Construção Coletiva de Experiências Inovadoras no Processo Ensino-aprendizagem na Formação de Profissionais da Saúde* Collective Construction of Innovative Experiences in the Teaching-learning Process of Health Professionals Maria de Lourdes da Silva Marques FerreiraI Rosângela Minardi Mitre CottaII Marilda Siriani de OliveiraIII PALAVRAS-CHAVE – Construção coletiva. – Aprendizagem. – Metodologia. – Sujeito coletivo. – Cuidados de saúde. – Pessoal e saúde. RESUMO Sob a perspectiva do ensino e saúde, este trabalho analisa a discussão realizada durante o processo de for- mação de um grupo de tutores no fórum do curso de especialização em Ativação de processos de mudança na formação superior de profissionais de Saúde, no período de junho a agosto de 2005, promovido pelo Ministério da Saúde do Brasil, Fiocruz e Rede Unida, resultante do processamento do relato de prática, intitulado Quando a pergunta qualifica o olhar. O objetivo foi analisar a produção coletiva do fórum na discussão das seguintes questões, elaboradas pelo grupo durante o encontro presencial: Como se deu his- toricamente a construção do conceito de cuidado a partir dos diferentes saberes-profissões?; Como lidar com uma experiência focal (inovadora) de ensino-aprendizagem?; Como garantir a governabilidade-via- bilidade inovadora no contexto da gestão? A questão de aprendizagem inicial foi: o que mudar para fazer a mudança? Utilizou-se como metodologia a técnica de interpretação qualitativa do discurso do sujeito coletivo, a partir do referencial teórico de Lefréve, Lefréve e Teixeira (2000). KEYWORDS – Collective construction. – Learning. – Methodology. – Collective subject. – Delivery of health care. – Health personel. ABSTRACT This study analyzes from the perspective of health education the production of a group of tutors in the forum about the distance specialization course “Activation of change processes in the higher education of health professionals”, that took place in June-August/2005, under the sponsorship of the Ministry of Health, Fiocruz and Rede Unida as a result of the practice report entitled when the question qualifies the view. The objective was to analyze the collective production of the forum regarding the discussion of the following questions: How was the concept of care built historically from the different professions and kinds of knowledge? How should we deal with a focal (innovative) teaching-learning experience? How can innovative governability/feasibility be ensured within the context of management? These questions were formulated by the group during the in-person meeting whose initial question was: What should be changed to change? The methodology used was the technique of qualitative interpretation of the collec- tive subject speech based on the theoretical referential of Lefréve. Recebido em: 06/06/2007 Aprovado em: 24/09/2008 REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA 33 (2) : 240–246; 2009240 * Trabalho realizado durante o Curso de Especialização e Formação de Tutores Semipresencial – Ativação de Processos de Mudança na Formação Supe- rior de Profissionais de Saúde, promovido pelo Ministério da Saúde do Brasil, Fiocruz e Rede Unida. I Faculdade de Medicina de Botucatu, São Paulo, Brasil. II Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais, Brasil. III Faculdade de Medicina de Marília, São Paulo, Brasil. REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA 33 (2) : 240 – 246 ; 2009241 Maria de Lourdes da Silva Marques Fereira et al. Formação de Profissionais da Saúde INTRODUÇÃO Refletir sobre as práticas de Saúde implica refletir sobre a formação e o desenvolvimento dos profissionais da área, através dos modos de ensinar e aprender nas academias e das formas de educar, cuidar, tratar e acompanhar as pessoas que necessitem de assistência à saúde. O desafio da mudança da prática encontra-se no pressu- posto de que o professor se libere do modelo tradicional de ensino, empenhando-se em construir uma nova prática, ado- tando o papel de educador1. Buscar e analisar as transformações da prática significa rever as relações de poder existentes nas instituições de Saúde entre profissionais, usuários e gestores2. Essas transformações potencializam a construção de vín- culo, aproximando quem oferece ou presta serviço de quem o recebe, e personalizando a relação, que deve ser compro- missada, solidária e aparecer como fruto de uma construção social e parte de um esforço que envolve equipe, instituições e comunidade3. Transformar a formação e a gestão do trabalho em Saúde não deve ser uma questão simplesmente técnica, pois envolve mudanças: nas relações, nos processos, nos atos de Saúde e, principalmente, nas pessoas. No campo da Saúde, o papel de constatar a realidade e de produzir sentidos pertence tanto ao SUS como às universidades e demais instituições formadoras. Cabe ao SUS e às universidades coletar, sistematizar, analisar e interpretar permanentemente informações da realidade, pro- blematizar o trabalho e as organizações de Saúde e de ensino, e construir significados e práticas com orientação social, me- diante a participação ativa dos gestores setoriais, formadores, usuários e estudantes4. Tratando-se de um curso à distância, a internet assume via essencial das trocas, intercâmbio, inter-relações e construção do conhecimento. Tem-se assinalado como uma das principais características da internet o fato de ela ser um instrumento de facilitação da emergência de um pensamento coletivo, que vem acompanhada da correlata sensação de se pertencer à fa- mosa “aldeia global”5. Os fóruns nos cursos à distância permitem aos partici- pantes um debate em busca de uma construção coletiva, sobre uma temática específica, por meio da questão norteadora que possibilita que o conteúdo das mensagens discuta as indaga- ções refletidas pelo grupo. Desta perspectiva, este trabalho tem como objetivo central analisar a produção coletiva, sobre o eixo temático de: o quê, o como e por que mudar para provocar e produzir a mudança almejada na formação dos profissionais de Saúde, no fórum intitulado Quando a pergunta qualifica o olhar, do curso de espe- cialização semipresencial em Ativação de processos de mudança na formação superior de profissionais de Saúde, promovido pelo Ministério da Saúde, Fiocruz e Rede Unida. SUJEITOS E MÉTODOS O corpus analisado é constituído por 132 participações e formado por dez profissionais de Saúde vinculados a acade- mias e serviços de Saúde, coordenados por um orientador de aprendizagem que atuou como facilitador. Desde o marco teórico da metodologia ativa, o orienta- dor de aprendizagem tem o propósito de promover o auto- descobrimento (insight – o dar-se conta). As intervenções do orientador de aprendizagem tentam gerar reflexões dos parti- cipantes, assim como a formulação de perguntas que deixem em descoberto certos aspectos da problemática. O esforço é centrado em lograr que os próprios integrantes do grupo, por meio da visualização dos “conflitos”, possam interatuar de forma adequada e se instrumentalizem para pôr em prática as necessárias transformações em suas “aldeias”, como parte de suas reflexões, críticas e mudanças6,7. O trabalho se desenvolveu no fórum intitulado Proces- samento da situação da prática, denominada Quando a pergunta qualifica o olhar, por meio da discussão das seguintes questões: Como se deu historicamente a construção do conceito de cui- dado a partir dos diferentes saberes-profissões?; Como lidar com uma experiência focal (inovadora) de ensino-aprendiza- gem? E Como garantir a governabilidade-viabilidade inova- doras a experiências como estas no contexto da gestão? A história das diferentes profissões no que se refere ao cuidado nos leva a um processo de reflexão sobre a necessi- dade de construir novos saberes, contemplando o quê, como e por que mudar. A partir da percepção da necessidade de mudança, refletir sobre as mudanças pontuais e as estratégias administrativas para garantir as experiências inovadoras. Isto implica mudar do ensino tradicional para o ensino inovador com repercussão na prática profissional, garantindo à comu- nidade uma assistência e atividades de educação permeadas pelo diálogo, e não de maneira autoritária. O mundo em que vivemos se transforma, nos transforma e é transformado por nós, daí a idéia de que o ser humano é um eterno aprendiz. No curso Ativação de processos de mudança na formação supe- rior de profissionais de Saúde, o fórum é uma das metodologias utilizadas à distância. Ocorre sempre após uma oficina pre- sencial em que os assuntos pertinentes são discutidos em gru- po, após a busca ativa de materiais e conteúdos por parte dos membros do grupo. Ao final, elabora-se, a pergunta (questão de aprendizagem) a ser trabalhada no fórum, on-line. REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA 33 (2) : 240 – 246 ; 2009242 Maria de Lourdes da Silva Marques Fereira et al. Formação de Profissionais da Saúde As mensagens aqui analisadas correspondem à produção coletiva do grupo durante o período de 20-06-2005 a 13-08-2005. Análise das mensagens Buscou-se analisar as mensagens utilizando os instrumen- tos de análise qualitativa de discursos por meio das figuras metodológicas8. Neste estudo, os instrumentos de análise são: a idéia central e o discurso do sujeito coletivo. O discurso do sujeito coletivo (DSC) é uma estratégia meto- dológica que visa tornar mais clara uma dada representação so- cial. Consiste na reunião, num só discurso, de vários discursos individuais emitidos como resposta a uma mesma questão de pesquisa, por sujeitos sociais e institucionalmente equivalentes ou que fazem parte de uma mesma cultura organizacional e de um grupo social homogêneo, na medida em que tais indivídu- os ocupam a mesma posição ou posições vizinhas num dado campo social. Os pensamentos e falas dos sujeitos são obtidos mediante entrevistas baseadas em roteiros semi-estruturados9. Para a análise dos depoimentos, foi utilizado no discurso do sujeito coletivo o recurso de três figuras metodológicas9: — Expressões-chave (EC) – transcrições literais de par- te dos depoimentos, contínuos ou não, que permitem resgatar a sua essência; — Idéia central (IC) – afirmações que permitem traduzir o essencial do discurso. É a síntese do discurso; — Discurso do sujeito coletivo (DSC) – busca-se somar discursos, reconstruir, a partir de trechos dos discur- sos individuais, tantos discursos homogêneos quantos se julgue necessários para expressar o pensamento da- quele universo estudado sobre um fenômeno. Para efeito de análise dos depoimentos, a idéia central é en- tendida como a síntese do conteúdo discursivo explicitado pelos sujeitos. São as afirmações, negações e dúvidas a respeito da rea- lidade factual, bem como os juízos de valor a respeito da realida- de institucional e do contexto onde os sujeitos estão envolvidos8. O DSC é uma forma de expressar diretamente a represen- tação social de um sujeito social9,10. A técnica de pesquisa qualitativa é um procedimento de tabulação de depoimentos verbais. Por meio da análise de en- trevistas, de relatos escritos e a partir de um roteiro de ques- tões abertas, extraem-se de cada uma das respostas as idéias centrais e suas correspondentes expressões-chave. Então, são compostos um ou vários DSCs – discursos-síntese enunciados na primeira pessoa do singular, como se fossem a fala ou o depoimento de uma coletividade11. Os passos seguidos até a síntese dos discursos foram: (a) leitura do conjunto dos depoimentos coletados nas entre- vistas; (b) leitura da resposta a cada pergunta em particular, marcando as expressões-chave selecionadas; (c) identificação das idéias centrais de cada resposta; (d) análise de todas as expressões-chave e idéias centrais, agrupando as semelhan- tes em conjuntos homogêneos; (e) identificação e nomeação da idéia central do conjunto homogêneo, que será uma sín- tese das idéias centrais de cada discurso; (f) construção dos discursos do sujeito coletivo de cada quadro obtido na etapa anterior; (g) atribuição de um nome ou identificação para cada um dos discursos do sujeito coletivo8. Desta forma, é de vital importância que as perguntas que compõem a entrevista sejam criteriosamente elaboradas, para que possamos obter respostas discursivas e não valorativas9. RESULTADOS Caracterização dos sujeitos O grupo participante é formado por uma equipe multi- profissional constituída por quatro enfermeiras e três médicos, sendo um deles do sexo masculino, um terapeuta ocupacional e uma psicóloga. Idéias centrais e discursos do sujeito coletivo Os discursos do sujeito coletivo apresentados a seguir foram elaborados resumidamente por meio da idéia central. Foram utilizados pequenos artifícios – como a presença de co- nectivos entre parágrafos, para construir um discurso único do sujeito coletivo –, para efeito didático e uma resposta co- letiva diante do questionamento. Ressalte-se, também, que os discursos obtidos no fórum utilizam literatura científica perti- nente à temática, inerente à bagagem dos profissionais de Saú- de que participaram do evento. Assim, nos resultados, os au- tores referendados através dos depoimentos dos participantes no fórum são utilizados como suporte teórico das discussões. Os participantes foram identificados com a sigla P, segui- da do número de entrada no fórum: P1, P2 até P10, que é a constituição do grupo participante. Os grupos de discursos foram classificados de acordo com a idéia central e denomina- dos grupos A, B, C e D. QUADRO 1 Síntese das idéias centrais da pergunta: Como se deu historicamente a construção do conceito de cuidado a partir dos diferentes saberes-profissões? Grupo do discurso Idéia central A Percepção do cuidado das diferentes profissões B Integralidade na assistência como um dos princípios do SUS REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA 33 (2) : 240 – 246 ; 2009243 Maria de Lourdes da Silva Marques Fereira et al. Formação de Profissionais da Saúde Idéia central: O cuidado em suas diferentes formas se- gundo a percepção das diferentes profissões, considerando o conceito de ser humano e garantindo aos sujeitos que deman- dam o cuidado para a autonomia (P1, P2, P3, P4, P5). Discurso do sujeito coletivo: Segundo a visão de mundo que os diferentes profissionais possuem, mesmo quando es- tão ainda na universidade, acaba por estabelecer um estilo de pensamento que adota como verdade absoluta. Diante de um conhecimento clínico, na maioria das vezes, pensa-se em tratar e não em cuidar. Historicamente, os indivíduos são formados numa rigidez das profissões que estabelece uma relação su- jeito-objeto sem refletir sobre esse objeto e distanciando-se da relação sujeito-sujeito. O discurso médico está historicamente impregnado pelas relações hierárquicas estruturais e rituais de poder. A história da assistência nos mostra um novo desper- tar de uma nova consciência e de um sentimento humanitário, como também um espaço de apropriação e transformação de antigas estratégias de poderes. Idéia central: Integralidade na assistência como um dos princípios do SUS no modelo de Saúde e a associação do saber técnico e político presente nas atividades dos cenários de ensi- no-aprendizagem (P1, P2, P3, P4, P5). Discurso do sujeito coletivo: Considerando o modelo de atenção à saúde, vê-se que este estabelece intermediações en- tre o técnico e o político, que trazem em si a marca do risco e da tensão, posto que não é só político nem tampouco só tecno- lógico. Entre as esferas da técnica e do campo político há uma indissociabilidade dos campos clínicos e políticos que nos faz pensar que as políticas, os dados não são meras abstrações nu- méricas e, sim, cada um fala e traz uma história de vida cheia de complexidade. A integralidade da atenção e dos limites do cuidado solicita uma escuta qualificada e sensível das ques- tões apontadas pela comunidade. No processo interativo nos cenários de ensino-aprendizagem, que fatores facilitadores são necessários para qualificar o olhar para ressignificá-los numa proposta de ativação de processo de mudança na formação de profissionais de Saúde? Acreditamos que os sujeitos não podem ser apenas sensíveis, a mudança precisa ser consisten- te, para diminuir as resistências, saber argumentar, sustentar posições, saber ouvir e ter uma boa dose de desprendimento e não pessoalizar as resistências e as críticas quando ocorrem. Idéia central: Desejo dos profissionais de Saúde de inser- ção no processo de mudança (P1, P2, P3, P4, P5). Discurso do sujeito coletivo: Quando iniciamos o pro- cesso reflexivo sobre a necessidade de mudança, constatamos que algo nos incomoda, que nos causa desconforto. Não um desconforto que produz paralisia, mas aquele que faz emergir a reflexão, a inquietude, a dúvida acerca das verdades insti- tuídas previamente e desde sempre estabelecidas. Acredita- mos ser nossa tarefa agir onde tudo permanece como verdade irrefutável, que o desconforto move e nos move no processo ensino-aprendizagem para a construção de novas e diferentes inquietações. Idéia central: Construção de uma rede de parceiros na ex- periência focal do ensino inovador. Discurso do sujeito coletivo: É preciso que tenhamos mais que um espaço de prática, mas essencialmente uma rede de relações, de parceiros, pois o que buscamos é construir um modelo de sociedade amplo e solidário. Quando a realidade histórica da instituição de ensino não permite no momento o salto qualitativo para a construção de um processo educacio- nal que articule a formação com as necessidades e as demandas da sociedad, como estratégia eficaz para o desenvolvimento econômico e social desta nossa sociedade, é necessário que o docente consiga fazer alianças com outros docentes e profis- sionais do serviço. As parcerias possibilitam o crescimento, a visualização do melhor caminho para todas as instituições/ pessoas envolvidas no processo de mudança. Idéia central: A liderança, ferramenta importante no pro- cesso de mudança, só pode ser percebida no processo coletivo. Discurso do sujeito coletivo: A liderança precisa estimu- lar as diferenças, explorar limites, promover a auto-organiza- ção de forma que educação, currículos e sistemas de Saúde possam trabalhar de modo complexo, atendendo a esse novo paradigma. A identificação do líder que constrói e ativa pro- cessos está diretamente ligada aos processos de autorização de um saber. O espaço coletivo valida e acolhe as lideranças. Essas lideranças são capazes de, no espaço coletivo, operar QUADRO 2 Síntese das idéias centrais da pergunta: Como lidar com uma experiência focal (inovadora) de ensino-aprendizagem? Grupo do discurso Idéia central A O pensar e o refletir a educação na atualidade, abrindo possibilidades de despertar nos profissionais de Saúde o desejo do processo de mudança. B Construção de rede de relações, de parceiros como estratégias para o ensino inovador. C O espaço coletivo valida e acolhe as lideranças, e é uma ferramenta importante no processo de mudança. D Interação das instituições, docentes, discentes e comunidade na escuta qualificada de uns aos outros. REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA 33 (2) : 240 – 246 ; 2009244 Maria de Lourdes da Silva Marques Fereira et al. Formação de Profissionais da Saúde mudanças que promovam impacto no movimento de trans- formação. Idéia central: A participação da instituição, docentes, dis- centes e comunidade desejando o processo de mudança. Discurso do sujeito coletivo: A prática de mudança é di- fícil, porém necessária, em especial no interior das instituições e também no cotidiano, com docentes e estudantes, além da comunidade, que, por vezes, fica alheia às discussões tão ne- cessárias à transformação do processo de ensinar-aprender e também de assistir-cuidar. Possibilitar ao estudante o exercício eficiente de seu trabalho, a participação consciente e crítica no mundo do trabalho e na esfera social, além de sua efetiva auto- realização, passa pelo compromisso individual do docente-fa- cilitador-tutor, pela vontade e curiosidade do estudante e sua continuidade com o apoio da instituição, da comunidade e com o estabelecimento de parcerias. QUADRO 3 Síntese das idéias centrais da pergunta: Como garantir a governabilidade-viabilidade às experiências no contexto da gestão? Grupo do discurso Idéias centrais A Programas de Saúde já existentes no SUS. B Caminhos e ferramentas da experiência inovadora. C A pergunta qualificando o olhar e sua relação com as práticas educativas e conseqüentemente com as práticas do cuidado. D Proposta do ensino inovador e a construção da cidadania. Idéia central: Refletindo sobre os programas de Saúde do SUS. Discurso do sujeito coletivo: Alguns programas de Saú- de foram construídos com base numa interação sujeito-sujeito, mas, na prática, permanece a relação sujeito-objeto. A relação sujeito-sujeito se dá quando o trabalho em Saúde revela uma ação que, desde o momento em que é concebida até o seu tér- mino, é feita no coletivo, seja sujeito-ator, serviço-clientela ou ainda profissional-cliente. Existem programas que são con- duzidos por “euquipes”, muitas vezes sem consistência. Isso porque certamente não ocorreria num contexto de cuidado integral em saúde, onde o papel do sujeito é construído em processo. O processo de mudança que queremos é aquele que é ativado num contexto integral, de construção sujeito-sujeito, de um sistema de Saúde e de educação, com base na socieda- de, de forma intersetorial e interdisciplinar. Idéia central: Caminhos e ferramentas da experiência ino- vadora. Discurso do sujeito coletivo: As experiências inovadoras podem ter três caminhos: transformar o modelo de formação, constituir estruturas marginais no contexto tradicional e di- luir-se no processo tradicional, perdendo seu poder inovador ao longo do tempo. Uma das ferramentas são os princípios e diretrizes do SUS e as propostas para a reforma curricular das profissões da área da Saúde. Outra ferramenta é a intera- ção do professor com o diretor da instituição, viabilizada por meio das estratégias de gestão. Um caminho vislumbrado é o de iniciar na sua área de atuação, iniciar em sua própria aula, sendo protagonista de sua própria inovação. E ainda educar para além das fronteiras da universidade, indo para os ser- viços e comunidade, atuando diretamente em sua realidade. Entendemos que as interconexões que fazemos quando inova- mos podem, de certa forma, constituir mecanismos de susten- tabilidade, de adesão e de co-relações com a governabilidade interna e externa às instituições. Idéia central: A pergunta qualifica o olhar e estabelece re- lação com as práticas educativas inovadoras e com as práticas do cuidado. Discurso do sujeito coletivo: O debate sobre a prática do cuidado e sobre que cuidado a sociedade atual e a política de Saúde exigem passa por uma desconstrução teórica, com vis- tas a construir para a reconstrução em curso nas práticas de Saúde. Se os alunos souberem fazer as perguntas, já é uma etapa importante na busca das respostas. Na verdade, fomos catequizados, ao longo de nossa formação profissional, a não exercer o hábito e a forma de questionar, de perguntar. Repeti- mos isto em nossa vida e em nosso trabalho. Como reaprender a perguntar? Como construir, no processo ensino-aprendi- zagem, questões coerentes e consistentes? Passamos a refle- tir sobre como inquietar e levar os estudantes, os serviços de Saúde e a comunidade a refletirem e, portanto, a construírem perguntas, a respeito do cotidiano e da construção dos sabe- res. Como o facilitador pode atuar inquietando as pessoas, o mundo e a comunidade? Idéia central: Proposta do ensino inovador e a construção da cidadania (P2, P4). Discurso do sujeito coletivo: Na construção de um pro- jeto político pedagógico inovador no que tange à extensão, a questão da interação ensino- trabalho se faz de forma a atender as necessidades da comunidade e dar continuidade a um pro- jeto de ensino superior que atue na construção da cidadania. Nesse sentido, é de fundamental importância a avaliação da sociedade sobre o papel da universidade, bem como a análise do impacto da ação extensionista na transformação da própria REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA 33 (2) : 240 – 246 ; 2009245 Maria de Lourdes da Silva Marques Fereira et al. Formação de Profissionais da Saúde universidade. A extensão é uma forma de ativar a mudança, traz elementos externos, circula na sociedade, rediscute o pa- pel do ensino superior, deixa os “muros” da universidade, in- terage com atores e cenários diversificados e os co-relaciona. DISCUSSÃO De toda a produção teórica do grupo no fórum, entende- se que os diferentes saberes e profissões determinam formas particulares do cuidado na área da Saúde, que são formadas e construídas a partir dos referenciais teóricos e das práticas específicas de cada campo do saber. Historicamente, os indivíduos são formados numa rigidez das profissões que estabelece uma relação sujeito-objeto sem re- fletir sobre esse objeto e distanciando-se da relação sujeito-sujei- to. Nesta relação está imbuída a compreensão do ser humano. A retomada da relação sujeito-sujeito na formação supe- rior dos profissionais de Saúde deve ser considerada um as- pecto essencial na mudança que desejamos e precisamos. O ser humano é transformado em sujeito a partir de sua inscrição em processos objetivantes. Neste caso, trata-se de subjetividades objetivadas por práticas discursivas e não dis- cursivas, pelo engendramento deste ser humano em relações de saber-poder12. Quanto mais um indivíduo interage com o outro, mais está apto a reconhecer comportamentos, intenções, valores, competências e conhecimento, para enfim ter uma percepção do outro13. A respeito da formação dos profissionais de Saúde, obser- vamos a perspectiva de uma capacitação maior, favorecendo a promoção e ações integrais de Saúde que beneficiem indiví- duos e comunidades14. O perfil do profissional desejado e es- perado para atender a população revela a necessidade de im- plementar estratégias de mudança dos atuais modelos acadê- micos. Para isso, é fundamental compreender adequadamente os limites e as possibilidades das inovações e das reformas da educação médica frente ao perfil das práticas médicas hege- mônicas e frente às estruturas sociais no contexto dos proces- sos de globalização14. As transformações da prática passam pela emergência e valorização de novos saberes, por uma postura mais dialógica da equipe entre si e com os usuários, por uma abertura concei- tual e científica em relação ao modelo da biomedicina e maior responsabilidade política e ideológica dos gestores15. Essas transformações são essenciais na construção de vín- culo e aproximam quem oferece ou presta o serviço de quem o recebe, e personalizam a relação, que deve ser compromissada, solidária e surgir como fruto de uma construção social e parte de um esforço que envolve equipe, instituições e comunidade3. A noção do vínculo nos faz refletir sobre responsabilidade e compromisso. Essa noção de vínculo está em consonância com o sentido de integralidade. Para Mehry16, criar vínculo implica ter relações tão próximas e tão claras, que nos sensi- bilizamos com todo o sofrimento daquele outro, sentindo-nos responsáveis pela vida e morte do paciente, o que possibilita uma intervenção que não seja burocrática nem impessoal. No que tange a um dos princípios do SUS, a integralidade existe em ato e pode ser demandada na organização de ser- viços e renovação das práticas de Saúde, sendo reconhecida nas práticas que valorizam o cuidado e que têm em suas con- cepções a idéia-força de considerar o usuário como sujeito a ser atendido e respeitado em suas demandas e necessidades2. O processo de mudança no ensino exige muito mais que um espaço de prática, deve ser construído em parcerias para que seja possível produzir conhecimento e inovação17. A inovação é toda tentativa que visa, consciente e deli- beradamente, introduzir uma mudança no sistema de ensino com a finalidade de melhorá-lo18. A sobrevivência da universidade depende de sua reinser- ção na sociedade, da construção de novas relações e de um novo papel socialmente mais relevante, e a mudança da for- mação do profissional de Saúde deve ser ancorada nessas ne- cessidades14. Acreditando na formação de um profissional crítico para atender as necessidades reais da população, o melhor caminho é questionar e praticar a crítica na prática. Nessa prática estão imbuídas as mudanças que almejamos na formação superior dos profissionais de Saúde – educação tradicional para educa- ção inovadora –, para haver mudanças nas práticas de Saúde. CONSIDERAÇÕES FINAIS A mudança se inicia com o rompimento do paradigma tradicional do processo de ensino-aprendizagem e identifica- ção dos limites e possibilidades das inovações desejadas. Quando o sujeito social se propõe a ser facilitador de um processo de mudança na educação, dá o primeiro passo para a reconstrução da prática educativa, aprendendo com os demais atores – alunos, usuários, professores, profissionais – novas atitudes, reconstruindo velhas formas de pensar e fazer saúde e propiciando uma atualização para a frente, produzindo, ao final, uma mudança das práticas pedagógicas, dos fazeres e dos homens. Uma estratégia viável é transpor as fronteiras da sala de aula por meio de um modelo pedagógico que equilibre a ex- celência técnica e a relevância social, com métodos ativos de ensino-aprendizagem centrados nos alunos; inserir a vivência prática, destinando parte da carga horária a reflexões e ati- REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA 33 (2) : 240 – 246 ; 2009246 Maria de Lourdes da Silva Marques Fereira et al. Formação de Profissionais da Saúde vidades com e nos próprios serviços de Saúde, com base na relação de parceria da universidade com os serviços de Saú- de, com a comunidade, com as entidades e outros setores da sociedade civil. Desta perspectiva, ainda que as iniciativas sejam isola- das, devem ser incentivadas e acreditadas como um primeiro passo para a mudança. Um cotidiano mais produtivo e con- fortável no ambiente de trabalho pode ser resultante de uma experiência isolada com agregação de parceiros ao longo do caminho, embusca de uma construção coletiva de experiên- cias inovadoras. REFERÊNCIAS 1. Vasconcellos CS. Avaliação: concepção dialética-liberta- dora do processo de avaliação escolar. 16 ed. São Paulo: Libertad; 2006. 2. Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ; 2001. 3. Silva RVB, Stelet BP, Pinheiro R, Guizardi FL. Do elo ao laço: O agente comunitário na construção da integralida- de em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA. (Org.) Cuidado: as fronteiras da Integralidade. Rio de Janeiro: IMS/UERJ; Hucitec; 2004. p. 5-90. 4. Zanotto MAC, De Rose TMS. Problematizar a própria rea- lidade: análise de uma experiência de formação contínua. Educação e Pesquisa 2003;29(1):45-54. 5. Levy P. L’Intelligence Collective. Pour une Antropologie du Cyberspace. 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Marilda Siriani de Oliveira participou do planejamento, orien- tação, e acompanhamento do trabalho e auxiliou a revisão do manuscrito. CONFLITO DE INTERESSES Declarou não haver ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Maria de Lourdes da Silva Marques Ferreira Distrito de Rubião Júnior, s/no Campus Universitário Botucatu - São Paulo CEP.: 18609780 SP E-mail: malusa@fmb.unesp.br