1 unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP RAFAEL TRINDADE DOS SANTOS TRANSPOSIÇÃO DE METROS CLÁSSICOS EM LÍNGUA PORTUGUESA: histórico e estudo do caso das Odes e elegias, de Magalhães de Azeredo ARARAQUARA – S.P. 2014 2 RAFAEL TRINDADE DOS SANTOS TRANSPOSIÇÃO DE METROS CLÁSSICOS EM LÍNGUA PORTUGUESA: histórico e estudo do caso das Odes e elegias, de Magalhães de Azeredo Dissertação de Mestrado apresentada Programa de Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Poesia Orientador: Prof. Dr. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira Bolsa: Fapesp ARARAQUARA – S.P. 2014 3 TRINDADE, Rafael Transposição de metros clássicos em língua portuguesa: histórico e estudo do caso das Odes e elegias, de Carlos Magalhães de Azeredo. / Rafael Trindade dos Santos. – Araraquara 191 f : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Filosofia e Ciências – Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2014. 1 Descritor. 2. Descritor. 3 . Descritor. I. Autor II. Título. 4 RAFAEL TRINDADE DOS SANTOS TTTRRRAAANNNSSSPPPOOOSSSIIIÇÇÇÃÃÃOOO DDDEEE MMMEEETTTRRROOOSSS CCCLLLÁÁÁSSSSSSIIICCCOOOSSS EEEMMM LLLÍÍÍNNNGGGUUUAAA PPPOOORRRTTTUUUGGGUUUEEESSSAAA::: histórico e estudo do caso das Odes e elegias, de Magalhães de Azeredo Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Poesia Orientador: Prof. Dr. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira Bolsa: Fapesp Data da defesa: ___/___/____ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira FCLAr/Unesp. Membro Titular: Prof. Dr. Marcelo Tápia Fernandes Casa Guilherme de Almeida. Membro Titular: Prof. Dr. João batista Toledo Prado FCLAr/Unesp. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 5 Àqueles que se dedicam verdadeiramente ao conhecimento, livres, de certo modo, das pressões da política e da vida prática imediata; àqueles que sabem aplicar este mesmo conhecimento de forma prática, para o bem de todos; e a todos aqueles que se esforçam para fomentar e manter as duas coisas. 6 AGRADECIMENTOS A meu orientador, Prof. Dr. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira, pelo entusiasmo, encorajamento, companheirismo, paciência com minhas falhas e zelo com minha orientação. Cotejando minha experiência com o que me dizem colegas em outras universidades, não pude ter sido mais feliz em minha escolha. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, que apoiou integralmente o projeto, financiando-o com uma bolsa de estudos e disponibilizando recursos para viagens de pesquisa. Ao Prof. Dr. Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho, pelo interesse na pesquisa e pronta ajuda; com ele ouvi, pela primeira vez, o nome de Carlos Magalhães de Azeredo. Ao Prof. Marcelo Tápia Fernandes e ao Prof. Dr. Érico Nogueira, por também se interessarem na pesquisa, dialogando e oferecendo seus conhecimentos e sua própria produção poética. À Profª. Drª. Leni Ribeiro Leite, que tão bem me orientou e aconselhou durante a graduação, e que me sugeriu, ao saber de meus interesses, a parceria com o meu orientador. Ao Prof. Dr. João Batista de Toledo Prado, pelas úteis conversas a respeito do trabalho, dentro e fora de sala de aula; ao Prof. Dr. Alcides Cardoso dos Santos, pela troca de ideias em crítica de poesia, também em sala de aula. A Mariana Bravo, por ter me recebido carinhosamente, assim que cheguei em Araraquara, e ter me ajudado de tantas outras formas. A meus queridos parentes que me acolheram quando me mudei para o estado de São Paulo, com quem tive a oportunidade de conviver melhor: Enir dos Santos, minha avó e madrinha; meus tios Régis e Leizi Rodrigues, Ivan e Heloisi Carvalho; e meus primos Douglas, Raquel, Paula, Hugo e Lucas. A João Marcelino, Sebastiana Ribeiro e família, que me acolheram em Portugal e se tornaram meus grandes amigos. A André Felix, que me proporcionou agradáveis momentos enquanto me abrigava em minhas pesquisas no Rio de Janeiro. Aos amigos que fiz em Araraquara: Emerson Cerdas, João Jorge Pereira, Fábio Gerônimo, João Camargo Ribeiro, Mariana Mazotti, Júlio Camargo, e tantos outros que enriqueceram meu trabalho e minha vida durante os dois últimos anos. A Rafael Cavalcanti do Carmo e a Juarez Jandre Azevedo, confrades cujo contínuo suporte foi fundamental para este trabalho. A Jean Freitas e Laíce Trindade Freitas, com quem pude contar com apoio incondicional. A Polliana Dalla Barba, com cujo carinho e compreensão pude contar tantas vezes. A Gabriel Menotti e Tiago Andrade, amigos e interlocutores durante a toda a elaboração da pesquisa. A Vinicius Fabio, Caetano Monteiro, José Willian Matieli e Renan Correa, companheiros com que pude realizar, na etapa final do trabalho, experimentos bastante interessantes. A meus pais, Antônio Luiz dos Santos e Célia Barcellos Trindade dos Santos, por motivos que não cabem nesta página, nem em todas desta dissertação. 7 Making Sapphics isn't that easy, shackling Our reluctant language with trochees. Since you First begot them, songstress of Lesbos, keep them. I'll never write them. John Lee 8 9 RESUMO Este trabalho analisa as Odes e elegias, livro de poemas de Carlos Magalhães de Azeredo (1872-1963), publicado em 1904, focando em sua tentativa de transposição dos metros clássicos gregos e latinos para a língua portuguesa. Magalhães de Azeredo foi o mais jovem fundador da Academia Brasileira de Letras, e procurou imitar, em seu livro, os versos das Odi barbare, do italiano Giosuè Carducci (1835-1907). Carducci chamava a seus versos metros bárbaros, por contraste com os versos clássicos que imitara. Sabe-se que a métrica utilizada por poetas e tratadistas da Antiguidade baseava-se em características fonológicas e prosódicas das línguas latina e grega que não se encontram mais nas línguas românicas. Assim, toda tentativa de transposição desta métrica em português — uma língua românica — é um problema que exige algum artifício poético como solução. O que se entende por metro clássico em cada época e círculo literário define as condições de recepção dos poemas gregos e latinos nos mesmos círculos; influi, por consequência, na elaboração dos sentidos que vão ser atribuídos à estrutura formal dos poemas. A análise de Odes e elegias, portanto, abrange suas condições tanto quanto seus resultados: não apenas qual foi sua proposta métrica, mas por que se propôs, ao que atenderia tais propostas, qual o contexto de suas tentativas de transposição da métrica clássica. Neste sentido este trabalho se propõe a contribuir para um campo de investigação que tem merecido um interesse crescente no Brasil, qual seja os estudos de história da tradução e da recepção dos clássicos, o que tem condicionado também um aumento de interesse na história das estratégias formais em tradução de poesia antiga. Palavras-chave: Carlos Magalhães de Azeredo (1872-1963); Métrica; Recepção da poesia clássica. 10 ABSTRACT This work analyzes Carlos Magalhães de Azeredo‘s 1904 Odes e elegias, focusing on his transposition of classical meters to Portuguese. Magalhães de Azeredo (1872-1963) was the youngest founder of the Academia Brasileira de Letras (Brazilian Academy), and he emulated, in his book, the verses of Giosuè Carducci‘s Odi barbare, made in what Carducci (1835-1907) called barbarian meters, contrasting with the true classical verse. It is widely known that ancient metrics was quantity-based—which is to say that it was grounded on Greek and Latin phonological and prosodical features alien to Romance languages. Therefore, every attempt to transpose its meters to Portuguese demands some poetic device to make it work. What, in time and space, is understood as classical meter defines the conditions of ancient poetry reception in literary circles; it has an influence, so, in the meanings attributed to the poems‘ formal structure. Odes e elegias, then, is to be analyzed in a way that keep in mind conditions as well as results: not only what was the metrical contract, but why was this contract proposed, what demands this contract, and what is its context. In this way, this work aims to add to an interesting and new field of investigation in Brazil: the studies on classics‘ translation and reception. These studies are conditioning a crescent interest on the history of formal strategies to translate ancient poetry. Keywords: Versification; Carlos Magalhães de Azeredo (1872-1963); Classical poetry reception. 11 LISTA DE FIGURAS Figura 1 hexâmetro de Pela Campanha coincidindo príncipes e tônicas 49 Figura 2 hexâmetro de Sarcófago antigo diferindo príncipes e tônicas 50 Figura 3 hexâmetro de Siena diferindo príncipes e tônicas 50 12 LISTA DE TABELAS Tabela 1 os quatro sistemas de transposição de metros clássicos 22 13 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 14 2 METROS CLÁSSICOS 17 2.1 Propostas de classificação das tentativas 20 2.2 Sobre a história dos metros clássicos em português 23 3 AS ODES E ELEGIAS DE MAGALHÃES DE AZEREDO 33 3.1 As Odi barbare de Giosuè Carducci 35 3.2 Exame das Odes e elegias 42 4.1 O período pré-Odes e elegias 57 4.2 A crítica após 1904 66 4.2.1 Medeiros e Albuquerque 66 4.2.2 José Veríssimo 71 4.2.3 João Ribeiro 91 4.2.4 Os não-acadêmicos: Homero Prates, Fortunato Duarte, Nilo Bruzzi 99 4.2.5 Osvaldo Orico e Múcio Leão 103 4.2.6 Continuadores dos metros bárbaros: Eduardo Guimarães, Alberto Ramos 106 4.2.7 Josué Montello 112 4.2.8 Florivaldo Menezes 118 ANEXO 136 14 1 INTRODUÇÃO O projeto desta dissertação de Mestrado se chamava, inicialmente, apenas Metros da Antiguidade Clássica em língua portuguesa, e pretendia elaborar, em dois anos, a história de um feito stricto sensu impossível: versificar, em português, tal como se versificara na antiga poesia grega e latina. Nosso problema de pesquisa era descobrir quais foram as respostas à seguinte pergunta: como adaptar o metro quantitativo clássico ao português? A partir dessa questão, a pesquisa pretendeu traçar uma história dos ensaios e experimentos de aclimatação do metro clássico em língua portuguesa. Quis-se ampliar o entendimento da recepção da prosódia antiga e propiciar o conhecimento e sistematização das tentativas que, ao longo da história, poetas e tradutores de expressão portuguesa empreenderam objetivando continuar tais práticas prosódicas. O plano parecia exequível, já que os casos de transposição de metros clássicos ao português foram muito poucos. A maior parte dos poetas que o tentaram não foram muito bem recebidos, e não tiveram muitos seguidores. Isso diminui o seu número e facilita detectar sua recepção. Quase todos os poetas elencados, além disso, sabiam que a métrica antiga não poderia ser realizada em vernáculo exatamente como fora nas línguas originais: as línguas românicas, como o português, carecem da distinção entre sílabas longas e breves, fundamental para a consecução do ritmo da poesia antiga. Porém, mesmo obtendo pouco sucesso entre os leitores de várias gerações, o fracasso de cada uma das tentativas pareceu-nos diferente um do outro. Cada autor possuía um entendimento particular do funcionamento exato da prosódia antiga e de sua relação com a versificação de seu tempo. Baseados em suas definições, cada um desses autores tentou transpor metros clássicos ao português por motivos diferentes: uns pretendiam resgatar a poética clássica tal como já fora; outros quiseram enriquecer a rítmica portuguesa; outros, ainda, entendiam que a métrica clássica nunca deixou de ser imitada, e quiseram apenas complementar a versificação portuguesa com os ritmos faltantes; houve também quem se utilizasse da transposição desses metros como uma inovação ou um projeto de vanguarda. Mesmo fracassando, os esforços de transposição de metros clássicos revelam muita coisa sobre os diferentes grupos e períodos literários em questão. A recepção das tentativas estudadas, a depender do tempo e do espaço, possuía métodos distintos de leitura e escansão 15 da poesia clássica, e entendia distintamente a relação entre a poesia clássica e a poesia em português. De todos os casos, um se revelou tão interessante que foi preciso lhe conceder toda a atenção da pesquisa. Trata-se do livro Odes e elegias, publicado em 1904 por Carlos Magalhães de Azeredo, poeta fundador da Academia Brasileira de Letras, em uma emulação deliberada (cf. AZEREDO, 1904, p. iii ss.; FABRIS, 2007, p. 66) das Odi barbare do poeta italiano Giosuè Carducci. O poeta brasileiro, tal como o italiano, dedicou-se, neste livro, ao que chamavam, os dois, de ―metros bárbaros‖, e sua recepção imediata parece ter tido mais boa vontade do que a de seus predecessores. Ainda assim, seu próprio círculo tendeu a rejeitar a proposta1. As Odes e elegias se situam entre um primeiro grupo de tentativas, do século XVI ao XIX, e um segundo grupo, cujo projeto de maior sucesso foi a tradução de Carlos Alberto Nunes à épica clássica. Os poetas do primeiro grupo, mesmo cientes da dificuldade da empreitada, parecem-nos menos informados do que Magalhães de Azeredo e os poetas do segundo grupo, em relação às possibilidades de execução de seus planos. Os poetas do segundo grupo são, em sua maioria, acadêmicos, latinistas ou helenistas, interessados sobretudo (mas não exclusivamente, como se verá) em tradução da poesia clássica. Magalhães de Azeredo utilizou-se de uma estratégia interessante — acoplar versos vernáculos de modo que pudessem ser lidos tais como se liam versos clássicos — que resolvia problemas de seus predecessores, e que se parece muito com algumas soluções de poetas que lhe sucederam (como André Malta Campos). As Odes e elegias, ainda assim, não foram bem recebidas, e logo caíram em esquecimento. A análise da obra e de sua recepção nos leva a crer que os motivos para tanto não tinham tanto que ver com sua versificação, e sim com outros elementos de sua poética, bem como seu isolamento de seu próprio círculo literário. O capítulo 2 desta dissertação expõe o problema, apresenta algumas classificações propostas para os métodos de transposição de metros clássicos, e escolhe um deles como o mais abrangente e útil para a pesquisa. Apresenta, também, um pequeno panorama, à luz de tais sistemas, das tentativas de transposição em português2. 1 Cf. RAMOS, 1955, p. 343-4. 2 Para uma história universal das tentativas de transposição, v. HERRERA, 1975. Uma história do hexâmetro português antes de Carlos Alberto Nunes se encontra em OLIVA NETO; NOGUEIRA, 2013. No mesmo artigo, outrossim, há menção aos atuais cultores de metros clássicos no Brasil e em Portugal. Há, também, um cuidadoso estudo sobre os experimentos inéditos de Fernando Pessoa, encontrados em seus manuscritos, em LEMOS, 1993. 16 O capítulo 3 apresenta e analisa as Odes e elegias, bem como a proposta de Carducci em suas Odi barbare, livro que influenciou Magalhães de Azeredo. A recepção das Odes e elegias é estudada no capítulo 4. Tudo o que foi encontrado de relevante em livros e periódicos acerca da obra foi citado por extenso, analisado e debatido. As considerações finais são feitas no último e quinto capítulo. As fontes da pesquisa foram encontradas principalmente em bibliotecas e hemerotecas. As buscas, que começaram em 2013, concentraram-se no Rio de Janeiro e em Lisboa. Consultamos obras e periódicos nas Bibliotecas Nacionais do Brasil e de Portugal, e procuramos também por fontes na Academia Brasileira de Letras e no Real Gabinete Português de Leitura. Anexa a este trabalho vem uma versão completa das Odes e elegias, em transcrição diplomática. Aliás, todas as citações neste trabalho foram transcritas da mesma forma. 17 2 METROS CLÁSSICOS A codificação das poéticas modernas, diz-nos João Batista Toledo Prado, calca-se nos antigos tratados clássicos, ―latinos, sobretudo — de onde provieram em caudalosa sequência, desde o germinal texto grego, Περὶ ποιητικῆς ou Poética, de Aristóteles, até os dias presentes‖ (PRADO, 2011, p. 54). Embora a métrica, segundo o mesmo autor, não tenha sido integrada à reflexão do fato poético da mesma forma que outros aspectos da cultura antiga e embora ela tenha sido afinal relegada à gramática (2011, p. 55), observa-se que os tratados de versificação, produzidos em grande quantidade do Renascimento ao século XX, organizaram- se de acordo com a herança tratadística antiga, à qual se filiaram. Quase toda a nomenclatura utilizada ao se discutir poética em geral, e prosódia em particular, originou-se dessa tradição clássica. Muito se discutiu — e ainda se discute — acerca dessa herança, em tratados de versificação; termos como iambo, troqueu, dátilo, criados, em princípio, para designar fenômenos dependentes de quantidade silábica (ou duração vocálica)3 não poderiam ser aplicados a linguagens que ignoram uma distinção funcional entre sílabas longas e breves4. Eventualmente, notadamente a partir do século XV, surgiram projetos, entre homens de letras, de recriar (ou de reconhecer como ainda existentes) os fenômenos originalmente apontados por tais termos; ou seja, tentativas, nas línguas vernáculas, de introduzir princípios métricos, metros mesmo, e formas estróficas provindas da Antiguidade (ATTRIDGE, 2012, p. 250; HERRERO-LLORENTE, 1971, p. 209-15). Os motivos foram os mais diversos: poetas buscando emular o cânone antigo, recebido como verdadeira ―epítome‖ de toda a ―conquista literária ocidental‖ (ATTRIDGE, 2012, p. 250); poetas que, em movimento oposto, quiseram ampliar suas possibilidades inventivas; tradutores ciosos do aspecto métrico da obra traduzida e que procuraram transplantá-lo; prosodistas ocupados com a genética dos versos modernos, num sentido de continuidade ou permanência de padrões rítmicos, preexistentes em versos prestigiosos mais antigos. 3 ―Existe, como se sabe, uma diferença básica e estrutural entre os dois sistemas poéticos: o verso latino é quantitativo, ‗cronemático‘, isto é, estrutura-se pela oposição mútua entre sílabas longas e sílabas breves, enquanto o verso português é acentual, quer dizer, seu ritmo é obtido através do jogo contrastivo de sílabas acentuadas e não-acentuadas‖ (DEZOTTI, 1990, p. 125). Sobre a questão da quantidade em latim e grego clássico cf. ALLEN, 1973, p. 46 -73; relativamente ao latim cf. PERINI, 1982, 45-84. 4 Em língua portuguesa, tratadistas fiéis ao uso da nomenclatura antiga, ainda que com ressalvas (ALI, 1999; OITICICA, 1955, pp. 234-8; RAMOS, 1959; SPINA, 2003) se opuseram (cf. MOURA, 2008) àqueles contrafeitos aos termos antigos (AMORIM DE CARVALHO, 1991, pp. 151-2; MATTOSO, 2010; PROENÇA, 1955). Notem-se aqueles que não parecem se interessar por tomar partido na questão (CANDIDO, 1987, p. 49; CHOCIAY, 1974, p. 7) 18 A transposição de metros clássicos às línguas vernáculas nunca foi uma prática das mais populares em nenhuma cultura literária advinda da Europa; mas isso não quer dizer que tenha sido sempre marginal ou que não tenha tido importância. Os costumes e códigos versificatórios na Europa, do século XVI ao XX, sofreram grande influência das experimentações métricas interessadas em recriar os ritmos antigos. Há quase duas décadas, T. V. F. Brogan negou existir uma história completa e confiável das práticas métricas no Ocidente, mesmo em uma só língua (BROGAN, 1993, p. 990). Tal obra, segundo a literatura mais recente, até hoje não existe5. O mesmo se pode dizer, com ainda mais segurança, sobre uma possível história da versificação em língua portuguesa — especialmente se considerarmos que uma história deste tipo deveria levar em conta as tentativas de transposição do metro clássico em português, o que tem relação direta com a recepção das formas literárias antigas nas línguas modernas e, em sentido mais amplo, com a tradução dessas formas. Inicialmente, nossa pesquisa se interessava por listar e investigar todos os casos, em português, em que se tentou responder a pergunta: como adaptar o metro quantitativo clássico ao português? A pesquisa pretendia traçar uma história dos ensaios e experimentos de aclimatação do metro clássico em língua portuguesa, propondo-se compreender melhor a recepção da prosódia antiga e propiciar o conhecimento e sistematização das tentativas que, ao longo da história, poetas e tradutores de expressão portuguesa empreenderam. Não apenas as soluções deste problema têm sido as mais diversas, como também as condições de sua formulação. O que se entende por metro clássico6, por exemplo, em cada círculo literário, define as condições de recepção dos poemas gregos e latinos nos mesmos círculos; influi, por consequência, na elaboração dos sentidos que vão ser atribuídos à estrutura formal dos poemas. Uma história deste problema deverá abranger, assim, suas condições tanto quanto seus resultados: não apenas quem se propôs, mas por que se propôs, 5 Após a morte de T. V. F. Brogan, o verbete Prosody foi reescrito por Rosemary Winslow e publicado na 4ª edição da New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics (WINSLOW, 2012, p. 1117-1120); nada neste verbete, nem nos verbetes relacionados, tampouco nas obras publicadas em versificação e prosódia nos últimos 20 anos, desmente a afirmação de 1993. Há, é preciso dizer, obras importantes e abrangentes como A history of European versification, de Mikhail Gasparov (GASPAROV, 1996), cujo original russo (GASPAROV, 1989), certamente chegou ao conhecimento de Brogan — notável pelo fôlego de sua leitura de estudos de versificação (HOLDER, 1995, p. 2). Porém, por importante e útil que seja, ao entendimento de Brogan a obra de Gasparov não deve ter cumprido os requisitos esperados, o que se pode depreender de parte da crítica subsequente (cf. HALPORN, 1997). Para outras resenhas desta que é, ao cabo, uma valiosa referência, v. WEST, 1997; PEMSON, 1999. 6 Para um panorama amplo da recepção, em especial, do hexâmetro, cf. ALLEN, 1973, p. 335 et seq; para uma introdução geral cf. HERRERO-LLORENTE, 1971, p. 200 et seq. 19 ao que atenderia tais propostas, qual o contexto das tentativas de transposição da métrica clássica. Logo, esta pesquisa interessaria principalmente a uma história da recepção da poesia antiga em comunidades de língua portuguesa. Além disso, também contribuiria para uma história da tradução, para uma história do verso e para um estudo comparativo de sistemas de versificação. Utilizamos esta abordagem referencial como um método para analisar os poemas em metros clássicos de Odes e elegias, dando-lhe preferência em relação a outros exemplos em português, em função da extensão que um estudo da obra nestes termos demandaria. Entendemos que os processos envolvendo a transposição de metros clássicos são em última instância práticas de tradução. Para estabelecer uma história de tradução dessa transposição, partiremos de uma pesquisa empírica de coleta de dados diante dos quais procuraremos estabelecer uma interpretação histórica dessas práticas, segundo as perguntas propostas por Burke (2009, p. 17): ―Quem transpõe esses metros? Com que intenção? O quê? Para quem? De que maneira? Com que consequências?‖ Tentaremos fugir dos quatro equívocos de pesquisas em História da Tradução apontados por Pym, ou seja, evitaremos: 1) uma acumulação arqueológica de dados que respondem a problemáticas não explicitamente formuladas; 2) a dependência de evidências indiretas ou anedóticas; 3) a periodização arbitrária; e, por fim, 4) a relutância em ver as traduções como agentes e não apenas como expressões de mudanças históricas (2004, p. 7). O trabalho ora proposto se interessa pelas intenções de comunidades históricas – a saber, círculos literários de língua portuguesa – ao aproximar práticas métricas antigas em uma dada sincronia. Para isso, requer um conhecimento do que se imagina, em cada época, que tenham sido tais práticas métricas antigas. Esse é um dado de contexto fundamental para entender sua aplicação à poética portuguesa. Segundo os pressupostos de Pym (2004), pergunta-se, ainda, sobre as tentativas de continuidade do metro antigo: que estratégias estão sendo utilizadas? Com que fins? Movidas por que pressupostos? Nesse sentido esse trabalho se propõe a contribuir com um campo de investigação que tem merecido um interesse crescente no Brasil, qual seja os estudos de história da tradução e da recepção dos clássicos, o que tem condicionado também um aumento de interesse na história das estratégias formais em tradução de poesia antiga (cf. FLORES, 2011a; OLIVA NETO, 2007; VASCONCELLOS, 2011; VIEIRA, 2010; 2009). Inicialmente, estabelecemos duas principais tipologias em que as manifestações históricas do problema em questão podem se enquadrar. A primeira é a das tentativas de 20 transposição de metros clássicos, em composição inédita ou em tradução7; a segunda é a do esforço de se entender continuidades identitárias entre versos antigos e versos modernos — por relações de gênero e elocução8 ou equivalência de funções, efeitos ou status.9 Como um estudo dessas duas tipologias e um trabalho de perspectiva mais panorâmica tornariam o trabalho inviável nesta etapa de formação, esta pesquisa procurou se ater a um caso particular dentre as tentativas de transposição de metros clássicos em português, qual seja, aquele praticado no livro Odes e elegias de Carlos Magalhães de Azeredo, publicado em 1904. Uma das características das Odes e elegias que tornam seu estudo interessante é que seu autor associou na mesma empreitada o trabalho de transposição com o de continuidade. Como se verá adiante, no capítulo dedicado à obra, Magalhães de Azeredo apresentou um modelo métrico que imitava hexâmetros, pentâmetros e outros versos clássicos justapondo, em certa ordem, versos tradicionais em português. Em outros poemas do livro, não há aparente imitação direta, pois seus versos são, por exemplo, apenas decassílabos soltos, ou decassílabos associados a hexa e octossílabos; mas mesmo estes versos podem ser lidos como uma reconstrução direta, em português, de formas clássicas, como o hendecassílabo falécio, a estrofe alcaica e o pitiambo. 2.1 Propostas de classificação das tentativas As tentativas históricas de transposição dos metros clássicos, num primeiro exame, costumam ser divididas em dois subtipos, conforme já apontara Attridge (2012, p. 250-1): tentativas de verso propriamente quantitativo, em que se procura atribuir diretamente a 7 Attridge, por exemplo, aponta diferentes momentos em que se quiseram inserir metros quantitativos em vernáculo: o Renascimento, cujo gosto favorecia o artificial e o complexo; o período romântico, (depois de um hiato no século XVII, em que as tradições poéticas nativas se estabeleceram, e procurou-se menos por modelos antigos), cujo desejo de desafiar as formas estabelecidas avivou o interesse em recriar metros clássicos; o surgimento de um classicismo mais historicamente informado, entre os séculos XIX e XX, que promoveu, também, esforços mais precisos de inserção; e, finalmente, os modernismos, que experimentaram mais livremente as formas clássicas, em busca de novas direções poéticas (ATTRIDGE, 2012, p. 250). 8 Essa ideia de equivalências tem relações com o formulado por Dezotti: ―A partir do séc. XVI principalmente, os poetas da literatura portuguesa passaram a cultivar, em nosso idioma, os vários gêneros poéticos característicos das literaturas grega e latina, como a epopéia, a ode, a écloga, o epigrama, a epístola, etc. Para cada um desse gêneros, eles foram elaborando uma ou mais estruturas rítmicas, que certamente, eram tidas como correspondentes das estruturas empregadas pelos gregos e romanos. É claro que essa correspondência foi realizada de um modo puramente arbitrário e convencional. Mas o que importa salientar é que ela permitiu que se desenvolvesse nos leitores de língua portuguesa o hábito de associarem formas rítmicas próprias do nosso sistema poético a gêneros provenientes da antigüidade clássica‖ (1990, p. 127). Cf. também PRADO, 1999. 9 Como por exemplo, dentre outros possíveis, a proposição da tradução dos hexâmetros latinos das Bucólicas de Virgílio em alexandrino francês por Valéry (1957) e em alexandrino clássico português por Raimundo Carvalho (2005). 21 sílabas vernáculas valores de longa e breve; e substituições simples de quantidade por intensidade, mantendo o padrão métrico em estruturas diferentes. Como se verá adiante, os primeiros poetas que transpuseram metros clássicos em português tinham a intenção de criar versos do primeiro tipo, reconhecendo valores quantitativos em sílabas portuguesas. Os poetas e tradutores mais recentes, em sua quase totalidade, trabalham substituindo padrões de quantidade por intensidade, variando aqui e ali sua técnica, em resposta aos problemas trazidos por esta estratégia. Em tradições literárias como a italiana, as estratégias de adaptação utilizadas levaram estudiosos a propor outra classificação. Domenico Gnoli, por exemplo, compreendeu ter havido ―radicais‖, dispostos a abandonar a métrica vernácula usual, e ―conservadores‖, que procuraram se aproximar dos metros clássicos utilizando esquemas silábicos e acentuais correntes (BAXTER, 1898, p. 28). Conforme esse enquadramento, um verso cujo metro não admita redução à versificação vernácula é ―radical‖. Isso é difícil de acontecer, já que, ao menos no verso românico, os metros são reconhecidos principalmente pela contagem de sílabas; assim, todo verso é, necessariamente, um dos tipos de verso preexistentes com até 12 sílabas, ou uma combinação destes versos menores. Para que uma imitação de verso clássico seja realmente uma imitação ―radical‖, a regularidade isossilábica deve ser abandonada de todo. Mas não por isso a construção ―conservadora‖ de versos clássicos necessita de sequenciar versos com igual número de sílabas. É preciso, apenas, que se utilizem os metros vernáculos como elementos de composição, por coincidência (p. ex., tetrassílabos fazendo as vezes de adônios) ou por justaposição (p. ex., hexassílabos e octossílabos compondo um hexâmetro). Se se seguir esta classificação, a versificação de Odes e elegias, livro de que se ocupa esta pesquisa, é conservadora. Há, ainda, outro sistema de classificação dessas tentativas; consideramo-lo o mais abrangente de todos, podendo abarcar as diferentes estratégias utilizadas ao longo da história da versificação de matriz europeia. Marcelo Tápia, em sua tese acerca das traduções de Homero ao português, apresenta esse sistema, de autoria do filólogo Francisco Pejenaute Rubio, feito para um estudo dos metros clássicos em espanhol (PEJENAUTE, 1971 apud TÁPIA, 2012). Pejenaute detecta quatro diferentes estratégias de transposição, chamadas por ele de adaptação. 22 A primeira é a adaptação ―a la grecolatina‖, que depende de se atribuir valores verdadeiramente quantitativos às sílabas na língua-alvo. Nesta pesquisa nomearemos este sistema de estritamente quantitativo. A segunda é o que chama de justaposição: os esquemas acentuais de versos antigos mais longos, como o hexâmetro, poderiam ser reproduzidos com o ajuntamento, na mesma linha, de dois versos menores, modernos. Corresponde à tipologia ―conservadora‖ de Domenico Gnoli. A terceira possibilidade é a do sistema chamado legere, em que se distribuem os acentos das palavras de acordo com as possibilidades destes mesmos acentos se distribuírem nos versos gregos e latinos, independentemente de pés ou quantidades. Nese sistema, as posições príncipes não contam; importam os acentos das palavras, não dos pés10. A última forma listada é a do sistema scandere, que, ao invés de fazer corresponder acentos das palavras de versos clássicos propriamente ditos e de versos transpostos, corresponde acentos das palavras vernáculas aos acentos dos pés métricos — as posições ―príncipes‖ 11. Segundo Tápia, neste modelo ocorre a ―equiparação exata do sistema qualitativo com o quantitativo‖ (2012, p. 247). Sem dúvida o sistema scandere abrange a maior quantidade de tentativas ao longo da História, tanto em português quanto em outras línguas. Em certas línguas como o inglês e o alemão, ainda há um senso de quantidade, embora não tenha o mesmo papel estruturante que se pode encontrar em latim, grego antigo, ou em línguas modernas como as arábicas e o japonês; mas a língua portuguesa, como todas as outras línguas românicas, não abrigam em 10 Evita-se, aqui, a confusa nomenclatura acentual. Palavras como icto, arse, tese, para autores diferentes, querem dizer coisas também muito diferentes (cf. STEPHENS, 2012, p. 86; HALPORN et alii, 1994, pp. 122, 125; WEST, 1987, pp. 87-8). O choque entre o acento natural da palavra e o acento esperado pelo lugar que a palavra ocupa no verso – como no primeiro verso da Eneida, Árma virúmque canó, em que o acento lexical cai em ca e o métrico em nó – gerou escolas de declamação distintas (ALLEN, 1973, pp. 340-1), e um debate que atravessou séculos; Said Ali, p. ex., condena o privilégio da ênfase no acento métrico ao lexical (ALI, 1956). No entanto, não parece haver dúvida, entre as duas partes, de se atribuir ao acento métrico o papel constituinte do próprio fenômeno métrico. O que se disputa é, além da questão da pronúncia, se por si só constituem o padrão métrico, ou se a sequência das quantidades é que o determinam primariamente. 11 Seguimos WEST, 1982, p. 18-9, e chamamos (locus) princeps a cada posição silábica longa fixa no metro grego, que não pode ser resolvida em sílabas breves. As posições principes determinam a estrutura do metro, e no hexâmetro são elas quem demarcam cada um dos pés. O termo nos parece útil por evitar, ao contrário de icto, arse ou tese, a polêmica acerca da intensidade tônica destas sílabas, evitando também a confusão entre acentos das palavras e os controversos acentos métricos. O termo é especialmente útil ao se considerar as diferenças entre o hexâmetro em latim e em grego antigo, por conta das diferenças de acentuação entre as duas línguas, e pela expectativa de acompanhamento musical da poesia grega pré-helenística. Na fonologia latina as tônicas são dependentes da distribuição das quantidades silábicas, ao contrário da fonologia grega; além disso, a poesia latina era recitada, e não cantada, tornando o contraste entre posições longas e sílabas acentuadas um problema, para a reconstituição da prosódia latina, que até hoje não encontrou solução consensual (cf. ALLEN, 1973, p. 335-59; WEST, 1982, p. 186-90). É imprescindível, em um estudo sobre a transposição de metros clássicos para uma língua moderna, que tamanha dificuldade seja levada em conta; afinal, toda tentativa de transposição se baseia, necessariamente, em alguma posição sobre o problema. 23 suas sílabas pares mínimos baseados em quantidade. Assim, aceitando a impossibilidade do ritmo verdadeiramente quantitativo, a tendência dos poetas e tradutores lusófonos (e românicos) tem sido adotar uma transposição que reflita o padrão quantitativo na distribuição acentual. Eis a síntese dos quatro sistemas: Sistema Descrição Estritamente quantitativo Procura encontrar valores quantitativos na língua vernácula Justaposição Acopla versos vernáculos para reproduzir uma prosódia parecida com a versificação antiga Legere Procura imitar os acentos das palavras tais como se costumavam distribuir na poesia clássica Scandere Faz coincidir, sempre ou em pontos-chave, tônicas com príncipes Tabela 1: os quatro sistemas de transposição de metros clássicos A fim de exemplificar esses quatro sistemas acima referidos, procura-se, no próximo item, elencar os 4 sistemas exemplificados com as tentativas de transposição conhecidas em língua portuguesa que lhes pudesse representar. 2.2 Sobre a história dos metros clássicos em português Em português, as primeiras transposições foram do tipo estritamente quantitativo, como também ocorrera em outras literaturas. Mas em outras línguas, tais como o inglês, o alemão, o finlandês, o russo, o espanhol e o italiano, há registros de maior produção de imitações quantitativas e de momentos de grande interesse e debate sobre o assunto (ALLEN, 1973, p. 350 et seq.; ATTRIDGE, 2012, p. 250-2; BIONE, 1947, p. 54-7; CARDUCCI, 1881; HERRERO-LLORENTE, 1971, p. 209-15). As primeiras tentativas de transposição ao vernáculo de que se tem notícia, no mundo, datam de 1441, e foram versos escritos pelos italianos Leon Battista Alberti e Leonardo Dati, conforme o levantamento histórico de Giosuè Carducci (CARDUCCI, 1881, p. 3-21; ATTRIDGE, 2012, p. 250-2). O poeta Jorge de Sena, no entanto, aponta um exemplo em português, que teria sido publicado um século depois dos poemas italianos. Tratar-se-ia de um Auto da Paixão composto por Fr. Antônio de Portalegre e publicado em 1547 (SENA, 1966, 24 p. 408, n. 3)12. Mas casos como esse colhidos em língua portuguesa parecem, à primeira vista, ter despertado menos atenção, e, quando houve alguma, ter sido acompanhados geralmente por críticas negativas. Afora o caso do Auto, ainda por ser revelado e analisado, comumente se aponta José Anastácio da Cunha (1744-1787) como o primeiro a se propor a escrever metros clássicos em português. A obra por que Anastácio da Cunha foi mais conhecido, curiosamente, foi a enciclopédia Princípios Matemáticos. Comumente os registros da vida de Anastácio da Cunha o identificam como um matemático inovador e criativo, que, embora tenha se tornado pouco conhecido após sua morte, em vida fora relativamente influente, chamando a atenção de Gauss e Bessel (O‘CONNOR; ROBERTSON, 2000). Seus poemas foram atividade secundária em relação à matemática e à atividade militar, mas, entre sonetos e quadras, encontram-se alguns versos que demonstram o mesmo interesse por experimentos e inovações de que se fala nos relatos de sua vida científica. Em um artigo que aponta todos os experimentos conhecidos com hexâmetros portugueses antes de Carlos Alberto Nunes, João Angelo Oliva Neto e Érico Nogueira apresentam dois poemas hexamétricos de Anastácio da Cunha: uma pastoral, Menalca e Tírsis, vertida de um texto em prosa alemã do suíço Salomon Gessner, e uma tradução do trecho final das Geórgicas de Virgílio (OLIVA NETO; NOGUEIRA, 2013, p. 296-7). O trecho abaixo é uma amostra dos versos hexâmetros de suas Geórgicas traduzidas: Oh!, quão ditosos,// se o próprio bem conhecessem Os lavradores!// Para quem justíssima a Terra, Longe da discórdia// das armas, traz no regaço Um sustento fácil!// Se nem excelso palácio Dos matutinos// cortejos com que rotunda Pelas altivas // portas a enchente vomita. (apud OLIVA NETO; NOGUEIRA, 2013, p. 296. Grifos e escansão dos comentadores.) É provável que Anastácio supusesse quantidades silábicas em português, ou ao menos lhas atribuísse restritamente ao uso poético, o que lhe coloca dentro daqueles que praticaram a transposição dentro de um sistema estritamente quantitativo. Os acentos das palavras não coincidem com as posições de sílaba longa do hexâmetro, a não ser nos dois últimos pés — o que, conforme notam os pesquisadores, deve ter sido proposital, por imitação do que Virgílio, 12 O poeta declarou, em 1968, que estava a preparar um comentário a esta obra (SENA, 1968, p. 117). Infelizmente não encontramos, por enquanto, nada que se lhe pareça. Há exemplares do auto de Fr. Antônio de Portalegre, em sua versão portuguesa, na biblioteca de Harvard, mas não tivemos acesso ao texto antes de concluir esta pesquisa. 25 Ovídio e os outros poetas augustanos fizeram em seus próprios versos (OLIVA NETO; NOGUEIRA, 2013, p. 297). De fato, todos os tipos de hexâmetro conhecidos em português apenas se obrigam a fazer coincidir acentos e posições de longas nos dois últimos pés. Seu sobrinho, Vicente Pedro Nolasco da Cunha (1773-1844), não só produziu versos clássicos em português como esboçou um programa métrico com regras para a versificação quantitativa (NOLASCO DA CUNHA, 1813). Publicou hexâmetros, odes sáficas, seu sistema de versificação e memoriais ao seu tio no jornal anti-napoleonista que ajudou a dirigir, O Investigador Portuguez em Inglaterra. Chegou mesmo a reescrever em hexâmetros todos os versos do canto V dos Lusíadas, lamentando que os renascentistas tenham escolhido, segundo ele, alguns metros para imitar em sua medida nova (Nolasco da Cunha cria que a versificação portuguesa tenha se desenvolvido por equivalência à versificação antiga) deixando para trás o hexâmetro, o verso mais nobre da Antiguidade clássica. Estes versos, tais como muitos outros, desconhecidos, estariam em um volume manuscrito chamado O Homero moderno, de que se tem notícia (RIBEIRO, 1910, p. 173-4; SILVA, 1862, p. 436), mas que, atualmente, está perdido. O bibliógrafo Inocêncio Francisco da Silva, que disse ter tido acesso ao manuscrito, afirma sobre ele o seguinte: Homero moderno, ou a elegância da linguagem; contendo a theoria da fala e da grammatica, e a explicação dos versos hexametros e pentametros. Juntamente vários excerptos da Iliada e da Eneida, traduzidos no metro dos originaes; a Satyra terceira de Juvenal; o canto quinto dos Lusíadas reduzido a versos hexametros, e outros similhantes ensaios, em que ainda trabalhava. (SILVA, 1862, p. 438) O relato de Inocêncio é uma das fontes mais reveladoras sobre o projeto de Nolasco da Cunha. O bibliógrafo conheceu o poeta de forma mais próxima, segundo diz no verbete a que lhe dedicou (SILVA, 1862, p. 434-9): O desejo de transportar para a lingua portugueza a metrificação grecolatina, como que se tornara a idéa fixa de Nolasco da Cunha; era pelo dizer assim, o seu sonho predilecto; absorveu n'esse estudo boa parte da vida, e além das tentativas que expoz em diversos tempos, concernentes a demonstrar a sua possibilidade, tinha muitas outras, que intentava dar ao prelo em uma obra especial, sob o titulo de Homero moderno, ou a elegância da linguagem, para que tratava de colher assignaturas, quando a morte lhe impediu a realisação do seu projecto. Visitando-o dous ou três mezes antes do seu transito, encontrei-o affervorado em dar a ultima lima a um dos ensaios que destinava para fazer em parte d'aquelle trabalho. Era nada menos que o episódio do Adamastor, ou antes o canto v inteiro dos Lusíadas, que elle julgara tornar mais digno da tuba de Calliope, substituindo ás oitavas hendecasyllabas e rythmadas do original os seus queridos hexametros! Com esta espécie de transformação mostraria ao mundo (ao menos assim o entendia na melhor e mais singela boa fé) que Camões poderia ter sido muito maior, e mais admirável poeta, se o metro acanhado que por necessidade adoptára, lhe não coarctasse os vôos, 26 forçando-o a amesquinhar na phráse os rasgos sublimes e grandiosos de uma inspiração verdadeiramente divina! — Destinava tambem para entrar no Homero moderno, o Incêndio de Moskow13, ao qual fizera successivas e numerosas correcções, concernentes na maior parte a aperfeiçoar a quantidade syllabica nos versos. E n'esse estado m'o franqueou, consentindo-me tirar d'elle uma copia que ainda hoje conservo. (SILVA, 1862, p. 436) Todavia, o projeto de Nolasco da Cunha só não foi mais esquecido por ter servido de exemplo de fracasso poético numa eminente argumentação. Antônio Feliciano de Castilho, em seu influente Tratado de metrificação portugueza, deixou uma nota ―sobre os versos portuguezes de medição latina‖, em que cita o caso de dísticos elegíacos compostos pelo poeta seu coetâneo: A tentativa não já moderna, mas em que tanto insistiu modernamente o nosso, aliás bom engenho, Vicente Pedro Nolasco, de fazer versos portuguezes hexâmetros e pentametros, é uma quimera sem o minimo vislumbre de possibilidade. Carecendo de quantidades, condição indispensavel para os onze péz do distico, o portuguez nada mais poóde que arremdeal-o como um João de las Vinhas, mechido por arames, imitaria os passos, gestos, e acções, de um actor vivo e excellente; mas insistir em tão evidente materia, e que de mais a mais ninguem hoje contraría, fora malbaratar o tempo que as sãs doutrinas estão pedindo. (CASTILHO, 1858, p. 21) Também o irmão dele, José Feliciano de Castilho, citou o mesmo caso: ―Em portuguez tem apparecido tentativas de metrificação por quantidades, como no latim, e o Dr. Vicente Pedro Nolasco da Cunha apostolou essa adopção; mas a ella se oppõe o genio da nossa lingua.‖ (CASTILHO, 1867, p. 226). Na 4ª edição do tratado, porém, Antônio de Castilho e seu filho, Júlio de Castilho, mudam de ideia acerca da possibilidade de metros clássicos em português (CASTILHO, 1874, p. 29-32). Nada indica, porém, que tenham com isso mudado de ideia acerca da poesia de Nolasco da Cunha em especial. É possível encontrar, num artigo biográfico de autoria obscura na Revista Universal Lisbonense, uma elegia composta por Nolasco da Cunha em hexâmetros e pentâmetros (BIOGRAPHIAS, 1847, p. 427). Note-se que a única forma de se encontrar regularidade nos versos é, realmente, atribuir a suas sílabas valores quantitativos: Sūspī|rā sāu|dādĕ, ă | sȳmpā|thī ă gĕ|mēndŏ Vīrtū|dēs mūr|chās || chōră nă | pērdă sŭ|ā. (BIOGRAPHIAS, 1847, p. 427. Escansão nossa) 13 Outro de seus poemas hexamétricos. 27 Ao contrário dos irmãos Castilho, a avaliação do biógrafo é favorável, embora, no resto do artigo, Nolasco da Cunha seja retratado como um poeta menor. O exemplo serve, segundo o biógrafo, ―para prova de que estes metros se accommodam á nossa lingua tanto, ou melhor, que os saphicos, alcaicos, adonicos, e choriambicos, de que os arcades fizeram tanto uso, e que foram tão bem recebidos‖ (BIOGRAPHIAS, 1847, p. 427). Afirma, ainda, que ―estes versos são bons‖, e segue com uma digressão sobre como os ouvidos portugueses estariam acostumados de outra maneira se ―os poetas do quinhentos‖ assim tivessem metrificado, ao invés de terem adotado o iambo (1847, p. 427). Tanto o exemplo como o argumento exemplificado, ainda que provavelmente se baseiem em opinião minoritária, mostram-nos o que teria sido uma visão comum, na Portugal do século XIX, da natureza dos pés e metros clássicos, bem como da sua transposição direta para o português. Tanto tio quanto sobrinho tentaram transposições de tipo estritamente quantitativo. Mas Anastácio da Cunha supôs quantidades pela etimologia das palavras e pelas regras latinas aplicadas ao português. Assim, ditosos seria composto por três longas: di-, por corresponder à primeira sílaba de dītōsus; -to-, pelo mesmo motivo, e também por ser acentuada em português (todas as sílabas acentuadas são tratadas como longas por Anastácio da Cunha, embora não necessariamente ocupem a posição príncipe) e –sus, finalmente, por promover um encontro consonantal que alongaria a sílaba em ―ditosoS , Se‖. Já Nolasco da Cunha procurou considerar quais seriam os fatores determinantes de quantidades silábicas exclusivos do português. Ao fim, embora sejam classificados sob a mesma tipologia, seus programas obtém resultados diferentes. Os versos de Nolasco da Cunha por vezes se parecem com os hexâmetros de José Maria da Costa e Silva (1788-1854), com quem se correspondia, e que se inspirou em Klopstock e no movimento alemão que o sucedeu (Heinrich Voss, von Platen e mesmo Goethe) Seus versos, por isso, podem ter se baseado no sistema legere, com que a escola alemã trabalhara; mesmo assim, sua versificação é muito parecida com a de seu colega português14. O sistema scandere — a marcação do verso através de acentuação das posições príncipes —, em português, foi o mais exitoso. Seu campeão foi o poeta e tradutor Carlos Alberto Nunes, que verteu a épica de Homero e a de Virgílio para a língua portuguesa. Seu método consistiu em substituir a dicotomia longas/breves pela tônicas/átonas. Assim, todos 14 Para uma apreciação mais demorada dos hexâmetros de Costa e Silva, v. OLIVA NETO; NOGUEIRA, 2013, p. 299-304. 28 os versos foram escritos em dátilos levando em conta meramente os acentos de intensidade. O primeiro verso da Ilíada, em sua tradução, ficou assim (o negrito marca as tônicas): Canta-me a | cólera — ó | deusa! — fu|nesta de A|quiles Pe|lida. Todos os versos, então, deveriam conter cinco dátilos e um pé dissilábico final. A primeira sílaba de cada verso, idealmente, deveria começar com tônica (a não ser que admita, por licença poética, uma anacruse) e muito dificilmente um dátilo poderia ser substituído por um espondeu — o que significaria três tônicas seguidas, contando com a tônica do pé seguinte. Por conta destes problemas, muito se discutiu acerca do valor de sua proposta. Apesar das opiniões desfavoráveis (respeitosas, cf. CAMPOS, 1994, p. 12-3, ou não, cf. GRAMACHO, 2003, p. 26-9), há, hoje, alguns grupos interessados em continuar uma tradição métrica ―núnica‖, especialmente no meio acadêmico brasileiro, o que mostra a relevância e atualidade do presente projeto (cf. ANTUNES, 2011; CARDOSO, 2011; CONTO, 2008; FLORES, 2011a; 2011b, p. 145-6; GONÇALVES, 2011; GONÇALVES et alii, 2011; OLIVA NETO, 2007; OLIVA NETO; NOGUEIRA, 2013; TÁPIA, 2012)15. Mas nem sempre esses poetas e tradutores ―núnicos‖ obedecem à risca seus preceitos originais. Ainda que fiéis ao sistema scandere, há muita experimentação: Leonardo Antunes, talvez o mais fiel de todos, leva a proposta métrica de Carlos Alberto Nunes a várias outras formas poéticas da Grécia Antiga, tendo de resolver novos problemas (ANTUNES, 2011); Rodrigo Tadeu Gonçalves permite-se um uso mais livre de anacruses e substituições (GONÇALVES, 2011); Marcelo Tápia se distancia um pouco mais, utilizando-se de versos relativamente livres, sem número regular de sílabas, contando com cinco ou seis acentos tônicos, além de um conjunto de regras particulares aos fins de sua tradução (TÁPIA, 2012, 262); André Malta Campos propõe uma recriação do hexâmetro próxima da justaposição utilizada por Magalhães de Azeredo, ao compor, de certa forma, ritmos hexamétricos com a junção de duas redondilhas maiores (CAMPOS, 2000, p. 9)16. 15 Recentemente, as edições da Odisséia traduzida por Nunes foram recolhidas pela editora Nova Fronteira, após pedido do poeta Érico Nogueira, que notou o nome ―Odisseu‖ sendo trocado, nos versos, pela forma ―Ulisses‖ (A.G.F., 2011). A troca do nome interferiu no projeto métrico do tradutor, já que os acentos das palavras são diferentes. O incidente ilustra como o verso de Nunes vem sendo discutido e repercutido entre os interessados por poesia e tradução. 16 Há dois interessantes exemplos que — embora tenham sido ofertados muito atenciosamente pelo Prof. Dr. Érico Nogueira, a quem agradecemos — infelizmente não foram descobertos a tempo de figurar nosso trabalho. Um deles é o livro Poesia Bovina, do mesmo Érico Nogueira, contendo três interessantes poemas em ritmo hexamétrico (NOGUEIRA, no prelo). Érico Nogueira é propositor do que chama há algum tempo de verso hexatônico (NOGUEIRA, 2012). Outro exemplo é do poeta ainda inédito Gregório Barbosa Souza, que tem produzido, entre outros formatos, alguns milhares de versos em molde clássico. Seus métodos formais e o jogo intertextual de seus poemas são alguns dos elementos que merecem atenção, que será dada com mais apuro em trabalho subsequente. 29 Afora os continuadores brasileiros de Carlos Alberto Nunes, há também, em Portugal, o caso de Frederico Lourenço, celebrado tradutor de Homero. Como Lourenço deixou claro que priorizou o plano de conteúdo sobre o de expressão (LOURENÇO, 2003, p. 9), suas traduções foram recebidas como se fossem feitas em verso livre, e de fato o são; mas há uma sugestão de padrão em seus versos, muito próximo ao que faz Marcelo Tápia (apud TRINDADE, 2014). Em 2011, Lourenço publicou Clara suspeita de luz, livro de poemas em que se utiliza, desta vez, de transposições diretas de dísticos elegíacos e odes polimétricas, com transposições de vários tipos de metros clássicos, segundo o esquema scandere utilizado de forma idêntica aos de tradição núnica. Há também um curioso caso, em português, de transposições de metros clássicos acorde ao mesmo esquema, feitas não por um poeta ou um tradutor, mas um educador. A título de curiosidade, citaremos por extenso o trecho de Roteiros em fonética fisiológica, técnica do verso e dição, manual para atores e ledores de poesia de José Oiticica: Ora, o latim nos apresenta metros em quase tudo iguais aos nossos de hoje, com uma coincidência de quantidade e acento, capaz de revelar-nos a transição fácil do primeiro ao segundo modo de escandir. Há de permitir-me o esclarecido mestre [João Ribeiro] assinalar essa coincidência interessante, impercebida, que eu saiba, aos tratadistas. Os nosso ritmos decassílabos se acham todos lá, discriminados com diferentes rótulos. Suponhamos o verso de Bocage [Poesias, t. I (Sonetos)]: Em mím, quáse imortál, a esséncia humána É um puro verso faleuco, irmão-gêmeo do seguinte de Catulo [V, 1]: Vivamús, mea Lésbia, átque amémus Ouçamos os seguintes de um nosso grande poeta [Bilac, Poesias]: Pára a porta do céu, pálida e bela, E sentiremos, logo, a cadência do asclepíade menor, como êste: Crescentém sequitúr cúra pecúniam (Horácio, Carmina III, 16, 17) Com o seu lindíssimo coriambo intercalado. Forjemos êste: São máguas tristes que meu peito afogam, E todo leitor de Horácio reconhecerá o ritmo do célebre: Iám satís terrís niuis átque dírae Grándinis misít Pater, ét, rubénte Dexterá sacrás iaculátus árces (Carm. I, 2, 1-3) Que são sáficos menores péssimamente lidos e entoados nas aulas. Fabriquemos, ainda, estouro [sic]: No azúl do céu, gránde e álto, ardér, véns, Sol! 30 É um verso opulentíssimo que impressiona como o alexandrino e não é mais do que o alcaico hendecassílabo da célebre: Dulce ét decórum est pró patriá morí (Carm. III, 2, 13), Contando, como é de regra, rum est uma só sílaba e patenteando o anapesto em patriá. Seria longo e incabido, neste artigo, evidenciar a existência, no latim, dos outros ritmos, decassílabos alguns, como o lindo tetrâmetro acataléctico não aproveitado em português. Seja-me lícito, somente, apontar, aquí, o metro alexandrino, muito claro no anapesto completo como êste de Sêneca na tragédia Thyestes (v. 831): Iterúmque deós hominésque premát, compasso idêntico ao seguinte: O que a bôca não diz, o que a mão não escreve? (Bilac) No jâmbico trímetro, o alexandrino está completo, com a cesura de hoje: Aut préssa púris, mélla cóndit ámphorís (Epodos II, 15), coirmão dêste: Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar! Este senário, sabemos todos, era usadíssimo em latim; rigorosamente escandido por Horácio, modificava-se, largamente, nas comédias, conversando, embora, o andamento jâmbico. (OITICICA, 1955, p. 234-8) Para José Oiticica, o método scandere não é uma forma de transposição dos metros clássicos; é, a um só tempo, a forma correta de ler os versos antigos e o segredo da continuidade entre a versificação antiga e a moderna. A obra que compõe o corpus de nossa pesquisa segue outra estratégia de transposição métrica, denominada por Pejenaute e Tápia de justaposição. O caso de Magalhães de Azeredo merece pesquisa mais aprofundada. A exemplo de Carducci (CARDUCCI, 1881, pp. 413- 439), cuidou de explicar o que seriam seus metros novos. Escreveu uma nota explicativa para suas Odes (AZEREDO, 1904, p. iii-viii) que nos deixa, ao contrário do resto de nossos exemplos, indícios valiosos acerca de como julgava que os versos antigos devessem ser lidos (ou seja, sua noção de medida a ser imitada), das condições de recepção de seus poemas e de como o autor entendia sua própria proposta métrica, enquadrando-a, ele mesmo, em termos de predecessores e de possíveis continuadores — em suma, de uma tradição. Semelhante noção — a de que a tentativa de inserção de metros clássicos em português constitui uma tradição — só parece ter sido retomada nos últimos anos, em círculos classicistas que, como já dito 31 acima, têm se mostrado interessados em continuar as práticas formais de Carlos Alberto Nunes. Ao contrário da maior parte dos transpositores pré-Nunes, composta por escritores algo obscuros — exceção feita a Fernando Pessoa, que, no entanto, não publicou seus metros clássicos —, Magalhães de Azeredo fez parte do mais eminente grupo de homens de letras de seu país, em seu tempo. Trata-se de um dos fundador da Academia Brasileira de Letras, ao lado de Machado de Assis — seu amigo e espécie de mentor (ASSIS, 1894; 1895; 1896), com quem manteve volumosa correspondência (ASSIS, 1969). Manteve, também, correspondência com o próprio Carducci (AZEREDO, 1904, p. viii), e com modernistas italianos (MARNOTO, 2009, p. 350 ss.). Mas sua glória foi breve. Como já não goza da mesma fama nos dias de hoje, a obra de Magalhães de Azeredo carece de um estudo mais exaustivo: é abordada, no geral, de forma ancilar nos estudos machadianos, que não se relacionam com os registros de seus "metros bárbaros". Ao fim de sua Nota, o autor declara ciência de seus predecessores. O principal, sugerido pelo poeta Alberto de Oliveira, foi Domingos Tarroso; porém essa precedência foi refutada recentemente (OLIVA NETO; NOGUEIRA, 2013, p. 306)17. Magalhães de Azeredo cita ainda Alberto Ramos, como um adepto dos ―metros bárbaros‖ rimados, em sua Ode do Campeonato (AZEREDO, 1904, p. viii). Acerca das práticas de inserção de padrões métricos clássicos por poetas compositores e tradutores, é preciso lembrar que estas não são práticas datadas: ao contrário, ainda são presentes nos círculos acadêmicos e literários, e incensam opiniões favoráveis e desfavoráveis. O que uma história do problema a ser pesquisado pode nos oferecer é uma compreensão maior das raízes (e descontinuidades) tanto de nossas práticas literárias autóctones, quanto uma consciência maior de nossas condições de leitura e assimilação do legado clássico. 17 A refutação, no entanto, perde um pouco de sua força ao se levar em conta o contexto. Os autores informam que Domingos Tarroso afirmava a supremacia do heptassílabo sobre os outros metros portugueses, e que Magalhães de Azeredo entendeu pares de redondilhas como se fossem hexãmetros. Em primeiro lugar, isso também se observa nas redondilhas acopladass de André Malta Campos (CAMPOS, 2000), hoje, com a diferença de que neste último caso há a intenção declarada do próprio autor, que procura com isso criar um ritmo próprio á transposição que intenta. Em segundo lugar, a noção de metro bárbaro, á época de Magalhães de Azeredo, não era tão estrita como Carducci a apresentara. O fim do século XIX e o começo do século XX conheceram muita experimentação formal, deixando por vezes conceitos, como o de metro bárbaro ou ainda o de verso livre, se definirem de forma muito mais abrangente e imprecisa. Isso fez com que se tivessem visto sucessores das Odes e elegias em poemas menos preocupados, ou preocupados diferentemente, ou mesmo ainda nada preocupados com a métrica clássica, como os de Alberto Ramos, Simas Saraiva e Eduardo Guimarães, o que se verá mais adiante neste trabalho. 32 33 3 AS ODES E ELEGIAS DE MAGALHÃES DE AZEREDO Carlos Magalhães de Azeredo nasceu no Rio de Janeiro, em 7 de setembro de 1872, e faleceu em Roma, Itália, em 4 de novembro de 1963. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, entre os dez intelectuais convidados para integrar o quadro, a fim de que completassem quarenta membros, tal como a Academia Francesa (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2005a). Escolheu para patrono Domingos Gonçalves de Magalhães, a quem coube a Cadeira nº 9. Foi o mais novo dos fundadores, aos 25 anos, e o último deles a falecer, aos 91 anos de idade. Foi também, e é até hoje, o membro que permaneceu por mais tempo ocupando uma cadeira — 66 anos. Em 1895 tornou-se diplomata, como segundo secretário da Legação do Brasil no Uruguai (1895-6) e no Vaticano (1896—1901); foi promovido a primeiro secretário em 1901 e a conselheiro em 1911; foi ministro residente em Cuba, na América Central (1912) e na Grécia (1913-14); de volta a Roma, foi ministro plenipotenciário (1914-19) e finalmente embaixador (1919-34) na Santa Sé. Mesmo aposentado, Magalhães de Azeredo continuou a residir em um conhecido endereço em Roma, na Via de Villa Emiliani, 9, onde era visitado por escritores brasileiros de passagem pela cidade. Aos 12 anos, Magalhães de Azeredo escreveu Inspirações da infância, um volume de poesias que ficou inédito. Escreveu para alguns jornais quando ainda era um jovem estudante, antes de começar sua carreira diplomática. Seu primeiro livro publicado foi o romance Alma primitiva, de 1895. Esteve em Juiz de Fora, em 1894, temeroso de ser preso por suas declaradas opiniões antiflorianistas; lá estreitou sua amizade com Olavo Bilac, que estava lá supostamente pelo mesmo motivo. Compuseram juntos o romance Sanatório, publicado na Gazeta de notícias sob o pseudônimo Jayme de Atahyde (BRUZZI, 1954). O poeta foi introduzido ao círculo de escritores e eruditos amigos, possivelmente, por influência de Machado de Assis, que lhe dedicou amizade paternal e o adotou como uma sorte de discípulo. Aos 17 anos, Magalhães de Azeredo lhe enviou uma carta, a primeira de uma basta correspondência, coletada e publicada pelo Prof. Carmelo Virgillo (VIRGILLO, 1969). Tal correspondência mantém grande interesse para os estudos machadianos, dadas as confidências de escritor que Machado de Assis fez ao seu jovem amigo, confidências que, diz-se, não fizera com mais nenhuma pessoa de sua relação (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2005b). Parte de sua correspondência com outros escritores também foi preservada, como as cartas a Mário de Alencar e a Afonso Arinos de Mello Franco (AZEREDO, 2001). 34 A obra em que Magalhães de Azeredo se empenhou em trasladar metros clássicos ao português foi Odes e elegias, livro de poemas publicado em 1904. Curiosamente, embora tenha sido vendido também no Brasil, o poeta imprimiu e publicou seu livro em Roma. Os poemas de Odes e elegias são resultado das primeiras impressões que Roma causou ao autor, e evocam ora a Cidade Eterna em suas cenas, pessoas e lugares, ora temas clássicos relacionados, de alguma forma, às suas viagens pela Itália e à Grécia. Elencado por Olavo Bilac e Guimarães Passos como um poeta do parnasianismo (BILAC; PASSOS, 1905, p. 32), e por críticos posteriores como ―neoparnasiano‖ (RAMOS, 1967, p. 263-5), o jovem Magalhães de Azeredo interessou-se por inovações métricas, ambicionando contribuir para o alargamento do ―patrimônio poético‖ (AZEREDO, 1904b, p. viii) da língua. Deste modo, pareceu-lhe apropriado desenvolver os temas de seu livro em esquemas métricos novos, experimentais, que seriam, simultaneamente, classicizantes. Carlos Magalhães de Azeredo foi portanto o primeiro poeta em português a experimentar metros clássicos com intenção modernizante. Ainda que tenha se revelado, ao longo dos anos, um poeta esteticamente conservador, não há contradição entre seu conservadorismo e sua vontade (ao menos quando da publicação das Odes) de inovação e pertença ao que ele mesmo chama de ―moderno‖. Antes da edição das Odes e elegias, Magalhães de Azeredo publicou poemas avulsos duas vezes em periódicos. O primeiro foi Em Vallombrosa, publicado na Revista Brazileira em 1899 (AZEREDO, 1899); na segunda vez, publicou suas elegias A Leão XIII, poeta latino, em 1901 (AZEREDO, 1901). Esses poemas foram recolhidos e publicados em conjunto, em 1904. Afora as Odes e elegias, Magalhães de Azeredo também publicou vários artigos, conferências, e os seguintes livros: Alma primitiva, contos (1895); José de Alencar, ensaio (1895); Procelárias, poesia (1898); Portugal no centenário das Índias, poesia (1898); Baladas e fantasias, contos (1900); O poema da paz, na aurora do século XX (1901); Homens e livros, estudos (1902); Horas sagradas, poesia (1903); O hino de púrpura, poesia (1906); Quase parábola, contos (1913); Vida e sonho, poesia (1919); A volta do imperador, poesia (1920); Laudes do Jardim Real de Atenas, poesia (1921); Ariadne, conto (1922); Casos do amor e do instinto, contos (1924); e O eterno e o efêmero, contos (1936) (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2005c). Há outra motivação, além de sua mudança de endereço, para a criação de suas Odes e elegias. Magalhães de Azeredo homenageou Roma emulando Giosuè Carducci, talvez o mais célebre poeta italiano àquele tempo. 35 Para que se entenda a motivação das Odes e elegias bem como seus parâmetros de composição é necessário que se avalie, em primeiro lugar, as Odi barbare (―odes bárbaras‖) de Carducci (CARDUCCI, 1877). Além de ter sido o trabalho emulado, as Odi causaram grande repercussão, obtendo uma resposta crítica mais detalhada do que a de Azeredo. Assim, estudar o caso das Odi barbare pode ajudar a ler melhor as Odes e elegias brasileiras. 3.1 As Odi barbare de Giosuè Carducci Em 1877 Carducci publicou sua primeira edição das Odi barbare, contendo 14 poemas em ―metros bárbaros‖. O poeta italiano chamava assim os versos resultantes de seus experimentos com metros clássicos em italiano, já que o produto final, dizia, só poderia soar ―bárbaro‖ em cotejo com os clássicos gregos e latinos (CARDUCCI, 1938, p.36). A proposta de Carducci consistia em compor toda sorte de verso clássico associando versos vernáculos tradicionais da poesia italiana uns aos outros. Um verso longo era composto por dois versos tradicionais acoplados — versi accoppiati, uma prática conhecida na tradição métrica italiana. No dístico elegíaco, por exemplo, o hexâmetro era composto por um heptassílabo italiano (settenario, correspondente ao hexassílabo português, após a reforma de Castilho) seguido de um eneassílabo (novenario, octossílabo português), e o pentâmetro se dividia em um hexassílabo (senario, pentassílabo português) esdrúxulo e um heptassílabo grave; os versos asclepiadeus (maiores) se compunham de dois endecassílabos (decassílabos portugueses) e dois heptassílabos, um esdrúxulo e um grave; todas as outras medidas clássicas emuladas assim eram compostas: acoplando-se versos românicos tradicionais. Carducci continuou compondo versos bárbaros até os primeiros anos do século XX, reeditando as Odi barbare (CHIARINI, 1901). Foi influenciado pelos célebres experimentos de Klopstock e de Goethe, em alemão, e por sua vez tornou-se imensamente influente na poesia italiana. Vários poetas de renome, como Mazzoni, Pascoli e D‘Annunzio, seguiram-se a Carducci na tentativa de inserir metros clássicos em vernáculo, alguns dos quais compuseram também tratados estipulando regras para a inserção, ou aperfeiçoando regras propostas anteriormente (cf. PASCOLI, 2002). Em 1881, Carducci publicou uma antologia histórica, comentada, da ―poesia bárbara‖ na Itália (CARDUCCI, 1881), para demonstrar que os metros utilizados não eram completa invenção sua, e que já faziam parte da tradição poética italiana. 36 De fato, os primeiros focos de interesse na transposição de metros clássicos surgiram na Itália, e este interesse rapidamente se espalhou pela Europa nos séculos XVI e XVII (ATTRIDGE, 2012, p. 251). Houve mesmo, no século XVII, uma academia inteiramente dedicada ao problema (GASPAROV, 1996, p. 189). Interessava a Carducci, um típico e ardente nacionalista do Risorgimento, reconhecer nisso uma tradição não só clássica, mas itálica, à qual seus versos bárbaros se filiavam. A tentativa de transposição direta não foi a única forma de assimilação da métrica clássica à prosódia italiana. Além dela, a composição de formas fixas procurou emular formas estróficas de poemas antigos. Odes sáficas e alcaicas, por exemplo, foram compostas à larga desde o Renascimento até o século XX. Nestes casos, não houve tentativa de recriação do efeito rítmico antigo; a emulação acontecia pela similitude da estrofe. Desde Petrarca, Bernardo Tasso e os grandes poetas do Humanismo florentino, estabeleceu-se o costume de escrever odes em quadras compostas por decassílabos, sendo três deles inteiros e um ―quebrado‖ — ou seja, um verso correspondente a um hemistíquio isolado. O hexassílabo corresponde ao hemistíquio de um decassílabo heroico, ou, para os italianos, um endecasillabo a maiore; o tetrassílabo, ao hemistíquio de um decassílabo sáfico, ou endecasillabo a minore.18 A versão com hexassílabos foi seguramente a mais popular, tanto em italiano quanto em português. Said Ali diz mesmo que Camões e Sá de Miranda jamais preteriram o hexassílabo em sua função de verso quebrado (somente nas éclogas, odes e canções camonianas ele contou mais de 1100 exemplos); diz também que, em português, o hexassílabo só se libertou da companhia tradicional do decassílabo no Romantismo (ALI, 1999, p.140). No famoso Tratado de versificação de Olavo Bilac e Guimarães Passos, apesar de descreverem ode como uma forma livre, seus dois exemplos seguem à risca a alternância entre um grupo de decassílabos e um hexassílabo (BILAC; PASSOS, 1905, p. 111-21). O primeiro exemplo é de José Bonifácio, e o segundo, curiosamente, é uma Ode à Grécia de Magalhães de Azeredo (BILAC; PASSOS, 1905, p. 118-21). Os poetas e metricistas italianos que codificaram esta prática e as práticas similares se utilizaram do fato de que os versos de suas estrofes poderiam possuir o mesmo número de sílabas que o de estrofes clássicas. O tipo de ode que foi descrita, por exemplo, se assemelha neste aspecto à ode sáfica tal como Horácio a escandira: três endecassílabos sáficos seguidos de um verso adônio: 18 Doravante todas as referências a versos românicos seguirão a contagem consagrada pelo tratado de Castilho, diferente da contagem italiana (CASTILHO, 1858, p. 17-8). 37 ¯ ˘ ¯ × ¯ ˘ ˘ ¯ ˘ ¯ ¯ // ¯ ˘ ¯ × ¯ ˘ ˘ ¯ ˘ ¯ ¯ // ¯ ˘ ¯ × ¯ ˘ ˘ ¯ ˘ ¯ ¯ // ¯ ˘ ˘ ¯ ˘ ///19 Como se observa em Odes I, 38 — descrita abaixo com a acentuação natural das palavras de acordo com a ―Lei da Penúltima Sílaba‖ (ALLEN, 1973, p. 155ss; 1978, p. 83): Pérsicos ódi, púer, ápparátus, dísplicent néxae phílyra corónae; mítte sectári rósa quó locórum séra morétur. símplici mýrto níhil állabóres sédulus cúro: néque té minístrum dédecet mýrtus néque mé sub árta víte bibéntem.20 Tanto o modelo horaciano quanto suas emulações românicas apresentam quase o mesmo número de sílabas, disposto quase da mesma forma; caso se utilize um tetrassílabo como ―verso quebrado‖, o número e a disposição das sílabas coincidem exatamente, como neste exemplo de Angelo di Costanzo, marcado com os acentos de intensidade: Tánte bellézze il ciélo ha in té cospárte Chè non è al móndo ménte si malígna, Chè non conósca chè tu déi chiamárte Nóva Ciprígna. (apud BICKERSTETH, 1913, p. 66.) A estrofe de Horácio pode ser lida do mesmo modo que se lê a de Angelo di Costanzo: como se fosse uma sequência de endecasillabi a minore (ou decassílabos sáficos portugueses): três inteiros e um quebrado (um quinario, ou tetrassílabo português). Como veremos adiante, Magalhães de Azeredo utilizou o hexassílabo como pé quebrado, mas imitava, com isso, a estrofe alcaica. Nestes casos, não há uma proposta explícita de transposição do ritmo quantitativo; os poetas que se utilizaram de tais formatos se aproveitaram da coincidência isossilábica (e 19 Cf. HALPORN, 1994, p. 101. 20 ―Odeio, moço, extravagâncias persas / E não me agradam coroas de tília; / Deixa de procurar em pleno inverno, / Rosas tardias. // Que não elabores o simples mirto / É o que desejo: nem de ti servindo / Destoa o mirto, nem de mim, sob farta / Vide bebendo.‖. Acentos nossos. Citação e tradução de Antonio Cicero (CICERO, 2008). 38 acentual, se considerarmos o método de leitura) para sugerir uma composição que pareça adequada a motes e inspirações classicistas. Conforme Péricles Eugênio da Silva Ramos (RAMOS, 1959, p. 23-31), os esquemas silábicos da tradição versificatória em português são também esquemas silábico-acentuais; ou seja, os poetas de expressão lusófona jamais se contentaram apenas com a contagem de sílabas, e exerciam controle da distribuição acentual em seus versos, tal como se espera de poetas alemães e ingleses, por exemplo21. Ao se manter em mente que os poetas, à revelia dos tratados de versificação, sempre dialogaram com uma tradição acentual em português, é possível entender que Magalhães de Azeredo não recriou ritmos acentuais ab ovo. Na verdade, o poeta se utilizou de elementos comuns às práticas correntes para criar uma leitura que evocasse os ritmos antigos. De todo modo, a tradição italiana que Carducci aponta se refere também a este tipo de emulação dos clássicos (especialmente os latinos). Sua assertiva é corroborada por seus admiradores, como seu tradutor e comentador Cap. Geoffrey Langdale Bickersteth, a quem parece que os próprios metros bárbaros de Carducci foram realizados primeiro por Gabriello Chiabrera; o mérito de Carducci, para o Cap. Bickersteth, foi empregá-los em boa e verdadeira poesia (BICKERSTETH, 1913, p. 71). Concorda nisso com Giuseppe Chiarini, um dos principais comentadores de Carducci à época, que enjeita todos as tentativas anteriores à Carducci considerando-as apenas experimentos métricos, feitos por metricistas e não poetas (CHIARINI, 1901, p.173). As observações do Cap. Bickersteth foram a avaliação crítica mais exaustiva, no que tange o aspecto métrico, das Odi barbare, que pudemos encontrar nesta pesquisa. Utilizaremos a seguir suas observações para compreender melhor tanto o projeto de Carducci quanto as suas condições de recepção; é importante fazê-lo para que se compreenda igualmente o projeto de Magalhães de Azeredo, como também as suas condições de recepção, dadas as diferenças entre os literatos italianos e os brasileiros à época. As imitações italianas da antiga prosódia, segundo a percepção do Cap. Bickersteth, apresentam-se em uma taxonomia similar à proposta por esta pesquisa. Admite três tipos de verso. No primeiro tipo, os poetas se esforçam por encontrar valores quantitativos nas sílabas vernáculas, e no segundo, substituem padrões de quantidade por padrões de intensidade: 21 Agradecemos ao Prof. Marcelo Tápia, que, em ocasião da defesa desta dissertação, chamou a atenção para a importância deste estudo. Marcelo Tápia afirma que as análises de Péricles Eugênio da Silva Ramos, em questões de métrica e ritmo em poesia de expressão lusófona, solucionam problemas de modos que somente mais tarde outros autores puderam entrever. Concordamos integralmente com a afirmativa (cf., sobre esse assunto, BRITTO 2011b; FUSSELL, 1979). 39 (1) Quantity is made the basis of the rhythm in strict imitation of ancient verse, and speech-accent is allowed to shift for itself. (2) Speech-accent is made the basis of the rhythm in conformity with the demands of modern prosody, and the rhythm of the ancient metres is produced by making the speech-accents always coincide with the arsis of the ancient foot, quantity not being considered at all (BICKERSTETH, 1913, p. 61).22 Os renascentistas italianos, como Fr. Leonardo Dati, Leon Battista Alberti e Claudio Tolomei foram responsáveis pelos poemas do primeiro tipo. Na língua portuguesa, é o caso de Fr. Antônio de Portalegre, Anastácio da Cunha e Vicente Pedro Nolasco da Cunha23, que procuraram estabelecer quantidades em português, ora por analogia etimológica com palavras latinas, ora por regras que seriam intrínsecas ao vernáculo (como encontros consonantais, ditongos, acentos de intensidade etc.). Os poemas do segundo tipo tornaram-se mais comuns nos séculos XIX e XX. Em italiano os maiores exemplos são posteriores a Carducci, e vêm de seus discípulos, como Pascoli e, principalmente, Mazzoni. Em português há o breve e didático exemplo do poema de Júlio de Castilho, os versos de Carlos Alberto Nunes, e todos os experimentos métricos inspirados pela métrica ―núnica‖. Segundo Bickersteth, um hexâmetro composto desta forma é, na verdade, a junção de um hexassílabo grave e um octossílabo; pode ser composto também, menos frequentemente, por um hexassílabo agudo e um eneassílabo ―manzoniano‖ 24 (BICKERSTETH, 1913, p. 64; 76). Bickersteth cita um exemplo de Mazzoni que apresenta as duas possibilidades: Gli uómini Cnídî al ré Nicoméde. ‗La díva Afrodíte cúi Prassitéle scúlse vivénte nel mármo di Páro nói reverénti in mézzo ponémmo a la nóstra cittáde ín un tempiétto apérto su vénti colónne a l‘amore dí chi lo véda, o vénga da lúngi o sia náto fra nói‘. (BICKERSTETH, 1913, p. 64. Acentos do autor. Grifos nossos.) Os grifos destacam os hexassílabos que compõem cada primeiro hemístiquio de cada um dos quatro hexâmetros. Como o hexassílabo do primeiro verso é agudo, o seu segundo 22 ―(1) Toma-se a quantidade como base do ritmo na imitação estrita do verso antigo, e ao acento gramatical é permitido variar por si mesmo. (2) Toma-se o acento gramatical como base do ritmo em conformidade com as demandas da prosódia moderna, e o ritmo dos metros antigos é produzido fazendo os acentos gramaticais coincidirem sempre com a arse do pé antigo, desconsiderando totalmente a quantidade.‖ Tradução nossa. 23 Estes autores, bem como os do segundo tipo, serão abordados em outros capítulos da dissertação. 24 Consagrado por Alessandro Manzoni (1785-1873), nos coros de suas peças (cf. BICKERSTETH, 1913, p. 76). 40 hemístiquio correspondente é o eneassílabo ―manzoniano‖ de que fala Bickersteth, apresentando acentos na 3ª, 6ª e 9ª sílabas: Nicoméde, la díva Afrodíte O ritmo anapéstico25 procura imitar o ritmo hexamétrico, tanto neste eneassílabo quanto nos octosílabos exemplificados. A tônica da sílaba final do hexassílabo, somando-se ao anapesto subsequente, compõe um dátilo, tornando as sequências seguintes igualmente datílicas. O eneassílabo ―manzoniano‖ não é tão específico quanto o comentador faz parecer; ao contrário, é o exemplo padrão dos tratados de métrica em português, como o de Bilac26 (BILAC, 1905, p. 62), Said Ali (ALI, 1999, p. 81-3), Glauco Mattoso27 (MATTOSO, 2010, p. 80-2) e Castilho (CASTILHO, 1858, p. 20; 34-5). As Odes e elegias utilizam o mesmo ritmo em seus hexâmetros, mas lançando mão exclusivamente de octossílabos nos segundos hemistíquios. A substituição de quantidades por intensidades, tal como as tentativas do tipo anterior, é condenada por Bickersteth. Em primeiro lugar, o crítico repele o que chama de jingle — o ritmo ―monótono e estereotipado‖ dos ictos acentuais, que se sobressaem ―tanto ao sentido quanto à quantidade‖ (BICKERSTETH, 1913, p. 64). De fato, todos os versos criados sob esta regra tornam o verso tão mais inflexível quanto mais aferrado à norma proposta, já que os acentos gramaticais não poderiam mudar de posição sem destruir o padrão rítmico que dá unidade ao verso. As soluções a este problema serão consideradas brevemente adiante neste capítulo, e mais detalhadamente no capítulo acerca das obras de Carlos Alberto Nunes e seus sucessores. Em segundo lugar, Bickersteth condena o resultado da prática no caso dos pentâmetros, pois o verso terminaria necessariamente em sílaba aguda, o que ―não é natural em italiano como o é em inglês‖ (BICKERSTETH, 1913, p. 65). Carducci compôs uns poucos distícos elegíacos desse tipo, como este exemplo em Nevicata: Lénta | fiócca la | néve pe ‗l | ciélo ci| néreo: | grídi, suóni di | víta | più || nón salgon | dálla cit|tà, || (apud BICKERSTETH, 1913, p. 64) 25 Um ―ritmo anapéstico‖, no caso, refere-se a sequências de grupos de uma tônica seguida por duas átonas, conforme explicação anterior. 26 O próprio Hino à Bandeira do Brasil, de Bilac, foi composto em eneassílabos deste tipo. 27 No mesmo trecho, Glauco Mattoso acrescenta ser este o ritmo mais comum nos versos longos dos limericks ingleses (MATTOSO, 2010, p. 80). 41 Bickersteth aponta no pentâmetro de Carducci problemas na ordem sintática da frase, além de desprezar a cesura após piú, que lhe parece enfeiar o verso. Mas é interessante notar que, apesar das críticas, Bickersteth reconhece que tanto Carducci quanto Pascoli e Mazzoni produziram versos muito bonitos com esta técnica (BICKERSTETH, 1913, p. 64). De todo modo, Carducci não se fiou a este tipo de transposição nas Odi barbare, pelo menos ao escrever seus pentâmetros. O mesmo ocorreu com Magalhães de Azeredo, como será discutido mais adiante. O fundamento do terceiro tipo de verso, correspondente aos versos bárbaros de Magalhães de Azeredo e ao resto dos de Carducci, é explicitado por Bickersteth: (3) Speech-accent is made the basis of the rhythm, and the rhythm of the ancient verse, as it sounds when read according to the speech-accent only, is reproduced by verses or combinations of verses of modern Italian poetry. The Odi Barbare come under the third of these classes.28 Este método não responde diretamente ao problema: como reproduzir diretamente os padrões de ritmo quantitativo? Ao invés, reformula o problema, desistindo de impor quantidades ou padrões ligados às quantidades silábicas originais, e procurando encontrar uma interseção entre poéticas distintas e provindas de distintos sistemas acentuais. Paradoxalmente, submeter o texto antigo à leitura moderna e extrair desta leitura um padrão rítmico parece ter sido uma estratégia informada. A filologia, especialmente a filologia germânica, tornou os literatos do século XIX em diante cada vez mais conscientes da magnitude de certos problemas textuais, como a reconstituição dos fenômenos prosódicos do latim e do grego. Assim, tal solução métrica pode ter sido consequência de uma vontade de rigor, aliada a certa humildade científica. Esta hipótese encontra eco na Nota necessária que Magalhães de Azeredo escreveu às suas Odes e elegias (AZEREDO, 1904b, p. i-viii), bem como em sua recepção em periódicos e em outros documentos, a serem abordados mais adiante, que testemunham como os poemas latinos e gregos estavam sendo lidos à época. 28 ―(3) Toma-se o acento gramatical como base do ritmo, e o ritmo do verso antigo, tal como soa ao ser lido de acordo apenas com acento gramatical, é reproduzido por versos ou combinações de versos da poesia moderna italiana. As Odi barbare se encontram sob a terceira dessas classes.‖ (BICKERSTETH, 1913, p. 61. Grifos do autor. Tradução nossa.) 42 Bickersteth atesta, ainda, citando Chiarini, que a atenção com a quantidade costuma ser apenas negativa nesse caso — o poeta deve cuidar para que uma sílaba átona em posição de breve não seja ―alongada‖ por fenômenos acidentais (como, provavelmente, consoantes duplas, no caso italiano): According to this method quantity is not strictly observed, but only so far, to quote Chiarini, as ‗evitare tutte quelle aspre combinazioni di suoni che allungano in certo modo la quantità di una sillaba, la quale non essendo accentata si considera come breve‘.29 Por fim, Bickersteth elenca todos os tipos de versos bárbaros empregados por Carducci: hexâmetros catásticos, dísticos elegíacos, estrofes alcaicas, estrofes sáficas, estrofes em versos asclepiadeus, trímetros, dímetros e estrofes iâmbicas, estrofes arquiloquianas e estrofes pitiâmbicas (BICKERSTETH, 1913, p. 72-80). 3.2 Exame das Odes e elegias De todos os poetas que compuseram versos clássicos em português, Magalhães de Azeredo foi o primeiro a descrever claramente o que intencionava e quais foram suas soluções ao problema que se impôs. O poeta abre suas Odes e elegias com uma Nota necessária, explicitando seu projeto ao público brasileiro: suas motivações, suas influências, e o método rítmico. Por sua importância, e pela escassez de documentos deste tipo em nossa pesquisa, trascreveremos a Nota integralmente, pontuada por comentários. Neste livro ha uma novidade de forma, que exige breve explicação: é a introdução, na poética portugueza, dos chamados metros bárbaros. Estes assim se denominaram, em opposição aos metros clássicos latinos e gregos, por que, imitando-os no ritmo, não se fundam nas mesmas regras de prosodia, não se contam, como aquelles, por pés ou quantidades, mas, como os modernos, por sillabas com accentos predominantes. Tanto basta para concluir que são também versos modernos; e aliás não é talvez um paradoxo affirmar que muitos dos mais usados e correntes versos modernos tém origem idéntica. (AZEREDO, 1904b, p. iii. Grifos do autor)30 29 ―De acordo com esse método, não se observa estritamente a quantidade, mas apenas até o ponto, para citar Chiarini, de ―evitar todas aquelas combinações ásperas de som que aumentam de certo modo a quantidade de uma sílaba, a qual não sendo acentuada se considera como breve.‖ (BICKERSTETH, 1913, p. 61) 30 Doravante todas as citações serão transcritas ipsis litteris, salvo gralhas, preservando a ortografia utilizada por cada autor. 43 Logo no primeiro parágrafo de sua introdução Magalhães de Azeredo sugere que ao menos parte dos versos ―modernos‖ (seria razoável entender ―românicos‖) possua alguma relação genética com os versos antigos. Como já dito anteriormente, tal ideia está presente de certo modo na proposta carducciana, e é pressuposto estrito e indispensável da tentativa de Vicente Pedro Nolasco da Cunha. Houve portanto, em português, duas principais versões dessa tese: uma forte e uma fraca. A tese forte afirma que os versos românicos — todos, ou parte deles — são fruto de uma evolução direta e ininterrompida da prosódia clássica, ou ainda, de um esforço de imitação que tenha sido perfeitamente adequado. Foi essa uma das principais fundamentações de Nolasco da Cunha, que entendia que os decassílabos camonianos, por exemplo, coincidiam exatamente com os endecassílabos antigos. Para Nolasco da Cunha a ausência de hexâmetros em português se devera menos às condições fonológicas e prosódicas da língua do que a uma injustiça cometida pelos poetas e metricistas do Renascimento. Magalhães de Azeredo, ao adotar a proposta de Giosuè Carducci, filiou-se a uma versão fraca. Sugeriu que os metros bárbaros tivessem origem idêntica ao de ―muitos dos mais usados e correntes versos modernos‖, mas a origem a que o poeta se referiu não é o metro clássico per se; a origem comum de que falou Magalhães de Azeredo são as práticas históricas de imitação de padrões rítmicos. Os metros bárbaros imitam os antigos no ritmo, embora não se fundem nas mesmas regras de prosódia; isto quer dizer, segundo o autor das Odes e elegias, que a imitação de ritmos peregrinos só pode se realizar com recursos circunscritos à versificação de uma cultura literária. É possível, por exemplo, reproduzir um ritmo hexamétrico em português; mas não é possível fazê-lo com hexâmetros reais. O ritmo deve ocorrer na execução de metros possíveis em português. A proposta de Magalhães de Azeredo é, ainda assim, uma versão (fraca) da hipótese de continuidade entre versos antigos e modernos, pelo seu entendimento da história da versificação. Pressupõe que as práticas versificatórias de uma cultura literária sejam informadas em algum grau pela prosódia da língua utilizada, mas também o sejam, em boa parte, pelo intercâmbio de recursos com outras culturas. Algumas destas culturas são coevas e vizinhas, como as literaturas vernáculas européias; outras são, por vezes, uma espécie de fundo comum a todas elas, como é o caso das literaturas grega e latina à literatura ocidental. 44 Deste modo, os hábitos métricos de uma cultura literária são, portanto, consequência também de importação direta ou imitação de outros hábitos métricos, extrínsecos: Esses metros bárbaros, já cultivados na Italia, sem successo, aliás, por alguns humanistas do Renascimento, foram definitivamente consagrados na poética da bella lingua por Tommaseo e Carducci: após longas contestações e hostilidades, acabaram por triunfar, e hoje habitualmente os cultivam os mais illustres poetas italianos. Versos, que o são em italiano, são-no do mesmo modo em portuguez; a índole dos dois idiomas, quanto á harmonia, é absolutamente idéntica. A procedencia, pois, justifica-se por si propria. Precisarei recordar que um dos mais característicos entre os nossos versos, o decassíllabo, o escolhido por Luiz de Camões para o mais glorioso poema das nossas letras, foi tomado á Italia? Outro, mais recente, o alexandrino hoje tão manuseado, importámol-o da França, cuja lingua aliás tem muito menos pontos de semelhança com a nossa do que a italiana. Os antigos metros latinos e gregos figuram ainda com brilho na Allemanha e na Inglaterra: Goethe os empregou em muitos poemas (Elegias Romanas, Hermano e Dorothéa, Acchilleide, Romance da Raposa, Xenias); Longfellow na Evangelina, Tennyson em algumas composições. E eu poderia citar muitos outros. Por que motivo, pois, havemos nós de excluil-os? (AZEREDO, 1904b, p. iii-iv. Grifos do autor) Com este argumento o poeta esperava demonstrar que seu projeto era perfeitamente congruente com a versificação portuguesa. Afinal, todos os versos consagrados em português, segundo o argumento, foram importados de alguma outra cultura literária. A inovação das Odes e elegias já tinha sido validada há mais de vinte anos de sua publicação, com as Odi de Carducci, o poeta mais influente da Itália, e os metros bárbaros já eram utilizados por poetas de renome. Interessava a Magalhães de Azeredo enfatizar este fato, já que não possuía intenção de absoluta originalidade. Ao contrário, o poeta realçava o que sempre houve de comum nas versificações portuguesa e italiana, e sua adaptação dos metros bárbaros ao português lhe parecia tão legítima quanto o uso de qualquer outro verso costumeiro — apenas mais acorde ao tempo em que vivia. De fato, os metros bárbaros eram mesmo compostos por justaposições de versos tradicionais. Pretender que a nossa poética é já bastante opulenta de ritmos e não precisa de outros se me affigura temerario; não é menos opulenta a italiana e acolheu os metros bárbaros. Essa razão de resto já foi invocada contra o alexandrino e não o impediu de vingar. Razão semelhante invocavam os músicos da escola melódica antiga contra as concepções de Wagner... Todos os misoneismos se parecem nos gestos e nos argumentos. (AZEREDO, 1904b, p. iv) Apesar do perfil esteticamente conservador de todas as suas obras, Magalhães de Azeredo estava interessado, ao menos na primeira metade de sua vida, em ampliar o repertório rítmico da poesia em português. Tratava-se de uma ambição corrente no contexto 45 literário no Brasil, apesar do formalismo dos parnasianos — melhor dizendo, justamente por seu formalismo. Os poetas e críticos da época se interessavam por estabelecer uma espécie de gramática mínima das formas poéticas, não só para se adequar a ela e realizar o melhor que o estro lhes permitisse, como também para contribuir à sua expansão e enriquecimento. Parnasianos, simbolistas e todas as correntes literárias que se tensionavam operavam inscritas em um mesmo enquadramento: o interesse pelo aspecto formal na expressão poética, que acabaria desembocando no Modernismo brasileiro. A busca pela opulência rítmica foi, também, uma tentativa de fortalecimento da identidade nacional. O Brasil passara a se reconhecer como um estado autônomo não havia nem um século, e tinha se tornado uma república poucos anos antes da publicação das Odes e elegias — escritas, aliás, por um monarquista, que encontrou um refúgio em seu trabalho na Santa Sé. Não se deve esquecer tampouco que a Itália de Carducci, embora, obviamente, em condições bastante distintas, também era uma nação jovem, já que se unificara apenas no século XIX, e as Odi barbare tinham também a intenção de exaltar a opulência rítmica italiana. Carducci fora um patriota, conhecido por formular três princípios reguladores de sua vida: ―na política, a Itália acima de tudo; em estética, a poesia clássica acima de tudo; e na ação, força e franqueza acima de tudo‖ (BICKERSTETH, 1913, p. 4). Magalhães de Azeredo alinhou-se a um poeta que, apesar do furor ativista e do aberto anticlericalismo, guardava um respeito à Antiguidade e à tradição que caía bem ao tom comedido de sua obra. Toda a produção cultural brasileira tinha a pressa de gerar tesouros nacionais, apropriando-se do Zeitgeist de forma proveitosa ao país. Olavo Bilac, por exemplo, escreveu seu tratado de versificação, brasileiro, a rivalizar com o famoso tratado de Castilho, português31; compôs o Hino à Bandeira, enquanto seu colega Medeiros e Albuquerque compôs o Hino da Proclamação da República; e participou de inúmeros movimentos cívicos, como a campanha pelo alistamento militar obrigatório, que o tornou mais tarde Patrono do Exército Brasileiro. Ao mesmo tempo, Bilac e todos os outros poetas de seu círculo associavam a esse ativismo cívico o interesse pelas inovações formais na poesia europeia. Para Péricles Eugênio da Silva Ramos, o interesse pela novidade métrica (em outros termos, pela expressão de vanguarda), foi o traço realmente definidor do círculo que acolheu Magalhães de Azeredo, como conta nesta anedota: 31 Além da rivalidade nacional, deve-se salientar outra: o tratado de Castilho representava, de certa forma, o romantismo (ou um não-realismo), já que seu autor foi o maior alvo dos realistas na Questão Coimbrã. 46 A idéia feita por alguns é que tanto o nosso parnasianismo quanto o nosso simbolismo são resultado direto e exclusivo da adoção dos princípios estabelecidos na França por essas escolas, bem como fruto da imitação direta da poesia lá praticada sob estas duas rubricas. Imaginam os mais incautos, talvez, que um grupo de poetas haja resolvido, aqui, em conversa de café ou de redação de jornal: ―a partir de hoje vamos ser parnasianos‖, ou ―doravante seremos simbolistas‖. Nada mais ilusório. A poesia de reação ao romantismo, quando aqui começou a ser feita, levantou um lábaro único: o do realismo. Falou-se depois em poesia ―socialista‖: Sílvio Romero conjuga realismo e socialismo na fórmula geral de 'correntes realístico-sociais'. A isso, por volta de 1870, juntou-se a poesia 'científica', do próprio Sílvio Romero, Martins Júnior e outros, para mais tarde tumultuar-se toda a questão, quando a crítica, diante de poesias que não eram nem tipicamente realistas, nem socialistas ou científicas, já não sabia como classificá-las; apelou-se então para a ―novidade‖, o ―congraçamento sutil de lirismo e realismo‖: assim se externava o romancista Aluísio Azevedo a propósito do livro Sinfonias (1883), de Raimundo Correia. Outras vêzes surge o rótulo Artur de Oliveira para a poesia de vanguarda; encontra-se na crítica da época a frase: ―fulano foi quem melhor Artur de Oliveira fêz‖, Artur de Oliveira, significando aí, ―poesia nova‖. (RAMOS, 1967, p. 16) Possivelmente Magalhães de Azeredo calculou que seus metros bárbaros seriam um bom Artur de Oliveira, contribuindo calmamente ao conjunto de ritmos poéticos disponíveis na literatura em português. No parágrafo seguinte ao último citado da Nota, Magalhães de Azeredo se prepara para descrever seu sistema de versificação. Começa defendendo-se de críticas anteriores: ―Como foi contestada a affinidade entre os meus versos e os hexámetros e pentámetros, proval-a-ei com alguns exemplos‖ (AZEREDO, 1904b, p. iv). Referia-se provavelmente à recepção de seus poemas publicados anteriormente, Em Vallombrosa e as elegias A Leão XIII, poeta latino. Através de cartas, o poeta recebeu respostas de amigos e alguns homens ilustres a quem enviou os poemas; como veremos adiante, o crítico José Veríssimo dedicou duas importantes resenhas aos seus versos bárbaros, e uma delas foi anterior à publicação das Odes. Nos exemplos dados, Magalhães de Azeredo compara dísticos elegíacos clássicos com suas próprias versões: Te meminisse docet, quae plurima voce peregi Supplice, quum posti florea serta darem. 32 Namque agor, ut per plana citus sola verbera turbo Quem celer assueta, versat ab arte puer 33 32 Tibulo I, 2. Encontramos diferenças entre o texto citado por Magalhães de Azeredo e o texto estabelecido por J. P. Postgate no Tibulli aliorumque carminum libri tres, disponível n