paulo: Difusão Européia do Livro, tomo I, v. 2, 1960, p. 151. 51 Já durante o vice-reinado, em 1798, era apenas quatro o número de médicos atuando no Rio de Janeiro. NAVA, Pedro. Capítulos da história da medicina no Brasil. São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2003, p. 47. prevenção, quando a medicina ocuparia somente a função de uma atividade de cura, sempre como uma solução a posteriori.52 A saúde na colônia não foi tratada pela metrópole como uma prioridade. A perspectiva em vigor era muito mais combater o mal a despeito de cultivar o bem, o que não significa que não tenha existido uma atenção com a saúde dos colonos, já que era deles mesmos que dependia a manutenção e a preservação da possessão portuguesa, mas, sim, que a saúde “não aparece como algo que possa ser produzido, incentivado, organizado, aumentado. Embora encerre o máximo de positividade, só é percebida negativamente pela presença da realidade representada pela doença”.53 Desse modo, a falta de incentivo à saúde trouxe algumas consequências para a medicina praticada nos trópicos, como a já citada falta de médicos. Mas não se deve atribuir tal fato a um simples descaso por parte de Portugal, pois lá a situação também não era das melhores. Os lusitanos também não possuíam grande quantidade de médicos, sendo os existentes, normalmente, de baixa qualidade.54 Isso porque o caráter cada vez mais científico da medicina que se desenvolveu no Velho Mundo, desde o século XVII, com suas Academias Científicas, pesquisas e descobertas, demorou cerca de um século a mais para introduzir-se em Portugal, ainda atrelado a uma educação comandada pelos jesuítas, que desfavorecia os estudos científicos em prol da teologia e da metafísica.55 Mas, mesmo tendo em vista a situação da metrópole, o que dizer da falta dos médicos no Brasil? Explica-se em parte pelo diminuto interesse que a vida na colônia despertava - devido às poucas vantagens profissionais que o território oferecia -, além da proibição do ensino superior por aqui e das dificuldades que os jovens locais encontravam para estudar na Europa.56 Assim, foi baixo o número dos profissionais de saúde que atuaram no Brasil durante todo o período colonial, sendo a maior parte cristãos-novos de baixa camada social que abandonaram o continente europeu na esperança de viver com maior sossego longe da Inquisição.57 No entanto, a falta de médicos não ocasionou a falta de indivíduos empenhados em curar. Desde o início da colonização, os portugueses encontraram entre os índios uma arte de curar dominada por conhecimentos empíricos, conhecimentos que eram sempre subordinados aos elementos da magia e do sobrenatural. A doença era, então, compreendida pelos ameríndios como resultado de castigos ou provações enviados pelo mundo místico, e, como 52 MACHADO, Roberto et al. Danação da norma, p. 154. 53 Ibid., p. 56. 54 SALLES, Pedro. História da medicina no Brasil. Belo Horizonte: Editora G. Holman LTDA, 1971, p. 39. 55 MARQUES, Vera Regina Beltrão. Natureza em boiões: medicinas e boticários no Brasil setecentista. Campinas, SP: Editora da Unicamp/Centro de Memória-Unicamp, 1999, p. 107-110. 56 NAVA, Pedro. Capítulos da história da medicina no Brasil, p. 152. 57 SANTOS FILHO, Lycurgo. História da medicina no Brasil: do século XVI ao século XIX. São Paulo: Editora Brasiliense LTDA, v. 1, 1947, p. 47. tal, deveria ser combatida com as mesmas armas. A sua terapêutica consistia, sobretudo, na utilização dos recursos disponíveis na natureza, abundantemente recheada de plantas medicinais. Essas plantas seriam manipuladas pelo pajé, indivíduo que detinha amplo conhecimento das virtudes medicinais da flora local e que também baseava seu processo curativo na crença e no feiticismo, característicos de seu ambiente cultural.58 É este o retrato da “medicina” encontrado pelos primeiros médicos e pelos jesuítas que vieram ao Brasil. Incluem-se os jesuítas pelo fato de os padres terem desenvolvido uma ampla rede de assistência médica durante o tempo em que permaneceram nos trópicos, de 1549 até sua expulsão, em 1759. Com a falta de profissionais graduados no ensino europeu que circulassem pela América portuguesa, tais religiosos atuaram como curadores entre a população nativa e os colonos que habitavam o território, uma vez que ou possuíam noções da arte de curar ou acabaram por aprendê-la empiricamente quando chegaram ao Novo Mundo. Numa época em que adquirir remédios vindos da Europa era extremamente difícil, e mesmo os que aqui podiam ser encontrados chegavam deteriorados pelo grande tempo que permaneciam nos navios até atingir os trópicos - dificuldade que perdurou durante todo o período colonial -, os jesuítas e os médicos tiveram que se submeter aos costumes da terra, aprendendo a utilizar a flora local nos tratamentos a que submetiam os doentes.59 E, para isso, o conhecimento do indígena foi fundamental. O colono, que se manteve em constante intercâmbio com as práticas medicinais dos nativos, teve de adaptar seu arcabouço teórico obtido nas universidades às técnicas e aos conhecimentos do gentio, saber apreendido e transmitido à metrópole, que disseminou pela Europa as utilidades das plantas medicinais tropicais por meio da publicação de farmacopéias e tratados médicos, principalmente a partir do Setecentos, quando a medicina portuguesa tornou-se um pouco mais científica.60 Até então, ela partilhava da mentalidade mágica presente na arte médica dos indígenas:61 de um lado, os jesuítas, que curavam em nome de Deus, pois percebiam as doenças como fruto do pecado; do outro, os médicos, cuja influência da igreja na formação impregnou a atividade de crenças e práticas sobrenaturais. Ao saber dos índios e dos colonos juntou-se outro tipo de prática curativa: a dos negros. Todavia, sua contribuição foi pouco significativa nesta área, pois ficou circunscrita, basicamente, à utilização de plantas medicinais, utilização resultante do conhecimento 58 RIBEIRO, Lourival. Medicina no Brasil colonial, p. 187-188. 59 SANTOS FILHO, Lycurgo. “Medicina colonial”. In: HOLANDA, Sergio Buarque de (dir.). História geral da civilização brasileira, tomo I, v. 2, 1960, p. 147. 60 MARQUES, Vera Regina Beltrão. Natureza em boiões, p. 82. 61 RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Editora Hucitec, 1997, p. 87. empírico que possuíam, e aos recursos sobrenaturais que envolviam os rituais de cura; para Lycurgo Santos Filho: [...] os conhecimentos e noções sobre a arte de curar trazidos pelos africanos não impressionaram quanto ao montante e nem quanto à qualidade. Contaminada pela feitiçaria, relacionada com a magia, praticada por feiticeiros-curadores ignorantes e embusteiros, a medicina dos negros perdeu-se em suas noções essenciais, terrenas, porque a parte sobrenatural de que estava eivada e sobrecarregada, persistiu entre os praticantes e disseminou-se pela população inculta. Os feiticeiros-curadores apresentavam-se como intermediários entre os deuses e os mortais. Deuses maus provocavam as doenças. Deuses bons curavam-nas. Sempre a mesma, a etiologia, entre os povos primitivos. A terapêutica resumia-se em raizadas e feitiços ou mandingas.62 Como se pode notar, foram diversos os praticantes de medicina no Brasil colonial. Situação que encontra motivação basicamente na relação entre a ausência de médicos e a presença de diferentes tipos culturais convivendo num mesmo ambiente: se a ausência de profissionais graduados conferiu um importante papel ao desenvolvimento de outras artes de cura, como a dos jesuítas, índios e negros,63 também a própria presença de tão variadas tradições culturais no mesmo território abriu espaço para que a medicina de índios e negros se disseminasse, com seus curadores e terapêuticas próprios, desestimulando a ação de médicos e cirurgiões licenciados.64 Desse modo, aqueles que atuaram como agentes curadores, tendo ou não competência e autorização para tal, desempenharam atividades terapêuticas bastante semelhantes, fomentando uma prática médica de características específicas, em que se fundiram diversos elementos culturais. Se os profissionais formados nas Universidades europeias traziam consigo os conhecimentos teóricos, afastando-se do saber empírico dos índios e negros, também se aproximavam destes últimos no que se refere ao mundo do sobrenatural e da magia, presente nas práticas médicas cotidianas; como diz Márcia Moisés Ribeiro: [...] sem perder seus alicerces básicos, ao saber médico indígena acrescentou-se a experiência dos europeus e africanos. Noções e práticas muito familiares ao silvícola, outras absolutamente alheias, combinaram-se, dando origem à medicina dos tempos coloniais que nada mais é que o conjunto de conhecimentos, hábitos e práticas nascido a partir do convívio assíduo entre as três culturas. O saber oriundo do reino português atrelou-se 62 SANTOS FILHO, Lycurgo. “Medicina colonial”. In: HOLANDA, Sergio Buarque de (dir.). História geral da civilização brasileira, tomo I, v. 2, 1960, p. 160. 63 RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos, p. 16. 64 MARQUES, Vera Regina Beltrão. Natureza em boiões, p. 28. à cultura indígena e africana ao sabor das circunstâncias oferecidas pela terra conquistada, originando um complexo tipicamente colonial.65 Mas quem eram os profissionais de saúde que compuseram esta medicina tipicamente colonial? E mais: como era a organização e a fiscalização de seus ofícios? Como se pode perceber pelo que já foi dito até aqui, havia uma gama variada de praticantes de medicina no Brasil. Apesar de algumas características de tal grupo já terem sido referidas, há necessidade de defini-lo mais diretamente. Na época colonial, existiram diversas categorias de pessoas que exerciam a medicina: os físicos, os cirurgiões, os barbeiros, os boticários, os aprendizes desses profissionais e os curandeiros em geral. Os físicos, como também eram chamados os médicos, bem como os cirurgiões-diplomados, formavam-se principalmente em Coimbra, e os poucos que vieram para os trópicos ocuparam cargos na administração colonial, sobretudo no Senado da Câmara ou nas tropas. Ao físico cabia a função de curar, enquanto que ao cirurgião, a de exercer a cirurgia. No entanto, devido à falta destes profissionais - normalmente encontrados apenas nos principais centros populacionais -, suas atribuições confundiam-se na prática cotidiana, uma vez que não era raro encontrar cirurgiões desempenhando atividades de cura.66 O mesmo acontecia com os boticários, encarregados do preparo e comercialização dos medicamentos prescritos pelos físicos e que, por um lado, comumente receitavam remédios e, por outro, deparavam-se constantemente com médicos, cirurgiões, barbeiros e droguistas (mercadores de drogas) realizando as funções de seu ofício.67 Os barbeiros eram indivíduos que, além de cortar o cabelo e fazer a barba, praticavam pequenas cirurgias como a sangria, a extração de dentes e a aplicação de ventosas e sanguessugas.68 Aos curandeiros, como os índios e negros mencionados, somavam-se indivíduos de todo tipo: padres jesuítas, senhores de engenho, mulheres do povo, letrados que aprenderam um pouco da arte de curar nos guias médicos populares que circulavam pela colônia, vigários e charlatães, que eram sempre os primeiros procurados pelo povo - povo que só recorria aos diplomados quando a terapêutica empírica e mística fracassava. A terapêutica desse vasto grupo consistia quase sempre no uso da flora medicinal brasileira e na invocação do sobrenatural.69 Mas não se deve pensar que a falta de incentivo da metrópole nas questões de prevenção da saúde coletiva implicou num completo abandono da organização da medicina, 65 RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos, p. 23-24. 66 MACHADO, Roberto et al. Danação da norma, p. 29. 67 MARQUES, Vera Regina Beltrão. Natureza em boiões, p. 176. 68 SALLES, Pedro. História da medicina no Brasil, p. 52-53. 69 SANTOS FILHO, Lycurgo. História da medicina no Brasil, v. 1, 1947, p. 152-155. mesmo porque foram criadas instituições para o controle da prática médica no Brasil. Com a falta de indivíduos diplomados, a metrópole concedia, mediante um exame junto aos delegados do Físico-Mor e do Cirurgião-Mor do Reino70, “licenças” ou “cartas de habilitação” a indivíduos que já praticavam e desejavam legalizar o exercício da medicina, desde que comprovassem experiência de ao menos quatro anos.71 Os delegados também fiscalizaram a prática de médicos, cirurgiões, barbeiros, enfim, de todos os que possuíam licença para exercer a medicina, além de combater o curandeirismo e de fiscalizar o comércio e a conservação de medicamentos, com visitas periódicas às boticas.72 Este foi basicamente o quadro da arte da curar até o início do século XIX, quando um novo tipo de medicina constituiu-se no Brasil: a medicina social. Restam ainda, no entanto, algumas questões em aberto, entre elas: se não havia um projeto de prevenção da saúde urbana, como teria ocorrido durante o Oitocentos, quais as condições de salubridade apresentadas pelo Rio de Janeiro no período que antecedeu a chegada de Dom João? Melhor, como aqueles que estiveram no Rio de Janeiro no período do vice-reinado registraram as condições de saúde da urbe carioca e de seus habitantes? Durante o século XVIII, muitos dos que viveram ou simplesmente passaram pelo Rio de Janeiro consideraram o clima da cidade um dos principais fatores de produção e disseminação das doenças que acometiam a população, opinião partilhada principalmente pelos europeus, originários de um clima mais ameno, típico das regiões temperadas.73 Mas o clima da cidade não foi sempre referenciado pelos europeus como insalubre e doentio: no Brasil quinhentista e seiscentista, os viajantes estrangeiros que estiveram nos trópicos descreveram, em suas relações de viagem, um clima bastante salubre, agradável e temperado, condições que contribuíam para tornar o Novo Mundo um “paraíso terrestre”, como afirmou Américo Vespúcio em sua narrativa “Novus Mundus”, publicada em 1503. Nicolas Barré, francês que acompanhou o cavaleiro da Ordem de Malta Nicolau Durand de Villegaignon ao Rio de Janeiro, entrando na baía de Guanabara em novembro de 1555 para dar início ao 70 Cargos que funcionaram no Brasil desde o início da implantação da administração ultramarina (o primeiro delegado do Físico-Mor no Brasil foi o licenciado Jorge Fernandes, que chegou à Bahia em 1553) até 17 de junho de 1782, quando foi criada a Junta do Protomedicato. Esta, por sua vez, após ter transformado seu nome para Real Junta do Protomedicato em 1799, foi extinta logo após a chegada da Família Real portuguesa ao Brasil, quando se restabeleceram os cargos de Físico-Mor e Cirurgião-Mor. No entanto, mesmo com a criação da Junta, suas atribuições permaneceram idênticas às da Fisicatura e Cirurgicatura Mores. SANTOS FILHO, Lycurgo. História da medicina no Brasil, v. 1, 1947, p. 297-300. 71 NAVA, Pedro. Capítulos da história da medicina no Brasil, p. 48-49. 72 SANTOS FILHO, Lycurgo. op. cit., p. 299. 73 CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista, p. 37. projeto de edificação da França Antártica no Brasil, ratifica a sensação de um clima ameno e saudável: [...] o ar é temperado, tendendo mais para o calor que para o frio. O verão começa no mês de dezembro, quando o sol está sob o trópico. Durante essa estação, todas as tardes chove e troveja durante três horas; no restante do dia faz, como dizem os nativos, o mais belo tempo do mundo. Eis o que tenho a dizer sobre [...] a salubridade e a disposição do ar.74 Mas esta situação começa a mudar a partir da metade do século XVII: a tópica do clima temperado e salubre, mesmo que ainda presente nas narrativas de viagem seiscentistas e alvo de poucas contestações, passa a concorrer com descrições de um clima pouco agradável e bastante quente, percepção que se tornaria bem mais frequente durante o século seguinte;75 como afirma Jean Marcel Carvalho França: [...] todavia, ao longo do século XVIII, malgrado a persistência da percepção do clima temperado e da reafirmação dessa ideia, o calor dos trópicos passa, num crescendo, a realmente tocar os visitantes estrangeiros e, sobretudo, a parecer-lhes bastante inóspito e insalubre. [...] O “quase paraíso” de Vespúcio, no entanto, por sorte não era composto somente pelo clima, que de ameno e salubre no século XVI passou, no final do século XVIII, a merecer a reputação de excessivamente quente e, o que é pior, insalubre.76 Este é o clima que o tenente espanhol Juan Francisco de Aguirre, ao visitar o Rio de Janeiro em 1782, descreveu em sua narrativa de viagem: [...] a palidez estampada no semblante dos habitantes deixa claro que essa região é péssima para a saúde. Há quem afirme que isso se deve à temperatura, outros dizem que à alimentação, há ainda os que culpam a falta de ventilação e a diminuição das ventanias. A temperatura realmente é bastante elevada. Durante o verão, o termômetro, instalado no alto do castelo de São Sebastião, nunca marca menos do que 82°F, subindo até 86°. No inverno, os termômetros dificilmente marcam menos de 60°F. Essa temperatura, somada à alimentação, à falta de ventilação, ao curso regular dos ventos e à atmosfera, produz as deploráveis condições de saúde da população dessa cidade.77 74 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro colonial, p. 21. 75 Ao longo do século XVII, juntamente com a mudança de percepção sobre o clima do Brasil, a metáfora do “paraíso” é, em larga medida, deixada de lado, passando a ocupar seu lugar a metáfora da “primavera eterna”. Id. “O mundo natural e o erotismo das gentes no Brasil Colônia: a perspectiva do estrangeiro”. In: Revista Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 16. 76 Ibid., p. 17. 77 Id. op. cit., p. 164-165. Dez anos após a passagem de Aguirre pelo Rio de Janeiro, o inglês Samuel Holmes também relata que “o clima é quente e insalubre”.78 À insalubridade climática, retratada a partir do Setecentos, soma-se a péssima localização da cidade no que tange ao controle da disseminação de doenças. É comum entre aqueles que se encontravam no Rio de Janeiro a ideia de que, por ter sido a urbe construída em um terreno circundado por montanhas, o que dificultaria a circulação dos ventos pela região citadina, o ar seria maléfico à saúde dos habitantes; como afirma o tenente-capitão inglês Watkin Tench, que chegou ao Rio de Janeiro em 4 de setembro de 1787: “a cidade de São Sebastião situa-se do lado oeste do porto, num terreno baixo e insalubre, rodeado por montanhas. Tal localização impede a livre circulação do ar e expõe os habitantes a febres intermitentes e a doenças pútridas”.79 Também queixa-se do ar o vice-rei Marquês de Lavradio, em carta enviada a João Gomes de Araújo, de 23 de junho de 1770, em que diz: “não tenho passado bem porque o ar que aqui se respira é sumamente prejudicial à saúde”.80 Uma das grandes causas da impureza do ar era a estagnação das águas em solo fluminense. Além dos alagadiços e mangues que circundavam a cidade, ambientes em que, como diz o Marquês de Lavradio, “com o extraordinário calor do sol se lhes corrompem as águas, onde nasce estarmos respirando um ar sumamente impuro”,81 também as chuvas torrenciais acabavam por alagar as ruas, empoçando água em diversos locais. É o que atesta George Staunton, ao passar pela cidade em 1792: o visitante comenta que um “fator extremamente nocivo para a saúde dos cariocas é a existência, no interior da cidade, de muitas águas estagnadas. Inúmeros são os pântanos que precisam ser drenados e cobertos”.82 Combine o acúmulo de águas pelas ruas e o calor escaldante que o sol dos trópicos oferece ao Rio de Janeiro para se ter uma ideia da situação das vias públicas encontrada pelos habitantes e visitantes da cidade. O memorialista Luiz Edmundo define-as com a seguinte expressão: “cada rua é uma artéria úmida e podre, secando ao sol”.83 Tal podridão das ruas vinha também do fato de os habitantes locais utilizarem-nas como depósito de imundices; tudo era jogado nas vias públicas. Arremessava-se nas ruas todo e qualquer tipo de porcaria do interior das casas, principalmente nas ruas da Vala e do Cano, que funcionavam como espécie de via de escoamento das águas para fora da cidade. Mas, 78 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de Janeiro colonial, p. 254. 79 Id. Visões do Rio de Janeiro colonial, p. 189. 80 LAVRADIO, Marquês do. Cartas do Rio de Janeiro (1769-1776). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1975, p. 188. 81 Ibid., p. 87. 82 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro colonial, p. 200. 83 EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. Rio de Janeiro: Editora Aurora, v. 1, 1951, p. 11. como se pode imaginar, as imundices funcionavam como barreiras, acumulando água e dejetos pelos caminhos públicos: esta era a origem de seu fétido odor. O mesmo Luiz Edmundo descreve o estado deplorável dos caminhos urbanos naqueles tempos: [...] o desvelo do Senado da Câmara não pode estender-se a todas as ruas da cidade. Fica entre três ou quatro das mais centrais, das mais concorridas, das mais passeadas pelo vice-rei. Triste e abandonada rua! Por vezes, em lugares onde não é intenso o trânsito, vê-se um verdoengo tapete de gramíneas desafiando o paladar dos animais, que nela vivem ou passeiam inteiramente à solta: cabritos, carneiros, porcos, cavalos, galinhas e perus. Ao mesmo tempo rua e pasto. E monturo, também; lugar onde se juntam, quase sempre, no mesmo sonho de decomposição, detritos de toda a natureza, animais mortos, a espurcícia das cozinhas, de envolta com as águas pútridas e até dejeções humanas. Não há nisto o menor exagero. [...] a rua, qualquer que ela seja em toda a cidade colonial, cheira mal. [...] só um nariz de todo insensível ao esterquilínio da centúria será capaz de entrar, heroicamente, sem uma contração, sem um só arrepio.84 Como transparece na descrição de Luiz Edmundo, a rua era uma espécie de lixão. Não é, pois, por acaso que o oficial da marinha britânica James Kingston Tuckey, em visita à cidade em 1803, afirme que “as febres, se não são inteiramente causadas, são consideravelmente multiplicadas pelos vapores tóxicos que emanam da sujeira acumulada nas ruas. Por aqui, as janelas são escapes noturnos para todas as coisas que a casa acumulou durante o dia”.85 Outro grande problema de saúde originário das ruas decorria dos escravos que por elas circulavam, problema este apontado pelo vice-rei Marquês de Lavradio, que também determinou sua solução. Em relatório apresentado ao seu sucessor, Luiz de Vasconcelos, Lavradio assinala: [...] havia mais nesta cidade o terrível costume de que todos os negros que chegavam da costa da África a este porto, logo que desembarcavam, entravam para a cidade, vinham para as ruas públicas e principais dela, não só cheios de infinitas moléstias, mas nus; como aquela qualidade de gente, em quanto não tem mais ensino, são o mesmo que qualquer bruto selvagem, no meio das ruas onde estavam sentados em umas tábuas, que ali se estendiam, ali mesmo faziam tudo o que a natureza lhes lembrava, não só causando o maior fétido nas mesmas ruas e suas vizinhanças, mas até sendo o espetáculo mais horroroso que se podia apresentar aos olhos.86 84 EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis, v. 1, 1951, p. 25-26. 85 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de Janeiro colonial, p. 270. 86 “Relatório do Marques de Lavradio, vice-rei do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luiz de Vasconcellos e Sousa, que o sucedeu no vice-reinado”. In: Revista Trimestral de História e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 16, jan. 1843, p. 450-451. Para remediar esta situação, o vice-rei ordenou que todos os escravos “logo que dessem sua entrada na Alfândega pela parte do mar, tornassem a sair e embarcassem para o sítio chamado Valongo, que é no subúrbio da cidade, separado de toda a comunicação”.87 Com isso, Lavradio procurou, além de privar os moradores do mencionado “espetáculo horroroso”, conter a disseminação de doenças trazidas pelos negros, afastando os focos geradores das moléstias - a aglomeração de escravos doentes nas principais vias públicas - para longe de onde se concentrava a população local. Mas a insalubridade de São Sebastião não se restringia apenas a suas ruas, ela estendia-se também às casas. Insalubridade decorrente, além dos hábitos anti-higiênicos da população,88 ou dos “preguiçosos e sujos costumes dos colonos”,89 como os denominou James Kingston Tuckey, das próprias construções. O que sempre chamou a atenção dos estrangeiros que visitaram o Rio de Janeiro foi a utilização de gelosias nas janelas das casas. Tais gelosias eram uma espécie de treliça de madeira bem fechada, localizada nas fachadas, que bloqueavam a visibilidade dos transeuntes para os domínios internos da morada, o que dificultava a passagem de ar para o seu interior, tornando-a mais deletéria, além de diminuir seu contato com a rua e rarear a iluminação de seus cômodos, detalhe que lhe conferia um aspecto sinistro e de clausura.90 O resultado, ao somarem-se o clima úmido e quente da cidade à pouca luminosidade e troca de ar do interior das casas, eram residências completamente inadaptadas às condições climáticas locais, residências tomadas pelo bolor, limo e mofo.91 A despeito de toda a falta de saúde que reinou durante a época colonial, no período dos vice-reis começa a se desenvolver um novo tipo de preocupação com a salubridade do Rio de Janeiro. O final do século XVIII marcou um período de transição entre a medicina colonial e a medicina social, quando o planejamento urbano começou a despontar como preocupação da administração do Senado da Câmara, que passou a ver no médico um consultor sobre os assuntos de doença.92 Assim, a Câmara organizou, em 1798, uma reunião com os melhores médicos da cidade para desvendar as causas da insalubridade do Rio de Janeiro. Neste 87 “Relatório do Marques de Lavradio, vice-rei do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luiz de Vasconcellos e Sousa, que o sucedeu no vice-reinado”. In: Revista Trimestral de História e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 16, jan. 1843, p. 451. 88 Como afirma Jurandir Freire Costa, “na Colônia, a conduta anti-higiênica dos habitantes era um dos empecilhos fundamentais à saúde da cidade. A administração procurava atacar a dificuldade com o auxílio de almotacés de limpeza. Esta ação vigilante da justiça operava no mesmo universo de punição que caracterizava a represália aos marginais. Ela era descontínua, fragmentar e, acima de tudo, não sabia prevenir”. COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar, p. 29. 89 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de Janeiro colonial, p. 261. 90 Id. Literatura e sociedade no Rio de Janeiro oitocentista. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1999, p. 18. 91 EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis, v. 1, 1951, p. 47-48. 92 MACHADO, Roberto et al. Danação da norma, p. 142-149. encontro, cujos dados complementam o cenário das poucas condições de saúde da cidade e dos habitantes apresentado até aqui, os físicos foram consultados para responder as seguintes questões propostas pelo Senado: 1° Quais são as moléstias endêmicas da cidade do Rio de Janeiro e quais as epidêmicas. 2° Se é uma das principais causas das primeiras e do mau sucesso das segundas, o clima nimiamente úmido e quente. 3° Se são causas da umidade: 1° a suma baixeza do pavimento da cidade relativamente ao mar e baía, que cerca pelos três lados de és-sudeste, nordeste e nor-nordeste, de sorte que apenas se eleva do nível das águas das marés cheias de 5 a 11 palmos desde as praias até a maior distancia delas no campo de Santana, distante do mar 700 braças; 2° a pouca expedição que tem as águas das chuvas copiosíssimas, principalmente de verão, e enxugadas então quase só à força do grande calor do sol, mas em muitas partes sempre estagnadas; 3° a pouca circulação do ar pelas ruas da cidade e interior dos edifícios. 4° Se são causas do calor: 1° o impedimento que fazem à entrada dos quotidianos ventos matutinos ou terrais que sopram da parte do nordeste, norte e noroeste, os morros que correm de São Bento até São Diogo, na direção de és-nordeste, e à dos vespertinos ou virações mais fortes que os primeiros, constantes da parte do sudeste, sul e sudoeste, os morros do Castelo, Santo Antônio e Fernando Dias paralelos aos outros, de sorte que fica a cidade situada entre as duas cordas dos ditos morros, e inteiramente ao abrigo dos ventos; 2° a direção das ruas ao nordeste e sudoeste de sorte que todas as casas são banhadas do sol inteiramente de manhã e de tarde. 5° Se são causas das mesmas doenças: 1° as imundices que se conservam dentro da cidade; 2° as águas estagnadas nos seus arrabaldes, como em Mataporcos e Catete, pela baixeza do mesmo terreno. 6° Quanto deverá ser elevado o pavimento da cidade e os edifícios para remediar aquela umidade e haver saída para as imundices. 7° Quais são as outras causas morais e dietéticas das ditas doenças.93 De acordo com o médico Manoel Joaquim Marreiros, um dos consultados pela Câmara, por detrás da insalubridade do Rio de Janeiro existiria tanto uma “causa universal”, de ordem natural, quanto causas “não-naturais”, produzidas pelo homem. A dita causa natural era o clima da cidade: “quente”, “úmido” e com “contínua variação da temperatura atmosférica”. O clima seria ainda mais prejudicial ao combinar-se com a localização da urbe: “circulada por uma cadeia de serras [...], mananciais de