UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA CAMPUS DE MARÍLIA SÉRGIO DEL’ARCO FILHO A NOÇÃO DE VONTADE NA TRILOGIA MORAL DE SANTO ANSELMO (DE VERITATE, DE LIBERTATE ARBITRII, DE CASU DIABOLI) MARÍLIA 2020 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA CAMPUS DE MARÍLIA SÉRGIO DEL’ARCO FILHO A NOÇÃO DE VONTADE NA TRILOGIA MORAL DE SANTO ANSELMO (DE VERITATE, DE LIBERTATE ARBITRII, DE CASU DIABOLI) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Câmpus de Marília, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Filosofia, sob a orientação do Prof. Dr. Andrey Ivanov. MARÍLIA 2020 D331n Del'Arco Filho, Sérgio A noção de vontade na trilogia moral de Santo Anselmo : (De veritate, De libertate arbitrii, De casu diaboli) / Sérgio Del'Arco Filho. -- Marília, 2020 158 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Andrey Ivanov 1. Vontade. 2. Verdade (Teologia cristã). 3. Retidão. 4. Justiça (Filosofia). 5. Liberdade de arbítrio. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. SÉRGIO DEL’ARCO FILHO A NOÇÃO DE VONTADE NA TRILOGIA MORAL DE SANTO ANSELMO (DE VERITATE, DE LIBERTATE ARBITRII, DE CASU DIABOLI) BANCA EXAMINADORA Orientador: ___________________________________________________________ Dr. Andrey Ivanov (UNESP - Marília) 2º Examinador: ________________________________________________________ Dr. Manoel Luís Cardoso Vasconcellos (UFPel) 3º Examinador: ________________________________________________________ Dr. Paulo Ricardo Martines (UEM) Marília, 18 de fevereiro de 2020 Dedico primeiramente a Deus. Dedico também à minha família, noiva, amigos e, especialmente, àqueles que estão desesperançados. Agradecimentos Agradeço a Deus que por vários caminhos em minha trajetória até aqui me levou a buscar o estudo acerca da vontade e por ter colocado este tema em minha vida. A elaboração do que antes era uma monografia e se tornou uma dissertação acompanhou a trajetória não só acadêmica, mas existêncial e espiritual de um ateu que veio a se tornar católico. Através deste cor inquietum fui alcançado e pude começar a caminhar naquela fé que busca compreender. Agradeço ao meu querido amigo e orientador Prof. Dr. Andrey Ivanov por todo o apoio nesta pesquisa, pela paciência, amizade e pelos muitos bons conselhos dados tanto na área profissional quanto na pessoal. Agradeço aos muito gentis e excelentes professores e pesquisadores Prof. Dr. Manoel Vasconcellos e Prof. Dr. Paulo Ricardo Martines pela amável disponibilidade em fornecer bibliografia e conselhos. Agradeço por corrigir, avaliar, comentar, dar sugestões e incentivar este trabalho desde o início; passando por suas presenças na qualificação e, por fim, na defesa. Gostaria também de agradecer a pronta e importantíssima ajuda do Prof. Dr. Fernando Rodrigues Montes D’Oca fornecendo-me conselhos, bibliografia e disponibilizando-me sua excelente tese de doutoramento. Agradeço também algumas pessoas que são importantes em minha vida e que estiveram presentes em minha caminhada acadêmica e espiritual, saibam elas ou não. Além do próprio professor Andrey, já mencionado. Agradeço ao homem que me tirou da indigência intelectual e me deu a possibilidade de arejar meu intelecto. Sem ele eu não teria despertado nem um terço de minhas capacidades até então atrofiadas pelo meio intelectual corrente e ao qual o mundo infelizmente está sucumbindo. Graças a ele pude ter contato com um filósofo vivo e conhecer tantos outros que foram propositadamente neglicenciados na academia. Portanto, agradeço ao filósofo e professor Olavo de Carvalho. Agradeço imensamente também ao padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior pela bravura e trabalho incessante, que posibilita a tantas pessoas a busca pela santidade, considero-o um pai espiritual. Agradeço ao mui valente e simpático Prof. Dr. Ricardo da Costa, cuja coragem para lutar contra os iníquos muito me inspirou e me inspira, agradeço também pela disponibilidade e conselhos dados. Agradeço ao meu querido amigo, Prof. Dr. Laércio Fidelis Dias, pela sincera amizade, atenção, companhia e muitos valiosos conselhos. Agradeço ao meu mui querido amigo, Max Endrio Foganhole Melotti, pela amizade, paciência, cuidado, inúmeros ensinamentos e conselhos. Sem ele talvez eu nem tivesse começado essa caminhada. Por fim, mas de maneira alguma menos importante, agradeço a minha querida família. Sem ela não teria recebido os ensinamentos que recebi, nem me tornado quem me tornei. Não teria nem mesmo as condições materiais que tive. É a base que veio muito antes desta caminhada acadêmica e que perdurará por todo o sempre. Agradeço a tantas outras pessoas, amigos, familiares e colegas, que foram essênciais e me ajudaram de uma forma ou de outra durante a concepção deste trabalho, quer estejam elas ainda presentes ou não, sou muito grato. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Tomando emprestado uma citação bíblica que é frequentemente utilizada no tratado De casu diaboli e que, neste processo, durante esta minha caminhada espiritual e acadêmica tomou proporções demasiadamente significativas, trago-a neste agradecimento, pois ela muito me ajudou a refletir acerca da virtude da humildade: “Que tens que não tenhas recebido?” (1Cor 4,7). Por fim, o simples fato de ter aprendido a agradecer já é uma graça imensa de Deus em minha vida. Oh! Como é doce o caminho do Amor! Como quero me esforçar para fazer sempre, com o maior desprendimento, a vontade de Deus! [...] Deus não poderia inspirar desejos irrealizáveis, portanto posso, apesar da minha pequenez, aspirar à santidade. (Santa Teresa de Lisieux) Disse, então, Jesus aos judeus que nele haviam crido: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (Jo 8,31-32) “Tudo me é permitido”, mas nem tudo convém. “Tudo me é permitido”, mas não me deixarei escravizar por coisa alguma. (1Cor 6,12) Que possuis que não tenhas recebido? (1Cor 4,7) Resumo Este trabalho tem como objetivo analisar a articulação da noção de vontade na trilogia moral (De veritate, De libertate arbitrii, De casu diaboli) de Santo Anselmo. A noção de vontade é responsável por conectar todos os tratados da trilogia. Começaremos pelo De veritate, onde veremos a relação entre a verdade, a retidão, a vontade e a justiça. No De libertate arbitrii, veremos a retidão da vontade, que consiste na definição de justiça, ser necessária à definição de liberdade de arbítrio e sua importância no desenvolvimento do tratado. Veremos também o estudo dedicado à vontade, onde analisaremos sua equivocidade e invencibilidade. Por último, no De casu diaboli, analisaremos o porquê da queda do diabo e a vontade tripartida. Para tratar da queda do diabo, Anselmo retorna à noção de retidão da vontade. Analisaremos a perda da retidão da vontade dos anjos réprobos, bem como faremos uma análise da vontade da criatura angélica. No anexo, comparecem a vontade tripartida tratada na obra De concordia e a vontade modal tratada no Philosophica fragmenta. Palavras-chave: Vontade. Verdade. Retidão. Justiça. Liberdade de arbítrio. Abstract This paper aims to analyze the articulation of the notion of will in the moral trilogy of Saint Anselm (De veritate, De libertate arbitrii, De casu diaboli). The notion of will is responsible for connecting all of the trilogy’s treatises. We will start from De veritate where we will be able to see the connection among truth, rectitude, will and justice. In De libertate arbitrii we will see the rectitude of the will, which consists of the definition of justice, being necessary for the definition of freedom of will and its importance to the treatise’s development. We will also analyze the study dedicated to the will (its equivocity and invincibility). Lastly, in De casu diaboli we will analyze why did the devil fall and the tripartition of the will. In order to treat about the devil’s fall, Anselm returns to the notion of rectitude of the will. We will analyze the loss of rectitude of the will by the reprobate angels and we are going to study the angelic creature’s will. In the appendix appears the will tripartioned as treated in De concordia and the will modally divided as treated in Philosophica fragmenta. Keywords: Will. Truth. Rectitude. Justice. Freedom of will. Lista de abreviaturas e siglas Monol. – Monologion (Schmitt, v. 1, p. 5-87)1. Prosl. – Proslogion (Schmitt, v. 1, p. 93-122). DV – De veritate (Schmitt, v. 1, p. 173-199). DLA – De libertate arbitrii (Schmitt, v. 1, p. 205-226). DCD – De casu diaboli (Schmitt, v. 1, p. 231-278). CDH – Cur deus homo (Schmitt, v. 2, p. 40-133). DC – De concordia praescientiae et praedestinationis et gratiae dei cum libero arbitrio (Schmitt, v. 2, p. 245-288). DCV – De conceptu virginali et de originali peccato (Schmitt, v. 2, p. 137-172). DHM – De Humanis Moribus (Memorials, p. 37-104). EIV – Epistola de Incarnatione Verbi (Schmitt, v. 2, p. 3-35). PF – Philosophica fragmenta (Schmitt, 1936, p. 23-45)2. Neste trabalho, para fazermos referência aos capítulos dos livros de Anselmo, utilizamos os numerais romanos; para nos referirmos aos capítulos desta dissertação utilizamos os numerais arábicos. 1 Seguimos a paginação das obras de Anselmo pela edição crítica de F. S. Schmitt (ANSELMI CANTUARIENSIS Opera omnia: ad fidem codicum recensuit. F. S. Schmitt. Stuttgart: Frommann, [1946-1961] 1984. 1 e 2 v). Para buscar pelas referências das obras de Anselmo: Sigla do livro e capítulo, página: linha. Por exemplo: DV 13, 197:19-27 2 Mantém-se a numeração do texto latino segundo a edição de F. S. Schmitt em Beiträge zur Geschichte der Philosophie und Theologie des Mittelalters, v. 33, n. 3, Münster, 1936. Sumário Introdução ................................................................................................................................. 1 Capítulo 1 De veritate ............................................................................................................ 8 1.1. A estrutura do tratado ......................................................................................... 8 1.1.1. A retidão e o que é devido .......................................................................... 13 1.1.2. As sedes da verdade e a definição da verdade ............................................ 17 1.2. A noção de retidão da vontade e a noção de justiça ....................................... 35 1.2.1. A retidão do pensamento ............................................................................. 35 1.2.2. A retidão da vontade ................................................................................... 36 1.2.3. A retidão da ação ......................................................................................... 40 1.2.4. A definição de justiça .................................................................................. 44 Capítulo 2 De libertate arbitrii ............................................................................................ 60 2.1. A definição de liberdade de arbítrio .................................................................. 61 2.2. A vontade no De libertate arbitrii ..................................................................... 73 Capítulo 3 De casu diaboli ................................................................................................... 88 3.1. A queda do diabo e o não recebimento da perseverança (cap. I-VI) ................. 89 3.2. A vontade soberba do diabo e a vontade tripartida .......................................... 105 Conclusão .............................................................................................................................. 137 Anexo ..................................................................................................................................... 144 A vontade tripartida no De concordia .................................................................... 144 A vontade modal: modos da vontade-uso no Philosophica fragmenta .................. 151 A vontade tripartida no Liber de voluntate ............................................................. 153 Referências bibliográficas .................................................................................................... 154 1 Introdução Santo Anselmo foi um monge beneditino que se tornou arcebispo de Cantuária na Inglaterra. É Doutor da Igreja, conhecido como Doutor Magnífico e é o padroeiro dos intelectuais religiosos. Sua festa é no dia 21 de abril. Nasceu por volta de 1033 em Aosta, na fronteira dos reinos da Borgonha e Lombardia, que fica na região noroeste da atual Itália. Morreu em 21 de abril de 1109 em Cantuária, região da Inglaterra. É considerado o pai do escolasticismo, pois em seus escritos está o germe daquele rigor e precisão conceitual, que será aperfeiçoado pelos escolásticos. Geralmente se contentam em lembrar de Santo Anselmo a respeito de suas provas da existência de Deus, ou como foi chamado mais tarde: argumento ontológico. Mas seu pensamento é tão mais rico em teologia, filosofia da linguagem, ética etc., que vai muito além do argumento ontológico. Ele é grande devedor do pensamento de Santo Agostinho, dos neoplatônicos, mas também possuía influências aristotélicas. Anselmo é conhecido por seu “fides quaerens intellectum” (a fé que procura compreender). Uma frase de Santo Anselmo que marca todo o seu pensamento é “credo ut intelligam” (creio para compreender, ou melhor, “não busco compreender para crer, mas creio para compreender”). Ele combateu o pelagianismo e esteve ativamente envolvido na controvérsia das investiduras, a qual lhe rendeu dois exílios. Anselmo era de família nobre. Por volta dos 23 anos, após a morte de sua mãe e por na época não ter boas relações com o pai, deixou sua terra natal3. Por cerca de três anos andou por vários lugares. Esteve pela Borgonha, França e chegou na Normandia (atual norte da França) na cidade de Bec atraído pela fama de um sábio mestre e excelente orador, conterrâneo seu, chamado Lanfranco, que era Prior na abadia daquele lugar. Anselmo queria aprender com ele. Ficou algum tempo vivendo no mosteiro e cerca de um ano depois optou por tornar-se monge. Devido a sua excelência, logo se tornou Prior em Bec e depois Abade. Lanfranco que se tornou Arcebispo em Cantuária, na Inglaterra, que na época pertencia ao reino da Normandia; escolheu Anselmo para que após a sua morte fosse seu sucessor como bispo em Cantuária. 3 Cf. EADMERI, 1962; SAN ANSELMO, v. 1, 1953, p. 5-73. 2 Anselmo é autor de várias obras, mas suas obras mais conhecidas são o Monologion, o Proslogion e o Cur deus homo (Por que Deus [se fez] homem?). Possui também outras obras de grande importância como o De concordia e o que ficou conhecido como “trilogia moral”, um conjunto de três diálogos4 voltados para o estudo das Escrituras5, que apesar de possuírem temas aparentemente diversos da teologia, estão profundamente interligados. Esses diálogos são: De veritate (Sobre a verdade), De libertate arbitrii (Sobre a liberdade de arbítrio) e De casu diaboli (Sobre a queda do diabo). Algo que precisamos sempre ter em mente é que Anselmo em suas obras tratou de uma grande quantidade de temas e escreveu sobre diversos assuntos filosóficos, mas se ele tratava de algum tema, por exemplo, da moral, nunca tratava desse tema por si só, por mera curiosidade, mas sempre buscava a Deus, buscava amar mais a Deus e a conhecer mais das coisas divinas, que possibilitam a salvação. No De veritate, por exemplo, tratou de lógica, linguagem, metafísica, moral e epistemologia. Anselmo tratou de tudo isso, mas buscava entender esses temas não por mero deleite, não por si mesmos, mas para se aproximar de Deus. O que é maravilhoso ao estudar um autor medieval, no caso de Anselmo, é que, apesar de ser preciso muito estudo para inteirar-se destes temas – especialmente porque é necessário todo um trabalho de aproximação com os escritos de uma outra época, especialmente dos medievais –, na mesma medida, aprendemos muito sobre vários temas ao mesmo tempo em que estamos buscando aquele que propicia tudo isso, que é Deus. Outro ponto que devemos ter em mente é que a leitura de textos antigos envolve certas dificuldades que precisaremos contornar mediante o estudo do status quaestionis. O que isso quer dizer? Devemos buscar em que pé se encontrava a investigação daquele determinado tema na época, precisamos entender o que está sendo dito, fazendo o esforço de sair de nosso “cronocentrismo” – que está carregado daquela presunção de que tudo que é do nosso tempo é melhor do que as coisas do tempo passado, estando também carregado da crença de que tudo na história humana é um progresso contínuo. Portanto, é preciso sair de nosso cronocentrismo, que é uma forma de provincianismo temporal e cultural. Precisamos evitar também os anacronismos, devemos nos munir de certo conhecimento do contexto histórico do autor, etc. Posto isto, precisamos ter em mente que Anselmo se encontrava em um ambiente beneficamente absorvido pela cosmovisão cristã, especialmente porque era monge beneditino 4 Sobre o estilo do diálogo anselmiano, ver ELIA, p. 7-8. 5 A respeito da trilogia como estudo das Escrituras, ver WILLIAMS, 2002, p. 4-8. 3 e intelectual. Portanto, as pessoas estando nesse meio conseguiam se comunicar mais facilmente e falavam, por assim dizer, a mesma língua. Outro ponto é que a formação intelectual de sua época era muito coesa, pois a educação se baseava nas artes clássicas (artes liberais). Outro ponto é que o latim é um idioma excelente para os estudos, pois uma única palavra consegue abarcar uma quantidade de camadas de significação tão grandes, que os textos traduzidos frequentemente ficam desfalcados quando não estão sendo acompanhados do latim original. Por que dizer tudo isso? Porque, num primeiro momento, podemos sentir uma dificuldade muito grande em ler os textos medievais, especialmente dos escolásticos, que possuíam uma capacidade de escrita e argumentação admiráveis. A título de curiosidade, Santo Anselmo é considerado o pai da escolástica, pois nele já vemos uma formulação desse rigor e estruturação textual. Essa dificuldade hodierna para a leitura de textos antigos aumenta na medida em que Anselmo escrevia para aqueles que já estavam inseridos nos estudos de teologia, filosofia etc.; portanto, muitas coisas na obra do Aostano são apresentadas na expectativa de que o leitor já tenha uma noção do que está sendo dito e já conheça um pouco da terminologia, para que a partir daí Anselmo comece suas reflexões. Em outros momentos ele toma por suposto que o leitor já esteja por dentro dos assuntos de suas obras, isso acontece porque geralmente ele escrevia seus livros a pedido de seus confrades de monastério. Embora Anselmo buscasse conduzir o leitor de modo que até mesmo o pagão entendesse o que ele estava falando, em nossa época falta dessa mesma capacidade de entendimento. Apesar de não ser um filósofo sistemático, as obras de Anselmo possuem um encadeamento lógico onde o assunto de um livro se conecta com o assunto de outro e o complementa. **** Este trabalho buscou abordar o desenvolvimento da noção de vontade6 na obra de Anselmo, mais especificamente, na trilogia moral (De veritate, De libertate arbitrii, De casu diaboli). Apesar da vontade não ser o tema principal da trilogia, essa noção teve uma importância central nos três diálogos. 6 Sobre o termo vontade no corpo anselmiano ver MONTES D’OCA, 2014, p. 105-150. 4 A noção de vontade7 possui dois significados fundamentais8. Primeiro como princípio racional da ação e, em segundo lugar, como princípio da ação em geral. Anselmo tendia a adotar mais a segunda definição visto que todas as potências da alma necessitam de um instrumento que as movam. Esse instrumento é a vontade9, e desse modo temos a vontade de ver, pela qual utilizamos nossa capacidade da visão. É um movimento, que Anselmo chama de vontade- afecção, sendo uma de suas partes a vontade pelo aprazível (commodum) que está presente até mesmo nos animais irracionais. Podemos, porém, encontrar em Anselmo elementos próprios do primeiro significado, visto que as criaturas racionais possuem um tipo específico de vontade- afecção, que é a vontade de justiça. Este tipo de vontade está orientado para a busca da retidão moral e visa temperar os excessos da vontade pelo aprazível. Fazendo uma breve distinção entre o significado de desejo e vontade, vemos que o desejo, em uma de suas definições, está mais ligado à parte sensitiva de nossa alma e se volta para objetos mais particulares, enquanto a vontade racional10 está mais ligada à parte racional e deliberativa da alma e envolve a 7 Cf. verbete Volontà em FABRIS, 2006. 8 “Esse termo foi usado com dois significados fundamentais: 1º como princípio racional da ação; 2º como princípio da ação em geral. [...] lº O primeiro significado é o da filosofia clássica: para ela, a V. é apetite racional ou compatível com a razão, distinto do apetite sensível, que é o desejo (v.). [...] 2º Por outro lado, a V. às vezes foi identificada com o princípio da ação em geral, ou seja, com a apetição. O primeiro a expor esse conceito generalizado da V. foi S. Agostinho, segundo quem "a vontade está em todos os atos dos homens; aliás, todos os atos nada mais são que vontade" (Decir. Dei, XIV. 6). S. Anselmo repetia essa noção (Libero arbítrio, 14, 19)”. (ABBAGNANO, 2007, p. 1007-1009). 9 “Por tudo isso, o Doutor Magnífico concebe a vontade como uma faculdade ou potência responsável por engendrar movimento no interior da alma, mas sem ela própria ser movida, pois nada a faz mover-se sem que ela deseje querer mover-se, e que, logo, subscreve um tipo de tese que compreende a vontade como algo automovente ou causa suficiente dos seus atos, i.e., como uma potência ativa e que, por isso, tem a propriedade da autodeterminação. Além do que é dito no DLA sobre a reflexividade da vontade, outra evidência de que a vontade é uma faculdade automovente, e que, logo, tem a propriedade da autodeterminação, encontra-se no que Anselmo diz no DCD sobre a vontade do anjo mau ter sido para si mesma causa eficiente e efeito, ao responder ao Discípulo que o diabo quis o que não devia senão porque quis (nisi quia voluit), sem ter nenhuma causa precedente para fazê- lo (cf. DCD 27, 275:19-33). Bem entendido, pois, como bem nota Kane, a vontade é automovente não só porque quer por si querer – uma vez que isso poderia levar a um regresso ao infinito –, mas, sobretudo, porque é uma faculdade autônoma e capaz de agir de modo contracausal (cf. KANE, G. S. Anselm’s Doctrine of Freedom and the Will. New York: Edwin Mellen Press, 1981. p. 43-47) Também Trego aponta que a voluntas anselmiana apresenta um caráter automovente (cf. TREGO, K. L'essence de la liberté. Paris: Vrin, 2010. p. 222-224).” (MONTES D’OCA, 2014, p. 109 e nota 9). 10 Anselmo assentia sobre a existência da vontade nos animais, que seria uma vontade natural própria das ações naturais. Desse modo a vontade, além de possuir seu elemento racional nas criaturas racionais, assume também um papel de motor das demais potências da alma: “La historia del concepto de voluntad se desarrolla al hilo de la discusión en torno al predominio de la voluntad sobre el conjunto de los fenómenos psíquicos y en torno a su relación con el intelecto. La relación entre voluntad y deseo fue ya tratada a fondo dentro de la filosofía antigua, especialmente en Platón y Aristóteles. El primero advertía ya que mientras el deseo, pertenece al orden de lo sensible, la voluntad, pertenece, en cambio, al orden del intelecto. En cuanto a Aristóteles, señalaba explicitamente que si bien deseo y voluntad son, por igual, motores, la voluntad es de índole racional. Desde entonces la racionalidad de la voluntad no fue casi nunca desmentida. Ahora bien, ello no significaba que dejara de acentuarse el carácter motor de los actos volitivos y aun el hecho de que, como precisó San Agustín, la voluntad fuese capaz de intervenir em todas las funciones anímicas. Con lo cual la voluntad pudo convertirse em una especie de motor 5 possibilidade de elegermos as coisas hierarquicamente melhores, que estão em consonância com a verdade e a justiça11 (no decorrer da dissertação, definiremos melhor as noções de verdade e de justiça em Santo Anselmo, especialmente no capítulo 1). Assim sendo, a vontade, neste sentido, está orientada para a universalidade e tem a capacidade de contrariar os excessos da vontade pelo aprazível em favor das coisas que seu intelecto lhe apresenta como melhores. Em relação à trilogia moral. No De veritate, primeiro tratado pertinente ao estudo das Sagradas Escrituras, a vontade é tratada em relação à verdade enquanto retidão e justiça. Podemos falar que há verdade nas ações e até mesmo nas ações deliberativas, ou como Anselmo chama as ações não-naturais. Para tratar desses tipos de ações que envolvem um princípio racional e uma vontade, Anselmo trata da verdade moral sob a noção de justiça. Buscar a justiça envolve buscar a conversão da vontade, ou ainda a conversão do coração, pois apenas a conversão das ações, ou seja, a mudança de vida apenas pelas ações externas, não são suficientes para uma verdadeira conversão à justiça e vontade de Deus. No segundo tratado, De libertate arbitrii, temos a relação entre a reta vontade, que busca a verdade e a justiça, e a definição de liberdade. Anselmo aborda a noção de liberdade de arbítrio não da forma comumente tratada: como o poder de pecar ou de não pecar. Para ele a possibilidade de escolher entre a escravidão e a liberdade não consiste na verdadeira liberdade, mas somente é livre aquele que opta apenas pela liberdade. Portanto, vemos que há uma diferença entre a liberdade de ação, que está presente quando há a ausência de impedimentos para realizar determinada ação, podendo o agente escolher uma coisa ou outra, por exemplo, pela liberdade de ação podemos escolher entre a possibilidade de andar ou correr, dormir ou não dormir. Por outro lado, a liberdade de arbítrio anselmiana se efetiva havendo uma espontaneidade e um caráter de responsabilidade mais profundo, pois quer dizer que vontade e o movimiento de potencias y, por lo tanto, en um principio que podía inclusive aplicarse a todas las especies de apetitos, los naturales tanto como los racionales.” (MORA, 1964, p. 920). 11 “Embora muitas vezes usadas e confundidas essas duas palavras, querer e desejar exigem que se dê nitidez às suas verdadeiras acepções na psicologia. Desejar consiste numa representação mais ou menos vaga de que nos seria um bem, a realização ou a obtenção do que é objeto de nosso pensamento. Querer é esse desejar, mas acrescentado da possibilidade de realizar-se o desejo. Desejamos até o impossível, mas queremos o que julgamos possível. No querer existe uma deliberação, um sopesamento, um balancear de valores. O desejo torna-se querer, quando há essa deliberação, esse balanceamento. Então, para bem compreendermos o querer, para compreendermos o ato voluntário, o ato volitivo, necessitamos analisar bem essa deliberação. Não há um querer sem uma idéia do que é querido, isto é, sem um motivo, uma representação intelectual. Mas basta só isso para orientar o querer? Não; é preciso que alguma coisa nos mova para o que é querido; é mister, portanto, um móvel, que tanto pode ser a atração de um prazer ou o medo de um desprazer ou sofrimento. Mas até aí não está formada ainda a deliberação, porque é necessário o exame desses motivos e desses móveis, se convêm ou não, se interessam ou não. Mas ainda não é tudo, porque é preciso decidir-se a realizar o ato de vontade para obter ou afastar o que se deseja ou se repele. Mas a vontade, até chegar a essa decisão não se completa, sem que seja executada, sem que se ponha em ato, sem a execução do ato.” (SANTOS, 1963, p. 1425-1426). 6 intelecto juntos deliberam, não entre poder ser escravo ou livre, mas em não se submeter à escravidão dos vícios e do pecado. Essa liberdade, portanto, está voltada para a verdade, para a vida reta e verdadeira que possibilita a salvação. A liberdade de arbítrio não assume o papel de escolher entre fazer o bem ou fazer o mal. Ela se dirige para a busca da salvação e, portanto, não possui o poder de pecar12 em sua definição. Para Anselmo, possui liberdade de arbítrio apenas quem é livre. Por outro lado, quem peca se afasta da verdade, cai nos vícios e se torna escravo deles mediante o poder de pecar. Desse modo, o poder de ser livre é diferente do poder de pecar13. Sendo ambos possíveis no âmbito da liberdade da ação, a liberdade apenas se efetiva no âmbito da liberdade de arbítrio, no distanciamento do pecado e na aproximação da justiça. No segundo tratado, vemos a liberdade sob o aspecto humano para no terceiro vermos sob o aspecto angélico. Portanto, vamos do mais conhecido ao menos conhecido para nós, da ordem lógica à ordem natural. Desse modo, temos o DLA para falar do homem, mas para falar de seu pecado, do mal, devemos buscar como ele entrou no mundo. Portanto, é preciso voltar mais na ordem das causas, que será feita no diálogo seguinte. No terceiro tratado, De casu diaboli, trataremos a tripartição da vontade entre vontade- instrumento, vontade-afecção e vontade-uso. Com efeito, vontade-instrumento e vontade-uso já são inicialmente abordadas no DLA. As expressões, porém, são recorrentes em outras obras de Anselmo, e recebem maior atenção no último livro do Aostano, De concordia. Voltando ao DCD, nele Anselmo trata do porquê uma criatura puramente racional, que não padecia de paixões, pôde livremente ter escolhido se afastar da vontade e da felicidade em Deus. De onde 12 “At the very beginning of De libertate arbitrii, Anselm rejects the traditional, Augustinian conception of freedom of choice as a power to do good or evil. Anselm argues that the traditional conception does not square with the view that God and the angels have freedom […] According to Anselm, free choice is common to all rational natures, i.e. to human beings, angels and God. If freedom of choice means the same in all cases, then indeed it appears that having freedom of choice cannot entail having the power to sin. Anselm has thus called into question a common conception of freedom apparently on theological grounds”. (EKENBERG, 2005, p.31). Sobre este mesmo assunto: “Anselm tells us elsewhere (in De concordia 1.6) that in these dialogues he is concerned with freedom only to the extent that freedom bears on salvation.” (WILLIAMS, 2002, p.3). 13 “Nesse contexto, Anselmo evidencia o que entende por liberdade: ela é um poder (potestas), precisamente, o poder de conservar a retidão da vontade pela retidão mesma. Assim sendo, a liberdade é, sob todos os aspectos, um bem, atribuído às criaturas racionais, mas também ao Criador. Veja-se que, na perspectiva anselmiana, a liberdade não pode ser entendida como um movimento da vontade em direção ao bem ou ao mal. Em verdade, ela consiste na capacidade de permanecer no bem, razão pela qual Anselmo pode englobar, em uma única noção de liberdade, tanto os homens quanto os anjos e, até mesmo Deus. [...] De fato, para ele, a liberdade não consiste, propriamente, na escolha entre diversas alternativas; a liberdade consiste no realizar uma ação em conformidade com a justiça, simplesmente porque se quer, isto é, sem nenhuma imposição, sem nenhum constrangimento e sem esperar algo em troca. Sendo potestas, a liberdade é algo mais do que a possibilidade de escolher; é uma força inata, própria da criatura racional, que impele ao bem.” (VASCONCELLOS, 2016, p. 648; 655). 7 veio essa vontade soberba e injusta, que de Portador da Luz fê-lo merecer ser chamado diabo? “O ‘diabo’ (diabolos) é aquele que ‘se atira no meio’ do plano de Deus e de sua ‘obra de salvação’ realizada em Cristo”14. Sendo, portanto, o acusador, o caluniador, que se revoltou contra a verdade e que agora inspira ódio e miséria15. Sendo quem dividiu e quebrou a concórdia entre a criatura e o Criador. No que tange à estrutura da dissertação, o primeiro capítulo tratará do DV, abordando num primeiro momento a questão da linguagem no capítulo II para esclarecer dois termos importantes na filosofia anselmiana, a saber, rectitudo e debitum. Na sequência, analisaremos extensamente a questão da verdade e da retidão para melhor tratarmos da relação entre a verdade, a retidão do pensamento, a retidão da vontade e a retidão da ação não-natural com a justiça, podendo esta ser identificada com a “verdade moral”. O segundo capítulo abordará o DLA, num primeiro momento a definição da liberdade de arbítrio e sua relação com a justiça e, portanto, com a retidão da vontade. Num segundo momento, trataremos da invencibilidade da vontade contra a tentação ou qualquer força externa no tocante ao ato volitivo em si. O terceiro capítulo, que também é dividido em duas partes, discorrerá na primeira parte sobre a queda do diabo e o não recebimento da perseverança. Tendo visto o que significa o não ter recebido a perseverança de Deus, veremos na segunda parte que sua origem está na vontade soberba do diabo. Por fim, a partir da análise da vontade angélica temos a culminação, na trilogia moral, da análise da vontade com a sua tripartição. No anexo, como suplemento ao estudo da vontade, temos: (1) a vontade tripartida do modo como foi desenvolvida por Anselmo no DC; (2) a análise dos modos da vontade que chegaram até nós pelo Philosophica fragmenta; e (3) alguns aspectos da vontade no breve Liber de voluntate. O anexo é um resumo do que Anselmo tratou nos trechos pertinentes à vontade nas obras supracitadas, os comentários estão colocados na forma de notas. Por fim, encontramos características da vontade nas obras Cur deus homo, De conceptu virginali et de originali peccato, Monologion, Proslogion, ainda que não tão extensamente detalhadas como nos primeiros (em especial no CDH e no DCV temos bastante informações sobre a relação da vontade com o pecado e a justiça). 14 [In: CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA (CIC), § 2851]. Também sobre este assunto: “A inveja pode levar às piores ações. Foi pela inveja do demônio que a morte entrou no mundo”. “A Escritura e a Tradição da Igreja veem neste ser um anjo destronado, chamado Satanás ou diabo. A Igreja ensina que ele tinha sido anteriormente um anjo bom, criado por Deus. ‘Com efeito, o diabo e outros demônios foram por Deus criados bons em (sua) natureza, mas se tornaram maus por sua própria iniciativa’.” (CIC, § 2538 e 391 respectivamente). Sobre a queda dos anjos, ver CIC § 391-395. 15 Cf. verbete Diabo in: SANTOS, 1963, p. 548. 8 Capítulo 1 De veritate 1.1. A estrutura do tratado O De veritate16 foi escrito por Santo Anselmo de Cantuária no século XI, enquanto abade no mosteiro de Bec na Normandia. Esse tratado faz parte da chamada trilogia moral17, concernente ao estudo das Sagradas Escrituras. A trilogia é formada pelos tratados De veritate (DV), De libertate arbitrii (DLA) e De casu diaboli (DCD). O primeiro versa sobre dois assuntos que serão determinantes para o seguimento dos demais diálogos, a saber, a verdade e a justiça. Neste primeiro capítulo, trataremos do capítulo XVIII do Monologion, que dá impulso ao DV. Trataremos também das noções de retidão e de dever, passando por todas as sedes da verdade até chegar à definição da verdade e, por fim, ao término do diálogo que trata da unidade da verdade. Deter-nos-emos, especialmente, na retidão do juízo/pensamento, na retidão da vontade e na retidão da ação natural e não-natural para então nos ocuparmos propriamente do capítulo XII do DV, que versa sobre a justiça. Veremos algumas espécies de verdade, ou seja, alguns aspectos em que dizemos que algo é verdadeiro. Veremos também se essas espécies de verdade são independentes, ou seja, se são verdades por si mesmas e, portanto, se existem muitas verdades, ou se elas dependem de uma verdade que é o princípio de todas elas, se são tipos de verdade que participam da Verdade. Em especial veremos de três espécies de verdade: a verdade lógica formal, que Anselmo chama de verdade da enunciação ou significação, a verdade como formulação lógica; a verdade lógica material, que diz como as coisas são, como são de fato; e a verdade moral, isto é, a retidão da vontade ou justiça. Anselmo, no DV, procura saber o que é a verdade e qual a sua definição. O diálogo se divide em três momentos principais: o primeiro trata das várias sedes da verdade e da definição de verdade; o segundo, da justiça; e o terceiro, da unidade da verdade18. 16 Cf. BRIANCESCO, 1977, p. 479. 17 Cf. BRIANCESCO, 1986, p. 72. 18 “Em suma, o De veritate se estrutura em três momentos básicos 1) os caps. II-XI, referidos ao capítulo XVIII do Monologion, respondem ao que é a verdade ao analisarem em que coisas se diz haver verdade, 2) o capítulo 9 No primeiro momento, Anselmo, percorre as diversas sedes da verdade19, ou ainda, os lugares onde dizemos que existe a verdade. Para isso, vai da pluralidade à unidade, quer dizer, vai das coisas que são mais cognoscíveis às menos cognoscíveis para nós. Temos, portanto, a seguinte ordem: a verdade da enunciação/significação, a verdade do juízo/pensamento, a verdade da vontade, a verdade da ação, a verdade dos sentidos, a verdade da essência das coisas e a suma verdade. Embora o mais cognoscível para nós comece pela enunciação na ordem da geração, ele deriva da suma verdade na ordem da natureza, que é a causa eficiente de todas as outras verdades. Em segundo lugar, temos a verdade da essência das coisas, que é o efeito imediato da suma verdade e a causa das verdades do pensamento e da enunciação, que são apenas os efeitos das anteriores. Anselmo, no capítulo XI, após percorrer todas as sedes da verdade, define a verdade como “a retidão perceptível apenas pela mente”. É dito “apenas pela mente” para separá-la da retidão percebida pelos sentidos, que percebe a retidão de uma vara, por exemplo. A retidão percebida apenas pela mente pode contemplar as coisas que se referem à suma verdade. No segundo momento do DV, que será abordado abaixo, Anselmo considera a noção de justiça. Vimos que a verdade é a retidão percebida apenas pela mente. A justiça implica essa retidão, coincidindo de certo modo com a verdade. Anselmo afirma que a verdade, a retidão e a justiça se definem mutuamente. No entanto, a ação justa, por ser feita voluntariamente, é mais elevada que a ação natural e não voluntária, uma vez que a última faz sempre o que deve, ou seja, faz sempre aquilo para o qual foi criada por Deus. A justiça se encontra na natureza racional, que reconhece a retidão percebida apenas pela mente. A justiça no homem, que é um ente racional, está na retidão da vontade. Toda vontade requer o que (quid) e porque (cur), ou seja, somente queremos alguma coisa (o que) quando há uma razão (porque) para a querermos. Para que haja uma vontade justa é preciso que o agente queira o que quer e queira porque deve. Daí, Anselmo afirmar que é justa a vontade que conserva a sua retidão pela própria retidão e não por ser coagida ou por querer a retidão com vistas a algo alheio a ela. Desse modo, a definição de justiça é a retidão da vontade conservada por si mesma20. Em seguida, Anselmo engloba a definição de justiça na suma justiça. Na suma XII, ao qualificar a definição da verdade, chega à definição da justiça e 3) o capítulo XIII, munido dessas duas definições, responde ao problema da unidade da verdade proposto no capítulo I.” (COSTA, 2010, p. 3). 19 DV 6, 183:10-11. 20 DV 12, 194:26. 10 justiça, a vontade e a retidão não são distintas, mas uma só e a mesma; ela é a máxima expressão da retidão da vontade conservada por si21. No terceiro momento e último capítulo da obra, mestre e discípulo procuram responder à pergunta inicial do diálogo sobre se há uma só verdade nas coisas, ou se há várias verdades para cada uma delas22. De início, somos relembrados de que em toda coisa onde há verdade, há retidão. Se há muitas formas da verdade, é necessário também que haja muitas formas da retidão. Ao dizermos que há várias formas da retidão nas várias coisas, admitimos que as retidões têm seu ser nas próprias coisas. Portanto, se assim for, a retidão da enunciação é distinta da retidão da vontade, pois cada uma se encerra em si mesma e muda de acordo consigo mesma. No entanto, uma coisa não começa a ser a partir do momento em que passa a ser enunciada. Antes, a coisa já é, e a enunciação fala do que ela é. De modo que, para haver enunciação, é necessário que haja algo anterior a ela.23 É a enunciação que necessita da retidão; a retidão não deixa de ser, pois é causa da enunciação. Donde se segue que a retidão sempre subsiste, mesmo que tudo pereça. A retidão em tudo é imutável e una. Portanto, a verdade é uma só em tudo. No entanto, quando falamos da verdade da enunciação ou da verdade da ação, ou ainda, da verdade “desta ou daquela coisa” extraímos do todo a parte e com isso as denominamos “verdade”. É um uso impróprio da palavra, pois as coisas não possuem um ser próprio, elas o recebem de outro24. Esse outro é Deus. Mais ainda, se as coisas são verdadeiras, não o são enquanto consideradas por si mesmas, uma vez que participam da suma verdade. Portanto, algo se conforma à realidade da verdade e não o contrário. Se dizemos existir verdades e retidões é porque elas são validadas em algo que as englobam. Portanto, tudo o que é verdade, é verdadeiro em relação ao que é na suma verdade, e não arbitrariamente. No De veritate, Anselmo consegue harmonizar a significação da verdade em seu aspecto lógico, ético e metafísico. A verdade de um conhecimento consiste na sua retidão, pois é como deve, consistindo na correta apreensão da coisa. Isso acontece quando a mente intelige o que algo é. Ao passo que a essência da coisa, concebida na mente criadora, é a sua “verdade ontológica”. Por conseguinte, a retidão da mente é apenas uma forma particular da verdade, 21 DV 12, 196:1-8. 22 DV 1, 176:4-6. 23 Cf. DV 12, 194:26. 24 Cf. DV 13, 199:17-21. 11 pois, assim como o conhecimento que apreende a coisa possui o seu tipo de verdade, a coisa conhecida também possui o seu próprio tipo de verdade, e a própria verdade também é retidão. Do que foi dito, podemos perceber que Santo Anselmo25 pertence, na esteira de Santo Agostinho, à herança neoplatônica da noção de verdade, lida em chave cristã26. Segundo Peter King, Anselmo é um platônico no tocante à metafísica27. Tendo em conta o que foi dito no trecho acima, se algo tem retidão, deve ter retidão em relação a algo, e este é Deus. Desse modo, cada coisa é verdadeira – e, portanto, tem retidão – enquanto é o que deve segundo sua forma que está em Deus. Uma vontade é verdadeira se tem retidão; da mesma forma uma ação. Alameda, na introdução ao DV (1953), sintetiza que a verdade é a conformidade do que é com a regra que fixa o que deve; esta regra, em última instância, sempre é a essência criadora. Daí, Santo Anselmo concluir, no DV, que não há mais que uma só verdade de tudo o que é verdadeiro, ou seja, Deus28. Capítulo primeiro O primeiro capítulo do De veritate começa com a profissão de fé do discípulo29: “Uma vez que nós cremos que Deus é a verdade, e dizemos que a verdade existe em muitas outras coisas, 25 “A primeira característica, que condiciona todas as outras, é representada pela unidade e perfeita correspondência entre linguagem, pensamento e realidade, ou mútua remitência entre lógica e mundo ou entre res e voces. A realidade corresponde aos conceitos, e a remitência dos conceitos à realidade é fruto de um movimento objetivo. Anselmo defende uma concepção realista dos universais. Aos conceitos de bondade, sabedoria, ser e natureza corresponde uma realidade ontológico-teológica, da qual depende toda a atividade cognoscitiva do intelecto relativamente às coisas que, precisamente, participam daquela bondade, daquele ser e daquela natureza. [...] As coisas boas, grandes, existentes etc., não seriam concebíveis se não houvesse o pressuposto da bondade, do ser etc., que são idéias universais e arquetípicas, situadas na mente divina e sobre as quais se moldou o criado. [...] A esse realismo de ascendência platônica é preciso acrescentar o realismo teológico, que justifica a investigação racional relativa aos mistérios da fé cristã. Ou seja, a posse das verdades reveladas por meio da fé faz com que a razão seja constantemente vinculada ao seu conteúdo e sua investigação siga o movimento lógico que parte da fé para explicitar seu conteúdo e iluminar suas relações.” (ANTISERI; REALE, 2005, p. 153-154). 26 SILVA, 2012, p. 10. 27 KING, s/d., p. 2. 28 SAN ANSELMO, 1953, v.1, p. 487. 29 “Podemos dizer que a interrogação sobre a verdade pertence ao terreno da fé. Um lance de olhos sobre os treze capítulos permite reconhecer isso. O cap. 1 apresenta inicialmente uma confissão de fé: cremos que Deus é a verdade, e uma dificuldade que é propriamente a possibilidade da reversibilidade da proposição mencionada acima: assim como a verdade está em muitas coisas, podemos confessar que ela é Deus. Desse modo, falar da verdade será falar de Deus. Essa pluralidade de verdades, que Anselmo denominará mais especificamente de ‘lugares da verdade’ — sedes veritatis (Cf. DV 6, 183:10-11) —, será objeto de uma consideração exaustiva na maior parte da obra (caps. 2- 9). Do reconhecimento dessa diversidade, Anselmo passa à afirmação da suma verdade ou retidão, que é a causa de todas as outras retidões — vides etiam quomodo ista rectitudo causa sit omnium aliarum veritatum et rectitudinum (DV 10, 190:6-7) —, verdade essa que não tem princípio nem fim, e, daí, ao reconhecimento da unidade da verdade: una igitur et eadem est omnium rectitudo. (Ibid. 13, 190:5).” (MARTINES, 2000, p. 60). 12 quereria saber se em qualquer lugar em que a verdade é dita devemos confessar que ela é Deus.”30 A seguir, o discípulo utiliza o que é dito no capítulo XVIII do Monológio – onde é mostrado que a suma essência, que é Deus, não possui princípio nem fim – visando embasar seu pedido ao mestre para procurar a definição da verdade: De fato, no teu Monológio tu também provas por meio da verdade da proposição que a suma verdade não tem princípio nem fim, ao dizeres: pense quem puder a respeito de quando começou ou quando não existiu esta verdade, a saber, que haveria algo futuro, ou quando deixe de existir ou quando não for verdade esta verdade, isto é, que haverá algo de passado. Se, porém, nenhuma dessas duas coisas pode ser pensada, e se essas duas verdades não podem existir sem a verdade, então é impossível pensar que a verdade tenha princípio ou fim. Em suma, se a verdade teve princípio ou terá fim, antes que ela própria começasse a existir, então era verdade que não existia a verdade; e, depois que ela tiver deixado de existir, então será verdade que não existirá a verdade. Ora, a verdade não pode existir sem a verdade. Por conseguinte, existia verdade antes que existisse a verdade, e existirá a verdade depois que a verdade tiver deixado de existir, o que é muito inconveniente. Portanto, quer se diga que a verdade tem princípio ou fim, quer se conceba que não tem nem um nem outro, a verdade não pode ser enclausurada por nenhum princípio ou fim31. Neste primeiro capítulo, estamos lidando com as perguntas: A verdade possui um começo? Quando podemos dizer que a verdade começa? A verdade termina em algum momento? É possível que a verdade deixe de ser verdadeira? Quando começa a ser verdadeira a proposição que diz “há algo de futuro”, ou quando deixa de ser verdadeira a proposição que diz “há algo no passado”? Para que ambas proposições sejam verdadeiras é preciso que haja uma verdade anterior que as valide, ou ainda, que englobe e transcenda essas proposições. Aqui, tudo indica que a verdade deve ser eterna para que uma proposição desse tipo possa afirmar algo. 30 Quoniam deum veritatem esse credimus, et veritatem in multis aliis dicimus esse, vellem scire an ubicumque veritas dicitur, deum eam esse fateri debeamus. (DV 1, 176:4-6). 31 Nam tu quoque in Monologio tuo per veritatem orationis probas summam veritatem non habere principium vel finem, dicens: .Cogitet qui potest, quando incepit aut quando non fuit hoc verum: scilicet quia futurum erat aliquid; aut quando desinet et non erit hoc verum: videlicet quia praeteritum erit aliquid. Quodsi neutrum horum cogitari potest, et utrumque hoc verum sine veritate esse non potest: impossibile est vel cogitare, quod veritas principium aut finem habeat. denique si veritas habuit principium aut habebit finem: antequam ipsa inciperet, verum erat tunc quia non erat veritas; et postquam finita erit, verum erit tunc quia non erit veritas. Atqui verum non potest esse sine veritate. Erat igitur veritas, antequam esset veritas; et erit veritas, postquam finita erit veritas; quod inconvenientissimum est. Sive igitur dicatur veritas habere, sive intelligatur non habere principium vel finem: nullo is claudi potest veritas principio vel fine. (DV 1, 176:6-19). 13 Por que dizemos que, para haver validade em algo, a verdade deve ser eterna? Dizemo- lo, pois, se a verdade teve começo é necessário admitir que algo anterior a ela era verdade para que seu começo fosse verdadeiro, ou seja, é preciso dizer que havia uma verdade anterior à verdade. Por outro lado, ao dizermos que ela tem fim, devemos admitir que é verdadeiro que ela acaba; no entanto, depois de acabada, será verdadeiro dizer que a verdade não é mais verdade, ou seja, novamente, será verdade dizer que a verdade cessou, o que é uma contradição. Se eu disser a verdade acabou, se for verdadeiro o que estou dizendo, será verdadeiro que a verdade acabou. E isso é absurdo. A conclusão deste raciocínio é que não há nada verdadeiro sem a verdade que o valide, e não se pode encerrar a verdade em um começo ou fim. 1.1.1. A retidão e o que é devido Antes de irmos para o capítulo II convém falarmos brevemente sobre a palavra significação. O capítulo II estabelece a base conceitual da ética de Anselmo: rectitudo e debitum. Por conseguinte, guiará nossa busca pela verdade e pela justiça, essenciais para tratarmos da retidão da vontade nos dois diálogos seguintes. O ato de significar é o ato de criar por meio de símbolos – sejam escritos, falados ou gesticulados – são representações verossímeis das coisas. Neste capítulo II trataremos dos significados da verdade e das duas verdades da significação. O capítulo II do DV é muito importante neste tratado, pois é nele que as noções de retidão e de dever são introduzidas, bem como se estabelece a base para a busca do que é a verdade, a saber, a verdade da enunciação que, por sua vez, será importante no capítulo X para esclarecer a passagem do Monologion citada anteriormente no cap. I. Ao tratar da proposição, assim como Aristóteles no De interpretatione, Anselmo frequentemente usa em seu lugar as palavras afirmação, negação, enunciação ou oração enunciativa. Ele quase nunca usa a palavra proposição. No entanto, para fins de clareza, utilizaremos essa palavra. O que precisamos deixar 14 claro é que a verdade da proposição é a nossa base para buscar o que é a verdade, mas ela ainda não é a verdade propriamente dita32. O capítulo II pode ser divido em três momentos33. Primeira parte (de 177:6-23 a 178:1-7) Na primeira parte do capítulo II, mestre e discípulo começam a investigação sobre o que é a verdade da enunciação, posto que é a partir dela que dizemos o verdadeiro e o falso. Nesta primeira parte, teremos a primeira espécie da verdade. Quando é verdadeira uma enunciação? – pergunta o mestre. O discípulo responde que a enunciação é verdadeira quando o que é enunciado existe, seja afirmando, ou negando. A coisa enunciada não é, porém, a verdade da enunciação, pois nada é verdadeiro a não ser participando da verdade. Por isso, a verdade daquilo que é verdadeiro está no próprio verdadeiro, mas a coisa verdadeira (res vera) não está na enunciação verdadeira (enuntiatione vera). A verdade da enunciação não é a verdade da coisa34. O ser da coisa é a causa da verdade da enunciação, por isso, segundo o discípulo, a verdade da proposição, que estamos procurando agora, deve ser buscada na própria proposição35. 32 A verdade da enunciação, ou da proposição, é aquela que agora a pouco chamamos de verdade lógica. Esse nível de compreensão da verdade é o mais básico e facilmente reconhecível por nós. É o tipo de verdade em que, pelo discurso, afirmamos que algo é verdadeiro ou falso – na contemporaneidade chegamos a um nível de inteligência tão crítico, que alguns acreditam existir apenas este tipo de verdade, ou seja, a do discurso. A partir daí chegamos à afirmações absurdas como: a verdade é relativa, a verdade é apenas discurso, ela não possui algo que a fundamente. Tendo ainda aqueles que dizem que a verdade é apenas o consenso de pares de pessoas a respeito de um assunto, ou seja, é apenas uma ficção humana, que as pessoas criam para validar sua visão de mundo. Quem acredita neste tipo de afirmação, se fechou totalmente para o transcendente, caiu no amargor do materialismo. Ao reduzir a verdade dizendo que ela é apenas consenso, visões de mundo e que o que importa mesmo não é perguntar o que as coisas são, mas se perguntar: “o que fazer para criar um mundo melhor?”; essa pessoa se fechou para a apreensão da realidade, de Deus e caiu no mundo da ideologia, da gnose, do pensamento revolucionário. É cabível usar o termo verdade subjetiva para estudos no âmbito psicológico, de como a pessoa está percebendo o mundo em determinado instante. No entanto, ao tratar daquilo que transcende o aspecto psicológico e entra na questão do ser das coisas, o que as coisas são (a verdade ontológica), não tem cabimento algum falar em verdade relativa. 33 Cf. BRIANCESCO, 1981, p. 13. 34 Estamos lidando com proposições, que é uma estrutura linguística composta da junção de palavras, que são: sujeito + verbo + predicado, onde afirmamos que uma coisa é ou não é, se ela existe ou não existe. Portanto, posso usar as palavras para enunciar, ou ainda, para significar: João é alto, é gordo. João não é baixo, não é magro. A verdade da proposição não é a própria coisa (o João concreto), para falarmos de verdade da proposição devemos estar falando da própria proposição que é verdadeira, na medida em que descreve João de maneira correta. Desse modo, uma é a verdade da proposição e outra é a verdade – digamos, interna – da coisa. Para explicar melhor vamos dividir: vamos falar de verdade da coisa e a verdade da palavra. A verdade de uma coisa significa o próprio ser dela, aquilo que fundamenta sua existência. Usamos as palavras para significar coisas. Uma palavra será verdadeira apenas se significar corretamente a coisa que ela foi feita para significar, mas isso não quer dizer que a coisa concreta seja a própria verdade da palavra. Antes disso, a verdade da coisa possibilita que possamos falar de uma verdade da palavra – falaremos mais a esse respeito um pouco adiante neste tópico. 35 Cf. DV 2, 177:16-19. 15 O mestre pede então ao discípulo para dizer se o que ele procura é a própria proposição ou seu significado ou algum dos elementos que estão na definição da enunciação. Ao passo que o aluno percebe o problema em seu próprio raciocínio e responde: Não creio, [...] Porque, se assim fosse, ela [a proposição] sempre seria verdadeira, porquanto todas as coisas que estão na definição da enunciação permanecem as mesmas tanto quando existe aquilo que enuncia, como quando não existe. De fato, é a mesma a proposição, a mesma a significação, e assim com o restante36. O problema neste raciocínio é que, se considerarmos a proposição apenas em seu aspecto lógico-formal, ela permanecerá inalterada e sempre será verdadeira mesmo quando a estivermos usando para mentir. A primeira parte termina com o aluno afirmando, de maneira confusa, apenas o que lhe é óbvio, a proposição possui verdade quando significa que o-que-é é; ou seja, é verdadeira quando significa que o-que-existe existe. Segunda parte (178:6-27) Na segunda parte do capítulo II, temos a transição da verdade à retidão mediante a noção do que é devido (debitum). O mestre pergunta ao discípulo para que foi feita a afirmação. O discípulo responde que é para significar que é aquilo-que-é, e o mestre conclui, “portanto, deve fazê-lo”37. Percebemos aqui uma mudança no registro da investigação38. Em linhas gerais, debere significa que tudo que foi criado tem uma finalidade e, por isso, uma obrigação para com o seu criador. O dever que aqui tratamos é um dever de caráter ontológico. É um dever-ser das coisas, que sendo criadas por Deus, foram criadas com um propósito. Deus enquanto causa do ser das coisas, instala no âmago dos seres um propósito para o qual as coisas tendem. Como podemos ver no cap. V do Monológio, enquanto criaturas não somos princípio do nosso próprio ser, não somos por si (per se), mas somos por outro (per 36 Non puto, […]. Quia si hoc esset, semper esset vera, quoniam eadem manent omnia quae sunt in enuntiationis definitione, et cum est quod enuntiat, et cum non est. Eadem enim est oratio et eadem significatio et cetera similiter. (DV 2, 178:1-4). 37 Hoc ergo debet. (DV 2, 178). 38 “A noção de debitum [o que é devido] levará a noção de significatio para outro registro. O conceito de debitum, contudo, só “alcança sua reta intelecção no capítulo X graças à categoria de causa [e efeito correlativo]. Eis os elementos que serão os três pólos fundamentais: significatio - debitum - causa em torno dos quais se desenvolverão os capítulos II a XI do De veritate.” (COSTA, 2010, p. 38). 16 aliud). Todas as coisas são o que são por causa da suma natureza, tudo o que existe pertence a ela. Somente essa natureza possui ser propriamente, ou seja, somente ela é por si mesma e as demais coisas não possuem ser próprio e, portanto, só são por causa daquela39. Nós, criaturas, não temos princípio ontológico em nós mesmos, mas temos nosso princípio em outro. Deus não nos deu o ser no sentido de que, uma vez recebido, ele seja inteiramente nosso. Antes disso, ele nos deu o ser para que fruíssemos de sua bondade40. Quando recebemos o ser, que não é nosso, é apenas um dom; contraímos ontologicamente um dever e um dever de fazer uso reto de acordo com a finalidade para a qual o ente foi criado. A proposição, portanto, foi feita para significar que é aquilo-que-é, ou seja, para expressar aquilo que existe. Isso é o que ela deve fazer, pois é sua finalidade fazê-lo. No caso da proposição, ela foi feita para significar, portanto, quando significa que é aquilo-que-é, a proposição significa o que deve significar, ou, em outras palavras, quando expressa a existência do que existe, a proposição cumpre com o dever para o qual foi criada. A partir daí temos a passagem do dever à retidão, pois ao significar o que deve, a proposição está significando de maneira reta, correta. Portanto, quando a proposição significa que o-que-é é, a significação é reta e verdadeira41. Segue-se que a proposição ser reta e ser verdadeira é o mesmo: significar o-que-é. Conclui-se que a verdade para a proposição é a retidão. Esta retidão expressa a adequação da proposição com a finalidade para a qual foi criada42. A finalidade da enunciação é significar43. Desse modo, toda vez que uma proposição significa o-que-é, ela faz o que deve e é reta. Essa 39 Cf. Monol. 5, 18:3-20. 40 Cf. DCD 1, 234:26-28. 41 “De fato, uma enunciação é verdadeira quando diz que é o que é, mas não porque se trate de uma relação de correspondência entre intelecto e coisa, mas porque ao significar desse modo a enunciação remete a seu próprio verbo e, consequentemente, ao verbo daquilo que é. Vê-se de que maneira o debitum modifica o registro do signum. Desse modo, o conceito de retidão, definido como X quod debet X, está longe de um formalismo frio, pois essa fórmula é a expressão mesma desse transbordar.” (COSTA, 2010, p. 44; grifo nosso). 42 Nas coisas em que há retidão, significamos que elas são o que devem. A retidão pode ser dita como adequação da criatura ao seu fim, ou ainda, adequação da criatura ao propósito designado por Deus. Como veremos no capítulo XII do DV, Deus é a própria retidão e as que coisas participam dela podemos de certo modo chamá-las de retidão (Cf. COSTA, 2010, p. 43). Por isso, em Anselmo, quando falamos, por exemplo, da adequação do intelecto e da coisa, podemos dizê-lo de certo modo, mas nunca podemos nos esquecer de que dizemos a verdade quando o que dizemos da coisa se encontra com sua forma que está no Verbo de Deus. Ver também POUCHET, 1964. 43 A verdade mostra o que é, o que existe. Imediatamente vemos que para algo existir é preciso haver uma correlação entre o que existe e uma determinada finalidade para ele, com isso temos o parâmetro para dizer que algo tem retidão. Para dizer que algo tem retidão em ser o que é, de qualquer modo, ele deverá acontecer/ser, pois, se ele não acontecer/ser não haverá retidão e não haverá verdade. A coisa, portanto, deve realizar a finalidade para a qual foi feita. Este dever ser está submetido à teleologia divina. 17 noção de retidão será identificada a todas as sedes subsequentes da verdade44: no juízo/pensamento, na vontade, na ação, nos sentidos, na essência das coisas e na suma verdade.45 1.1.2. As sedes da verdade e a definição da verdade As sedes da verdade Na sequência do capítulo II do DV, e das sedes da verdade, temos a terceira parte (178:28-34 - 180:1-3) que tratará das duas verdades ou retidões presentes na enunciação46. Vimos anteriormente a transição da noção de significatio, que é a função da proposição, para a noção de rectitudo com o auxílio da noção de debitum, ou seja, a função da proposição é significar. Quando a proposição cumpre com sua função, ela faz o que deve, faz o que foi feita para fazer. Quando dizemos que algo faz o que foi feito para fazer, ou ainda, dizemos que algo é o que foi feito para ser, estamos dizendo que tal coisa age retamente e que tal coisa é reta. Por fim, agir retamente e ser retamente é o mesmo que agir verdadeiramente e ser verdadeiramente. Até aqui, foi definido que a verdade da enunciação é o mesmo que significar que o-que-é é e que o-que- não-é não é. A partir desse ponto, o discípulo faz uma interessante observação e pede ao mestre ajuda para que o ensine a responder caso alguém diga que a proposição também significa o que deve quando expressa a existência do que não existe (e.g. unicórnios existem), visto que a proposição recebeu igualmente o poder de significar a existência do-que-é e do-que-não-é. Pois, se a proposição não tivesse recebido também o poder de significar que é o-que-não-é, não o significaria de modo algum. Por isso, quando significa que é o-que-não-é, também significa o que deve. Diz ainda o discípulo que, se for de acordo com o que o mestre falou, ao significar o que deve, a proposição é reta e verdadeira; ela é verdadeira também quando enuncia a existência do que não existe47. 44 “A partir da menção a essas sedes da verdade, a identificação de uma finalidade para as coisas é um pressuposto que guia toda a investigação sobre a verdade, mediante a análise de suas diversas sedes, bem como a identificação entre veritas, rectitudo e debitum. A veritas supõe a rectitudo, que, por sua vez, supõe o debitum, que consiste em a coisa cumprir sua finalidade: fazer aquilo para que foi feita.” (MONTES D’OCA, 2014, p. 71). 45 Cf. MONTES D’OCA, 2014, p. 71. 46 Cf. MARTINES, 2000, p. 67. 47 Cf. DV 2, 178:28-34. 18 Em sua resposta, o mestre dirá que o ato de significar que é o-que-não-é possui um tipo de retidão que é a de sempre significar. A proposição sempre significa algo, seja o que ela está afirmando verdadeiro, seja o que ela está afirmando falso, pois foi feita para isso. No entanto, não é esse tipo de verdade ou retidão que se está procurando, pois ela não pode ser propriamente dita verdadeira. O mestre responde que certamente não se costuma chamar de verdadeira uma proposição que significa ser o-que-não-é; no entanto, ainda assim, essas proposições possuem uma verdade e uma retidão, porque fazem o que devem, ou seja, significam alguma coisa. Mas quando a proposição de fato significa existir o que existe, faz duplamente o que deve, pois, ao mesmo tempo, significa (1) o que ela recebeu a capacidade de fazer e (2) significa o que ela foi feita para fazer, que é significar. É nessa dupla função, sendo cumprida, que está a verdade buscada.48 De uma proposição geralmente se diz reta e verdadeira de acordo com a última retidão e verdade, pela qual ela significa que o-que-é é; geralmente não dizemos ser reta e verdadeira a proposição de acordo com a primeira retidão e verdade, que é a que significa até mesmo que o- que-não-é é.49 A proposição, portanto, faz mais o que deve com relação ao que ela foi feita para fazer, que é significar. Isso acontece porque a proposição recebeu a capacidade de significar que a coisa é quando ela não é, ou de significar que a coisa não é quando é, simplesmente porque a ela não foi possível se restringir a significar apenas o que a coisa é quando é ou que não é quando não é. De modo que a proposição possui duas retidões e verdades. A seguir, apresentamos um esquema geral do que foi dito desde a terceira parte do capítulo II: (1) A retidão significa o que a proposição recebeu a capacidade de significar, faz o que deve enquanto instrumento, que é significar o-que-é e o-que-não-é. A capacidade ou poder de significar não foi feito para restringir-se à correspondência com a coisa. Esta primeira retidão é a capacidade que a proposição recebeu para sempre significar e é a verdade da proposição. (2) A retidão significa o que a proposição foi feita para significar, que é quando a proposição possui correspondência com a coisa significada. 48 Cf. DV 2, 179:2-4. 49 Cf. DV 2, 179:4-7. 19 A partir disso, Anselmo define as duas verdades da enunciação: a verdade natural da proposição, que invariavelmente é verdadeira; e a verdade não-natural da proposição, que somente é verdadeira quando a verdade natural é aplicada corretamente às coisas que estão sendo significadas: (1) Uma é a retidão e a verdade do enunciado que significa aquilo que recebeu a capacidade de significar, a saber, é o conteúdo formal. Eis suas características: – pertence invariavelmente à proposição; – a proposição sempre possui este tipo de verdade, que simplesmente é a capacidade de significar; – este tipo de verdade pertence naturalmente à proposição. (2) A outra é a retidão e a verdade da proposição que significa a coisa ao qual foi feita para significar. Podemos dizer que este tipo de retidão é a reta aplicação do discurso à coisa, a correspondência entre o enunciado e a coisa. Eis suas características: – pertence variavelmente à proposição; – a proposição nem sempre possui este tipo de verdade; – este tipo de verdade do enunciado, que concorda com a coisa, pertence acidentalmente à proposição e é conforme o uso. Em suma, na proposição sempre haverá uma parte sua que é naturalmente reta e outra em que a retidão é acidental, pois ela será verdadeira enquanto aplicada à situação correspondente.50 Para esse assunto, veremos o exemplo da proposição “é dia”. A retidão natural da enunciação é necessária e a retidão do uso/aplicação não é necessária. Na primeira, o enunciado “é dia” foi feito para significar que é dia. Na segunda, enunciar “é dia” será verdadeiro somente se, no momento em que for dito, de fato, for dia. Para que possamos falar de algo verdadeiro é preciso que haja em conjunto estas duas espécies da verdade da enunciação. 50 Na relação entre a retidão natural e a retidão do uso/aplicação da proposição, Visser e Williams indicam que a primeira se identifica com o que é chamado em lógica por type e a segunda com o que é chamado por token. Em linhas gerais, type é o conceito, e token, o exemplar do type (e.g. há o conceito de cão e há o exemplar do cão, um cão que é branco e preto). Cf. VISSER; WILLIAMS, 2004, p. 205-208. 20 No enunciado “é dia”, quando se usa para significar que o-que-é é, usa-se a significação desse enunciado retamente porque o enunciado é feito para isso, ou seja, para significar que o- que-é é; e por isso se diz significar retamente nessa situação – aqui estão juntas as duas verdades, mas elas podem aparecer separadas. No entanto, quando uso o mesmo enunciado para significar que o-que-não-é é, não faço uso reto da significação do enunciado, pois aquele enunciado não foi feito para significar isso; e, portanto, sua significação não se diz reta nessa ocasião (e.g. se no momento em que for noite afirmar-se que é dia)51. Há, porém, casos em que essas duas verdades ou retidões são inseparáveis em algumas proposições, por exemplo, “o homem é um animal” ou “o homem não é uma pedra”, pois o enunciado afirmativo sempre significa que o-que-é é, e o segundo enunciado, que é negativo, sempre significa que o-que-não-é não é. Ambos nunca dependem do contexto, são proposições universais e expressam propriedades de um conceito, nesse caso, do homem. Além disso, não é possível fazer uma afirmação significar que o-que-não-é é nem o oposto, a saber, que uma negação signifique que o-que-é não é, pois, o homem sempre é um animal e o homem nunca é uma pedra. Do que foi dito, ressaltemos que nesses casos não há contingência como quando dizemos “é dia”52. Para terminar a sua resposta, o mestre conclui dizendo que eles começaram falando da verdade em que na proposição há concordância entre a coisa e o que é dito, mas assinala que mais tarde tratará da verdade da proposição que é natural e que, portanto, não pode deixar de ter a retidão53. No fim desse capítulo, o mestre garante também que irá retornar ao assunto da verdade da enunciação54, pois a mesma noção de verdade da enunciação, que é natural e que examinamos nas proposições orais, deve ser examinada em todos os sinais que são feitos para significar que algo-é, ou que algo-não é. Anselmo, nesse capítulo, oferece o exemplo da escrita, ou da língua de sinais. No capítulo IX, onde a noção de enunciação será estendida, teremos também os exemplos da enunciação da ação, da vontade, do pensamento e da essência das coisas. Tendo sido definidas as verdades da enunciação, Anselmo passa, então, à sede seguinte da verdade, que é a da opinião ou juízo interno – sendo também traduzida algumas vezes por 51 Cf. DV 2, 179:15-19. 52 Cf. DV 2, 179:19-25. 53 No capítulo V. 54 No capitulo IX. 21 verdade do pensamento. A retidão do pensamento consiste na concordância do juízo com o objeto inteligido. Em seguida, no capítulo IV, Anselmo tratará da verdade da vontade utilizando o exemplo do diabo, que não permaneceu na verdade. Enquanto o diabo quis o que devia, ou seja, aquilo para o qual recebeu a vontade, estava na retidão e verdade. Quando quis o que não devia abandonou a retidão e verdade. No capítulo V, o mestre pede ao discípulo para considerar se podemos dizer convenientemente que toda ação faz o que deve – se faz a verdade. Desta observação do mestre, temos a divisão da verdade da ação em duas, a saber: a ação natural que sempre faz o que deve, pois é necessária, como o fogo que sempre aquece; e a ação não natural que é racional, não necessária e, portanto, livre55. No capítulo VI, Anselmo e seu discípulo tratam de uma das sedes da verdade que também está contida na verdade das ações naturais. É a verdade dos sentidos56. Quer dizer, os sentidos não erram, pois fazem apenas o que devem, ou seja, o que foram feitos para fazer que é captar os sensíveis. O sentido externo não mente ao sentido interno. Os sentidos externos realizam aquilo que foram feitos para fazer, ou seja, sempre fazem o que devem. Receberam a capacidade de perceber e, portanto, fazem o que são capazes. O engano vem do uso que o sentido interno faz dos dados recebidos, ou, em outras palavras, o erro vem do mal discernimento que o juízo da alma faz com os dados recebidos dos sentidos externos. Deste modo, podemos também errar 55 Retomaremos mais detalhadamente os capítulos III, IV e V no tópico concernente às noções de retidão da vontade e justiça. 56 Pode ser, como dizem alguns, que Descartes, tenha usado da dúvida hiperbólica apenas como método provisório para chegar à “verdades” mais confiáveis e, depois, restituiu o sentido ao seu devido lugar; até porque Descartes buscava certezas indubitáveis e não ficar para sempre na dúvida, ele não parecia buscar o ceticismo epistemológico. No entanto, a posteridade parece ter tomado como norma estes preceitos cartesianos – da dúvida hiperbólica - e chamam suas catastróficas consequências de filosofia. Mas podemos ver em Anselmo que não é que os sentidos não sejam confiáveis para encontrar a verdade, mas é próprio do ser humano, por uma limitação própria sua, o não conseguir conhecer as coisas por todos os lados ao mesmo tempo. É uma limitação natural do ser humano, mas que não o impede de conhecer os aspectos da verdade imutável. Apenas Deus conhece todos os lados da verdade ao mesmo tempo, o ser humano conhece apenas parcialmente, mas isso não o priva da verdade, pois é algo natural de sua constituição. O ser humano que pretende conhecer a verdade por todos seus aspectos simultaneamente está tomado pela soberba intelectual de querer conhecer como Deus conhece. O mal de nossos últimos séculos é a soberba, é o antropocentrismo. Agora, voltando a Santo Anselmo, a verdade dos sentidos, então, se enquadra na verdade das ações naturais, pois os sentidos sempre fazem aquilo que foram feitos para fazer – o ouvido para ouvir, os olhos para ver e etc. Seja realizando bem ou não sua função, eles cumprem com seu dever e os sentidos externos nada julgam, portanto, para Santo Anselmo, não erram. O julgamento de verdade ou falsidade está em outro lugar, por isso, duvidar dos sentidos hiperbolicamente é um grande erro. Temos dois conjuntos de sentidos, os externos e os internos. A função dos sentidos externos é o de receber os dados do mundo, que são nossos cinco sentidos. Mas cada sentido não é como uma ponta solta em que um está isolado do outro, eles se interconectam. Mas para haver essa interconexão é preciso um outro sentido capaz de reunir todos. Reunindo, assim, tudo o que recebe isoladamente dos sentidos externos e condensando-os em experiências únicas pelas quais podemos conhecer. Este outro sentido é o sentido interno, que é nosso intelecto. Inteligir vem do latim intellego, que é a junção do prefixo inter- + lego; inter- significa algo que acontece internamente e lego significa: reunir, escolher, selecionar, ler. Portanto, reúne internamente. O intelecto, brevemente falando, significa uma reunião ou leitura interna que fazemos de tudo que chega até nossa apreensão. 22 no ato da significação quando raciocinamos erradamente algo a partir daquilo que recebemos dos sentidos. Anselmo fornece o exemplo da estátua de um dragão com a boca aberta. Quando a criança vê a estátua e fica com medo, a visão não a está enganando quanto ao que está sendo visto e não causa-lhe o medo. A visão mostra a mesma coisa que um adulto vê, mas é o juízo interior pueril que causa o medo, pois a criança ainda não sabe distinguir entre um objeto real e sua imagem. De maneira geral, o capítulo VII, que trata da verdade da essência das coisas, demonstrará que o ser de cada coisa corresponde ao que ela é na verdade divina, ou seja, em Deus. A retidão dos entes está na essência, no ser como deve em Deus57. Se o ente existe, significa que está na mente divina, possui essência e a verdade é sua propriedade. Se está na mente divina, é reto. Se é reto, é verdadeiro. Dito isto, tudo o que possui ser está na suma verdade e, por isso, recebeu dele seu ser. Então, qualquer coisa que seja, é verdadeiramente, enquanto for o que é na suma verdade e somente ela é retidão propriamente falando58. Há verdade no ser de tudo o que existe, porque todas as coisas são o que são na suma verdade. Na medida em que elas são na suma verdade, não há falsidade, visto que o que existe falsamente, não existe de maneira alguma59. O mestre pergunta se algo deve ser diferente do que é na suma verdade. O discípulo responde que não. O mestre, então, completa que, se todas as coisas são o que são na suma verdade, elas são o que devem. Dito isto, temos que tudo que é o que deve, é retamente; daí se seguir que tudo o que é, é retamente. A conclusão para este argumento é, se a verdade e retidão estão no ser das coisas, é porque elas são o que são na suma verdade, daí a verdade nas coisas 57 “O correto e o debitum são determinados pela vontade divina porque ela é, nas palavras de Enders, ‘a mais alta representação do ótimo’. O nome de Deus como quo maius nihil cogitari potest impede que se pense que Deus faça algo indigno de si mesmo, assim como não é possível ao aliquid quo maius nihil cogitari potest mentir ou querer algo errado. Dessa maneira, compreende-se que a vontade de Deus não pode ter nenhum caráter arbitrário porque parte do quo maius nihil cogitari potest. Ela está antes ligada a um debere, que não pode ser entendido como um debitum, pois a ‘suma verdade não é retidão porque deve algo’.” (PENA, 2014, p. 149). 58 Com relação à retidão, podemos dizer que algo tem retidão quando é aquilo que o próprio Deus quer que seja. Com efeito, Deus é a mais alta representação do bem, nada lhe falta e, portanto, nele não há carência de nenhuma espécie. A falsidade é privação de algo e, se é privação, significa que algo que era para estar ali não está. A falsidade nesta perspectiva é a ausência de ser. Tudo aquilo que Deus criou possui ser. Dele não provém nada que não possua ser. Donde, em Deus não haver falsidade, e tudo o que é nele, é algo e é bom. Desse modo, tudo o que estiver na vontade de Deus é bom e tem retidão. Daí, termos a relação entre ter retidão com ser aquilo que deve. 59 “O que é a retidão, ou verdade da essência ou forma das coisas, senão o acordo de cada essência consigo mesma? E afinal, o que é a essência da coisa, senão o modelo dela na mente do artífice? Afinal, não é o ser Dele que lhes garante o seu serem de algum modo? Que maior acordo haverá na essência das coisas do que a adequação, nelas, entre o que são e o que devem ser? Mas não está o modelo do seu ser - que constitui para elas, o seu dever – na suma verdade? Por isso, a verdade da essência das coisas é ser «o que são na suma verdade», a sua adequação à razão do seu ser, isto é, ao que elas são em Deus. Fazendo-o, cada coisa adquire a sua retidão.” (SILVA, 2012, p. 12). 23 ser a retidão60, ou seja, na medida em que as essências estão na suma verdade, que é Deus, elas são verdadeiras. O capítulo VIII é fruto de uma dúvida em relação ao assunto do capítulo anterior. É exposta pelo discípulo da seguinte forma: “Mas, segundo a verdade da coisa, de que modo podemos dizer que tudo o que é deve ser, uma vez que há muitas obras más, que certamente não deveriam ser?”61. Aqui, começa-se a tratar da questão do mal, que será retomada e devidamente tratada no DCD. Para tratar dessa questão, o mestre fala antes do duplo dever existente no âmbito moral e na relação entre ação natural e ação moral. Eis, a seguir, o desenvolvimento argumentativo desse capítulo até o exemplo do único inocente que é Cristo: – O mestre pergunta ao discípulo o que há de errado se uma mesma coisa deve ser e não ser ao mesmo tempo. Ele prossegue: “absolutamente nada é, a não ser que Deus o faça ou permita.”62 – Deus sempre faz ou permite algo sabiamente e bem. – Aquilo que tão grande bondade e sabedoria faz ou permite deve ser. – Portanto, tanto o que acontece por causa de Deus [e.g. o bem] e o que acontece porque ele permite [e.g. o mal praticado pelos homens] devem ser. O mestre pergunta se o efeito da má vontade deve ser, ou seja, se deve existir, ao passo que o discípulo responde que perguntar isso é o mesmo que perguntar se a má ação deve ser, o que ninguém concordaria. O mestre diz, no entanto, que Deus permite que alguns façam o mal com uma vontade perversa63. Daí, Anselmo concluir que nesta situação, a mesma coisa deve e não deve ser ao mesmo tempo, mas não sob o mesmo aspecto. Deve ser na medida em que Deus permite que ela seja assim, pois Deus permite sabiamente e bem, e sem esta permissão nunca 60 Cf. DV 7, 186:1-3. 61 Sed secundum rei veritatem quomodo possumus dicere, quia quidquid est debet esse, cum sint multa opera mala, quae certum est esse non debere? (DV 8, 186:7-9). 62 DV 8, 186. 63 “Assim, se por um lado Anselmo se vê forçado a ampliar o horizonte da noção de dever-ser - razão pela qual haverá diversos modos de entender «dever» e «não-dever», «poder» e «não poder» - por outro lado, tudo quanto sucede na tensão entre ser e dever-ser, que constitui o horizonte da ação, faz-se ao abrigo de uma bondade e sapiência supremas. [...] Esta [suma bondade], não obstante ser causa de uma liberdade contingente, por meio da qual se abre espaço para que ocorra um dever-ser que não deve-ser – o efeito da má vontade - garante ainda o dever-ser desse não-dever-ser, reconduzindo-o, afinal, à suprema racionalidade do ser que é retidão plena. É deste modo que coexistem «dever e não dever», «poder e não poder», sem que tal facto introduza contradição no interior de uma existência, ou fira o princípio de não contradição.” (SILVA, 2012, p. 14). 24 haveria acontecido tal coisa. Não deve ser em relação àquele que pela vontade perversa realizou o ato64. Para complementar o que foi dito a respeito do duplo dever, Anselmo nos dá o exemplo de Cristo, o único inocente, que sofreu uma ação injusta e que ele sábia, benigna e utilmente quis suportá-la: Portanto, desse modo, o Senhor Jesus, que sozinho era inocente, não deveu sofrer a morte, e ninguém deveu infligi-la a ele; todavia, deveu sofrê-la, porque ele próprio quis suportá-la sábia, benigna e utilmente. Com efeito, de muitos modos a mesma coisa, por considerações diversas, admite os contrários.65 O mestre, então, passa a analisar os termos que em si possuem tanto significação ativa quanto passiva e, portanto, neles pode se encontrar esse duplo dever. É comum encontrá-lo na ação, como, por exemplo, quando falamos de percussão (percussio) pode se notar essa dupla perspectiva. A percussão pertence ao percuciente e ao percutido, e assim uma é dependente da outra. Podemos falar de percussão como ação ou paixão66 dependendo do ponto de vista. Três pontos ainda restam para serem abordados aqui. O primeiro é a consideração a respeito do dever e do não dever no plano moral. O segundo é a consideração do dever e do não dever entre o plano ontológico – em que a coisa tem o seu modo próprio de operar, ou como diz Anselmo, segundo a natureza – e o plano moral – em que uma coisa está em relação com as outras coisas. O terceiro e último ponto trata das vezes em que é dito impropriamente dever e não dever, bem como, poder e não poder. Passemos ao primeiro ponto. Sendo a percussão do percuciente e do percutido, ambos podem ser julgados sob um mesmo juízo ou sob juízos contrários, da mesma forma a própria ação será julgada de ambos os lados do mesmo modo ou de modo contrário. Temos aqui três situações: (1) “Quem percute67, percute retamente, e quem é percutido, é percutido retamente”68. O exemplo dado é de quando quem peca é corrigido por quem compete corrigir. 64 DCV 11, 153:14-23. 65 Hoc igitur modo dominus IESUS, quia solus innocens erat, non debuit mortem pati, nec ullus eam illi debuit inferre; et tamen debuit eam pati, quia ipse sapienter et benigne et utiliter voluit eam sufferre. Multis enim modis eadem res suscipit diversis considerationibus contraria. (DV 8, 186-187:31-3). 66 Ou seja, como uma ação ativa, ou como uma ação passiva. 67 Percutir/bater tendo no exemplo o sentido de correção/punição. 68 Cum ergo et qui percutit recte percutit, et qui percutitur recte percutitur. (DV 8, 187:20-21). 25 Aqui ambas as partes da ação são como devem. (2) “Quando um justo é percutido por um injusto, porque nem aquele deve ser percutido nem este deve percutir”69. Nesta situação, nenhuma das perspectivas da ação é reta, portanto, não são como devem. Não cabe ao justo ser percutido, nem ao injusto percutir. (3) “Quando um pecador é percutido por quem tal não compete – visto que aquele deve ser percutido, e este não deve percutir”70. Aqui a ação é como deve e como não deve simultaneamente, e, portanto, a ação é reta, pois o pecador deve ser percutido, e não reta, da parte de quem percutiu não cabendo a ele percutir. Em consideração ao juízo da suma sabedoria e bondade, de qualquer modo, seja considerando o dever da percussão nas duas perspectivas de uma ação, seja considerando o dever ocorrendo em apenas uma das duas perspectivas; o que é permitido por ela é como deve. O segundo ponto diz respeito à análise do dever e do não dever entre o plano ontológico – em que a coisa tem o seu modo próprio de operar – e o plano moral – em que uma coisa está em relação com as outras coisas. Segundo a natureza, os cravos de ferro fizeram o que deviam ao perfurar a carne de Cristo71, visto que, esta é a sua ação natural. Por isso, pode ser que uma ação ou paixão é como deve segundo a natureza, mas, em relação ao agente ou paciente, não é como deve, pois, um não deve agir e o outro não deve padecer. É importante notar que, por um lado, o ser como deve da ação segundo a natureza é o mesmo que encontramos no capítulo V do DV ao tratar da verdade natural da ação. Por outro lado, em relação ao ser como deve ou como não deve da ação no plano moral, trata-se da verdade não natural da ação. O terceiro ponto trata das vezes em que é dito impropriamente dever e não dever, bem como poder e não poder. Quando dizemos “devo ser amado por ti”, a palavra dever não indica um débito do sujeito para com o objeto da oração, mas ao contrário, o débito pertence aqui ao objeto da oração. Por isso, “dever” nessa sentença é dito de maneira imprópria. O mesmo acontece com as palavras poder e não poder. Quando dizemos “Heitor pôde ser vencido por Aquiles e Aquiles não pôde ser vencido por Heitor”, na primeira sentença, a capacidade de vencer foi de Aquiles; na segunda sentença, a falta de capacidade para vencer foi de Heitor72. 69 E contrario quando iustus ab iniquo percutitur: quia nec iste percuti nec ille percutere debet. (DV 8, 187:22-24). 70 Cum vero peccans ab eo ad quem non pertinet percutitur: quoniam et iste debet percuti et ille non debet percutere. (DV 8, 187:25-26). 71 A exceção à regra da natureza das coisas é quando falamos dos milagres. Anselmo disse que parece haver três tipos de rumo para as coisas (cursus rerum): o natural, o voluntário e o milaculoso. O primeiro envolve as leis naturais, o segundo envolve as ações meritórias/morais e o terceiro não depende de nenhum dos dois. Cf. DCV 11, 154:4-16. 72 Cf. DV 8, 188:19-22. 26 A definição da verdade: hierarquia e significação No capítulo IX, Anselmo retorna ao assunto da verdade da enunciação. Começamos a busca da verdade, diz o mestre ao seu discípulo, para que a partir das verdades mais conhecidas, chegássemos às menos conhecidas. A verdade da enunciação é mais clara a todos do que a verdade da essência das coisas, portanto, nosso itinerário passou pela ordem das verdades mais evidentes para nós para as menos evidentes. Dito isto, o mestre passa a investigar quão extensa é essa verdade da enunciação, ou ainda, verdade da significação73. Há uma verdadeira e uma falsa enunciação não apenas no que, por convenção, chamamos signos, mas em todas as outras sedes da verdade discutidas até o momento. Somente a suma verdade e a verdade dos sentidos não são citadas. O motivo é o de que a suma verdade será tema do capítulo X, e quanto à verdade dos sentidos, ela é, como vimos, uma espécie da verdade da ação natural74. No capítulo IX, teremos outros exemplos da verdade da enunciação75, começando primeiro pelo significado nas ações, a seguir o significado no pensamento prático da inteligência, nos atos da vontade e, por fim, o significado em todas as essências das coisas76. O mestre explica: dado que algo não deve ser feito por alguém a não ser que faça o que deve (o que cabe à sua natureza), pelo simples fato de fazer algo, diz e significa que o que está fazendo é o que deve fazer. No entanto, moralmente falando, se de fato faz o que deve, fala a verdade, do contrário, se não deve fazer o que faz e diz que deve, está mentindo. Neste exemplo do significado nas ações, vemos que a ação, às vezes, pode significar a verdade mais do que as próprias palavras, pois as ações, nesse caso, indicam mais diretamente o que devem: M. — Se estivesses num lugar onde soubesses que havia ervas saudáveis e mortíferas, mas não soubesses distingui-las, e se aí estivesse alguém de quem não duvidasses que as soubesse discernir, e que, ao perguntares quais as saudáveis e quais as mortíferas, te dissesse com a palavra que umas eram saudáveis e, por outro lado, comesse das outras, no que acreditarias mais, na 73 A palavra signo vem do latim signum, que quer dizer sinal, marca, selo, carimbo, estampa. Então, significar é o ato de fazer um sinal ou “carimbo” que represente aquilo que se quer expressar, seja escrevendo, falando, gesticulando etc. A palavra “cão” é signo do animal cão, não é o próprio animal, mas é significativo dele. 74 Cf. COSTA, 2010, p. 37. 75 Neste capítulo entendemos que quando enunciamos nossa ação e ela significa de fato o que ela é, falamos a verdade. Da mesma forma quando enunciamos o que de fato estamos pensando, o que de fato estamos querendo, o que de fato uma coisa é, estamos falando a verdade e não dissimulando e mentindo. 76 Cf. SAN ANSELMO, 1953, v.1, p. 517, nota 1. 27 sua palavra ou na sua ação? / D. — Não acreditaria tanto na palavra quanto na obra. / M. — Portanto, ele te diria quais fossem as saudáveis mais com a obra do que com a palavra. / D. — Assim é77. Eis um segundo exemplo concernente ao significado nas ações: Pois bem, se não soubesses que não se deve mentir, e alguém mentisse diante de ti, embora ele próprio te dissesse que não se deve mentir, ele próprio antes te diria com o seu ato que se deve mentir do que com a sua palavra que não se deve.78 No terceiro exemplo, de alguém que pensa ou quer algo, se fôssemos capazes de ver no seu íntimo a sua vontade e o seu pensamento sem, contudo, saber se, de fato, deveria querer ou pensar aquilo, a sua própria ação significaria que deve pensar e querer isto. Mas se, moralmente falando, o que pensou e quis devesse ser pensado e quisto, estaria expressando a verdade, do contrário, se não devesse pensar e querer aquilo, estaria mentindo: Do mesmo modo, quando alguém pensa ou quer alguma coisa, se ignorasses se ele deveria querer ou pensar isso, mas se visses a sua vontade e o seu pensamento, ele significaria para ti pela própria obra que deveria pensar e querer isso, e se assim o devesse, diria a verdade; em caso contrário, porém, mentiria79. Por último, no quarto exemplo, vemos que na existência das coisas também existe uma significação verdadeira ou falsa, pois pelo próprio fato de uma coisa existir já indica que é como deve: 77 M. Si esses in loco ubi scires esse salubres herbas et mortiferas, sed nescires eas discernere; et esset ibi aliquis de quo non dubitares quia illas discernere sciret, tibique interroganti quae salubres essent et quae mortiferae, alias verbo diceret salubres esse et alias comederet: cui magis crederes, verbo an actioni eius? / D. Non tantum crederem verbo quantum operi. / M. Plus ergo tibi diceret quae salubres essent opere quam verbo. / D. Ita est. (DV 9, 189:10- 17). 78 Sic itaque si nescires non esse mentiendum et mentiretur aliquis coram te: etiam si tibi diceret ipse non se debere mentiri, plus ipse tibi diceret opere se mentiri debere quam verbo non debere. (DV 9, 189:18-20). 79 Similiter cum cogitat aliquis aut vult aliquid, si nescires an deberet id velle sive cogitare: si voluntatem eius et cogitationem videres, significaret tibi ipso opere quia hoc deberet cogitare et velle. Quod si ita deberet, verum diceret. Sin autem, mentiretur. (DV 9, 189:20-24). 28 Na existência das coisas também existe uma verdadeira ou uma falsa significação, porquanto, por isso mesmo que existe, já diz que deve existir80. A suma verdade não é outra coisa senão a retidão, e apenas ela é a retidão; é o que vemos no capítulo X. No entanto, todas as demais retidões tratadas até aqui são denominadas retas, pois as coisas em que elas estão fazem o que devem por causa de outro (per aliud). A suma verdade, por outro lado, não é retidão por esse mesmo motivo, a saber, porque deva algo a outro, pois a suma verdade é por si (per se)81. Todas as retidões devem seu ser à suma verdade, mas esta não deve nada a ninguém, antes, é a suma retidão o princípio eficiente de tudo e de todas as retidões. Como vimos, essa retidão é causa de todas as outras verdades e retidões e nada é a sua causa. O mestre, ao perguntar se o discípulo compreendeu isso, recebe dele uma observação, a saber, que entre essas outras verdades e retidões há algumas que são apenas efeitos, enquanto outras são causa e efeito. O exemplo que o aluno fornece é o seguinte: “Como quando a verdade que está na existência das coisas é efeito da suma verdade, e ela própria também é causa da verdade que é própria do pensamento e daquela que existe na proposição, e essas duas verdades não são causa de nenhuma verdade.”82 Nesta passagem, vemos que há uma hierarquia das retidões, começando pelas menos conhecidas, chegando às duas mais conhecidas, que são apenas efeitos, a saber, a verdade do pensamento e a verdade da enunciação. Até agora traçamos o caminho das verdades mais facilmente reconhecidas por nós, até as mais dificilmente reconhecidas. Agora, acabamos de ver que na ordem divina a hierarquia é o inverso. A suma verdade é a causa de tudo. Dela vem a verdade da essência das coisas. A verdade da essência das coisas é a causa, ou ainda, é o que possibilita existir a verdade do pensamento e a verdade da proposição, que são apenas efeitos83. 80 In rerum quoque existentia est similiter vera vel falsa significatio, quoniam eo ipso quia est, dicit se debere esse. (DV 9, 189:24-25). 81 “O criar racional se dá por meio de um exemplum na razão do criador [ratio faciens], exemplum que é melhor caracterizado quando se diz forma [forma], similitude [similitudo] ou regra [regula]. Assim, parece plausível dizer que a criação tem um caráter de causalidade formal ou exemplar. Desse modo, se tudo que é per aliud é criado por meio de uma causalidade exemplar, e Anselmo atribui à suma verdade o status de causa de todas as outras verdades, então o modo de ser dessa causalidade é o de causa exemplar.” (COSTA, 2010, p. 58). 82 Ut cum veritas quae est in rerum existentia sit effectum summae veritatis, ipsa quoque causa est veritatis qua