PAULO JOSÉ DE OLIVEIRA O protagonismo das mulheres nos movimentos de moradia, na cidade de Jacareí – SP: ocupações Lagoa Azul II, Quilombo Coração Valente e bairro Jardim Conquista, de 1999 a 2020 São Paulo - SP 2023 PAULO JOSÉ DE OLIVEIRA O protagonismo das mulheres nos movimentos de moradia, na cidade de Jacareí – SP: ocupações Lagoa Azul II, Quilombo Coração Valente e bairro Jardim Conquista, de 1999 a 2020 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como exigência para obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento na América Latina e Caribe (área de Geografia), na área de concentração “Desenvolvimento territorial”, na linha de pesquisa “Território, educação e cultura”. Orientadora: Profª. Dra. Sílvia Beatriz Adoue São Paulo - SP 2023 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Impactos potenciais esperados: na caracterização de territórios urbanos, na compreensão da territorialização de políticas públicas e de forças organizativas populares. Também poderá contribuir na definição de categorias como: protagonismos políticos das mulheres na luta de classes, direito à cidade e à moradia. Contribuição organizativa aos movimentos populares na relação entre gênero e democracia. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH Expected potential impacts: in the characterization of urban territories, in the understanding of the territorialization of public policies and popular organizational forces. It can also contribute to the definition of categories such as: women's political protagonisms in the class struggle, the right to the city and to housing. Organizational contribution to popular movements in the relationship between gender and democracy. IMPACTO POTENCIAL DE ESTA INVESTIGACIÓN Impactos potenciales esperados: en la caracterización de los territorios urbanos, en la comprensión de la territorialización de las políticas públicas y de las fuerzas organizativas populares. También puede contribuir a la definición de categorías como: los protagonismos políticos de las mujeres en la lucha de clases, el derecho a la ciudad y a la vivienda. Aporte organizativo a los movimientos populares en la relación entre género y democracia. AGRADECIMENTOS Dedico este trabalho aos movimentos populares, onde tive a motivação e a razão desta pesquisa; especialmente às comunidades Vila Ita, Lagoa Azul II e Quilombo Coração Valente. Minha gratidão também a todas as pessoas que compartilharam comigo seus conhecimentos, do início até o final deste trabalho. RESUMO O direito à moradia se tornou uma razão nas nossas cidades, de lutas e mobilizações de parte significativa da classe trabalhadora. Acontece sobretudo nas cidades médias e grandes, que se desenvolveram em processos de industrialização ocorridos, de forma mais acelerada, no século XX. Este trabalho de pesquisa foi motivado pela observação e atuação em movimentos populares, em diferentes cidades, com maior recorrência de movimentos pela pauta do direito à moradia. Jacareí, cidade onde se dá o processo da pesquisa, é uma cidade do estado de São Paulo, situada na Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte. A população de Jacareí, pelo censo demográfico de 2022, é de 251.591 (duzentos e cinquenta e um mil, quinhentos e noventa e um habitantes). Como observado em outros municípios, Jacareí também apresenta grandes demandas por moradia para a classe trabalhadora. Em decorrência dessa necessidade, territórios construídos a partir da ação de movimentos populares, buscando o direito à moradia, já fazem parte da paisagem da cidade. Assim como em outras cidades, também em Jacareí, nesses movimentos, se percebe o protagonismo das mulheres. Três territórios foram escolhidos para realização desta pesquisa: Ocupação Lagoa Azul II, Ocupação Quilombo Coração Valente e o bairro Jardim Conquista. O resultado do trabalho demonstra e confirma o protagonismo das mulheres nos movimentos populares de moradia. Palavras-chave: movimento popular, protagonismo das mulheres, direito à moradia, direito à cidade. ABSTRACT The right to housing has become a reason in our cities for struggles and mobilizations of a significant part of the working class. It occurs mainly in medium and large cities, which developed in industrialization processes that occurred more rapidly in the twentieth century. This research work was motivated by the observation and action in popular movements, in different cities, with a greater recurrence of movements for the right to housing agenda. Jacareí, the city where the research process takes place, is a city in the state of São Paulo, located in the Metropolitan Region of Vale do Paraíba and North Coast. The population of Jacareí, according to the 2022 demographic census, is 251,591 (two hundred and fifty-one thousand, five hundred and ninety-one inhabitants). As observed in other municipalities, Jacareí also has great demands for housing for the working class. As a result of this need, territories built from the action of popular movements, seeking the right to housing, are already part of the city's landscape. As in other cities, also in Jacareí, in these movements, the protagonism of women is perceived. Three territories were chosen for this research: Lagoa Azul II Occupation, Quilombo Coração Valente Occupation and the Jardim Conquista neighborhood. The result of the work demonstrates and confirms the role of women in popular housing movements. Keywords: popular movement, women's protagonism, right to housing, right to the city. RESUMEN El derecho a la vivienda se tornó una razón en nuestras ciudades, de luchas y movilizaciones de parte significativa de la clase trabajadora. Ocurre sobre todo en las ciudades de medio y gran porte, que se desarrollaron en procesos de industrialización que ocurrieron, de manera más acelerada, en el siglo XX. Este trabajo de investigación fue motivado por la observación y actuación en movimientos populares, en diferentes ciudades, con mayor recurrencia en torno de la pauta de habitación. Jacareí, donde ocurre la investigación, es una ciudad del estado de San Pablo, situada en la Región Metropolitana del Vale do Paraíba y Litoral Norte. La población de Jacareí, por el censo demográfico de 2022, es de 251.591 (doscientos cincuenta y un mil quinientos noventa y un habitantes). Como fue observado en otros municipios, Jacareí presenta también grandes demandas por habitación para la clase trabajadora. En función de esta necesidad, los territorios construidos a partir de la acción de movimientos populares buscando el derecho a la vivienda ya son parte del paisaje de la ciudad. Así como en otras ciudades, también en Jacareí, e estos movimientos, se percibe el protagonismo de las mujeres. Fueron escogidos tres territorios para la realización de esta investigación: Ocupação Lagoa Azul II, Ocupação Quilombo Coração Valente y el barrio Jardim Conquista. El resultado del trabajo demuestra y confirma el protagonismo de las mujeres en los movimientos populares por habitación. Palabras llave: movimiento popular; protagonismo de las mujeres; derecho a la habitación; derecho a la ciudad. LISTA DE IMAGENS Imagem 1- Mapa do município de Jacareí ..............................................................21 Imagem 2- Vista de satélite, territórios Lagoa Azul I e II...........................................22 Imagem 3- Vista de satélite, Ocupação Quilombo Coração Valente........................23 Imagem 4- Vista de Satélite, bairro Jardim Conquista.............................................25 Imagem 5- Foto de rua da Ocupação Lagoa Azul II.................................................32 Imagem 6- Reintegração de posse na Ocupação Pinheirinho em S. José dos Campos..........................................................................................38 Imagem 7- Foto da comunidade na Ocupação Quilombo Coração Valente ............39 Imagem 8- Foto da Ocupação dos Sem-Teto do Meia Lua......................................46 Imagem 9- Foto Sem-Teto do Meia Lua e Jardim Conquista...................................53 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS Covid19 Doença por coronavírus2019 DEPRN/SMA Departamento Estadual de Proteção de Recursos Naturais, Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo FGTS Fundo de Garantia do Tempo de Serviços GRAPROHAB Grupo de Análise e Aprovação de Projetos Habitacionais, vinculado à Secretaria da Habitação (SP) IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística MP Ministério Público MSTS Movimento dos Sem-Teto de Salvador PD Plano Diretor PDOT Plano Diretor de Ordenamento Territorial PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PSTU Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados REURB Regularização Fundiária Urbana REURB-S Regularização Fundiária de Interesse Social SAAE Serviço Autônomo de Água e Esgoto SindMetal SJ Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos SFH Sistema Financeiro de Habitação SP Estado de São Paulo TAC Termo de Ajustamento de Conduta ZEIS Zona Especial de Interesse Social SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................13 2 IDENTIFICAÇÃO DOS TERRITÓRIOS ESTUDADOS...................................20 2.1 Ocupação Lagoa Azul II ...............................................................................21 2.2 Ocupação Quilombo Coração Valente........................................................23 2.3 Jardim Conquista...........................................................................................24 3 LUTA PELA MORADIA: MOVIMENTO SOCIAL? POPULAR? SOCIOTERRRITORIAL? PENSANDO ESTA CATEGORIA..........................27 4 O PROTAGONISMO DAS MULHERES NA LUTA POR MORADIA..............30 4.1 Ocupação Lagoa Azul II ................................................................................31 4.2 Ocupação Quilombo Coração Valente .........................................................37 4.3 Jardim Conquista ..........................................................................................40 4.3.1 Moradia e territórios: protagonismo das mulheres, razão e lutas ............42 4.3.2 Território em questão: a luta não acabou ....................................................53 4.3.3 Jardim Conquista: algumas considerações ................................................56 5 AS LUTAS CONTINUAM ................................................................................58 5.1 As lutas em cada território ............................................................................58 5.2 As Mulheres no Planejamento urbano - Revisão do Plano Diretor de Jacareí .......................................................................................................60 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................64 REFERÊNCIAS...............................................................................................67 13 1 INTRODUÇÃO O tema deste trabalho é o protagonismo das mulheres nos movimentos de moradia, na cidade de Jacareí - SP: ocupações Lagoa Azul II, Quilombo Coração Valente e bairro Jardim Conquista, de 1999 a 2020. Tratar aqui desse protagonismo na questão da moradia representa apenas um recorte nas lutas diárias das mulheres; mulheres da classe trabalhadora. Compreender as razões da mulher ao dar importância a uma casa, onde possa estar com suas crianças, onde ela recria constantemente a força de trabalho, conforme Federici (2018), exige uma reflexão histórica. Talvez haja uma falsa compreensão deste fenômeno; deve-se compreendê-lo a partir de momentos da história das sociedades. O desenvolvimento do sistema de produção capitalista, nas suas diferentes fases, somado à refuncionalização que o capitalismo faz do patriarcado, fez surgir uma forma de dominação da mulher: que a mulher deve ser “dona de casa”. A autora Silvia Federici, (2018), nos ajuda a perceber, que sendo a fundamentação do capitalismo a exploração da força de trabalho, a mulher tinha que ser um dos seus principais elementos de dominação. Nesse sentido, em meados do século XIX, no padrão civilizatório europeu, se define que o lugar da mulher não é nas formas de trabalho remunerado, mas em casa, dona de casa. Deve ser a cuidadora da casa, da sua prole, ou apenas do seu homem assalariado, recriando a força de trabalho. Deve cuidar daquele (o homem) que vende sua força de trabalho, em troca de salário. Salário, que em tese, significa a renda que garanta a sobrevivência da família proletária. Família que já não contava com qualquer meio de produção, na transição do feudalismo para o capitalismo. Entretanto, não há dúvida de que, na ‘transição do feudalismo para o capitalismo’, as mulheres sofreram um processo excepcional de degradação social que foi fundamental para a acumulação de capital e que permaneceu assim desde então (FEDERICCI, 2017, p. 146). Esta categoria, dona de casa, carrega no seu conjunto, e também condiciona a ela, todo o papel histórico da mulher e a relação com a acumulação primitiva do capital. Aqui, a mulher como dona de casa, sob o ponto de vista da sociedade europeia, no processo da organização do capitalismo, saindo do modelo feudal. A mulher deveria cuidar das casas e com quem viviam, deixando os trabalhos nas fábricas e oficinas para os homens. 14 No processo de recriação da vida definida por Marx (1987), para a mulher, se inclui sobretudo a geração e criação dos filhos e filhas. Geração e criação significam cuidados. Esta afirmação, fazemos considerando uma observação: parte da visão colocada pelo sistema de produção capitalista estruturado também no patriarcado. Conforme Federicci (2017), as mulheres passam então a ser submetidas totalmente ao controle estatal e dos homens. O papel histórico das mulheres deve ser analisado a partir de cada processo histórico de organização das sociedades. A antropologia social nos ajuda fazer essa separação. A construção histórica da mulher dentro de modelos tribais não pode ser comparada com a de um modelo feudal, ou escravagista, e muito menos de um modelo capitalista. Na América Latina é possível se afirmar que a definição dos papéis sociais da mulher sofre uma conjunção dos vários modos de produção servil e do escravagismo. Estas duas matrizes criam o papel da mulher nas bases de construção do capitalismo colonial, também no processo da acumulação primitiva. Os modelos tribais foram reprimidos violentamente, seja através de mudanças das suas relações com a função do trabalho, seja através da dominação ideológica. O papel da dominação ideológica foi fortemente cumprido pelo colonialismo religioso, como o relatado por Silvia Federicci, se referenciando na antropóloga Eleanor Leacock. A intervenção dos Jesuítas franceses na disciplina e no controle e no treinamento dos Innu, no Canadá, durante meados do século XVII, nos dá um exemplo revelador de como se acumulavam as diferenças de gênero. [...] Observaram que os Innu careciam de concepções como propriedade privada, autoridade, superioridade masculina e, inclusive, recusavam-se a castigar seus filhos [...]. Os jesuítas decidiram mudar tudo isso [...] (FEDERICCI, 2017, pp. 220-221). A criação da categoria “mulher dona de casa” objetivava a sua retirada de dentro das fábricas e oficinas, nos países europeus, onde se desenvolvia inicialmente o modo capitalista de produção. Diante desse processo histórico, surge uma pergunta: como se transferiu para as colônias, as múltiplas formas de exploração sobre as mulheres? Colônias onde se reúnem todas as matrizes indicadas acima? A resposta ou respostas exigem uma reflexão dentro de recortes de tempo. Visando a implantação e o desenvolvimento do capitalismo, como forma de produção econômica, os processos de colonização avançaram sobre as nações latino-americanas. Processos agudos de espoliação, com vistas à acumulação 15 primitiva do capital. As mulheres, indígenas de diferentes culturas originárias, as negras escravizadas, também de diferentes culturas de organização social, conforme Federicci 2017, também foram submetidas a diversas formas de espoliação e dominação. Esses processos são percebidos observando a geografia do desenvolvimento capitalista nas periferias e na construção dos espaços capitalistas (HARVEY, 2005). Os arquitetos da história, de acordo com Marx (1987), ao contrário de todos os tipos de animais não humanos, continuam transformando a natureza através do trabalho, e nessa relação se transformando. O trabalho foi apropriado para realizar a acumulação capitalista. Diferentes formas de apropriação. O urbano histórico está nesta construção do espaço enquanto espaço social e, segundo a Professora Arlete Moysés Rodrigues (1988), tem que ser considerado dentro de uma construção histórica. A proposta desta pesquisa se insere em uma realidade produzida pelo capitalismo urbano, que configurou o formato das cidades como conjunto de territórios construídos a partir de correlações de forças, de acordo com Raffestin, (1993). Nesse sentido temos também a afirmação da Professora Ana Fani A. Carlos (2017), que, a construção da cidade capitalista se dá através de lutas políticas, construindo espaços e territórios. Trazemos para dentro desse debate, sobre o urbano capitalista, o papel da mulher trabalhadora, especialmente na luta pela moradia. A motivação se deu a partir da percepção da presença significativa das mulheres como protagonistas em diferentes movimentos pela moradia. Porém, para objetivar esse estudo, como já dito acima, alguns recortes foram necessários. Os recortes definiram então o tema a ser desenvolvido bem como os objetivos desejados como resultados. “O protagonismo das mulheres nos movimentos de moradia, na cidade de Jacareí - SP: ocupações Lagoa Azul II, Quilombo Coração Valente e bairro Jardim Conquista, de 1999 a 2020”. Com este tema estão definidos os recortes espacial, de territórios e de tempo. O objetivo geral será identificar e analisar a dinâmica do protagonismo das mulheres nos movimentos de moradia, nos recortes indicados. Os específicos serão três. Primeiramente, identificar as formas de organização política do movimento de luta pela moradia na cidade de Jacareí, SP, com os recortes espacial, territorial e temporal indicados. A seguir, caracterizar as formas de atuação e exercício de 16 liderança política das mulheres: construindo protagonismos nos movimentos por moradia. E, por fim, observar, nestes protagonismos das mulheres, a relação histórica na busca por emancipação através da construção e reconstrução de seus territórios. Como indicado, este estudo tem como processos de estudos três ocupações urbanas. O primeiro Lagoa Azul II, uma ocupação ainda em luta pelo reconhecimento definitivo do direito efetivo de permanência de mais de quatrocentas famílias na área. O segundo, a ocupação Quilombo Coração Valente, também uma ocupação, onde, enquanto está sendo realizada essa pesquisa, centenas de famílias lutam contra idas e vindas de mandatos de reintegração de posse. E finalmente o Jardim Conquista, um território construído a partir de uma ocupação, em área próxima ao território que depois se tornou permanente. Todas as três ocupações, coordenadas por mulheres. Para seguir adiante, se faz necessário fazer memória e recorrer a alguém que pode ser símbolo do que representa, para a mulher, a luta pela moradia. Carolina Maria de Jesus nos ajuda nessa busca, ao dizer que As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. (2014, p.37) [...] Meu ideal é comprar uma casa decente para os meus filhos. Eu nunca tive sorte com homens. Por isso não amei ninguém (JESUS, 2014, p.189). A ocupação de um espaço urbano, com o objetivo da conquista da moradia é motivada por muitas razões. Além do direito à moradia, é uma luta também pelo direito à cidade, na amplitude de outros direitos. No primeiro capítulo será feita a identificação dos três territórios propostos. Pretendemos apresentar elementos sociogeográficos que nos coloquem dentro do estudo pretendido. Neles serão percebidos os propósitos e processos construídos ao longo desse fenômeno social que justificam sua investigação. O segundo capítulo traz a proposta de se aprofundar, ou avançar, a reflexão sobre uma categoria científica fundamental neste estudo: a definição e ou a conceituação de “movimentos populares”. A dinâmica das lutas sociais, no modelo de sociedades capitalistas, deve ser identificada com a clareza da luta de classes. Os movimentos populares devem ser percebidos a partir das razões de suas lutas e organização. Por isso a importância de uma definição que seja fiel no reconhecimento da natureza dialética das disputas políticas na construção de espaços e de territórios. 17 No terceiro capítulo apresentamos as reflexões e construções realizadas, no esforço de se demonstrar o protagonismo político das mulheres nos movimentos de luta por moradia. Considerando os recortes já indicados, serão apresentados os processos organizativos bem como semelhanças e diferenças em cada território construído. O último capítulo pretende fazer registro de situações atuais, (2022), que envolvem os três territórios, de formas particulares, nas teias do urbano capitalista. São questões relativas ao planejamento/ordenamento urbano, demonstrando que instrumentos jurídicos são ferramentas, muitas vezes, que legitimam a exclusão que fundamenta e explica as paisagens das cidades. As mulheres continuam presentes... Inicialmente, o envolvimento pessoal com os movimentos de moradia, em diferentes situações, motivou em grande medida esta pesquisa. Neste sentido, a pesquisa realizada pode ser qualificada também, de acordo com Carlos Rodrigues Brandão, como uma pesquisa participante. A conseqüência deste ponto de partida da pesquisa participante é o de que a confiabilidade de uma ciência não está tanto no rigor positivo de seu pensamento, mas na contribuição de sua prática na procura coletiva de conhecimentos que tornem o ser humano não apenas mais instruído e mais sábio, mas igualmente mais justo, livre, crítico, criativo, participativo, co- responsável e solidário (BRANDÃO, 1983, p.4). Nos três territórios analisados, a condição de realização da pesquisa se misturava também com a participação nas lutas de cada comunidade. Situações que serão demonstradas ao falarmos de cada caso. Isto demonstra novamente o que fala Brandão sobre a pesquisa participante: A este princípio de totalização associa-se a idéia de que, como integrantes de momentos da educação popular e de toda a desejada dinâmica dos movimentos populares, a pesquisa participante integra quatro propósitos já nossos conhecidos e que vale reunir aqui: a) ela responde de maneira direta à finalidade prática a que se destina, como um meio de conhecimento de questões sociais a serem participativamente trabalhadas; b) ela é um instrumento dialógico de aprendizado partilhado e, portanto, como vimos já, possui organicamente uma vocação educativa e, como tal, politicamente formadora; c) ela participa de processos mais amplos e contínuos de construção progressiva de um saber popular e, no limite, poderia ser um meio a mais na criação de uma ciência popular; d) ela partilha, com a educação popular, de toda uma ampla e complexa trajetória de empoderamento dos movimentos populares e de seus integrantes (BRANDÃO, 1983, p.23). No caso do Jardim Conquista, acompanhei especialmente em parte do período da ocupação, quando se organizou o movimento Sem-Teto do Meia Lua. Essa contribuição, através do conhecimento empírico, ajudou para a transcrição de fatos dessa história pesquisada. A partir daí, foram realizadas entrevistas, presenciais e 18 virtuais, análises documentais, pesquisas em jornais locais e revisão teórica. Nesta relação do processo de pesquisa também registramos a importância, como metodologia, o papel da oralidade, de acordo com Silvia Rivera (apud Zibecchi, 2020, p. 94). A experiência construída através da práxis se relata através da “palavra”, conforme Martinelli (2019, p.104). Na questão empírica, também há o acompanhamento dos três territórios, em atos relacionados a questões comuns, ou particulares de cada um. Questões atuais, durante o período da nossa pesquisa. No caso do Lagoa Azul II, são dinâmicas de organização interna. No caso do Quilombo Coração Valente e Jardim Conquista, lutas contra ameaças de reintegração de posse. Estive presente também em atos e lutas pela regularização fundiária e em questões de planejamento urbano (revisão do Plano Diretor), que envolvem os três territórios. A pesquisa foi feita priorizando-se dialogar com as lideranças que iniciaram e ou assumiram o processo da ocupação, com vistas a se identificar o protagonismo das mulheres nesses movimentos por moradia. A partir dessa identificação, pelas entrevistas, também pretendemos analisar a forma de organização e coordenação dos movimentos. Com as entrevistas, buscamos os esclarecimentos sobre a mobilização pela ocupação, suas motivações, a construção de um território, como uma práxis de lutas e sobre a organicidade interna nas ocupações. A escolha das entrevistas buscou identificar as mulheres que efetivamente se destacaram e/ou se destacam nos processos de construção dos territórios analisados. Nos três casos, a relação da pesquisa se deu também na participação nossa em momentos de lutas pontuais de cada movimento. Isto nos facilitou a percepção do perfil político destas mulheres. Enquanto perfis socioeconômicos, a exclusão urbana, as relações familiares com algum tipo de violência, questões raciais, perpassam por todas. Para o desenvolvimento da análise, foram feitos recortes temporais conforme especificados no tema do trabalho. Ainda sobre o Jardim Conquista, a análise documental foi utilizada especialmente para se compreender um segundo período observado, após a mudança do espaço ocupado, para o bairro definitivo. Para isso foram acessados processos judiciais, do Ministério Público e da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. 19 Finalmente, foi feita revisão teórica, permeando todo o desenvolvimento do trabalho, trazendo as categorias científicas e diálogos com diferentes autoras/es. Além de trazer com clareza as categorias aqui trabalhadas, as autoras/es apresentados oferecem teses já desenvolvidas que se relacionam com os fenômenos sociais aqui analisados. 20 2 IDENTIFICAÇÃO DOS TERRITÓRIOS O contexto do estudo do direito à moradia está inserido na compreensão do direito à cidade. Ao se falar sobre o direito à moradia, necessariamente fala-se da classe trabalhadora, pois é a esta classe que a cidade nega direitos. De acordo com Lefebvre, o proletário é expulso do centro das cidades, para que sejam preservados os privilégios da “classe dominante” (LEFEBVRE, 2015, p. 23). Com este entendimento, pode-se concluir por que as cidades apresentam uma geografia espacial excludente e segregacionista. Essa realidade urbana reafirma o que diz Castells, que “não há teoria de espaço que não seja parte integrante de uma teoria social” (CASTELLS, 2020, p.183). São forças políticas e sociais que constroem os espaços e os territórios. Neste sentido as cidades são espaços sempre em disputa, e assim também se constroem os territórios. A construção dos territórios a seguir está considerada dentro de um contexto de lutas pelo direito à cidade. O esforço desta reflexão será no sentido de entender que um território só existe dentro de um processo histórico; e dialeticamente, de acordo com Alenxandrina L. Conceição (2021), será na compreensão da realidade que surgirá essa categoria. Os territórios envolvidos neste processo de pesquisa localizam-se na cidade de Jacareí, estado de São Paulo. Como elementos resultantes de processos históricos, trazem também as marcas presentes na cidade, que por sua vez é resultado de disputas e transformações dos espaços. Uma história de dominação, escravização, exploração, expropriação e espoliação. A cidade de Jacareí carrega em sua história todo o processo de colonização imperial. De acordo com resumo simples de apresentação, na página oficial (digital) do município, de 2023, é um povoado dos anos de 1652, um século e meio após a invasão colonial no Brasil. Logo se elevou a condição de Vila, em 1653, e definitivamente à condição de cidade em 1849. Sua localização fez parte da estratégia colonizadora, inicialmente como caminho da mineração, ligando o interior do Estado de São Paulo às regiões de Minas Gerais, Rio de Janeiro e aos portos por onde se escoavam os produtos aqui explorados. O passo seguinte foi o contexto do período cafeeiro, na região do Vale do Paraíba, onde a cidade de Jacareí se insere. Em terceiro passo, Jacareí está dentro do eixo Rio-São Paulo, e faz parte do desenvolvimento enquanto circuito industrial. As 21 bases da sua organização política, econômica e social fundamentam-se, portanto em grandes processos de exploração de pessoas e dos bens naturais. IMAGEM 1 - Mapa do município de Jacareí Fonte: http://geosegovplan.jacarei.sp.gov.br/ (2023) 2.1 Ocupação Lagoa Azul II A ocupação Lagoa Azul II, igualmente ao bairro Jardim Conquista (ver Cap. 1.3), está localizada no município de Jacareí, e faz parte da região do distrito do Parque Meia Lua, conforme imagem abaixo. Localiza-se também na região norte da cidade. Está entre o bairro Parque Meia Lua e Rio Paraíba do Sul. http://geosegovplan.jacarei.sp.gov.br/ 22 IMAGEM 2 – Localização dos territórios Lagoa Azul I e II Fonte: Google Earth (2023) Esta ocupação realiza a disputa de um espaço, um território em construção. Na mesma imagem estão dois territórios gêmeos, na localização e no processo de construção histórico: Lagoa Azul I e Lagoa Azul II. O primeiro se distingue pelo aspecto de ruas alinhadas e coberturas escuras. É um território consolidado, urbanizado e regularizado sob o ponto de vista da regularização fundiária. Existe de fato para o Estado. Um território que é resultado de uma práxis que o transformou na medida em que se transformavam seus protagonistas. O segundo, com ruas não alinhadas, dimensões diferentes, e como diz o morador e músico Thiago Shino, na sua música, “[...] apresento minha favela Ruas de terra [...]. O caminho é estreito Igual as ruas dos setores” (SHINO, 2023). É um espaço onde pulsam diferentes disputas. Trata-se de uma área cuja titularidade é remetida a “particulares”. No entanto não há, até este momento da pesquisa, ação de reintegração de posse. O direito à moradia e à cidade se apresenta como pauta de luta e resistência nesse território. É também uma área que diante de duas situações, por natureza, contraditórias: primeiro uma região de várzea, proximidade com as margens do Rio Paraíba do Sul; segundo ser de grande interesse da mineração de areia. 23 A ocupação Lagoa Azul II, com suas quinhentas famílias, aproximadamente, está nesse contexto territorial. 2.2 Ocupação Quilombo Coração Valente IMAGEM 3 - Localização da Ocupação Quilombo Coração Valente Fonte: Google Earth (2023) O território Quilombo Coração Valente acontece em uma área situada na região oeste da cidade de Jacareí. Ocupa um espaço de uma área de titularidade reivindicada por particulares. Sua relação com a área urbana a coloca sobre fortes olhares da especulação imobiliária. Está em área de expansão urbana, dentro dos interesses de alargamento dos limites do perímetro urbano. A ocupação tem como vizinhança os bairros Bandeira Branca I e II. Esses bairros estão regulares e organizados no plano urbanístico da cidade: são atendidos pelos serviços urbanos, transporte público, equipamentos de saúde e educação. Todos os bairros com perfil sócio-político de periferia, classe trabalhadora. Espaço ocupado em 2018. 24 2.3 Jardim Conquista O bairro Jardim Conquista está localizado no município de Jacareí, no estado de São Paulo. Pela divisão administrativa da cidade ele faz parte da região do distrito do Parque Meia Lua, conforme imagem abaixo. Localiza-se na região norte da cidade. Esse distrito administrativo, de acordo com Milton Santos, enquanto região, traz um conjunto de “arranjos locais” que definem as relações na construção de espaços e territórios (SANTOS, 2017, p. 246). Mas Santos afirma ainda que, atualizando a definição anterior, pode-se dizer que esses arranjos são dinâmicos e por isso as “regiões se transformam continuamente” (SANTOS, 2017, p. 247). E nós acrescentamos que esses arranjos estão dentro de um contexto histórico. Alguns elementos podem determinar o conjunto de relações que ocorrem nessa região, onde foi construído o bairro Jardim Conquista. É uma região separada fisicamente da cidade (Jacareí) pela rodovia federal Presidente Dutra, e, ao seu lado norte, delimitada pelo Rio Paraíba do Sul. Durante muitas décadas foi uma região de intensa exploração de extração de areia, atividade hoje de menor intensidade por conta do avanço de legislações a respeito. Estas atividades, somando-se às características próprias de outras, motivadas pelas proximidades de grandes rodovias, fácil acesso aos centros urbanos de Jacareí e de São José dos Campos, favoreceram ao adensamento urbano deste distrito do Parque Meia Lua. A história da construção do bairro, o Jardim Conquista, enquanto território, se deu no contexto dessa região descrita. Foi resultado de um processo de organização popular, determinado por mobilização social e lutas, onde “os sujeitos constroem seus próprios territórios” (FERNANDES, 2009, p.209). Mas essa afirmação de Fernandes tem que fazer sentido somente a partir de Marx, na relação homem e natureza, na construção da história. É dessa forma que trata Zibechi (2020), ao afirmar que a construção de um território é uma ação coletiva, ocorrendo a apropriação material e simbólica de um espaço. Ainda, segundo Raffestin (1993), pode-se dizer que este bairro, Jardim Conquista, se tornou um território a partir de ações políticas, enquanto construção social caracterizada pelo movimento popular de moradia. Na imagem abaixo, identificamos como território “1” o espaço onde se realizou a ocupação; o território “2” trata-se do Jardim Conquista, construído para receber as famílias da ocupação. 25 IMAGEM 4 - Localização do bairro Jardim Conquista Fonte: Google Earth (2023) O espaço inicialmente ocupado fazia parte dessa região denominada de distrito, enquanto unidade administrativa municipal; isto considerando a definição dada por Santos (2017), do espaço como uma construção através da correlação entre sistemas e ações. Importante dizer aqui que falamos de espaço geográfico, conforme esclarece Fernandes (2005). De acordo também com Carlos (2019), em uma leitura dialética, esse espaço ocupado, embora omisso quanto à função urbana, está dentro da definição do espaço como resultado de uma construção humana. No passado ele deixou de ser somente terra e compôs um bairro, área institucional do Parque Meia Lua. Da mesma forma, segundo Santos, reforçando a ação humana na transformação dos espaços, “nada fazemos hoje que não seja a partir dos objetos que nos cercam” (SANTOS, 2017, p. 321). Mas também, temos que reforçar aqui, que esses mesmos objetos são historicamente transformados por nós, ao mesmo tempo em que nos transformamos. A identificação dessa área como institucional está em declaração do secretário de negócios jurídicos da Prefeitura de Jacareí, dada à época ao jornal Diário de Jacareí, conforme edição do dia 27 de agosto de 1999 (p. 3). Da mesma forma os registros das condições de total ausência de uso institucional da área, sendo classificada, pelos moradores do bairro e pelas famílias ocupantes, como área abandonada. Relatos que constam em edição do dia 26 de agosto, do mesmo jornal citado anteriormente. 26 Em 23 de agosto de 1999 esse espaço foi ocupado por famílias sem teto. Iniciava ali um processo de construção e organização de um movimento popular por moradia e um processo de construção de territórios. Conforme Raffestin (1993), uma construção territorial de acordo com um projeto formulado, dentro de uma disputa do e no espaço. O bairro Jardim Conquista está a um quilômetro da área originalmente ocupada, onde ele, na dinâmica de um movimento popular, começou a ser construído. Esse bairro torna-se o território definitivo, dentro de um ciclo de construção, alimentada, conforme Raffestan, (1993), por disputas entre forças políticas. Esse bairro recebeu então as 235 (duzentas e trinta e cinco) famílias da ocupação. 27 3 LUTA PELA MORADIA: MOVIMENTO SOCIAL? POPULAR? SOCIOTERRITORIAL? PENSANDO ESTA CATEGORIA... A definição e ou a conceituação de “movimentos populares” se faz necessária ao refletirmos sobre a luta pela moradia neste processo de pesquisa. A partir daí pretendemos que seja mais simples quando se aplicar esta categoria a outros movimentos. Aqui não há a pretensão da apresentação de uma novidade; mas a afirmação da nossa compreensão para que se some a outras elaborações. Queremos que seja uma contribuição no aprofundamento de reflexões já trazidas em outras pesquisas e em outras produções teóricas. A dinâmica das lutas sociais, no modelo de sociedade capitalista, deve ser identificada com a clareza da luta de classes. Por isso a importância de uma definição que seja fiel no reconhecimento da natureza das disputas políticas, na construção de espaços e de territórios. A construção das sociedades, construção histórica, ocorre através da disputa de poder, de embates hegemônicos entre forças políticas. Com esta afirmação apresenta-se a necessidade da definição da classe que se coloca em um movimento com objetivos de alguma forma de transformação social. É nesse terreno, que diferentes linhas de conceituação teórica trabalham com a definição de movimentos realizados na sociedade: movimento social, movimento socioterritorial, movimento social popular, movimento popular... Para a Professora Arlete Moysés, 1993, movimentos sociais são uma categoria que acolhe diferentes razões reivindicatórias, podendo ser de diferentes classes sociais. Muitas vezes unindo e acolhendo contradições históricas. E isoladamente, um movimento social pode ser de caráter tanto conservador quanto revolucionário. Partimos da premissa que o movimento por moradia é um movimento popular. O primeiro motivo é o entendimento, que popular, sob o ponto de vista da origem da palavra, é o que vem do povo, relativo ao povo (TORRINHA, 1939, p.865). Outra questão também fundamental é o universo espacial em que ora pensamos o que é um movimento popular: o contexto da construção das sociedades na América Latina, especialmente no Brasil. Sociedades construídas a partir de um processo de colonização, exploração e dominação realizadas pelos países europeus. Falaremos a seguir sobre a compreensão do significado da categoria “povo”, enquanto elemento teórico neste processo de pesquisa. 28 Cabe desta forma a identificação adequada do que seja movimento social, na sua amplitude, e o que deve ser caracterizado como movimento popular. Afirmamos anteriormente o entendimento, que popular, sob o ponto de vista da origem da palavra, é o que vem do povo, relativo ao povo. Essa afirmação provoca, necessariamente, um olhar para “povo” enquanto uma categoria sociológica e histórica. Neste sentido entendemos que o trabalho da Professora Luisa Rauter Pereira, (2010), traz elementos mostrando que essa categoria, no processo histórico da sociedade brasileira, representa uma classe despossuída de poder econômico/político. Ao mesmo tempo, percebia-se cada vez mais claramente a artificialidade da tripartição em três ordens – clero nobreza e povo – num mundo marcado pela escravidão, pela convivência de raças não brancas num espaço econômico e social amplamente diverso do europeu. As distinções se fluidificavam e complexificavam, tornando o conceito de povo sinônimo ou substituível pelas expressões plebe, vulgo, povo miúdo (PEREIRA, 2010, p. 112). A definição de movimentos sociais se dá dentro de um processo histórico da própria construção das sociedades. Há muitos autores e autoras que buscam caracterizar e identificar esse fenômeno social, em diferentes épocas. A professora Ângela Alonso, (2009), demonstra, que em meados do século XX, anos 1960, começa a surgir caracterização e descrição de movimentos sociais. Esta afirmação se dá analisando eventos, tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos, construindo a categoria “movimentos sociais” como elemento para se estudar e compreender algumas dinâmicas sociais. No entanto, para além do que é tratado nesta obra da autora, é necessário contemplar as lutas das populações da América Latina, em séculos passados, populações originárias ou populações africanas aqui escravizadas. Para Fernandes (2009), nas cidades, a luta pela moradia é caracterizada como movimento “socioterritorial”. Entendemos ser essa categoria útil para a geografia, enquanto metodologia, pois vincula determinados movimentos dentro do contexto de disputas de espaços e territórios. Mas enquanto definição de construção histórica se iguala ao entendimento amplo do que seja “movimento social”, dentro de uma concepção sociológica. Estes dois conceitos (ou categorias) não levam em consideração as lutas de classes. Ou seja, um movimento social ou socioiterritorial pode ser resultante de construção de força política tanto de uma classe como de outra: da burguesia ou da classe trabalhadora. Por isso a luta urbana pela moradia vai além de um movimento social ou socioterritorial: é uma das lutas da classe trabalhadora. Esta reflexão é resultado de uma releitura, pois para uma análise territorial, ancorada na Geografia como metodologia, aceitamos anteriormente a definição de 29 Fernandes, trazendo a luta pela moradia para dentro da categoria movimento socioterritorial. Mas é necessário refletir que a categoria movimento socioterritorial pode acolher, sob sua sombra, movimentos antagônicos. A luta pelo direito à moradia se dá dentro da construção dialética das cidades. Há um movimento de luta pela moradia porque há um movimento da burguesia que nega esse direito: o que pode ser compreendido na especulação imobiliária, enquanto movimento, ou na defesa da cidade e da moradia como mercadorias. Assim se dá a relação contraditória entre a cidade como valor de uso e como valor de troca. Esses movimentos dialéticos podem ser igualmente classificados como movimentos sociais e ou socioterritoriais, pois, previamente, não identificam em que classe social se dá a origem do movimento. Há o risco da ambiguidade e da generalidade da categoria movimentos sociais. Para Ângela Alonso trata-se de fenômenos sociais diversos, que identificados, são acolhidos igualmente em uma categoria de pouca definição teórica. Movimentos sociais seriam uma estruturação policêntrica, frouxa, de contornos ambíguos, englobando conexões formais e informais entre ativistas e organizações, pelas quais circulariam recursos, valores, informação, poder (ALONSO, 2009, p. 73). Os contornos ambíguos da categoria movimentos sociais nos leva à necessidade de uma definição, de qual tipo de movimento e a sua base motivadora de organização queremos observar. A nossa observação, sobre as lutas por moradia, se justifica em uma disputa histórica, tanto da construção das cidades quanto à moradia que historicamente fez parte do salário do trabalhador, conforme Engels, (2015). A Profa. Arlete Moysés também apresenta onde e por que razões ocorrem a construção ou o surgimento de um movimento que ela classifica como popular. Há um segundo grande grupo que corresponde às manifestações dos setores explorados e/ou dominados (exploração econômica e dominação política); constituem os movimentos populares, que utilizam, via de regra, como forma de expressão, eventos e manifestações organizadas com amplas parcelas de ‘comunidades’. Comunidade de iguais geradas pela pobreza ou mais explicitamente pela consciência das causas da pobreza (MOYSÉS, 1993, p.14). Concluímos pela definição, que movimento por moradia seja movimento popular. Uma terminologia que é suficiente em si mesma. Não há a necessidade de mais complementos. A luta por moradia é real e só existe pela exploração e espoliação da classe trabalhadora pelo modo de acumulação capitalista. 30 4 O PROTAGONISMO DAS MULHERES NA LUTA POR MORADIA [...] essas mulheres podem ter aprendido a extrair das circunstâncias opressoras de sua vida a força necessária para resistir à desumanização diária [de qualquer tipo] de escravidão (DAVIS, Ângela, 2016, p. 24). O direito à moradia, e moradia digna, embora seja de proclamação universal, na sociedade de classes ele não é tratado como tal. Isso porque o capital determina que ela pode ser transformada em mercadoria. Assim se orienta a construção da cidade, um espaço de permanentes disputas. A cidade que, conforme Lefebvre, deveria ser de valor de “uso”, passou a ter valor de “troca” (LEFEBVRE, 2015, p. 26- 127). Ainda, segundo Lefebvre, o direito à cidade é a base de outros direitos, e, em certa escala, ele afirma que “o direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos” (LEFEBVRE, 2015, p. 134). Nesse sentido temos também a afirmação da Professora Ana Fani Carlos (2017), que a conquista do direito à cidade se dá através de lutas políticas, construindo espaços e territórios. O contexto do estudo do direito à moradia está inserido na compreensão do direito à cidade. Ao se falar sobre o direito à moradia, necessariamente fala-se da classe trabalhadora, pois é a esta classe que a cidade nega direitos. De acordo com Lefebvre, o proletário é expulso do centro das cidades, para que sejam preservados os privilégios da “classe dominante” (LEFEBVRE, 2015, p. 23). Com este entendimento, pode-se concluir por que as cidades apresentam uma geografia espacial excludente e segregacionista. Essa realidade urbana reafirma o que diz o sociólogo espanhol Manuel Castells, que “não há teoria de espaço que não seja parte integrante de uma teoria social” (CASTELLS, 2020, p.183). Nesse sentido as cidades são es paços sempre em disputa, e assim também se constroem os territórios. São forças políticas e sociais que constroem os espaços e os territórios. Os movimentos populares por moradia se apresentam como essas forças. A ocupação de um espaço urbano, com o objetivo da conquista da moradia, é motivada por muitas razões. Com base nessas premissas, a pesquisa realizada por este trabalho, demonstra, que a construção destes direitos à cidade e à moradia, se dá através de movimento, disputas de espaços e de territórios, um processo histórico. Este trabalho apresenta a ocupação e a construção de um território, a construção e organização de 31 um movimento popular por moradia, com sustentação política no protagonismo das mulheres. 4.1 Ocupação Lagoa Azul II Contra essas formas de essencializar o comum, contra toda crítica ao comum que o reduza à qualidade de um juízo ou de um tipo de homem, é preciso afirmar que somente a atividade prática dos homens pode tornar as coisas comuns, do mesmo modo que somente essa atividade prática pode produzir um novo sujeito coletivo, em vez de afirmar que tal sujeito preexista a essa atividade na qualidade de titular de direitos. Se existe ‘universalidade’, só pode tratar-se de uma atividade prática, ou seja, a de todos os indivíduos que, em dado momento e em dadas condições, se encontram engajados em uma mesma tarefa (DARDOT e LAVAL, 2017, p. 53). A Ocupação Lagoa Azul II iniciou-se em 2016. Hoje, 2023, é uma comunidade com aproximadamente quinhentas famílias. Reafirma o que Dardot e Laval mostram que o comum, além de ser resultado de uma práxis, é uma práxis coletiva. Como em todos os sistemas de moradias precárias, Lagoa Azul II é um espaço desprovido de infraestrutura urbana. O que existe lá, como água potável e energia elétrica são soluções provisórias encontradas e resolvidas pela própria comunidade. Isto depois de aproximadamente sete anos de transformação de um espaço em um território, conforme Raffestin, (2009), através de muita resistência e energia coletiva transformadora. As tubulações, de água tratada que chega na maior parte das moradias, foram resultado de um processo coletivo. A comunidade comprou a tubulação, as demais conexões e outros acessórios necessários e, em mutirão, realizou toda a implantação da rede de águas. O ponto inicial da rede, no acesso principal da comunidade, foi implantado pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE). Esse serviço público só se deu a partir da mobilização da comunidade e com a mediação da Defensoria Pública, em 2020. A energia elétrica continua, ainda nestes sete anos de construção do território Lagoa Azul II, de maneira extremamente precária. Quanto aos serviços de infraestrutura, o Município é totalmente ausente: não existe rotina de cuidados com relação à manutenção das ruas internas do território. 32 IMAGEM 5 - Foto de rua da Ocupação Lagoa Azul II Foto: Paulo J. de Oliveira (2022) O nome da ocupação se deu por se tratar de área contígua ao bairro Lagoa Azul, resultado também de uma primeira ocupação. Esse primeiro território passou por todo o processo de ocupação precária, regularização fundiária e urbanização. Por isto o novo território passa a se chamar Lagoa Azul “II”. O processo inicial da ocupação, organização, mobilização, bem como do sistema de coordenação, não são atingidos por esta pesquisa. Sabemos que inicialmente fora coordenado por homens. Ainda no processo inicial da ocupação, este trabalho não se ateve em que momento, faz parte do coletivo de ocupantes a mulher chamada Rose. Ela e suas crianças. Rose assume a coordenação do movimento por voltas do ano de 2017. Possivelmente antes do primeiro aniversário do movimento. Negra, nascida no estado do Rio de Janeiro. Mãe de duas crianças, separa-se do então companheiro e tenta reaproximação com a família paterna. Sem o devido acolhimento e por conflitos nessa nova relação familiar, é obrigada a reconstruir sua 33 vida em outros caminhos. Na nossa conversa, Rose afirma que foi “obrigada” a deixar, se afastar da sua família paterna. Muda-se para Jacareí, SP, apoiada por um parente que a recebeu. As crianças, uma menina e um menino, ela precisou deixá-los aos cuidados de parentes no Rio de Janeiro. Só mais tarde pode tê-los consigo, mas não de forma definitiva, pois a menina tinha também a proteção da avó materna. A mudança de Rose para Jacareí se deu por voltas de 1999. Acolhida por parente, acaba se envolvendo também nas atividades desse seu parente. Conviveu por um tempo, até o ponto em que foi instada a ampliar esse seu envolvimento: “era [atividade ilícita] com a qual eu não concordava” disse ela. Com uma nova relação amorosa ela teve outro menino. Ainda na busca de outra vida, afasta-se da relação até então construída com o parente que motivou sua vinda para Jacareí. O motivo desta ruptura de relações foi o fato dela não concordar com outras propostas: “não aceitei drogas nem prostituição na minha vida”. Por duas noites, conta Rose, “dormi com duas crianças em baixo de uma ponte”. Insiste na busca de trabalho e onde morar. Toma conhecimento do movimento dos Sem-Teto do Meia Lua. Junta-se ao grupo que ocupara a área pública no bairro do Meia Lua. (Cap. 3.3). Neste período nasce outro filho, com a então relação assumida na cidade de Jacareí. Consegue creche para suas crianças e trabalho também. Participa do movimento até a mudança para o Bairro Jardim Conquista, conforme descrito no capítulo seguinte. Passado algum tempo Rose tem que deixar também a nova moradia, segundo ela, para “proteger o filho”. Consegue trabalho e aluguel em outro bairro. Em algum desses momentos ela assume em definitivo a condição de mãe-solo. A condição racial e de gênero está presente na exclusão social, na negação de direitos e na opressão urbana. O caso que aqui refletimos trata-se de fenômeno presente nos movimentos populares de moradia, conforme mostra estudos no MSTS, Movimento dos Sem-Teto de Salvador, feitos por Luciana da Luz Silva. “Tal objetivo não pode ser alcançado sem considerar as relações de gênero, raça e classe, uma vez que a maioria das pessoas que integram o MSTS hoje são mães solteiras, negras e desempregadas ” (SILVA, 2009, p. 15). A comunidade Lagoa Azul II era invisível para o resto da cidade de Jacareí. Inclusive com o estigma de que, lá, os serviços do Estado eram impedidos de entrar. Mas, a tradução direta desse estigma é a verdadeira ausência do Estado, na ausência efetiva de garantias dos direitos à moradia e, de forma mais ampla, do direito à cidade. 34 Conversando com a Rose, ela afirma: “para o posto de saúde, nossa comunidade não existia. ” A visibilidade da comunidade é reafirmada especialmente após a passagem do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, censo demográfico de 2022. Entrou na comunidade, e a partir de então, segundo Rose, “os serviços de saúde passaram a entrar também”. A coordenação da comunidade passa a experimentar os cuidados da mulher. O contato desta pesquisa com a comunidade Lagoa Azul II começou mesmo antes da pesquisa: na nossa militância junto aos movimentos populares urbanos. Houve tentativa de se construir uma coordenação colegiada, a Rose motivando essa construção. Não prosperou. A então coordenadora, que assumiu efetivamente a representação da comunidade, assume papel protagonista de apostar na consolidação definitiva da comunidade enquanto um território permanente. Moradia para mais de mil pessoas, como ela admite. Neste tempo, ela se considera responsável por todas e todos: “o que eles passam na pele, eu passo em dobro. ” De acordo com o acompanhamento de Rose, há significativo número de mães solos, algumas com vários filhos. A questão racial está presente: ela é negra e há significativa parte da comunidade negra; questão não apurada. Há também o registro imigrantes latino-americanos participando da ocupação. Quando falávamos sobre a autodeclaração racial ela fez comentário que, “a definição de ‘cor parda’ é uma tentativa de branqueamento”. Sobre o perfil da coordenação, pudemos acompanhar esse processo desde antes da presente pesquisa. Não há indícios de influência partidária, de nenhuma definição ideológica. Há sim presença de diferentes ações assistencialistas. Isto desarticula o empoderamento e a construção da autonomia do movimento. Por alguma razão há dificuldades de se construir algo coletivo, uma coordenação partilhada. Com grande probabilidade que seja por necessidade de uma prática formativa; durante esta pesquisa houve a tentativa de abrirmos esse caminho, mas deve ser um processo específico nesse sentido, em outro momento. Com isto, a coordenação segue bastante personalista, tanto pela representatividade, que gera cobranças sobre uma única pessoa, quanto a ideia de uma tarefa árdua. Por um lado, Rose entende e admite não conseguir agradar a todos, 35 mas ao mesmo tempo se sente responsável por todos, como ela se vê: “ser pai e mãe de 500 famílias, em torno de 1200 pessoas”. Indicando a necessidade de outros momentos com essa comunidade, apresentamos aqui um retrato musicado por um dos seus moradores, Thiago Shino, (2023). Título: Lagoa Azul 2 Ow Salve Shino Davi Normed Ae, nossa quebrada tio Pega a visão Licença aqui meu parça Te apresento minha favela Ruas de terra E os curtos na rede elétrica O caráter é a luz que vale Mesmo a luz de vela Um banho de caneca É um apocalipse pra esses nutella Enquanto cês desperdiçam sucrilhos Nóis vivemo a sequela Me apaixonei pela quebrada Amor pela favela Acolhido nobremente Por cada alma singela Trabalhadores com garra Sobrevivendo a guerra Mesmo com os dramas é meu recanto Requinte nos maderites Sou semente regada A goteira nos brasilites O caminho é estreito Igual as ruas dos setores Sobreviventes superando Os dias maus e as dores Como sempre O trampo ta osso Mas nóis não se rende ao ócio Alguns capinam um lote Outros do crime viram sócio E os que anseiam meu mal Dão tapinha nas costas Seu elogio vale tanto quanto Dejetos na fossa 36 Tenho uma coleção de guizos Busquei mistura no rio Lagoa Azul 2 Muita treta pra Barry Gauis E as tiazinha prendada Que as tábua do barraco até brilha Cê vê que pobreza e porquice São coisas distintas E o tiozão enfartou ontem No barraco a noite fria O rabecão veio buscar No fim da tarde do outro dia Respeito é respeito Seja a quebrada que for Já vi malandrão intimidando os moradô É fácil peitar mulher Pagar de justiceiro Afrontar os pai de família que sai Pra labuta cedo Meu respeito aos heróis Que tem a marmita sem mistura Já vendeu latinha e papelão Mas nunca vendeu a postura A quebrada é altas e baixos Eufóricos, melancólicos Já vi troféus e diplomas Já vi um corpo no córrego Realidade é cruel Hilária a cena corriqueira Ver os animais devastando lá A nossa lixeira Cachorro, pato, ganso Galinha, cavalo, bode fazendo bééé Deram fuga da arca E ninguém acha esse Noé Pro talarico xii É fatality A mentira se decompõe com o tempo Igual cercados de pallets Sempre surge um iscariotes Distribuindo ósculos Tava fechado com nóis Do nada ficou caustrofóbico Negativista reclama até dos progresso Que nóis conseguiu Pensamento mais podre que os pontaletes Que segura os fio 37 Salve comunidade salve os de olhar sincero A definição de vida vai além dos seus castelos Na base do respeito que sabota propôs Jacacity L G A 2 Salve comunidade salve os de olhar sincero A definição de vida vai além dos seus castelos Na base do respeito que sabota propôs Fecha! (Fonte: Musixmatch - Compositores: Thiago Shino – 2023) Através da música, esse morador e também um líder na comunidade registra um momento coletivo na construção desse território, Lagoa Azul II. Demonstra o sentimento de pertencimento que o faz legitimamente se entender como comunidade. Apresenta os cuidados coletivos que alertam a vida diária do território. Denuncia problemas, mas sobretudo identifica a unidade que se dá mesmo nas lutas e nos processos individuais da construção histórica das suas vidas. 4.2 Ocupação Quilombo Coração Valente O nome Quilombo Coração Valente, dado ao território que estudamos, é muito mais o nome de um movimento popular por moradia, que se transfere ao processo de construção do território. Isto porque, o espaço ocupado atualmente é a segunda ocupação com o mesmo nome, após reintegração de posse realizada em uma primeira área, também em Jacareí, em 30 de outubro de 2018. Atualmente Quilombo Coração Valente se tornou uma associação formalizada. Maria Elisângela da Silva é a líder desse movimento. Pernambucana, negra autodeclarada, mãe solo. Fez parte da história do Pinheiro, em São José dos Campos, SP, onde ocorreu uma violenta reintegração de posse em 2012 (SPILLEIR, 2019). https://www.musixmatch.com/ 38 IMAGEM 6 - Ocupação Pinheirinho em S. José dos Campos Fonte: Jornalistas Livres 2022 A atual ocupação se compõe de aproximadamente 300 (trezentas famílias) famílias. Ela conta que, as famílias que a acompanham, desde a primeira ocupação, não têm nenhuma outra alternativa de moradia, por isso ingressaram no movimento. Ela conta que, se “sente responsável por essas famílias”. Está passando por um momento (2023) de boas esperanças: após a decretação de área de interesse social, pela Prefeitura local, entra na fase de avançar nas negociações com o Poder Público. Elisângela garante que toda a área terá que ser desapropriada, para que caiba todas as famílias que ocupam a área atualmente. “Que fique todo mundo”, assim ela reafirma sempre que se senta em mesas de negociação com o poder público. 39 IMAGEM 7 - comunidade na Ocupação Quilombo Coração Valente Fonte: divulgação SindMetal S. J. 2020 A líder do Coração Valente, assim que se apresenta, problematiza um fenômeno recorrente em movimentos de moradia, a impossibilidade de permanência em um imóvel fruto de uma política pública. Ela afirma que muitas famílias, muitas vezes por ameaças locais e outras influências decorrentes de práticas ilegais, pela proteção da família, são obrigadas a desistir da moradia alcançada. Nesses casos as pessoas perdem o direito de se reinscreverem em outros projetos de moradias populares. Nesse sentido, a Associação Quilombo Coração Valente se constitui e quer fazer a gestão do futuro projeto de moradias “sem peneira”. É a maneira como ela se refere aos filtros, exigências, como pré-requisitos para inscrição em outros programas habitacionais, devido a desistências anteriores. A comunidade Quilombo Coração Valente se organiza internamente com uma comissão de coordenação composta por cinco pessoas, sendo três mulheres e dois homens. As decisões são tomadas em assembleias. Sobretudo as questões de ordem 40 disciplinares, diante de regras definidas coletivamente. Segundo Elisângela, “homem que espanca mulher vai pra rua”. Há apoios externos, entre eles apoio partidário do PSTU, Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados e também de sindicatos. Para Elisângela, o movimento “não tem partido”, mas há essa parceria para apoios logísticos, como “carro de som e lanches nos nossos atos”; inclusive o “advogado que representa o movimento é do partido”. No período da pandemia da covid19, doença por coronavírus 2019, início do ano de 2020, houve a recomendação de restrição à circulação de pessoas, com a orientação da permanência das famílias em suas casas. Situação difícil para as ocupações, pois em moradias precárias, os cuidados sanitários nem sempre era possível. Mas Elisângela afirma com alegria: “aqui não morreu ninguém”. E afirma ainda que “contamos com a solidariedade das pessoas, ongs e da Prefeitura, ficamos todos quietos aqui. ” A comunidade Quilombo Coração Valente conta hoje com uma horta comunitária. Essa horta foi construída e cultivada durante o período da pandemia da covid19. A líder da comunidade conta com orgulho, que essa horta hoje serve de fonte de bons alimentos para as famílias. Sobre as mulheres da ocupação, “aqui tem muitas mulheres, negras, mães solos. Algumas saem para trabalhar como domésticas, outras na reciclagem, mas todas se ajudam...”, afirma Elisângela. Sabemos que nos movimentos populares de moradia se evidencia a exclusão social de múltiplas formas. Mas com certeza, nas ocupações se evidencia também o que Lélia Gonzales afirma [...] que, no caso brasileiro, os mais baixos níveis de participação na força de trabalho, ‘coincidentemente’, pertencem exatamente às mulheres e à população negra. [...]. No período que imediatamente se sucedeu à abolição, nos primeiros tempos de ‘cidadãos iguais perante a lei’, coube à mulher negra arcar com a posição de viga mestra de sua comunidade. Foi o sustento moral e a subsistência dos demais membros da família. Isto significou que seu trabalho físico foi decuplicado, uma vez que era obrigada a se dividir entre o trabalho duro na casa da patroa e as suas obrigações familiares (GONZALES, 1979, p.3, 13). 4.3 Bairro Jardim Conquista Inicialmente foi feita a caracterização do Jardim Conquista, enquanto território, que só existe a partir de um movimento popular por moradia. Está localizado no 41 município de Jacareí, no estado de São Paulo. Pela divisão administrativa da cidade, ele faz parte do distrito do Parque Meia Lua, região norte da cidade. O momento inicial, considerado nessa pesquisa, compreende a mobilização, ocupação e o tempo de permanência em uma área pública. Esse período se encerrou com a mudança das famílias, saindo das condições de moradia precária, de habitação em barracos, para suas casas construídas no bairro projetado e construído para recebê-las. Depois se registra o segundo período, a partir das mudanças das famílias; a partir daí, até o momento da pesquisa, as condições atuais em que se encontra esse território. Em seguida, é descrito como se deu a luta pelo direito à moradia, enquanto processo de construção de território. Nesse contexto nasce o movimento popular dos Sem-teto do Meia Lua, liderado por mulheres. São analisadas as estratégias e táticas que garantiram oito anos de ocupação, com a vida sendo recriada dentro de barracos de lona e de madeira. Houve conflitos e riscos, mas enfrentados de forma coletiva. No caso do Jardim Conquista, há propósitos e processos construídos ao longo desse fenômeno social que justificam sua investigação. O território do Jardim Conquista está a um quilômetro da área originalmente ocupada, onde ele, na dinâmica de um movimento, começou a ser construído. Na relação com o poder público ocorreram disputas, conflitos e acordos. O segundo momento desta pesquisa se encerra com a mudança das famílias, dos barracos para as casas, onde deveria ser um território definitivo. Realizou-se uma das bandeiras de luta, que unificava o movimento: teria que ser um espaço onde coubessem as 235 (duzentas e trinta e cinco) famílias da ocupação. Finalmente, com a mudança para as casas, a expectativa era ressignificar a luta do movimento, com vistas a outros direitos individuais e coletivos. No entanto, a defesa desse território se apresentou, a partir de então, em uma condição não imaginada pelas lideranças entrevistadas: tão logo recebeu as famílias, para quem e por quem ele foi construído, surge a ameaça de retirada das mesmas, mesmo o bairro tendo sido construído dentro de todos os processos legais. O Jardim Conquista, de um território imaginado, desejado, concebido e construído coletivamente, passou a ser um território ameaçado. A relevância desta situação foi identificada a partir das entrevistas e do acesso a processos que tramitam na justiça, nas instâncias locais e estaduais. 42 Dois processos judiciais, na vara da Fazenda Pública de Jacareí, com trâmites em instâncias estaduais, trazem os detalhes dessa “conflitualidade” que, conforme Fernandes (2009, p. 203), de alguma forma, permeia sempre a construção dos territórios. O bairro passa a viver uma realidade de insegurança. O movimento dos Sem- teto do Meia Lua está provocado a assumir lutas em outras dimensões. Há uma disputa colocada: agora em espaços e territórios que não estão no mesmo plano que o Jardim Conquista, mas construídos na tecnocracia do Estado, conforme Lefebvre (2015). 4.3.1 Moradia e território - Protagonismo das mulheres, razão e lutas Como já demonstrado anteriormente, o bairro Jardim Conquista, está localizado no município de Jacareí, no estado de São Paulo. Pela divisão administrativa da cidade ele faz parte da região do distrito do Parque Meia Lua. Localiza-se na região norte da cidade. De acordo com Santos (2017), essa região traz um conjunto de “arranjos locais” que definem as relações na construção de espaços e territórios (p. 246). Santos (2017) afirma ainda que esses arranjos são dinâmicos e por isso as “regiões se transformam continuamente” (p. 247). Raffestin (1993) afirma que territórios são construções a partir de ações políticas. Com isto afirmamos que o bairro Jardim Conquista se tornou um território a partir de um movimento político. Um movimento, que enquanto construção social, é caracterizado como movimento de moradia. Fernandes, (2009), afirma ser um movimento socioterritorial, mas nós reafirmamos, indo além do socioterritorial, ser um movimento popular, com o objetivo da moradia. A proposta central dessa pesquisa tem o objetivo de identificar o protagonismo das mulheres no processo que se concluiu na construção do bairro Jardim Conquista. Houve um esforço, até aqui, com a ajuda dos referenciais teóricos utilizados, de pensar como se dá a construção de territórios, neste caso um bairro. Lembrando, que de acordo com Fernandes (2005, p. 28), esse território é o resultado de uma intenção, de um projeto e um processo de lutas. Aqui também, pode se acrescentar às teses de Fernandes, que a concretização de um território se dá por uma práxis. A moradia pode ser um território, o bairro pode ser um território; mas o espaço ocupado necessariamente torna-se um território a partir da ocupação. De acordo com 43 Raffestin, “para construir um território, o ator projeta no espaço um trabalho, isto é, energia e informação, adaptando as condições dadas às necessidades de uma comunidade ou de uma sociedade” (RAFFESTIN, 2009, p. 26). Mas, essas afirmações de Raffestin, assim como as de Fernandes anteriormente, devem ser cimentadas pela práxis, dentro de um processo dialético (MARX,1987). Partindo-se das afirmações de Raffestin, entende-se que na construção de territórios coletivos, os esforços e energias dedicados também serão coletivos. Neste ponto, abre-se caminho para pensar sobre os movimentos sociais, movimentos populares que lutam e constroem diferentes territórios. Vimos no capítulo dois, que o Professor Bernardo Mançano Fernandes, (2005), apresenta “movimentos socioterritoriais” como categoria definidora dos movimentos dos sem teto urbanos, (FERNANDES, 2005, p.32). No entanto adotamos aqui “movimento popular por moradia” como a definição correta da força social que construiu o território Jardim Conquista, aqui estudado. Desta forma, reafirmamos, que a luta pela moradia se dá em uma dinâmica dialética. Esses movimentos, lutando para conquistar espaços e territórios, promovem então, aí sim, o que Fernandes afirma como “a territorialização da luta pela terra e pela moradia” (FERNANDES, 2005, p. 32). Movimentos populares são dinâmicos e por isso apresentam diferentes características e objetivos. Cada um pode ter tempo de ação e formas de organização específicas. Este, aqui analisado, organizou-se localmente, construiu um objetivo, desenvolveu uma forma de luta e, ainda de acordo com Fernandes, atuando em uma “microrregião” (FERNANDES, 2005, p. 32). As análises seguintes demonstrarão que neste caso esteve presente efetivamente uma construção de força social com protagonismo das mulheres. Identificado como os “Sem-Teto do Meia Lua”, enquanto movimento popular por moradia, sua atuação se deu no período da ocupação até a mudança para as casas. Diminuindo seu vigor organizativo em seguida, situação observada nas entrevistas. Essa desmobilização é um fenômeno visto em outros movimentos que, enquanto força social, deixa de atuar ao se conquistar efetivamente as moradias. A ocupação da área institucional ocorreu em 23 de agosto de 1999. Inicialmente o movimento mobilizou cerca de 60 (sessenta) famílias, segundo registros de lideranças entrevistadas e da imprensa local, jornal ValeParaibano (1999). Três dias após a ocupação, o local já contava com cerca de seiscentas famílias, conforme 44 noticiado no jornal Diário de Jacareí, edição do dia 26 de agosto. Segundo relatado nos jornais citados, eram todas famílias de relações sociais dentro do próprio Distrito do Parque Meia Lua. Uma ocupação existente na região, hoje o bairro Lagoa Azul, que já passou pelo processo de regularização fundiária, pode ter sido um exemplo que inspirou esse movimento aqui analisado. Nas entrevistas, constatou-se que a ideia de organização do movimento, que resultou no bairro Jardim Conquista, surgiu de moradoras do Lagoa Azul ou com relações naquele território. Essa influência pôde ser percebida na forma da organização da ocupação em setores, mais a frente descrita. Este bairro Lagoa Azul pode ter sido também referência e motivação para a ocupação Lagoa Azul II, parte deste processo de pesquisa. Todo processo de gestação do movimento, pela ocupação, se deu entre algumas mulheres. Com experiências de vida próprias, mas com algumas razões em comum. Todas sem teto. Havia quem já casada e com filhos, outras também com filhos, mas dependentes de familiares. Desalentadas na busca de uma política pública habitacional. Com histórias de conflitos em relacionamentos domésticos, sendo inclusive uma das fortes razões apontadas pela decisão de organização do movimento pela moradia, como possibilidade de se construir liberdades. Historicamente, nos lembra Silvia Federici (2017), são as mulheres quem primeiro reagem, assumindo protagonismo diante de espoliações sobre si e sua família, como falta de alimentos, moradia, liberdades e respeito. Esses fatores são lembrados nas respostas sobre o que motivou a luta pela moradia e pela iniciativa da ocupação. Porém, de forma muito evidente, nas entrevistas, a decisão da construção da própria autonomia, independência, cuidado com filhos e filhas, ruptura com relações machistas e patriarcais. Essas mulheres confirmam o que diz Federici, (2020), que a atuação das mulheres é fundamental nas lutas populares, pois são elas as mais afetadas pela exclusão social e pela ausência de políticas públicas inclusivas. Isto, claro, observado em sociedades fundamentadas no modo de produção capitalista. Organizada essa liderança inicial, o passo seguinte foi a identificação da área a ser ocupada e a construção de apoios políticos. Nos jornais pesquisados e também nas entrevistas, são lembradas lideranças políticas, ligadas a partidos políticos, com e sem mandatos. Observando-se nas matérias de jornais, percebe-se que esses atores, os que aparecem no início da ocupação, estão como apoios táticos e políticos. 45 Nos jornais acessados para este trabalho, dois deles fazem referências e dão destaque às mulheres coordenadoras do movimento. O primeiro dele foi o Jornal Semanário, edição do dia 27 de agosto de 1999, um mês após a ocupação. Nele as três mulheres que assumiram a coordenação da ocupação são entrevistadas e identificadas: Delizete, Deusimar e Magda Almeida. O Jornal inicia a matéria dizendo exatamente que “um grupo de mulheres liderou” o movimento. Ao jornal, elas afirmaram as razões daquela luta: a necessidade da moradia, o desemprego e principalmente o encorajamento da luta em comum. Uma fortalecendo a outra. Um processo de empoderamento que, conforme Ângela Davis, (2019) tem também a luta contra um sistema econômico que nega direitos. Na matéria acima, percebe-se uma ação tática das mulheres que coordenavam a ocupação. No momento do registro, pelo jornal, elas se encontravam em reunião com uma autoridade religiosa local, um vereador e um ex-vereador, todos do bairro Parque Meia Lua, local da ocupação. Ou seja, conforme a cientista política e educadora popular Marta Harnecker, (2015), na construção de força política é necessário saber com quem se pode contar e ir ao encontro. Em outra matéria, que será destacada mais a frente, se faz referência à coordenação feminina do movimento. Em uma publicação, quando já se fala da construção das moradias, um jornal faz referência e publica a manifestação de uma coordenadora do movimento. Esta liderança citada não estava no início da ocupação, se inseriu no movimento após a ocupação. Este registro reforça este estudo demonstrando o protagonismo das mulheres neste movimento popular por moradia em Jacareí. A organização da entrada das pessoas ao terreno ocupado foi toda conduzida por essa comissão composta por mulheres. O cadastramento das famílias e a distribuição interna também. Conforme relatado por lideranças e pela imprensa, houve adesão, em pouco tempo, estimada, entre quinhentas a seiscentas famílias. Famílias que foram para a ocupação. Informações especialmente colhidas nas entrevistas. O espaço ocupado foi dividido em setores, desde a chegada das famílias. Ao todo foram cinco setores. Esta organização seguia também o cadastro geral das famílias, construído pela coordenação. Segundo relatado nas entrevistas, inicialmente a coordenação dos cinco setores era feita pela mesma comissão de mulheres que iniciou o movimento. Em momento seguinte, alguns setores passaram a ser coordenados por homens ou por casal. Mesmo sendo paritária, percebe-se nas 46 entrevistas e nas análises da organização do movimento, tem maior presença política das mulheres nas coordenações dos setores. Os setores eram definidos por grupos de ruas, demarcadas no processo da ocupação, e na medida em que ela crescia. IMAGEM 8 - Ocupação dos Sem-Teto do Meia Lua Fonte: Jornal Diário de Jacareí – 27/08/1999 Em diferentes papéis, contam as líderes entrevistadas, eram procuradas por todos da ocupação, sempre que havia alguma questão interna a ser resolvida, até mesmo familiar. Socorriam as pessoas sempre. Também faziam inspeções na ocupação, à noite, para garantirem a permanência das pessoas em cada barraco. Tinham um lema, mencionado por uma das líderes: “tem que entrar e ficar”. Esse era o compromisso coletivo no movimento. Construiu-se um processo estratégico de busca de parcerias e apoios, políticos, comunitários e institucionais. Essa ação, além de apontada nos relatos, logo no início, nos primeiros dias da ocupação, aparece em reportagem de um jornal consultado, cuja matéria já citada anteriormente. Nessa matéria aparecem algumas evidências táticas de fortalecimento e sobrevivência no processo de construção do território 47 ocupado. O jornal atribui como mensagem da “coordenação”, lembrando que naquele momento era feita por mulheres. Um grupo que integra a liderança do movimento pediu à reportagem do DIÁRIO DE JACAREI, que publicasse que eles não são bandidos, não estão armados, e estão vivendo graças ao mutirão que se formou com moradores trazendo água, alimentos, fogão, roupa, mas que há necessidade de que as igrejas católicas ou evangélicas também participarem dessa luta, inclusive com cestas básicas (Jornal Diário de Jacareí, 1999, p. 3). Nessa matéria percebe-se uma construção do espaço comum, ou seja, um território para todos e para todas. De acordo com Silvia Federici, (FEDERICI, 2020, p. 167) as mulheres demonstram maior vínculo com o viver em “comum”. Nota-se o cuidado coletivo. A comunidade local solidária a esse processo de territorialização do movimento dos Sem-Teto do Meia Lua, a ser realizado na ocupação. Embora, como a ocupação se prolongou por quase oito anos, houve em vários momentos manifestações locais hostis ao movimento. Durante o tempo de ocupação, muitas parcerias aconteceram: campanhas de solidariedade de igrejas, cursos oferecidos por instituição de ensino e projetos de geração de renda para as famílias. Uma das lideranças relata esse processo, organizando trabalhos de reciclagem, gerando renda para sua família e para a comunidade. Durante o primeiro ano da ocupação, o movimento enfrentou pedidos de reintegração de posse, promovidos pela prefeitura municipal. A reversão desses processos se deu com apoio de lideranças políticas, de outros movimentos sociais e de apoio jurídico de sindicato de trabalhadores e trabalhadoras da região. Com essa tática de defesas e lutas, a ocupação resiste até que termina o mandato do então prefeito da época, Benedito Sergio Lencioni, sem partido, que havia sido eleito pelo PSDB, Partido da Social Democracia Brasileira. Um ano após a ocupação ocorrem as eleições municipais do ano 2000. O resultado eleitoral, em Jacareí, traz um novo plano de relação política para o movimento dos Sem-teto do Meia Lua. É eleito um prefeito do PT, Partido dos Trabalhadores, Marco Aurélio de Souza, conforme TSE – Tribunal Superior Eleitoral Eleições 2000. A coordenação do movimento segue com a mesma característica de divisão de setores e com protagonismos de liderança e coordenação pelas mulheres. O movimento, adequando as estratégias, estabelece uma outra tática de correlação de forças com o Estado. Um governo municipal com um novo desenho ideológico do 48 poder municipal. Para Harnecker, (2015), estratégia e tática são a definição do caminho a seguir e como nele caminhar. Assim se orienta o movimento dos Sem-teto do Meia Lua. Com o início da nova gestão da Prefeitura Municipal de Jacareí, em 2001, é construído um novo caminho de diálogo. De um lado um grupo político, no poder público, que demonstra reconhecer o direito à luta pela moradia, do outro, um movimento popular estabilizado na sua organização. O movimento construiu força política, articulando apoios, criando capacidade de luta com organização do movimento. Um movimento liderado por mulheres, reafirmando o que diz Federici, que “as mulheres são as principais protagonistas de mudança, [e que], o ativismo das mulheres é hoje a força de mudança social mais importante na América Latina” (FEDERICI, 2020, p.203 – tradução nossa). Na estrutura administrativa da Prefeitura Municipal de Jacareí existe a Fundação Pró-Lar criada para atender políticas públicas habitacionais. De acordo com sua homepage e também com seu estatuto de fundação, (Art. 1º e 4º) tem a “finalidade de instituir políticas públicas voltadas à habitação que atendam a população de baixa renda do município, em condições de risco e ou vulnerabilidade” (Fundação Pró-Lar, 2021, p.1). Esta autarquia municipal se equivale às secretarias municipais de habitação que existem em outros municípios. A Fundação Pró-Lar assume o papel do diálogo e passa a ser a responsável em construir um programa habitacional que atendesse aos Sem Teto do Meia Lua. O governo de Marco Aurélio de Souza (PT), o prefeito a partir de 2001, promoveu o congelamento da área ocupada. Esse ato administrativo determina que a ocupação não se amplie. As famílias são cadastradas pelo município e passam a receber políticas de assistência. Neste momento, já no terceiro ano da ocupação, o movimento havia se estabilizado, estando a ocupação por volta de 235 (duzentas e trinta e cinco) famílias. A lei que criou a Fundação Pró-Lar, lei 1965/1980, (Art. 7º), estabeleceu que, uma das formas da constituição do patrimônio da autarquia, era a transferência compulsória de “2% (dois por centos) dos lotes em todo e qualquer loteamento aprovado no Município” (JACAREI, 1980). A lei atual que rege a organização da Fundação, Lei 6155/2017, no seu artigo 41, mantém essa transferência de lotes para fins de política pública de moradia para famílias de baixa renda (JACAREÍ, 2017). Com 49 isso a autarquia reúne áreas a serem utilizadas com a finalidade prevista em lei. Áreas ainda insuficientes para a necessidade de moradias populares no município. A Prefeitura inicia processo efetivo para viabilizar um projeto de moradia para atender os Sem-teto do Meia Lua. É construída uma agenda de conversas entre a Prefeitura e o Movimento. Conforme relatos nas entrevistas, as comissões que representavam os Sem-teto do Meia Lua eram sempre paritárias, havendo casos de reuniões com o poder público em que prevalecia a liderança por mulheres. Em um desses eventos, sendo a comissão recebida no gabinete do prefeito, das cinco lideranças recebidas em audiência, três eram mulheres. (conforme registro em foto das entrevistadas). Conforme noticiado pela imprensa local, Jornal ValeParaibano, edição do dia 26 de setembro de 2001, a Prefeitura apresenta um plano inicial para atender parcialmente as famílias da ocupação. Nesta matéria, se reproduz a fala de uma das coordenadoras do movimento e a identifica como tal. Neste momento já havia uma alternância na coordenação, porém com a prevalência de mulheres, como se vê na divulgação desse jornal. Através das entrevistas, constatou-se que essa primeira proposta não contemplou a totalidade do movimento. Conforme a matéria citada, somente 80 (oitenta) famílias seriam atendidas, menos da metade da ocupação. A área indicada nessa proposta estava em uma região desfavorável para as famílias do movimento, por algumas questões, conforme afirmou uma das mulheres entrevistadas: está na zona leste da cidade, junto ao bairro Jardim Santa Marina, enquanto a territorialização em construção pelo movimento, conforme Fernandes (2009), através das suas lutas, tem as suas referências e relações na região do Parque Meia Lua, zona norte da cidade. Além da divisão de um movimento com mais de três anos de construção e consolidação do pertencimento, indicava uma mudança de rotinas na mobilidade que atendia a vida diária da comunidade. Essa primeira proposta do poder público não foi aceita pela maioria do movimento dos Sem-Teto do Meia Lua. Houve debates internos sobre a questão, e a decisão foi buscar com a Prefeitura outra solução. Conforme conta uma liderança entrevistada, a maioria decidiu, em plenária, inclusive por uma manifestação coletiva no paço municipal. Neste ato, o grupo se mobilizou, representando a decisão do movimento, na busca de outra área que acolhesse a todos e não parte. O grupo foi 50 recebido no plenário da Câmara Municipal de Jacareí, que fica em um mesmo espaço que a Prefeitura. Há um exercício de construir correlação de forças favoráveis, entre o movimento popular dos Sem-teto do Meia Lua, e o poder público local. O movimento faz uso de uma hegemonia interna, ancorada na construção do território, liderada por mulheres, maioria no grupo de coordenação. Uma das entrevistadas afirma que a plenária que deliberou pelo ato descrito acima, se deu dentro do paradigma do risco da divisão do movimento. Isto devido à possibilidade de haver uma solução que atenderia somente 80 (oitenta) famílias, lembrando que no território construído pela ocupação moravam em torno de 235 (duzentas e trinta e cinco) famílias. A esse processo, tanto de criar força política e que seja hegemônica dentro do movimento, consiste no que Gramsci, chama de “força permanente organizada” (GRAMSCI, 2021, p. 50). A manifestação de força política, coletiva do movimento, é vitoriosa. Confirmando o que diz Harnecker, “o que define as coisas em política, portanto, não é a superioridade numérica de uma determinada classe, mas a disposição de lutar por determinados interesses de classe” (HARNECKER, 2015, p.16). A Prefeitura Municipal de Jacareí decide localizar uma área, cujo espaço atendesse a dois requisitos essenciais: capacidade de acolher todas as famílias e que estivesse na mesma região da ocupação. O jornal Diário de Jacareí, (2002, p. 3) na edição do dia 19 de fevereiro, divulga a escolha de um terreno, pela Prefeitura, na mesma região da ocupação. Essa notícia foi levada para as famílias, reunidas em assembleia na ocupação. A localização contemplou aspectos vitais para o movimento dos Sem-teto do Meia Lua. A identidade regional que é o conjunto de valores culturais e suas práticas individuais e coletivas; sobretudo o sentimento do pertencimento a um espaço e território comuns. A Prefeitura Municipal desapropria a área, previamente aprovada pelo movimento, localizada na rua José Carlos Lamanna, bairro Rio Comprido. A conclusão do processo da compra aconteceu com o acompanhamento do Ministério Público, homologação feita pela Justiça, conforme divulgado pelo mesmo jornal acima, na edição do dia 13 de março de 2004 (p. 5). Conforme relata a matéria, todo processo foi feito com o acompanhamento e participação do movimento popular dos Sem-teto do Meia Lua. 51 Essa nova área que irá receber as famílias realiza alguns significados importantes. Até então era um território contido nas lutas e na organização do movimento. Ele foi construído a partir do território ocupado, distantes um do outro em torno de um quilômetro, e começa a se materializar. Representa uma vitória do movimento. Nas entrevistas, as lideranças reafirmaram qual era a decisão que sustentava a luta: teria que ser uma área que coubesse todas as famílias e que estivesse na mesma região do Distrito Parque Meia Lua. Esse era o território imaginado e construído no dia a dia dos Sem-teto do Meia Lua, ainda dentro dos barracos de lona e de madeiras. Uma construção que teve, do começo ao fim, o protagonismo das mulheres, sempre liderando o movimento na organização e nas estratégias. A Fundação Pró-Lar inicia a partir de então, dois processos: primeiramente, o desenvolvimento e aprovação do projeto de parcelamento e de urbanização da área. Esta etapa se deu no ano de 2004, tendo todas as suas fases acompanhadas pelo movimento, conforme relatado nas entrevistas realizadas. Esta etapa foi também acompanhada por mim, enquanto envolvimento institucional. O Passo seguinte foi a busca de um programa de moradia popular e construir as casas para receber as famílias. Nos dois anos seguintes, o Município realiza as obras de implantação do loteamento, sua urbanização e a construção das casas, cerca de 235 (duzentas e trinta e cinco) unidades. Com área total de 69.719,54m² (sessenta e nove mil, setecentos e dezenove metros quadrados), dividida em lotes individuais, a maioria com 125,00m² (cento e vinte e cinco metros quadrados). Dados obtidos através de documentos apresentados nas entrevistas e também no processo de ação civil pública, nº 1006571-74.2017.8.26.0292, Defensoria Pública do Estado de São Paulo, unidade de Jacareí. Uma das entrevistadas descreve a forma de contrato e pagamento realizados por cada família que iria receber a moradia, informações contidas também no processo citado acima. A unidade individualizada dos lotes foi paga por cada família, conforme entendimento dos moradores, através de boletos bancários apresentados pela Fundação Pró-lar, totalizando R$ 3.240,00 (três mil, duzentos e quarenta reais), em 72 (setenta e duas) parcelas. As edificações (casas), segundo relato, teriam sido suportadas através de recursos provenientes do Fundo de Garantia do Tempo de Serviços, FGTS, através do Sistema Financeiro de Habitação, SFH. Para esses 52 recursos não houve contrapartida das famílias. O valor total do imóvel de R$ 21.240,00 (vinte e um mil e duzentos e quarenta reais). No entendimento desta análise, teria sido um investimento público “a fundo perdido”. Esses números foram publicados no Jornal ValeParaibano, edição de 20 de julho de 2007, conforme a jornalista Alessandra Jorge (JORGE, 2007, 1º caderno). A descrição do imóvel, conforme o jornal acima, uma casa com 34,00m² (trinta e quatro metros quadrados). Com um quarto, sala, cozinha e banheiro, as moradias foram entregues sem acabamento interno, ficando esta etapa para ser feita pelas famílias. A entrega das chaves teria ocorrido no dia 19 de julho, com início das mudanças dois dias depois, a partir do dia 21 de julho de 2007. A mudança para as casas representava a consolidação de um território, o bairro Jardim Conquista, construído ao longo de oito anos de luta, organização, estratégias, com protagonismo político das mulheres. A entrega das chaves das moradias, a saída dos barracos, ver os barracos sendo demolidos, a entrada nas casas, tudo foi carregado de um conjunto de significados. Para as mulheres entrevistadas foi a realização de um processo de construção coletiva. Individualmente, disseram ser a realização de um plano de vida. Nesse plano estava a busca da autonomia, da reconstrução das próprias vidas, especialmente na luta contra o machismo, contra as relações patriarcais e preconceitos sociais. Conforme a Jornalista Alessandra Jorge (2007), em jornal local, para as mulheres, em seus depoimentos, as casas representavam vitória e empoderamento; para elas, filhas e filhos. Nessa divulgação, Magda Almeida, uma das três mulheres que iniciaram o movimento, mostra seu barraco de madeira, onde passou os anos da ocupação, com sua filha e filho. Realidade das três mulheres do movimento Sem-Teto do Meia Lua que foram entrevistadas nesta pesquisa. Duas permaneceram no movimento até a mudança para as casas. 53 IMAGEM 9 - Sem-Teto do Meia Lua e Jardim Conquista Fonte: Jornal ValeParaibano – 20/07/2007 Duas paisagens em diálogo. Os barracos na ocupação e as casas no novo território. Território que ao mesmo tempo que se consolida, terá sua territorialidade construída a partir da chegada das famílias. Por isso, as casas novas no novo bairro e os barracos na ocupação são paisagens construídas na contradição. Conforme a Professora Ana Fani, essas paisagens são “prenhe de movimento, de vida, de uma vida rica de relações [...]” (FANI, 2019, p. 38). Relações construídas com o protagonismo das mulheres, no movimento dos Sem-Teto do Meia Lua. 4.3.2 Território em questão: a luta não acabou O bairro Jardim Conquista, de um território imaginado, desejado, concebido e construído coletivamente, passou a ser um território ameaçado, tão logo recebeu as famílias, para quem e por quem ele foi construído. A relevância desta situação foi identificada a partir das entrevistas e do acesso a processos que tramitam na justiça, nas instâncias locais e estaduais, no período pesquisado. Dois processos judiciais, na vara da Fazenda Pública de Jacareí, com trâmites em instâncias estaduais, trazem os detalhes dessa “conflitualidade”, (FERNANDES, 2009, p. 203). De acordo com Eduardo Mançano Fernandes, conflitualidade, que de alguma forma, permeia sempre a construção dos territórios. O primeiro processo é uma ação civil pública, com pedido de liminar, impetrada pelo MP, Ministério Público de São Paulo, pela 7ª Promotoria, em Jacareí, Promotoria de Justiça do Urbanismo e Meio Ambiente, com nº 1008849-53.2014.8.26.0292. O segundo processo trata-se da 54 ação civil pública, impetrada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, pela 5ª Defensoria Pública de Jacareí, com o nº 1006571-74.2017.8.26.0292. A instauração desses processos teve origem em três eventos. O primeiro decorreu de problemas estruturais manifestados em algumas moradias, logo na entrega das casas. O segundo, o alagamento de uma rua do bairro, devido às cheias do Rio Comprido, em cuja bacia o bairro está inserido. Isto ocasionou a retirada de algumas famílias e a demolição das casas que ficaram comprometidas. O terceiro motivo foi uma alteração feita no projeto original, ao ser implantado o loteamento: o desdobro de alguns lotes, cujas áreas permitiram a construção de mais de uma unidade habitacional. Lembrando que esse projeto teria sido aprovado por todos os órgãos pertinentes e as casas construídas com aporte de recursos do FGTS, pela Caixa Econômica federal, questão já tratada neste trabalho. A leitura destes processos revela construções jurídicas que são comuns nas justificativas de desocupações e despejos, na cidade e no campo. Torna-se um exercício de análise de difícil compreensão lógica, muitas vezes. Como por exemplo, como explicar o cancelamento de uma aprovação, com justificativas em elementos técnicos analisados nos dois momentos. Esta lógica só é possível para quem, pessoa, entidade ou instituição, esteja fora de qualquer espaço em disputa. Muito embora poder afirmar, que é nessa disputa que se dá a construção da história na luta de classes. Surgem nessa disputa elementos contraditórios, chamados por Lefebvre de “emaranhados” de razões forjadas, dando fundamentos que desconsideram, e relegam para a negação, o direito à cidade e o direito ao território: [...], podem as instâncias e os poderes superiores passar sem essa mudança, sem essa mediação que é a cidade? Podem abolir o urbano? É neste nível que a vida cotidiana, regida por instituições que a regulamentam do alto, consolidada e disposta por múltiplas coações, se constitui. A racionalidade produtivista, que tende a suprimir a cidade ao nível da planificação geral, reencontra-a no plano do consumo organizado e controlado, no plano do mercado vigiado. Após tê-la descartado do nível das decisões globais, os poderes a reconstituem ao nível das execuções, das aplicações. Disso resulta [...] um inverossímil emaranhado de medidas (todas razoáveis), de regulamentos (todos muito elaborados), de coações (todas motivadas). O funcionamento da racionalidade burocrática se enreda em suas pressuposições e consequências; estas o superam e lhe escapam. Conflitos e contradições renascem pululante de atividades ‘estruturantes’ e de ações ‘preparadas’ destinadas a suprimi-los. Aqui, na prática, torna-se manifesto o absurdo do racionalismo limitado (demarcado) da burocracia e da tecnocracia. Aqui se percebe a falsidade da ilusória identificação entre o racional e o real no Estado, e a verdadeira identidade entre o absurdo e um certo racionalismo autoritário (LEFEBVRE, 2015, p. 100). 55 Portanto, a partir da leitura de Lefebvre, pode-se compreender os fatos que fundamentam o pedido de liminar, para a retirada de todas as famílias com a total desocupação da área. Todas as alegações estão nos itens destacados para esta pesquisa, observados no processo do Ministério Público, nº 1008849- 53.2014.8.26.0292. O processo foi provocado inicialmente por uma denúncia, que motivou a abertura de um inquérito civil, sobre a ocorrência de problemas estruturais em algumas edificações entregues ao movimento dos Sem-Teto do Meia Lua (p. 1035). Foi apontada possível utilização de ma