Claudemir da Silva Paula “Negra sem reticências”: corpo e corporeidade na poesia de escritoras afro-brasileiras São José do Rio Preto - SP 2015 Campus de São José do Rio Preto Claudemir da Silva Paula “Negra sem reticências”: corpo e corporeidade na poesia de escritoras afro-brasileiras Tese apresentada como parte do requisito para a obtenção do título de Doutor em Letras, área de Teoria da Literatura, junto ao Programa de Pós- Graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Campus de São José do Rio Preto. Orientadora: Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro São José do Rio Preto – SP 2015 Claudemir da Silva Paula “Negra sem reticências”: corpo e corporeidade na poesia de escritoras afro-brasileiras Tese apresentada como parte do requisito para a obtenção do título de Doutor em Letras, área de Teoria da Literatura, junto ao Programa de Pós- Graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Campus de São José do Rio Preto. Comissão Examinadora Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro UNESP- São José do Rio Preto -SP Orientadora Profa. Dra. Norma Wimmer UNESP – São José do Rio Preto -SP Profa. Dra. Giséle Manganelli Fernandes UNESP – São José do Rio Preto - SP Profa. Dra. Raquel Terezinha Rodrigues UNICENTRO – Guarapuava – PR Prof. Dr. Júlio César Barreto Rocha UNIR – Porto-Velho São José do Rio Preto – SP 03 de dezembro de 2015 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE UNESP - Campus de São José do Rio Preto Paula, Claudemir da Silva “Negra sem Reticências”: Corpo e Corporeidade na poesia de Escritoras Afro-Brasileiras/Claudemir da Silva Paula - São José do Rio Preto, 2015. 186 f. Orientadora: Cláudia Maria Ceneviva Nigro (IBILCE) Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. 1. Literatura brasileira - História e crítica. 2. Poesia brasileira - Escritores negros. 3. Negros na literatura. 4. Escritoras brasileiras. 5. Negras - Brasil. 6. Corpo humano - Aspectos sociais. I. Nigro, Cláudia Maria Ceneviva. II. Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título CDU – B869-1.033 RESUMO Numa sociedade que associa a beleza feminina aos atributos físicos (e culturais) brancos e personifica a fealdade num corpo negro, afirmar-se mulher negra, valorizando as próprias características corporais, constitui vigoroso processo de ressignificação dos conceitos e juízos negativos. Isso porque, o sentir-se bem com contornos naturais pressupõe a existência de uma beleza capaz de tornar falsa a necessidade da adequação às regras do padrão hegemônico, presumindo, para esse tipo de enfrentamento, um discurso hábil o suficiente para subverter as formas representativas da literatura assentadas nas cenas racistas de inferioridade e objetificação, desestabilizando a exigência do “embelezamento” como condição para a felicidade nas experiências quotidianas. O corpo desenhado a partir dessa perspectiva esquiva- se do binarismo do eurocentrismo e reforma, ao modo negro de ser, a ideia do feminino, assumido como principal forma de atuação, sem a imprescindibilidade de se comparar aos modelos idealizados nos parâmetros do branqueamento. Para algumas mulheres negras, a literatura é o campo privilegiado para forjar as interpretações corporais destituídas dos aspectos da “submissão natural” e combater os “lugares” (in)apropriados aos corpos que se apresentam “contrariando às normas”. Como escritoras, colocam-se em local privilegiado da sua própria escrita e, na condição de locutoras, tecem uma poética decolonial do corpo. É deste fazer literário que se ocupa este trabalho, tendo por objetivo refletir sobre a poetização da corporeidade na poesia das escritoras afro-brasileiras Alzira Rufino, Conceição Evaristo, Geni Guimarães e Miriam Alves, em convergência/divergência com o padrão eurocêntrico de beleza no paradigma da colonialidade do poder. De forma especifica, realiza-se a leitura do corpo como elemento de emancipação política da mulher negra, circunscrevendo a rejeição da subserviência aos ditames da brancura na idealização do próprio padrão de beleza e do ideal de autonomia orientado por escolhas desobedientes e tipos figurativos insubmissos. Palavras Chaves: Poesia Afro-Brasileira; Colonialidade; Corpo; Corporeidade; Alzira Rufino; Conceição Evaristo; Geni Guimarães; Miriam Alves. "Black without ellipsis”: Body and Corporeity in Afro-Brazilian Writers Poetry ABSTRACT In a society that associates feminine beauty to physical (and cultural) white attributes and embodies ugliness in a black body it is easy to affirm that black women, who values their own body features, constitutes a vigorous process of negative concept and judgment resignification. This may happen due to a positive feeling towards their natural contours, which may presuppose a beauty able to make the need for compliance with the rules of hegemonic power fake, assuming, in that kind of confrontation, a skillful speech, enough to subvert representative forms of literature based on racist scenes of inferiority and objectification. This may destabilize the requirement of "beautification" as a condition for happiness in everyday experience. The body drawn from that perspective is beating Eurocentric binarism and reform. It is a black mode of being. The feminine idea assumed as a main form of activity, without essentialism, compares models devised in whitening parameters. For some black women, literature is the privileged field to forge the body deprived by interpretations of "natural submission" and combat "places" aspects (in) appropriated to those bodies that are "contrary to the rules". As writers, placed in a privileged place of their own writing and, as announcers of the black condition, weave a ‘de- colonial’ poetics of the body. It is about the literary performance that we deal in this work. We intended to reflect on the corporality poetic of some Afro-Brazilian writers Alzira Rufino, Conceição Evaristo, Geni Guimarães and Miriam Alves, in convergence/divergence with the Eurocentric standard of beauty in the colonial paradigm of power. Specifically, it is the body - read as an element of black woman political emancipation, focusing solely on the rejection of subservience to the dictates of whiteness - the creation of their own standard of beauty and autonomy ideal conducted by disobedient choices and unsubmissive figurative types. Key Words: Afro-Brazilian Poetry; Coloniality; Body; Corporeity; Alzira Rufino; Conceição Evaristo; Geni Guimarães; Miriam Alves. DEDICATÓRIA À mulher da minha vida, Hosana Costa dos Santos da Silva, pelo apoio incondicional em todos os momentos; e por me fazer saber o valor da conquista. . AGRADECIMENTOS À minha orientadora, professora Cláudia Maria Ceneviva Nigro, pelo carinho, dedicação e companhia nos últimos quatro anos; pelo sorriso motivador; pela fala amiga; pelo cuidado e incentivo; pelas idas à Vilhena (RO), pelos conselhos e exemplos de vida ao longo do caminho. À Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – pelo financiamento do programa de doutorado Interinstitucional e pelos nove meses de bolsas referente ao estágio doutoral. Ao professor Osvaldo Duarte, coordenador do DINTER – Unesp/Unir, pelo compromisso e apoio necessários a conclusão do doutorado. À professora Gisele Manganelli Fernandes, pelas visitas à Vilhena em esforço pessoal para tornar realidade o convênio entre a Universidade Federal de Rondônia e o programa de Pós- Graduação em Letras- Ibilce/UNESP- São José do Rio Preto. Às professoras Dra. Norma Wimmer, Dra.Maria da Conceição Evaristo de Brito, Dra. Raquel Terezinha Rodrigues, Dr(a). Carla Alexandra Ferreira e Dr(a). Giséle Manganelli Fernandes por por engrandecer este trabalho com suas leituras críticas. Aos professores Dr. Júlio César Barreto Rocha e Dr. Miguel Nenevé, pelo exemplo de profissionalismo. À professora Auxiliadora dos Santos Pinto, pela amizade que perdura, pela acolhida em São José do Rio Preto, por ocasião da Qualificação. À professora Josiane Brolo Rohden pelo encorajamento nos caminhos da pesquisa; pelo socorro linguístico nas versões para o Inglês, sempre que necessário. À professora Hosana Costa dos Santos da Silva, esposa e amiga, pela generosidade em adiar seus projetos individuais. Aos meus filhos, Eduardo e Davi, pelas interrupções rejuvenescedoras. Aos meus pais Joaquim Favaro e Helena Maria, pelo apoio incondicional; pelos sacríficos pessoais em favor da minha formação, pela cobertura espiritual com suas orações. Aos docentes Agnaldo José Gonçalves, Lúcia Granja, Norma Wimmer, Orlando Nunes Amorin e Gentil Luiz de Faria pela disponibilidade em viajar quase dois mil quilômetros para ministrar suas aulas. Aos servidores da Seção Técnica de Pós-graduação do Ibilce: Rosemar Rosa de Carvalho Brena, Silvia Emiko Kazama, Alex Antonio dos Santos, Mauro Kasuo Miasaki, Felipe da Cunha Ferreira e Victor Novaes Rufino por me fazer sentir sempre bem-vindo. Aos amigos da 2ª Igreja Presbiteriana do Brasil em São José do Rio Preto, em especial o presbítero Ivair Foguini e família pela acolhida calorosa; a missionária Rosa Madeira, pela companhia positiva e cuidados com minha esposa e filhos; aos homens e mulheres abnegados e cheios do amor de Deus: Rev. Waterson e, Simone, Péricles e Sílvia, Roger e Suzy, Alan e Ana Paula, Fernanda e Zé Antônio, Brito e Cris, Marconi e Luciana. À Rosinha Fernandes (e ao Marcelo) pela amizade e carinho dispensados a mim e a minha família, imprescindíveis ao aquecimento da alma; pela companhia nas idas e vidas; pelo cuidado com os meus tesouros, Eduardo e Davi; pelos registros fotográficos, ao longo deste ano; por nos fazer sentir vontade de ficar. Aos professores do Departamento de Ciências de Educação – DACIE – da Universidade Federal de Rondônia, campus de Vilhena, pela sensibilidade e adequações de horários de aulas nesses quatro anos de curso. Ensina-me bom juízo e ciência, pois creio nos teus mandamentos. (Salmos 119:66) Sumário Introdução ................................................................................................................................. 12 1. CAMINHOS DO (RE)CONHECIMENTO: DO DIREITO DE SER .............................. 21 1.1. A modernidade e a constituição colonial dos corpos ................................................. 22 1.2. As interligações entre corpo, raça e gênero na formação da literatura brasileira ...... 34 1.3. A consciência limiar e deslocamento do locus geopolítico da enunciação ................ 42 2. DESVIOS AO CÂNONE: AS DIMENSÕES AUTORAIS AFRO – FEMININAS. ....... 50 2.1. Miriam Alves: “cidadã-mulher-negra-escritora” ....................................................... 51 2.2. Alzira Rufino: a escritora da consciência social ....................................................... 61 2.3. Geni Guimarães: do campo para o mundo ................................................................ 74 2.4. Conceição Evaristo: “a poética da escrevivência” .................................................... 85 3. PERFORMANCE ENUNCIATIVA: A TEORIZAÇÃO DO CORPO ............................. 99 3.1. O corpo-mulher-negra: dos imaginários (des)construídos ...................................... 100 3.2. Tessituras corporais: discurso, poesia e (inter)subjetividades ................................. 112 3.3. Experiências do corpo: memória, sexo e gênero. .................................................... 128 4. DO CORPO DESEJADO AO DESEJO DO CORPO .................................................... 143 4.1. O corpo vivido: amor, sexo e sensualidade ............................................................. 144 4.2. O corpo em movimento: subversões críticas. .......................................................... 158 Considerações finais ............................................................................................................... 174 Referências ............................................................................................................................. 179 12 Introdução As escritoras afro-brasileiras1 Alzira Rufino, Conceição Evaristo, Geni Guimarães e Miriam Alves margeiam os espaços institucionais. Por vezes ignoradas pela historiografia, escrevem e se inscrevem no cenário literário longe dos circuitos editorais hegemônicos, criando contra discursos copiosamente ousados capazes de promover as “fissuras” necessárias para se colocarem como voz de resistência à condição de submissão, por um lado, e de inspiração enfrentamento do ritual das práticas discriminatórias, por outro. Para essas escritoras, ligadas entre si pelo fazer poético, a escrita apresenta-se “rebelada” contra o lugar/espaço estabelecido para elas na colonialidade2. Os poemas estudados e/ou citados nesta tese são extraídos das seguintes obras e suportes: Eu, mulher negra, resisto (1988) e Bolsa poética (2010) de Alzira Rufino; Momentos de busca (1983) e Estrelo de Dedo (1985) de Miriam Alves; Terceiro filho(1979) e Balé das Emoções (1993) de Geni Guimarães; Poemas de Recordação e Outros Movimentos (2008) de Conceição Evaristo; Axé: Antologia contemporânea da poesia negra brasileira (1982) organizado por Paulo Colina; A razão da Chama: Antologia de Poetas Negros Brasileiros (1986) organizado por Oswaldo de Camargo e dos Cadernos Negros de números 5, 13, 19, 25, 31 e 33 editados por autores e autoras do grupo Quilombhoje. Para adentrar o universo poético das escritoras, recorre-se aos Estudos Subalternos, mais especificamente ao enfoque epistêmico do Grupo Modernidade/Colonialidade3. O 1 Utiliza-se nesta tese preferencialmente nome e sobrenome das autoras, contrariando a regra de citação de forma proposital, como recurso para dar visibilidade a condição de mulher, haja vista os sobre nomes das autoras serem masculinos e de colonizadores. 2 Colonização do imaginário dos ‘dominados’, atuando na interioridade desse imaginário, “produzindo a classificação social básica e universal da população do planeta em torno da ideia de raça” (QUIJANO, 2002, p. 4). O imaginário colonizado busca reproduzir o “paradigma de vida cotidiana, de compreensão da história, da ciência e da religião” (DUSSEL, 2005, p. 28) implantado pelo colonialismo, naturalizando “as relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus” (QUIJANO, 2005, p. 34). Nesse movimento, as diferenças culturais/linguísticas/fenotípicas são transmutadas em valores e hierarquias: raciais e patriarcais, por um lado, e geopolíticas, por outro” (CORONIL, 2005). No centro espaço/temporal imaginário está a Europa. A partir desse centro, define-se as demais nações, culturas, línguas e religiões do mundo. 3 O Grupo Modernidade/Colonialidade é formado por vários pensadores latino-americanos de diversas áreas do conhecimento. Foi construído a partir de vários eventos oficiais com a cooperação da Universidade Javeriana de Bogotá, Duke University, University of North Carolina e a Universidad Andina Simón Bolíva. Fazem parte do grupo Edgardo Lander, Arthuro Escobar, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal Quijano, Fernando Coronil, Ramon Grosfóguel entre outros (ESCOBAR, 2003). 13 exercício analítico interpretativo adotado é de perspectiva decolonial4 (MALDONADO- TORRES,2010; MIGNOLO, 2010), delineado a partir de três pensamentos críticos: o de Colonialidade (QUIJANO. 2002; MIGNOLO, 2001), o de performatividade (BUTLER, 2003)5 e de gnose liminar (MIGNOLO, 2003). Autores como Santos (2009), Fanon (1968/2008), Gilroy (2001), Grosfoguel (2008/2011) e Bhabha (1998), entre outros, são visitados em regime de diálogos, defrontações e parâmetros guias, a partir dos quais se promovem interpretações. O presente texto está organizado em quatro capítulos. O primeiro, intitulado “Caminhos do (re)conhecimento: do direito de fazer”, encontra-se dividido em três subtópicos: I - A modernidade e a constituição colonial do corpo; II - As interligações entre corpo, raça e gênero na formação da literatura brasileira; III - A consciência limiar e deslocamento do locus geopolítico da enunciação. Nesse capítulo, problematiza-se a perspectiva eurocêntrica do conhecimento, em especial, o conceito de modernidade6 (LANDER, 2005) e a ideia de raça (QUIJANO, 1999; HALL, 2003)7. São apresentados argumentos para tornar perceptíveis as convergências/divergências dos fatores políticos e culturais no espaço/tempo que permitiram determinados textos comporem o cânone em detrimentos de outros e como as posturas políticas influenciam as questões literárias reciprocamente A justificativa para essa discussão está na exigência do prisma decolonial de especificação da Colonialidade (QUIJANO, 2002). Para escapar dos moldes do pensamento eurocêntrico, torna-se imprescindível compreender o “processo de homogeneização dos membros da sociedade imaginada a partir da perspectiva eurocêntrica” (QUIJANO, 2005, p. 4 O pensamento decolonial é uma visão crítica que pressupõe mudança dos lugares e das formas de enunciação, bem como na forma de produção do conhecimento a partir das línguas, das metalinguagens e das categorias de pensamento não incluídas nos fundamentos do eurocentrismo. 5 Processo de internalização de normas cristalizadas culturalmente, criando um efeito de substância. O gênero é um “produto” constantemente marcado pelas formações discursivas. A elaboração e interpretação (individual e coletiva) das identidades negras a partir da ideia do gênero performativo extrapola o conceito de corpo fixado à norma sexual. 6 Modernidade é entendida a partir da proposição de Lander (2005): “uma construção eurocêntrica, que pensa e organiza a totalidade do tempo e do espaço para toda a humanidade do ponto de vista de sua própria experiência, colocando sua especificidade histórico-cultural como padrão de referência superior e universal” (LANDER, 2005, p. 29). 7 Raza es un desnudo constructo ideológico, que no tiene, literalmente, nada que ver con nada en la estructura biológica de la especie humana y todo que ver, en cambio, con la historia de las relaciones de poder del capitalismo mundial, colonial/moderno, eurocentrado. (QUIJANO, 1999, p. 187) 14 243) e a manutenção das injustiças e desigualdades sociais por meio do “legado epistemológico do eurocentrismo8. Pela lógica da colonialidade, somente o homem colonizador tem condições de conhecimento objetivo, científico e universal. Nessa assertiva, naturaliza-se o complexo sistema de classificação tanto interno quanto externo, na atualidade. A forma externa refere-se, por exemplo, ao posicionamento do não-europeu - tanto homem, quanto mulher - numa posição inferior à do europeu. No entanto, internamente, a mulher branca (ocidental, de classe média, europeia ou norte-americana) está subordinada ao homem branco, em posição superior ao homem negro. A mulher negra, por sua vez, ocupa posição de “peça” para o homem branco, de subordinação (serviçal) à mulher branca, bem como, ao homem negro. A compreensão sobre Colonialidade é de fundamental importância dentro da visão dos estudos subalternos, pois a poesia sobre a qual se realiza a leitura interpretativa, nesta tese, articula elaborações de esquemas corporais circunscritas nas relações de poder, cujas lógicas socioculturais se imbricam corporalmente. O entendimento da memória colonial como metanarrativa para concepção do humano e, por consequência, da história e da cultura de modo geral e da literatura de modo particular, contribui para maior clareza em relação aos posicionamentos assumidos nessa tese para as leituras interpretativas. O segundo capítulo – Desvios ao Cânone: As dimensões autorais afro-femininas – está subdivido em quatro tópicos, cada um dedicado a uma escritora: I -“Miriam Alves: “cidadã- mulher-negra-escritora”; II - Alzira Rufino: a escritora da consciência social; III -Geni Guimarães: do campo para o mundo: IV - Conceição Evaristo: “a poética da escrevivência”. A sequência da apresentação sustenta-se no critério de exploração do tema. O objetivo, a grosso modo, é analisar a imbricação entre a escrita e vivência das africanidades9 na “condição de sujeito mulher negra na sociedade brasileira” (EVARISTO, 2005, p. 54). O percurso literário sinaliza para a aprendizagem do ofício de escritora e respectivos procedimentos de ingresso na atividade literária. A intenção é superar a mera descrição de fatos ou enumeração de dados, recorrendo a ensaios das próprias autoras, palestras ou entrevistas e, principalmente, a obra literária (poemas) para a constituição das biografias. O estilo ensaístico procura diligenciar o processo de criação artística circunstanciado 8 Perspectiva de conhecimento elaborada sistematicamente a partir do século XVII na Europa, como expressão e como parte do processo de eurocentralização do padrão de poder colonial/moderno/capitalista. (QUIJANO, 1992, p.437-449). 9 Tomam-se por conceito de africanidade, traços culturais provenientes das cosmogonias e culturas africanas ressignificadas no Brasil. 15 pelas atividades laborais de luta contra o sistema de opressão e de interpretação da realidade social. O trânsito pelos dados biográficos visa demonstrar a palavra escrita “como direito”, “lugar da vida” e “poder libertador” (EVARISTO, 2005, p. 54), por meio da qual as autoras criam fendas no sistema para, por meio da linguagem poética, instalarem um sentimento de inconformidade aos discursos hegemônicos, promovendo para si e para outras, as mudanças necessárias ao protagonismo literário. A apreciação crítica dos movimentos de resistência desacredita a enunciação fundamentada somente na tradição escrita. A herança oral é de fundamental importância. As rememorações e revisitações de passados negados colocam em suspeição pelo menos dois fundamentos eurocêntricos: a ideia de que somente o conhecimento gerado pela elite científica e filosófica da Europa pode ser chamado de verdadeiro; e a defesa da existência, nas ciências sociais, de uma plataforma neutra capaz de fazer escapar o conhecimento produzido do condicionamento espaço/ideológico/temporal. Desta maneira, a negociação dos lugares não apropriados aos corpos negros perpassa a desconstrução de “certezas científicas” e a certificação de que “todo conhecimento possível se encontra in-corporado, encarnado nos sujeitos atravessados pelas contradições sociais, vinculados a lutas concretas, enraizadas em pontos específicos de observação”10 (CASTRO-GÓMEZ E GROSFOGUEL, 2007, p. 21). O terceiro capítulo – Performance enunciativa: a teorização do corpo – destina-se a reflexão sobre as articulações dos novos desenhos do corpo dentro das relações sociais e afetivas de gênero e de raça e sobre a ressignificação dos adjetivos pejorativos, dos estereótipos e juízos morais sobre a mulher negra. As proposições contrastivas aos discursos literários do imaginário moderno/colonial em relação aos signos (ou sentenças) vilipendiosos responsáveis pela personificação da “fealdade”11, cuja linguagem poeticamente organizada tenta desestabilizar, são organizadas em três tópicos: I -O corpo-mulher-negra: dos imaginários (des)construídos; II - Tessituras corporais: discurso, poesia e (inter)subjetividades; III - Experiências do corpo: memória, sexualidade e gênero. A poetização do corpo em visões plurais abre-se a experiências reveladoras de valores e preceitos não redutíveis ao biológico, contradizendo o padrão normativo da colonialidade. As 10 Todo conocimiento posible se encuentra in-corporado, encarnado en sujetos atravesados por contradicciones sociales, vinculados a luchas concretas, enraizados en puntos específicos de observación” CASTRO-GÓMEZ E GROSFOGUEL, 2007, p. 21) 11 O cabelo crespo, o nariz largo, a pele preta, a silhueta fina, o quadril largo e as nádegas volumosas são características da “antibeleza natural”, sobre a qual se promovem modificações. 16 novas maneiras de descrever o feminino e colocá-lo em movimento performatiza “a descolonização da epistemologia e do cânone ocidentais” (GROSFOGUEL, 2008, p. 116), responsáveis pelo processo de desumanização e silenciamento do universo particular da mulher negra. O conhecimento produzido a partir do locus de enunciação, fora do ângulo eurocêntrico, responde pelos novos modos de pensar e de atuar poeticamente. As proposições das autoras retomam de maneira crítica conceitos falocêntricos sobre o corpo, tornando conhecidas as discriminações naturalizadas nos discursos literários. Nesse projeto de feitura corporal desvelam construções teóricas hegemônicas compreendendo-as como construções engajadas de um projeto dominante e não como verdades universais desprovidas de condicionamentos políticos, históricos e culturais. Concebendo o corpo negro como signo e arte, elaboram-se escrituras voltadas para desestabilização dos estereótipos negativos sobre a estética corporal negra, com vistas ao estabelecimento de posicionamentos políticos subversivos. O último capítulo, intitulado “Do corpo desejado ao desejo do corpo” é proposto com a intenção de compreender a reescrita da corporeidade em convergência/divergência com a noção feminino no paradigma do racismo/machismo/sexismo. O capítulo tem dois subtítulos: I - O corpo vivido: amor, sexo e sensualidade; II - O corpo em movimento: subversões críticas. A corporeidade é analisada no nível crítico das relações de poder, tomando a escrita como instrumento político para romper com os pensamentos de objetificação do corpo e, ao mesmo tempo, despertando a consciência crítica. Nesse capítulo, o movimento do “corpo-sujeito- mulher” realiza-se poeticamente relacionando-se consigo, com outros desiguais e com o divino. A corporeidade, nessa forma de pensar o espaço social de trocas, faz-se também embate à construção de discursos outros; uma linguagem do e no corpo, processo pelo qual uma norma corporal é assumida, rejeitada ou ressignificada. A apropriação discursiva do corpo engendra um sentindo de pertencimento e de especificidades, restabelecendo a relação natural entre arte e vida, demonstrando, pela qualidade dos poemas, a “falsidade” presente no entendimento de que o artístico está fixado fora da realidade social. Além disso, o “desnudamento” das práticas ocidentais de coisificação do corpo dilata as noções sobre a subordinação presentes nas categorizações genéricas do feminismo. Ampliando as possibilidades de revindicações de equidade de gênero e raça, os confrontos à discriminação delineiam-se na insurgência e no descortinar das ações racistas veladas. Confronta-se, desta maneira, o estado das coisas no “seu devido lugar”. De forma 17 prática, isso significa não ser conivente com crença ilusória de sociedade sem problemas para com as diferenças e a alteridade. Importam, nesse sentido, as proposições visando questionar as ferramentas da opressão e da exclusão e as contrapropostas de libertação dos aprisionamentos invisibilizados pelo discurso da neutralidade científica. A escolha de Alzira Rufino, Conceição Evaristo, Geni Guimarães e Miriam Alves para o desenvolvimento desse trabalho é motivada por quatro razões. A primeira é a belíssima produção literária das autoras. A despeito de qualquer adjetivo, o de beleza, certamente, é o mais apropriado, pois o manejo com as palavras e ritmo no qual os signos são dispostos em movimentos por meio da transformação intencional de estruturas verbais primárias num sistema secundário, através de um processo consciente de semiotização (MIGNOLO, 1978)12, cativa pela expressão sonora, pelas temáticas suscitadas, pela capacidade de conectar mundos diversos e adentrar corpos restabelecendo-lhes a razão de vida. A experiência histórica de ser negra é a segunda razão de escolha. As quatro escritoras são mulheres autointituladas negras e, por consequência, afetadas pelos processos de exclusão motivados pelo racismo/machismo. Como se constatará no capítulo dois, cada uma delas, a seu modo, encontrou meios e mecanismos de luta para promover o empoderamento13 político e cultural da coletividade, resistindo à pedagogia de produção de subjetividades hegemônicas14. As vivências autorais colaboram, nesse sentido, para a justificativa da denominação “escritora(s) afro-brasileira(s)”, empregada na perspectiva de Silva (2010): “uma produção de autoria de mulheres negras que se constitui de temas femininos/feministas negros comprometidos com estratégias políticas emancipatórias e de alteridades” (SILVA, 2010, p. 178). Nesse entendimento, coloca-se em movimento o conceito de gênero racializado como entende o feminismo negro brasileiro: um conceito contingente de feminismo recortado racialmente à imagem do país, forjado nas experiências ativistas. A terceira razão é a abrangência. Mesmo existindo um espaço político/geográfico 12 O processo de semiotização, conforme Mignolo (1978) é decorrente da transformação das estruturas verbais através de códigos pragmáticos conhecidos, tanto pelo produtor quanto pelos receptores. Para concretização da semiotização, exige-se a presença de uma metalinguagem, explícita ou não, regulando o comportamento dos “fazedores” do texto literário. 13 Entendido como ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, visando à aquisição da emancipação individual e consciência coletiva necessária para a superação da dependência social e dominação política. 14 Denomina-se pedagogia o conjunto de atividades cujo objetivo é promover mulheres negras descontentes com o corpo e em constante conflito com as suas características corporais. 18 delimitado, no qual emergem estas produções, elas não se limitam a ele. Trata-se uma escritura transnacional e diaspórica15: “convergência de múltiplos lugares e culturas que renegociam a experiência das mulheres negras e, ao mesmo tempo, suas identidades” (BOYCE-DAVIES, 1994, p. 3 apud GONÇALVES, 2008, p. 32), sendo, portanto, interlocutoras de diálogos literários semelhantes: “Ser negra de carapinhas/ de dorso brilhante/ Nos traços/ Nos passos/ De verso e reverso” (GUIMARÃES, 1986, p. 76), em contraponto com as caracterizações pejorativas presentes na literatura brasileira e no discurso comum sobre a fealdade feminina. A quarta está ligada perspectiva da enunciação. Na literatura nacional, a maioria das mulheres negras é conhecida pelas características comumente associadas ao trabalho manual, à sensualidade, a perversidade sexual e à submissão “natural”. Tais personagens personificam modelos arquetípicos de tratamento dispensado ao coletivo de afro-brasileiras no qual, a um só tempo, o racismo (cor da pele e cabelo) e o machismo (submissão e exploração) se concretizam. Como se comprovará na análise, poemas contrariam “essa norma” descrita pelo olhar masculino, pois cada autora é sujeito do próprio discurso. Isto é, as representações de mulheres negras agenciadas nessas condições de autoria (mulher negra com voz própria) destoam de personagens como “Jelu” de Gregório de Matos, rainha das putas; da mulata sensual e fogosa, “Rita Baiana”, de Aluísio de Azevedo; de Vidinha, do romance Memórias de um Sargento de Milícias de Joaquim Manoel de Almeida; das personagens “Eufêmia, Esméria e Lucinda” em Vítimas Algozes: quadros da escravidão de Joaquim Manoel de Macedo e a sensual e “devoradora” de homens (além de ex-escrava perversa e amedrontadora) Chica da Silva, do romance Xica da Silva de João Felício dos Santos, além de tantas outras destituídas de voz, vontades e pensamentos. Anota-se, todavia, o tratamento diferenciado recebido por algumas mulheres negras na literatura nacional, como Lucrécia, em o Caso da vara, um dos contos de Machado de Assis. Como analisado por Nigro e Silva (2012), a personagem feminina, ainda que descrita com alguns termos negativos, é nomeada e atesta sentimentos, algo considerado incomum para os negros da época. Na escrita do texto e nas circunstâncias da publicação, em pleno regime escravocrata e paternalista, esses dois pontos apresentados por Machado, certamente dão à Lucrécia uma representação muito diferente da usual. “A personagem é a principal no conto de 15Todas as autoras têm poemas publicados em pelo menos mais uma língua, além do Português. Isso já seria suficiente para transcender os limites territoriais. Mas elas vão além dessas questões geográficas com se verá na análise. 19 Machado, já que traz o leitor para o espaço de desconforto. Ao ler o conto, e ver descrita Lucrécia, a escravidão não pode ser mais vista como apenas benéfica ao comércio local” (SILVA e NIGRO 2012, s/p). Como Lucrécia, outros exemplos ensaiam algumas mudanças representativas. Todavia, as personagens são marcadas pelo estilo de criação masculina, sem direito à própria fala. No caso da produção literária das autoras afro-brasileiras em estudo, a mulher negra tem direito a voz e a utiliza a partir de um ângulo político de pertencimento. Além da contestação dirigida às imagens estereotipadas de mulheres negras na literatura, o fazer poético das escritoras dialoga, confrontando, o padrão16 de formosura do feminino, fruto do projeto nacionalista de branqueamento17 (estético). Nesse viés, os poemas franqueiam os conflitos vivenciados pelas mulheres em relação ao corpo. Contrariando a exigência de “negação”18 dos atributos físicos do corpo negro, por meio de produtos ou de algum recurso material para “tornar-se bonita”, as complexas questões de raça/cor e gênero erigidas poeticamente pelas escritoras elaboram para o(a) interlocutor(a) as diretrizes para reflexão sobre a estética corporal como um dos mecanismos sociais utilizados para conferir lugares e espaços na mobilidade social e política. Para além da manutenção de uma dada tipologia de “perfeição estética”, as representações positivas do corpo negro repercutem na formação das identidades e na constituição da autoestima. As proposições alternativas positivando a aparência em seu aspecto transcendente circunscrevem-se em valores e normas de comportamentos públicos e privados, primeiramente das autoras, mas também de outras iguais que, a partir dos poemas, podem também dar a si novas leituras corporais e construir universos paralelos e alternativos, cujas formulações estéticas projetam transformações e formas ressignificadas de ver e ler as 16Este padrão corporal é constituído por olhos claros, cílios longos, lábios rosados, bochechas coradas, narizes afilados e cabelos lisos e sedosos “voando” ao vento de maneira hipnotizante. Na seção Plantão – Cabelo, da Revista Vogue Brasil, por exemplo, todas as matérias publicadas nos últimos dois anos (2013 e 2014) apresentam mulheres com tais características. Em tais publicações, não se ocupa de apresentar uma exceção à regra. Vide acesso em 30/03/2015. 17O branqueamento está sendo empregado para designar os esforços oficiais ou não de promover uma mudança da cor na população brasileira, através de recursos, de aquisição ou assimilação pelo afrodescendente de atitudes e comportamentos presumivelmente "positivos" das pessoas brancas, compartilhados pela intelectualidade nacional e que pode ser verificada na obra de inúmeros e influentes pensadores, juristas, políticos e escritores brasileiros como Afrânio Peixoto, Monteiro Lobato, Euclides da Cunha, Clóvis Bevilácqua, Gilberto Freire e Paulo Prado. 18É preciso levar em consideração a ausência de referências positivas para belezas negras, compreendendo o gesto de “negação” de determinados atributos físicos como recursos de sobrevivência nada pacífica. O que não significa que mulheres negras não possam fazer o que desejarem com os próprios corpos. Ser loira ou ruiva, ou alisar o cabelo, por exemplo, não se constitui, em absoluto, artificialização das identidades, desde que isso seja uma opção pessoal e não uma imposição para ser aceita em determinados espaços. 20 condições humanas. É oportuno lembrar que a introdução ao mundo criado pela poesia das escritoras afro- brasileiras em estudo requer, no mínimo, um certo nível de “desconfiança” sobre as metalinguagens literárias hegemônicas, pois, embora em muitas situações a intertextualidade construa um cenário favorável a leitura, em outros casos, a obscuridade promovida pelo longo rito pedagógico em torno da visão eurocêntrica sobre literatura, ofusca a compreensão. Assim, a disposição intelectual deve se antepor as possíveis estranhezas. Além disso, é preciso levar em consideração o aspecto inédito da análise dos poemas e desconsiderar as (minhas) impressões talvez equivocadas, separando-as das vozes autorais. Se, ao final da leitura, as indagações e questionamentos levantados servirem de motivação para novos trabalhos, ainda que objetivando a contestação das interpretações aqui expostas, nos daremos por satisfeitos. 21 PRIMEIRO CAPÍTULO 1. CAMINHOS DO (RE)CONHECIMENTO: DO DIREITO DE SER Neste primeiro capítulo realiza-se uma reflexão sobre os pensamentos críticos adotados como guias para este trabalho nas imbricações contidas nos conceitos de gênero, nação e raça/cor. No contexto histórico do país, preocupa-se com o processo de estabelecimento da literatura brasileira em seu primeiro momento, com vista a pontuar questões específicas que levam os intelectuais a ter como ícone representativo o homem branco: “único” capaz de produzir literatura nacional, excluindo desse processo os afrodescendentes, os indígenas, em especial a mulher negra. O processo de convergências/divergências dos fatores políticos e culturais no espaço/tempo responsáveis por estabelecer alguns textos como pertencentes ao cânone em detrimentos de outros é pensado no diálogo com os projetos de branqueamento e de miscigenação da população Brasileira. Nesse ambiente político, aventura-se na elucidação dos conceitos de colonialidade, ideia de raça e diferença colonial, anotando as ligações entre eles e respectivos reflexos nas identificações e constituição das identidades das mulheres brasileiras, de modo gera, em da mulher negra, em particular. A partir das discussões em torno dos textos literários canônicos, busca-se qualificar a intervenção da mulher negra na função de escritoras nas “narrativas hegemônicas” sobre o corpo negro. Acredita-se ser a incursão necessária a compreensão das iconografias auto- representativas que possibilitem a inserção das mulheres negras em outros tempos/espaços, inscrevendo novas conformações (sociais, culturais, ontológicas) e evocando da crítica, um posicionamento. Apesar dos apontamos em alguns momentos serem genéricos, objetivo do capítulo é estabelecer um parâmetro para se poder ler o “outro movimento” apontado por Evaristo (2005), como a imersão na condição autoral da mulher negra conhecedora das representações estereotipadas sobre si, mas convicta da capacidade de “rasurar” os conjuntos diversificados de discursos (morais, religiosos, opressores) através de sua escrita literária. 22 1.1. A modernidade e a constituição colonial dos corpos Parece muito acertado dizer que o Brasil e, de igual modo as sociedades/nações nos diferentes territórios nas Américas, não é uma réplica do padrão da sociedade ideal europeia. Existem inúmeras provas de que, mesmo em condição de dominados, a participação dos povos em regime de opressão e exclusão produziram mudanças significativas na organização social das divergentes regiões das Américas, como resultado das leituras interpretativas do projeto cultural, científico e político da modernidade. Apesar dessa constatação, a situação jurídico-administrativa de soberania nacional brasileira, estabelecida do ponto de vista histórico com o grito do Ipiranga, não foi capaz de romper com os mecanismos de estruturação e organização social colonial que permaneceram de forma ativa e, em alguns casos, quase inalterados na sociedade pós-independência. Desta forma, é perfeitamente aceitável dizer que o fim da dominação portuguesa (e de outras nações) não representou para o Brasil “o fim de um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131), a saber, colonialidade. Isto porque o colonialismo, como anotado por diversas linhas de pesquisas, não foi apenas um mecanismo de exploração comercial ou dominação territorial, a exemplo de outros projetos imperiais, mas um processo complexo, culminado numa forma nova e diferente de conceber os seres humanos, suas histórias, memórias e culturas. Santos (2009), discorrendo sobre as condições de pensamento ocidental moderno, apresenta uma formulação conceitual que ajuda a refletir sobre a possibilidade de uma experiência particular (no caso, a europeia) se apresentar como única e universal. Para ele, o pensamento ocidental moderno é um pensamento abissal. Este pensamento é responsável por organizar a realidade sociocultural dividindo-a em dois universos distintos, opostos e (in)visíveis. O pensamento Abissal opera pela definição unilateral de linhas que dividem as experiências, os saberes e os atores sociais entre os que são úteis, inteligíveis e visíveis (os que ficam do lado de cá da linha) e os que são inúteis ou perigosos, ininteligíveis, objetos de supressão ou esquecimento (os que ficam do lado de lá da linha). (SANTOS, 2009, p. 13). Do lado de cá da linha, encontram-se os que, por “regras naturais”, têm o direito ao usufruto do poder e dos bens culturais, aptos à produção do conhecimento e das artes. Do outro lado da linha, são fixados os grupos diversos que não correspondem às definições de 23 humanidade do pensamento colonial. O lado de lá, excluído e inexistente para o lado de cá, não o é, todavia, eliminado, permanecendo em relação de subordinação ao lado de cá. É para e sobre ele que o lado de cá age através de uma epistemologia, sem que seja conhecida como tal. O lado de lá, visualiza, conhece, sente-se atraído e assume a epistemologia do lado de cá como um ideal a ser atingido. Para o pensamento abissal, a alternativa de transposição entre os lados da linha é nula, por razões muito claras. “Do outro lado da linha, não há conhecimento real: existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos que, na melhor das hipóteses, podem tornar-se objetos ou matéria-prima para a inquirição científica” (SANTOS, 2009, p. 25). Aplicando essa proposição à literatura, os conceitos do estético ou do poético, conhecidos como elementos intrínsecos do texto literário, são deslocados da situação de uma das metalinguagens literárias possíveis para a condição de única existente, atingindo tanto quem com ela se alinha quanto aos que dela se distanciam19. Tal situação se explica em razão da presença e ação da colonialidade (SANTOS, 2010). (a colonialidade) é uma vasta gramática social que atravessa toda Sociedade, espaço público e espaço privado, a cultura, as mentalidades e subjetividades. É, em resumo, uma maneira de viver e conviver compartilhada por aqueles que se beneficiam dela e aqueles, às vezes, que sofrem (SANTOS, 2010 p. 14)20 Quando se argumenta que o fim do colonialismo não representou interrupção da lógica colonial, coloca-se em discussão exatamente colonialidade que, na vida prática cotidiana, institui a diferença colonial, através de categorias de diferenciação. Pelo princípio da diferença colonial, a identificação pessoal em grupos étnicos ou de povos diferentes passa a ser realizada nas supostas “faltas ou excessos”, na comparação com a sociedade (ideal) europeia. Produzido e reproduzido pela colonialidade do poder (MIGNOLO, 2003, p. 39), do saber e do ser (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 147), o conceito de diferença colonial sustentou no passado recente e continua no presente século a possibilitar a leitura da raça e do racismo como 19 É interessante é observar que experiência histórico-cultural da Europa como padrão de referência superior e universal no âmbito da literatura tem pelo menos duas funções: eleva uma literatura em particular ao status de referência e classifica/desclassifica todas as demais, a partir dos critérios de ajuste/desajuste ao padrão estabelecido. 20 (a colonialidad) es una gramática social muy vasta que atraviessa la sociedade, el espacio público y el espacio privado, la cultura, las mentalidades y las subjetividades. Es, en reseumen, un modo de vivier y convivir muchas vezes compartido por quienes se benefician de él y por los que lo sufren (SANTOS, 2010, p. 14). 24 "o princípio organizador que estrutura todas as múltiplas hierarquias do sistema-mundo" (GROSFOGUEL, 2008, p. 123). Seguindo as argumentações de Mignolo (2003)21, a diferença colonial é a face oculta da modernidade, símbolo matriz da colonialidade de poder, que subjaz de forma silenciosa às políticas de Estado e às relações sociais e culturais, na distribuição do conhecimento, dos recursos financeiros e dos bens culturais na estrutura das sociedades pós-coloniais22. De modo mais específico, a diferença colonial interfere nas intersubjetividades, estabelecendo modos e formas de convivências marcados por categorias de diferenciação das quais as mais visíveis são as de raça/cor e de gênero. Tanto a categoria de raça/cor quanto a de gênero colocam em evidência a materialidade do corpo, fazendo deste lugar de múltiplas significações, “campo de discurso e poder” (BUTLER, 2003/2007). Na vida prática, os aspectos corporais assumem a predominância em relação aos demais (culturais, psíquico ou moral) permitindo ou impedindo o posicionamento dos sujeitos, em especial os femininos, nos espaços sociais, acadêmicos e culturais. No contexto da colonialidade, o corpo é uma construção discursiva carregada de simbologias de valor positivo ou negativo que adquirem significados políticos em contextos específicos. No caso brasileiro, essa discursividade chega a ser institucionalizada nas décadas de 1920, 30 e 40. Flores (2000) afirma que “durante o Estado Novo, uma política cultural alastrou- se pelas práticas educativas e pelas artes, expressando o imaginário de beleza para formar o corpo do homem protótipo, constituidor da nação, e da mulher perfeita, geradora dos filhos da nação” (FLORES, 2000, p. 100). A grande questão nesse período está em estabelecer prescrições e normas para o uso do corpo, correspondendo ao ideal europeu de sorte que, aos poucos, fosse superada a natureza “edênica e demonizada”, “viciada na carne”, características próprias às raças “inferiores”. Os discursos da necessidade de educação do corpo detectáveis na literatura ou nos ditos populares, com vista a embelezá-lo e transformá-lo, moral e fisicamente serve como exemplo da capacidade de mobilidade e reorganização da diferença colonial. Estas promovem uma espécie de cerceamento epistemológico, enredando até mesmo propostas que tinham, em sua gênese, 21 Mignolo (2003) compreende a modernidade como uma autonarrativa do imperialismo responsável por colocar a Europa como centro do mundo. 22 O termo é usado aqui significando o coletivo de países que passaram por um período de dominação colonial europeia e gozam, na atualidade, de uma situação jurídica administrativa de independência. 25 questionar a eurocentralidade. Grosfoguel (2008), ao analisar os movimentos pós-estruturalismo, os estudos pós- coloniais e feminismos/feministas, anota que tais propostas, mesmo tendo o ideal de estabelecer uma crítica aos postulados eurocêntricos, “encontram-se aprisionados no interior do cânone ocidental, reproduzindo, dentro dos seus domínios de pensamento e práticas, uma determinada forma de colonialidade do poder/conhecimento (GROSFOGUEL, 2008 p. 117). A título de exemplo, cita as relações sociais naturalizadas no contexto da dominação masculina branca utilizadas em projetos feministas, como resposta às situações vividas por mulheres em diferentes partes do mundo. Ao estabelecer uma crítica à dominação masculina, as epistemologias de tais propostas consideram a categoria mulher como referência para todas as mulheres e o ato de questionar a opressão como uma lógica natural para todas as sociedades. Conclui-se a priori que a subordinação da mulher é universal e uniforme23. Por isso, Lander (2005), diz ser a modernidade um mito sustentado em três importantes instrumentos de dominação: a ideia de raça24, a diferença colonial e o princípio da inviabilidade do sujeito da enunciação. Juntos esses três instrumentos constituem a base do eurocentrismo25 que, ao longo dos últimos séculos, responde pela teorização da Europa, como a “mais avançada” das sociedades, da qual a ciência é a maior conquista. De modo geral, a modernidade é uma metanarrativa de centralidade da Europa, tanto geográfica quanto temporal, a partir da qual se pensa as demais formas e organizações humanas nos continentes. Ou seja, ao estabelecer a Europa como forma mais avançada de sociedade, o eurocentrismo redefine as sociedades e povos numa escala hierárquica, legitimando as relações de poder e justificando a dominação. Nas ciências eurocêntricas, o ideal de raça estabelece um aparato conceitual que eleva os traços fenotípicos, em especial a cor de pele e tipos de cabelos, como elementos chaves para a diferenciação dos seres humanos. O ápice desse aparato é, sem dúvida, o racismo científico que culminou nos projetos fascistas. 23 As questões que envolvem os problemas da crítica feminista/feminina para as mulheres não-brancas foram temas dos trabalhos de ANZALDÚA (1987), BUTLER (1997), CURIEL (2002), CARNEIRO (2001) e WITTIG (2006) entre outras. 24 “Raça” é uma construção política e social. É a categoria social em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e de exclusão - ou seja, o racismo. [....] (HALL, 2003, p. 65). 25 Adota-se aqui o conceito de Quijano (1999). Eurocentrismo consiste na perspectiva de conhecimento que foi elaborado sistematicamente a partir do século XVII na Europa, como expressão e como parte do processo de eurocentralização do padrão de poder colonial/moderno/capitalista. O eurocentrismo configura nessa linha de raciocínio a matriz epistêmica de percepção e concepção do humano, da estética/arte e da literatura. 26 Nas palavras de Quijano (1999), raça é uma construção ideológica que tem tudo a ver com a história das relações de poder do capitalismo global moderno colonial/eurocentrado. (QUIJANO, 1999, p. 187). Uma das dificuldades de compreender esse conceito na atualidade está na associação com o movimento doutrinário denominado racismo cientifico26. Em parte, explica-se essa confusão pelo comportamento das ciências sociais, após a segunda guerra mundial, rejeitando proposições de diferenciação, a partir de critérios associados à aparência física ou a craniometria27. O desacolhimento aos postulados de Georges-Louis Leclerc (1707-1788), conde de Buffon, e seus seguidores à interpretação da diversidade humana, todavia, não foi capaz de redefinir os conceitos racistas assumidos como prática de vida. Nas relações intersubjetivas, a lógica conceitual na qual “a subordinação racial é essencial aos processos de desenvolvimento e progresso social e tecnológico conhecidos como modernização” (GILROY, 2001, p. 310) continua sendo a base para as relações de dominação e exclusão28 no presente século. O aspecto subordinativo da mulher na modernidade (LANDER, 2005), desta maneira, implica necessariamente a subordinação racial. Se é verdadeiro que a questão das diferenças de gênero e de sexualidade no modelo patriarcal de sociedade europeia criou os papéis sociais entre mulher e homem, tanto nos espaços públicos quanto nos privados, não é menos verdadeira a proposição do imaginário de raça como justificativa para diferenciar os espaços entre mulheres brancas e as demais não-brancas. Por esta razão, a apresentação corporal feminina é objeto de regulação social e parâmetro para comportamento entre os sexos, tanto opostos quanto similares. Dentro desse paradigma ocidental, a mulher branca, na escala hierárquica, será “sempre” inferior ao homem branco, mas superior à mulher negra (ou indígena ou muçulmana) 26 O movimento que resultou numa doutrina de raças na Europa ocidental estendeu-se de meados do século XVIII ao século XX, conhecido como racismo científico. O princípio básico dessa doutrina ancorava-se na existência de agrupamentos humanos cujos membros possuíam características físicas comuns. 27 A craniometria referida é a que tem por propósito inter-relacionar “as raças humanas” a partir das distinções anatômicas do crânio. A ideia básica é de que as conformações cranianas explicam ou justificam os comportamentos sociais dos indivíduos. Desde do século XIX, os europeus, liderados pelos Inglaterra, se utilizaram dos estudos craniométricos para implantar políticas racistas em diversas partes do mundo. A classificação nazista entre arianos e não-arianos também tem por base as distinções cranianas. No Brasil, os estudos sobre os crânios serviram de base para estudos antropológicos, políticas públicas e formação de educadores, com fortes impactos nos cursos de formação da força policial, jurídicos e criminalísticos. Para melhor compreensão ler SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 28 Como prova, podemos aludir aos movimentos sociais contra os processos de exclusão ou pensar nos grupos de pessoas discriminadas por questões de cor de pele ou por opção sexual. Alguns, inclusive ocupando posições sociais de relevância, como é o caso de jogadores e artistas de modo em geral. 27 e desempenhará papel fundamental de transmissão e de reprodução do pensamento racista/machista, porque, conforme nos ensina Gilroy (2001), as mulheres brancas são “encarregadas da reprodução da diferença étnica absoluta e da continuação de linhagens de sangue específicas” (GILROY, 2001, p. 19). Dentro da colonialidade, a noção de raça é um conceito mental (CASTRO-GÓMEZ, 2005), operando como um dispositivo gerador de identidades opostas e impossibilitadas de se comunicarem (o pensamento abissal do qual fala Santos, 2009). Para os estudos subalternos é fundamental compreendê-la. Sem isso, os argumentos para manter as condições de exclusão continuarão inalteradas e de igual modo os regimes de poder restringidos a determinadas pessoas ou grupos. A ideia de raça, como conceito mental, é ao mesmo tempo física e imaginária. Atuando nessas duas dimensões, ela dá a colonialidade do poder as condições para atuar e estabelecer o colonizado (grupos excluídos de modo geral) como o “outro da razão”, justificando o exercício de um poder disciplinar por parte do colonizador ou de seus herdeiros, como necessário a manutenção das condições naturais da vida. Esse pensamento está introjetado nas consciências das pessoas de maneira tamanha que os adjetivos de maldade, da barbárie e da incontinência são lidos como marcas “identitárias” de determinados indivíduos (os colonizados), enquanto os adjetivos de bondade, de civilidade e de racionalidade fazem-se próprios dos colonizadores. Na diferença colonial (MIGNOLO, 2003), estabelecem-se como naturais tais formulações e figurações conceituais. Tanto a classificação feita sobre os explorados quanto sobre os exploradores tem por referência os critérios hegemônicos do “patriarcado europeu e as noções europeias de sexualidade, epistemologia e espiritualidade” (GROSFOGUE, 2008 p. 122). Os não europeus escravizados ou livres são descritos como grupos homogêneos, ocultando culturas, linguagens e histórias. Além disso, são redefinidos a partir da lógica racial colonial, como seres inferiores desprovidos dos atributos de racionalidade e até mesmo de humanidade. De igual modo, o europeu é signo do saber, do conhecimento, da ética e da moral e não mais um coletivo de povos com suas culturas, línguas e formas de ser e viver. A bipolaridade estrita -europeu/não-europeu – dentro da colonialidade - serve ao eurocentrismo como paradigma de construção de materialidades significantes capaz de posicionar os sujeitos em lugares socais, políticos e culturais distintos. Pensando esse processo nos termos propostos por Butler (1997), a ideia de raça é um dizer-fazer complexo e de fluxo 28 contínuo que estabelece a condição de existência discursiva dos corpos. Para Butler (1997), o poder performativo está na capacidade que ele tem de instituir formulações práticas para o corpo e, ao mesmo tempo, dissimular e ocultar os respectivos aspectos da sua historicidade. A existência do sujeito implica, nesse sentido, as regras que possibilitam a concepção de corpo na linguagem29, na intersecção do poder disciplinador nas relações do social com o corporal. Tem-se desta forma uma construção discursiva na qual a humanidade (a literatura e a beleza) passa a ser traçada como atributo (culturais, científicos e religiosos) do europeu e de seus herdeiros. A assertiva opera de forma negativa para os delineados como não europeus. Eles “não são capazes” de produzir ciência, de fazer literatura ou mesmo de ter cultura, muito menos de ter beleza. Quando muito, se faz alusão a um tipo de conhecimento primitivo desprovido de qualquer forma de cientificidade ou associam-se as marcas corporais ao exótico ou ao prazer sexual. A partir da diferença colonial, a percepção sobre o corpo é feita na comparação do “tipo ideal” e recebe regras de conduta e comportamento, em especial sobre a sexualidade e a sensualidade. Se, inicialmente, a ideia de raça fornece os elementos fundantes para classificar e racializar parte da população mundial, de maneira que um signo hegemônico (índios, escravos, mulatas etc.) sirva para transformar as diferenças em desigualdades, na atualidade, ela (a ideia de raça) “continua organizando a diferença colonial, a periferia como natureza” (MIGNOLO, 2005, p. 34). Em relação à condição feminina negra, por exemplo, os traços fenotípicos ganham status de linguagem construtiva de estereótipos negativos sobre o corpo. No Brasil, tomando- se por referência a literatura, essa linguagem associa positividade à mulher branca e negatividade à mulher negra (mulata e preta), como já mencionado na introdução. O corpo negro ocupa, na literatura, um espaço de artigo de desejo, que se engendra no imaginário popular como uma construção mítica: a negra (mulata, preta) está em relação disjuntiva com as vicissitudes da vida cotidiana. De igual modo, o corpo feminino negro torna-se um tipo inadequado, feio e sem os atributos da beleza. Expresso em sentenças desumanizadoras, por um lado, e, por outro, colocando-o na invisibilidade, a ideia de raça se mantém, com poucas alterações, para além dos conceitos do racismo científico, em suas especificidades discriminatórias. As palavras utilizadas nas sentenças, portanto, não se reportam ao corpo 29 A bipolaridade não pode ser lida como dicotomia. Por mais que as duas realidades tenham sido pensadas de formas distintas, diversas foram as situações em que elas estiveram em contato e produziram mutualmente alterações. Isso não significa que esse contato foi capaz de eliminar os aspectos da bipolaridade, em razão da permanência da colonialidade. 29 material, palpável e visível, mas a estereótipos forjados no imaginário da colonialidade. Grande parte das imagens estereotipadas, participantes do processo de invisibilidade e desumanização do corpo feminino negro, é elaborada nos discursos da tradição literária brasileira e alimentada no cotidiano, por meio de outras formulações textuais, como é caso dos projetos eugenistas brasileiros30. Nas construções literárias, as mulheres negras participam do mundo da fantasia como bruxas malévolas ou como um corpo disponível para o sexo e as fantasias eróticas masculinas, dificilmente como heroínas, rainhas ou princesas. Nos projetos eugenistas, elas serão o símbolo da fealdade sobre o qual atua o estado através de uma ação educadora. O mito da modernidade, nesse sentido, regula de maneira naturalizada as percepções sobre a organização das sociedades e das pessoas numa forma linear, do primitivo ou moderno. Isso dá a sensação (falsa) de que aqueles que estão fora das condições de vida promovidas pelo aparato tecnológico, encontram-se em situação inferior. Essa percepção faz parte de um grande aparato instrucional, com vista a manter as condições de permanência dos detentores do poder. Por isso a separação entre os europeus e os “outros” (QUIJANO, 2005) permanece como fundamento natural das relações assimétricas de poder, na divisão do trabalho, no usufruto dos bens culturais e nas diferenças de gênero. A colonialidade continua sendo “o eixo que organizou e continua organizando a diferença colonial” (MIGNOLO, 2005, p. 34) na contemporaneidade, como uma matriz de poder invisível. Além do aspecto universal dado pela narrativa da modernidade à experiência europeia, a versão eurocêntrica do conhecimento engendra a deslocalização temporal/espacial, criando o princípio de inviabilidade do sujeito da enunciação. A isto o filósofo colombiano Santiago Castro-Gómez (2005) chama de perspectiva do “ponto zero” das filosofias eurocêntricas. O “ponto zero” é o ponto de vista que se esconde e, ocultando-se, localiza-se para além de qualquer ponto de vista. A estratégia de invisibilidade é promovida através do apagamento do sujeito da enunciação. Esse recurso permite a inserção intersubjetiva da superioridade dos colonizadores na consciência dos dominados, como nos apresenta Grosfoguel (2008): 30 Referência feita às propostas formuladas por Renato Kehl, médico psicólogo e Hernani de Irajá, artista plástico e médico sexólogo, cujos trabalhos e atuação políticas visavam indicar os meios pelos quais pudessem melhorar o corpo humano, corrigindo-lhe os defeitos com vistas a alcançar a beleza, livrando- se do mal da fealdade. Importa dizer que o feio retratado nesses trabalhos eram aqueles corpos cujas características eram diferentes daquelas. 30 Ao quebrar a ligação entre o sujeito da enunciação e o lugar epistêmico étnico- racial/sexual/de gênero, a filosofia e as ciências ocidentais conseguem gerar um mito sobre um conhecimento universal Verdadeiro que encobre, isto é, que oculta não só aquele que fala como também o lugar epistêmico geopolítico e corpo-político das estruturas de poder/conhecimento colonial, a partir do qual o sujeito se pronuncia. (GROSFOGUE, 2008, p. 119) A consequência do apagamento do sujeito da enunciação é providencial para a naturalização da epistemologia do eurocentrismo como ciência neutra e universal. Ao deslocar os conceitos do local de produção (do autor, da época e da possível funcionalidade original) a obra pode ganhar status de universal, fazendo com que as subjetividades interpretem a vida diária no medium da reflexão da tradição europeia. Esse apagamento do sujeito da enunciação também é significativo em relação aos conceitos de beleza. Ao “esconder” a identificação histórica e a cultura localizadas em determinado tempo e espaço, os valores do conhecimento eurocêntrico sobre as formas corporais e “os modos de vida” são usadas na matriz de poder, sem se dar a conhecer. Isso significa dizer que, pelo paradigma da modernidade, a beleza de sujeitos que estão situados na condição de subalternidade (subordinação racial/sexual /gênero), torna-se “impossível”. Em tais condições, o sentimento dos que se aventuram ao exercício da escrita do corpo, a partir de outras perspectivas, é inicialmente o de desconforto. Miriam Alves (1998, p. 17), no poema pés atados corpo alado, faz transparecer a condição de aprisionamento de quem vive do lado de lá do pensamento abissal. Não … Não... Não... posso mãos atadas pés acorrentados sinto todas as vontades todas humanas desumanas morais iguais desiguais adversas ou não (ALVES, 1980, p.18)31 A condição de apresamento, todavia, não é capaz de silenciar as vontades:“sinto todas as vontades”. A totalidade aqui não se refere a um conjunto de coisas, no sentido matemático, no qual se relacionariam vontades humanas e desumanas. Enunciada no poema, “vontades” 31 Fragmento do poema “pés atados” corpo alado de Miriam Alves. 31 vincula a ideia da corporeidade desimpedida de criar ou trilhar os próprios caminhos, como se verifica a seguir. Posso pensar? Posso pensar deixaram livre minha cabeça minha mente estou solto estou livre (ALVES, 1980, p.18) A corporeidade, nesta proposição, é o espaço/tempo de construção de um novo olhar sobre a mulher negra, contrapondo-se ao estereótipo da mulher-desejo “disposta” a despertar e a satisfazer os apelos sexuais. Miriam Alves constrói um eu enunciador ciente da presença do preconceito (de cor/raça/gênero), cujas lógicas socioculturais se imbricam no corpo, sem contudo, aceitá-las como legítimas. É a partir desse estado de consciência que o conceito sobre o corpo (e sobre o fazer literário) é movimentado, numa direção diferente da condição reificada na colonialidade. Plainar na bruma e buscar o movimento circundante que arrebente com esta falsa ciranda. Arrebentar uma por uma destas grades invisíveis que retêm as asas dos pássaros. Reverter todo processo. Anular tudo usando a arma da sensibilidade. Este é o sonho do poeta que ao acordar percebe que nada pode (ALVES, 1988, p. 49)32. Está no sonho, na capacidade de criar, a possibilidade da poeta sair do ergástulo e tornar possíveis os desejos e as vontades. No poema, Miriam Alves pode ser livre e criar a sua própria maneira de “anular tudo usando a arma da sensibilidade”. Contudo, ao acordar, depara- se com “a falsa ciranda” e “as grades invisíveis que retém as asas dos pássaros” da colonialidade. Uma pergunta instigante pode vir da relação antagônica entre a poeta Miriam Alves e o eu enunciador. Se se sabe da capacidade de “plainar a pluma” e “buscar o movimento circundante” por que afirma a sua total impossibilidade? Uma das explicações estaria na consciência crítica da autora: ela sabe do potencial da escrita, mas não ignora as situações de complexidade que a rodeiam. É necessário ir além das propostas originadas no eurocentrismo para intervir no aqui e agora. Miriam Alves tece, então, uma proposta de discurso liminar (MIGNOLO, 2003), a partir de experiência subalterna, de mulher e negra. 32 In: Cadernos Negros. Poemas. Quilombhoje. Edição dos Autores.1988. 32 O local intersticial de Miriam Alves favorece a exibição de uma alternativa à bipolaridade do eurocentrismo, num processo de negociação complexa (BHABHA, 1998, p. 20). Ao mesmo tempo compreendendo as diferenças de gênero e de sexualidade no modelo patriarcal (sociedade europeia), como criadores de papéis sociais entre mulher e homem, tem o discernimento sobre o imaginário de raça como justificativa para diferenciar os espaços entre as mulheres brancas e as demais não-brancas e, em especial, a mulher negra no Brasil. Hoje estão tentando nos reservar a cozinha e portas do fundo da literatura. A noção de propriedade que vem do século passado está presente nessa sociedade comunicativa como um todo. “O que é de preto não tem dono é para todo mundo por a mão”. O que é de branco é propriedade privada”. Qualquer semelhança com a Casa Grande e Senzala, não é mera coincidência: é herança histórica (ALVES, 1988, p. 49) A herdade da noção de propriedade foi e continua sendo usada como “indicativo de posição social subalterna” (GOMES, 2006, p. 261). O corpo negro é marca da “referência negra” e por isso é comum se dizer que determinadas profissões ou situações sociais são próprias de mulheres negras, especialmente aquelas ligadas às atividades manuais e de menor prestígio social, ratificando a umbrática hierarquia do eurocentrismo. Não é por acaso, no senso comum, se dizer existirem mulheres que são para casar e ter filhos e outras para o prazer. As mulheres negras fazem parte do segundo grupo porque, como diz Hooks (1995), no universo metonímico do colonizador, estão disponíveis para saciar as taras masculinas: “[...] as negras têm sido historicamente vistas como encarnação de uma 'perigosa' natureza feminina que deve ser governada. Mais do que qualquer mulher [...], as negras têm sido consideradas como só corpo sem mente. [...]” (HOOKS, 1995, p. 469). À estereotipia corporal histórica, acrescenta-se a ideologia do branqueamento da população brasileira. Não convém aqui nos determos na política nacional da branqueação. Outros, a exemplo de Petrucelli (1996), Giarola (2010) e Murali (2007) já o fizeram com magistral competência. É suficiente compreender a valorização do padrão branco e europeu da beleza como um mecanismo político, cultural e teórico como “justificativa” da miscigenação. As feições do rosto, a textura do cabelo e a tonalidade da epiderme europeus são utilizados para estabelecer um padrão de beleza correspondentes a tipos ideais da brancura, consolidando a transformação corporal como recurso para fazer transcender a nação da condição de população majoritariamente negra para outra livre das influências afrodescendentes. 33 Notável é, nesse sentido, a força do discurso sobre a miscigenação no Brasil. Miscigenar é procedimento de alta complexidade que mescla, nas características físicas, diversos conceitos, concepções estéticas, valores morais e religiosos. Além disso, serve de fórmula redentora na nação. Acredita-se que “as raças inferiores”, através da mestiçagem, em pouco tempo deixariam de existir, surgindo então um tipo ideal de homem e mulher brasileiros. As expectativas não se confirmam no plano material, contudo o ideal de beleza, fruto da ideologia do branqueamento, interferem no sentimento de percepção sobre a realidade corporal brasileira de forma decisiva. Com poucas alterações, a valorização de tipos ideais continua a ditar as regras de beleza. Podemos verificar isso nas revistas de moda, no grupo de modelos comumente destacados nas passarelas, entre outros veículos. Nada, porém, se compara ao sentimento de necessidade de correção corporal que paira as mentes femininas.33 Muitas são as mulheres brasileiras que se sentem desconfortáveis com a própria beleza e estão dispostas a recorrer a cirurgias de correção estética. Julgando pelos dados da SPCP - Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica34, o ideal de beleza clássica, defendida pelas propostas eugenistas no Brasil, continua atualizando a ideologia do branqueamento, sem se deixar conhecer. Para isso, ao longo dos anos, intelectualmente, apostou-se na ideia de igualdade entre as pessoas. A condição de ser “igual a” tem sido a grande aposta das classes dominantes para estabelecer a homogeneidade da nação e para manter os paradigmas de organização social. Do ponto de vista jurídico e legal, o agenciamento de subjetividades no Brasil passa necessariamente pela personificação do imaginário patriarcal de aprisionamento do corpo nas teias do estereótipo, em intersecção com o sentimento acurado do mito da igualdade, compartilhados tanto por quem oprime, quanto por quem é oprimido. Em pleno período escravocrata, a constituição trazia a igualdade entre os indivíduos formadores da sociedade brasileira, como um princípio: “A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um” (Art. 179, inciso XIII, 1824). O princípio da similaridade também fez parte da constituição republicana de 1891, bem como da constituição de 1934. “Todos são iguaes perante a lei.” (Art. 72 § 2º); “Todos são 33 Dados da International Society of Aesthetic Plastic Surgery publicados em 2013 mostram que o Brasil ocupa o primeiro lugar em intervenções cirurgia com fins estéticos. Desse total, a rinoplastia e o transplante do cabelo estão entre os procedimentos mais realizados. 34 Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2015. 34 iguaes perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivos de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos paes, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideas políticas.” (Art. 113, § 6º). A aparente contradição entre a legislação e o modelo escravista, explica, de forma exemplar, a atuação da colonialidade “que proclama uma igualdade de essência entre os homens, mas consegue preservar a sua lógica convidando os subhomens a se humanizarem através do tipo de humanidade ocidental que ela encarna” (FANON, 1968, p. 135). A preservação da lógica da colonialidade, como diz Fanon (1968), é manifesta em duas frentes: nega a existência das diferenças de raça/cor (ou de gênero), ao mesmo tempo em que se utiliza da diversidade para produzir a desigualdade responsável por promover a exclusão. Na proposta de negação da raça, essa lógica prega a existência de uma única raça humana como um mito necessário à manutenção da nação, família ou da integridade da literatura. É justamente nesse recurso, da condição humana de igualdade, que subjazem os discursos contrapostos às ações afirmativas destinadas a reverter os processos discriminatórios de raça, de gênero e de sexo35. No plano literário, a miscigenação organiza o mito da igualdade na conexão corporal, como forma de eliminar os possíveis conflitos sociais e raciais. A mestiçagem faz da relação entre dominados e dominantes uma quimera, atualizando as regras da colonialidade e silenciando as vozes discordantes. A literatura, com raríssimas exceções, nesse sentido, mantém teorias, conceitos e estereótipos com modificações conformadas aos ambientes políticos e culturais brasileiros, mas se arroga acima destas questões. Como se verá no próximo tópico, a subordinação racial (cor e gênero) implica, por um lado, um racismo epistêmico, por outro, um amplo programa de controle sobre os corpos. 1.2. As interligações entre corpo, raça e gênero na formação da literatura brasileira Desde a sua gênese, a literatura brasileira é assumida por intelectuais, políticos e literatos como bandeira da construção da nação. “Construir a nação significava constituir uma literatura própria” (SCHMIDT, 2006, p. 400). A literatura seria, de modo peculiar, o retrato e espelho das características distintivas dos brasileiros. Estabelecer a identidade nacional, 35 O vigor dessa variável pode ser conhecido nos discursos machistas contrapostos às ações afirmativas de igualdades de gênero, de raça e de opção sexual nos mais variados espaços de lutas por direitos civis e sociais. O argumento é o mesmo nas distintas épocas: permitir o direito à diferença de raça/cor, de gênero ou sexo resultará em destruição da família ou da sociedade como um todo. 35 todavia, não se limitava ao exercício descritivo das peculiaridades históricas, geográficas e culturais brasileira. Impunha-se como missão normativa de “embranquecimento” da população, lendo as diferenças fenotípicas como defeitos, características negativas e comprometedoras da visão presente da sociedade, mas também da projeção de futuro da nação. O corpo (simbologias e estereótipos) lido e figurado “na economia do prazer e do desejo como na economia do discurso, da dominação e do poder” (BHABHA, 1998, p.107), serve de base para discussões e formulações teóricas em diversas frentes de pensamento, todavia com a mesma base epistemológica: o ajuntamento sexual dos corpos, de raças e etnias diferentes é responsável pelo “dissolvimento” das assimetrias e desigualdades e o florescimento do homem ideal brasileiro. A grande questão nesse processo de construção da identidade nacional e, por consequência, da literatura não consente, necessariamente, em especificar os elementos constituintes, mas em justificá-los diante das “negativas claras” sobre a “inabilidade” e “inaptidão” dos negros, escravizados ou livres, e também dos indígenas, para as condições e exigências da vida moderna. O conflito está entre o pensamento colonial iconizado no mito da modernidade vigente e na presença do negro, das culturas africanas e indígenas (mesmo que em condições de opressão), como indicadores das diferenças entre a colônia e a metrópole. Se tomado apenas enquanto elemento cultural, como anotou Prado Jr (2011), africanos escravizados e indígenas são responsáveis pelo “surgimento de uma sociedade inteiramente original” (PRADO JR., 2011 p. 28) no Brasil. Contudo, os postulados do racismo científico e a herança escravocrata deixavam o país na situação de “ausências” - quase que completa -, dos elementos considerados como necessários à “evolução” e ao “progresso”, imprescindíveis à consolidação de uma nação livre. Eis a razão do projeto de branqueamento. Nos primórdios da literatura brasileira, a miscigenação como proposta de diluição das “raças inferiores” conserva, com as devidas ressignificações, o monitoramento corporal exercido pela coroa e a pela igreja católica sobre os brasileiros através do Santo Ofício Português. A justiça eclesiástica portuguesa, preocupada em limitar a proliferação de ideias constatadoras dos dogmas católicos, dedicava-se em estabelecer um controle sobre os corpos, em especial o feminino, objetivando regular as práticas sexuais em situações ou atos contrários aos preceitos cristãos. Del Priore (1999) diz ser o rígido programa de monitorização sobre o corpo feminino motivado pela crença na qual a mulher é agente de satanás e o corpo feminino espaço de disputa 36 entre Deus e o diabo. Médicos e padres concordam ser o corpo da mulher “uma abominável roupagem da alma, um perigoso território, um lugar de tentação, voltado para a putrefação, destinado aos vermes e excrementos”: Era por comparação com as qualidades masculinas que se podiam proclamar viciosas as das mulheres. Mas era, sobretudo, em relação ao tipo ideal da espécie que os seus defeitos apareciam como uma irremediável doença. A mulher, e por extensão seu corpo, podia ser definida como um ser cujas paixões detestáveis condenavam a uma condição de inferioridade tanto no plano social, quanto moral. A mulher tinha que ser salva dela mesma e só o conseguia sob condição de viver sob normas imperativas (DEL PRIORI, 1999, p. 2). As dicotomias advindas dessas definições determinam as relações de gênero e de raça. No quesito sexo, a mulher de modo geral, é considerada objeto de posse. As diferenças do usufruto masculino, para com as mulheres brancas e negras, determinam as respectivas funções sociais desses sujeitos no mundo. Tais formulações dicotomizadas de controle da vida cotidiana, cerceando as práticas sexuais, a partir das normas do Santo Ofício, ultrapassaram os limites cronológicos da fase colonial, motivando novas maneiras de domesticar e disciplinar corpos, tendo na literatura um vasto campo para proliferação. Neste novo contexto, a mestiçagem é a simbiose entre nação e raça, ocupando-se de produzir um conceito de nação “pela estética do corpo e do caráter do indivíduo” (FLORES, 2000, p. 93), com propósitos claros de embranquecer a população, eliminando os elementos considerados degenerados. As divergências quanto aos critérios para se determinar a literatura brasileira, entretanto, convergem para o princípio de exclusão do direito de produção às mulheres, negros e indígenas, mas mantendo-os como sujeitos representados e interpretados a partir dos estereótipos da bipolaridade do eurocentrismo. As duas correntes que polarizaram a indagação dos elementos distintivos da literatura brasileira em relação à de Portugal, ocidentalismo e indigenismo, figuram como tentativas teóricas de interpretação das diferenças raciais brasileiras. No caso do indigenismo, o índio é descrito por uma explicação determinista de origem das raças nacionais, o ponto inicial, sem a mistura; um grupo imaginário com o qual o português se uniu para formar a sociedade brasileira sem a presença do sangue negro. Marcando-se o ponto inicial a partir dos indígenas, faz-se possível promover a construção de uma imagem positiva da população brasileira. O maior representante dessa corrente é José de Alencar. Na proposta ocidentalista representada por Nabuco (1872), com a qual afina Machado 37 de Assis, há a recusa ao ideal de nação proposto por Alencar: “uma literatura, inspirada pela vida errante das tribos primitivas, que se servisse amplamente de seu rude vocabulário, que não nos descrevesse senão os seus costumes, seria bem uma literatura tupi ou guarani, mas não a brasileira” (NABUCO, 1872, p.11 apud DRUMUND, 2010, p. 9). De igual modo, pensa Machado de Assis (2005): “é certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele procedeu influxo algum e isso basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos de nossa personalidade literária (ASSIS, 2005, p. 24). O índio é recusado pela proposta de Nabuco, não somente porque está em relação disjuntiva com características da modernidade, mas, especialmente, por ser a expressão de uma negação da “europeidade”, conforme nos apresenta Mignolo (2005). A negação da Europa não foi, nem na América hispânica, nem na Anglo- saxônica, a negação da europeidade, já que em ambos os casos, e em todo o impulso da consciência criolla branca, tratava-se de serem americanos sem deixarem de ser europeus; de serem americanos, mas diferentes dos ameríndios e da população afro-americana (MIGNOLO, 2005, p. 41). Na concepção representada por Nabuco, a condição de humanidade reside do outro lado do Atlântico, sendo descabido pensar nossa literatura desligada da de Portugal e das influências/dependências das nações mais industrializadas da Europa, em especial, da França. A nossa imaginação não pode deixar de ser européia, isto é, de ser humana; ela não pára na Primeira Missa no Brasil, para continuar daí recompondo as tradições dos selvagens que guarneciam as nossas praias no momento da descoberta; segue pelas civilizações todas da humanidade, como a dos europeus com quem temos o mesmo fundo comum de língua, religião, arte, direito e poesia, os mesmos séculos de civilização acumulada, e, portanto, desde que haja um raio de cultura, a mesma imaginação histórica. (NABUCO, 1981, p.44) Mesmo que Nabuco politicamente estivesse ligado ao movimento abolicionista e Alencar fosse contra a abolição, as duas formas de imaginar a formação da literatura brasileira articulam dois princípios do mito da modernidade: a ideia de raça e da diferença colonial. No caso de Alencar, a nacionalidade e a originalidade da literatura brasileira estão ligadas a uma ficção que, embora nomeada indigenista, está assentada no projeto de supremacia branca, pois não se volta para o conhecimento das condições de vida dos indígenas, ou mesmo de tê-los como referência enunciativa para a sua produção literária. Trata-se de construir uma imagem de origem, uma vez que a nação brasileira é fruto da mistura entre o português e o índio, nas condições de vida da metrópole, especialmente naquela ligada ao modelo europeu. No 38 "casamento" entre o nativo e o europeu colonizador há a fusão “perfeita” entre a natureza e a cultura, entre a pureza e o conhecimento, com a supremacia da cultura sobre a natureza, do colonizar sobre o colonizado. A sociedade brasileira, por essa narrativa, é pensada com total apagamento da presença dos povos africanos. O ocidentalismo, por sua vez, é calcado na total ausência dos brasileiros de condições para produzir conhecimento, até mesmo para se organizar enquanto nação. Os não-europeus, pela lógica do pensamento colonial, não somente estão estabelecidos com o estigma de inferioridade, mas, sobretudo, com o da total ausência de condições de sair da situação na qual se encontram e atingir a “humanidade” referenciada na experiência europeia. A visão da proposta ocidental assume o racismo epistêmico como resposta à indagação sobre os elementos constituintes da literatura brasileira (MALDONADO-TORRES, 2008)36. Não é difícil compreender, portanto, em razão das influências europeias, as dificuldades encontradas pelos letrados, políticos e intelectuais para estabelecer uma proposição conceitual de literatura onde negros, indígenas e mestiços e mulheres figurassem como ponto de difusão de características positivas, uma vez que tais grupos estão, para o pensamento da época, nas posições mais baixas na escala dos seres. As oposições teóricas das duas correntes (indigenismo/ocidentalismo), desta forma, tem como fio condutor a epistemologia da colonialidade. Ou seja, nas propostas aceitas como válidas para formação da literatura nacional, convergem a proposta da elite branca de eliminação das populações negras do Brasil (política de branqueamento da nação) e de inadequação de condições para evolução. Importa mencionar que concomitante a essas discussões existiam aquelas específicas da historiografia literária. De um lado estavam os que assumiam a nacionalidade como critério para estabelecer a historiografia da literatura brasileira. Para ser brasileira, nessa concepção, a literatura deveria ser a expressão “da realidade americana”, especialmente, aquela imaginada e/ou ficcionalizada. Um dos expoentes dessa vertente é Joaquim Norberto37. Do outro lado, estavam os defensores do critério da língua para estabelecer a adjetivação da literatura nacional. A literatura brasileira para esta corrente é um braço da portuguesa, em razão da língua na qual 36“O racismo epistêmico descura a capacidade epistêmica de certos grupos de pessoas. Pode basear-se metafísica ou na ontologia, mas os resultados acabam por ser os mesmos: evitar reconhecer os outros como seres inteiramente humanos” (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 79). 37Joaquim Norberto de Souza e Silva é autor de Brasileiras Celebres (1862), Bosquejo da História da Poesia Brasileira (1841) e História da Conjuração Mineira (1873) entre outros. 39 é escrita. General Abreu e Lima38 é um dos mais contundentes defensores dessa linha de pensamento. Embora divergindo quanto ao critério, as defesas e embates políticos em volta da questão da historicidade literária e dos elementos distintivos da nacionalidade brasileira participa, segundo Moreira (2010, p.70), da construção de um mito de origem, “marcando seu ponto inicial e narrando sua trajetória num espaço definido”. Nessa narrativa mítica, a condição de inferioridade dos negros (também indígenas e mestiços) mesmo divergindo quanto à forma, está presente nas propostas fundantes da discussão sobre a literatura nacional. No indigenismo, impera o apagamento da presença negra em terras brasileiras. No ocidentalismo, há desumanização dos escravizados ou não, bem como dos indígenas. Nas historiografias literárias, explicadas a partir da diferença colonial, a suposta superioridade dos europeus e/ou de seus descendentes é razão suficiente para promover a exclusão de grande parte da sociedade brasileira como sujeitos capazes de conhecimento, criatividade ou de elementos que resultassem em constitutivos de uma literatura nacional. Nessas perspectivas de raciocínio, por razões óbvias, a literatura brasileira e de igual modo a historiografia teorizadas e/ou imaginadas assumem como ícone representativa o homem branco como “único” capaz de produzir literatura nacional, excluindo desse processo os negros e os indígenas de ambos os sexos. Em relação à supressão feminina do fazer literário, a explicação, conforme Soihet (2006), dá-se pela lógica patriarcal da divisão rígida dos papéis e atuação dos gêneros nas oligarquias que assumiram o poder no Brasil após a independência de Portugal: “O masculino na órbita pública e o feminino no âmbito privado” (SOIHET, 2006, p. 377). De fato, a força do patriarcado limitava a ação explicita feminina (DEL PRIORE, 2003). Contudo, diversas pesquisas recentes, a exemplo de Muzart (1999 e 2004)39, Almeida (2007)40, mostram que a ausência de mulheres como autoras, tanto no período colonial quanto no período denominado Romantismo, não está em razão da ausência de suas produções ou 38Autor de Compêndio de História do Brasil (1843) e O Socialismo (1855). Para Abreu e Lima, não havia condições para literatura Brasileira em razão do grande número de escravos e da herança portuguesa. Essas duas condições colocavam o país na condição de atraso intelectual em relação aos países de colonização espanhola. 39 Muzart(org), Zahidé Lupinacci. Escritoras brasileiras do século XIX. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: UNISC, 1999. 40 ALMEIDA, Júlia Lopes de. Memórias de Marta: romance. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul:EDUNISC, 2007. 40 qualidade delas. Pelo contrário, verifica-se com clareza o quanto o cânone literário é fruto da negação da legitimidade autoral não autorizada pela narrativa falocêntrica. No que se refere ao elemento raça, negros/negras, especialmente, serão interpretados pela lógica da bipolaridade do eurocentrismo: afrodescendentes, vistos a partir dos aspectos deterministas da geologia e biologia europeia, não estavam nas mesmas “condições de humanidade” das demais raças. Como exemplo desse tratamento podemos recorrer a História da Literatura Brasileira de Sílvio Romero41”. Para Romero (1888) a literatura, enquanto produto intelectual, estava distante das condições “dos homens e mulheres de cor”. Em Romero temos um paradoxo típico do comportamento regulado pela diferença colonial. Uma coisa é ser contra a escravidão outra, bem diferente, é aceitar negros como capazes de produzir literatura. Para tanto é antes de tudo mister mostrar as relações de nossa vida intellectual com a história política, social e econômica da nação; será preciso deixar vêr como o descobridor, o colonizador, o implantador da nova ordem de cousas, o portuguez em summa, foi-se transformando ao contacto do indio, do negro, da natureza americana, e como, ajudado por tudo isso e pelo concurso de idéas estrangeiras, se foi apparelhando o brazileiro, tal qual elle é desde já e ainda mais característico se tornará no futuro. (ROMERO, 1888, p. 9)42 Nesse fragmento, aparece com clareza, a defesa e crença de Romero na mestiçagem, mas não numa mestiçagem aleatória; o branco colonizador é o elemento superior capaz de colocar “ordem no caos”. O descobridor é quem “se torna brasileiro”, pelas influências dos negros, índios e o do meio ambiente, mas não somente isso: existem, dentre esses brasileiros, alguns melhores, de “raça pura”. Tal pensamento ratifica-se nas descrições de grupos ou autores de sua historiografia, como se vê ao quando escreve sobre os Andradas e Silvas Lisboas. Os Andradas, como os Silvas Lisboas, eram d'esses brancos puros, apenas mestiçados moralmente, que representam essa classe principal, o centro de acção fundamental, a élite de nossa sociedade no que ella tem de superior: a burguezia limpa, filha de antigos negociantes portuguezes (ROMERO,1888, p. 655) Talvez Romero, tenha sido no seu tempo, quem mais tenha conseguido, num esforço teórico, esboçar uma reação ao desejo de europeizar o Brasil, percebendo “coisas” tipicamente 41 O autor Comprehende literatura com todas “as manifestações da intelligencia de um povo: —política, economia, arte, creações populares, sciencias... e não, como era de costume suppor-se no Brazil, somente as intituladas bellas-letras, que afinal cifravam-se exclusivamente na poesia” !..(ROMERO, 1888, p. 12). 42 Ortografia conforme original. 41 brasileiras, a exemplo do nosso processo de liberação escravocrata43, desconhecido mesmo por quem se colocava na frente política da abolição. De igual maneira, é singular na forma de perceber e organizar as escolas literárias e períodos, impingindo um olhar tipicamente nacional e nacionalista. Existem, todavia, alguns, poréns. Preso ao “positivismo philosophico francez, o naturalismo litterario da mesma procedência, a crítica realista allemã e o transformismo darwiniano” (ROMERO, 1888, p. 12), como crítico literário, Romero teve grandes dificuldades, por exemplo, para fazer a leitura de Machado de Assis. E isso não estava somente ligado ao entendimento da forma machadiana de escrever, mas, especificamente, em não saber administrar a contrariedade da regra biológica naturalista representada por Machado. Parece haver em Romero aquele desejo de comprovar no negro (ou mestiço) as características das supostas inferioridades tão em voga no pensamento da época. O estilo de Machado de Assis, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, e sua índole psicológica indecisa. (…) Sente- se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente, do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da linguagem (ROMERO, 1888, p. 9) Romero equivoca-se na sua análise sobre Machado. E o sabemos porque as produções machadianas ocupam lugar de privilégio na literatura brasileira, sendo considerado uns dos maiores escritores nacionais, com projeção internacional. Mas o posicionamento sobre as inaptidões dos negros (do índio) para produção de literatura nacional brasileira permaneceu sendo uma variável constante, naturalizando, se não a ausência de escritores negros no rol dos autores nacionais44, o apagamento de suas referências afrodescendentes. Em relação à produção de mulheres negras, todavia, a situação tem sido bem diferente: 43 Na introdução de História da Literatura Brasileira (1888) Romero faz apontamentos claros em relação a sua visão sobre esse processo de libertação, num lapso de 300 anos, cujo teor não se pode simplesmente ser desmerecido em razão dessa “contradição”. Diz ele que libertação da raça negra foi feita pelo povo brasileiro não por este ou aquele ser indicado como responsável por tal gesto (Ver introdução – p XIV a XIX) 44 No panorama da literatura nos séculos XVIII, XIX e primeira metade do século XX autores como Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), José do Patrocínio (1853-1905) e Afonso Henriques de Lima Barreto (1891-1922), tiveram suas condições de origem e pertencimento embranquecidas. Outros, ainda, mesmo aparecendo na lista dos autores nacionais recebem tratamento superficial. É o caso de Lino Guedes (1906-1951), Solano Trindade (1908-1974), Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814), Luís Gama (1830-1882) e João da Cruz e Sousa (1861 -1898). 42 mesmo havendo um bom texto literário, as limitações oriundas das condições externas antecipam julgamentos negativos sobre suas produções. Nomes como o de Maria Firmina dos Reis, autora de Úrsula, atribuindo aos escravos participação importante no enredo ou de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) estão à margem da historiografia hegemônica e invisibilizados nos espaços institucionais. O caso de Carolina é exemplar. “Quarto de Despejo” é traduzido em 16 idiomas e, nos Estados Unidos, continua sendo reeditado com vários textos teóricos sobre a autora. Mas no Brasil, a autora negra não corresponde ao ideal a ser abraçado pelo cânone. Para Oliveira (2014, s/p), uma das estudiosas da escritora, o descarte de sua obra não diz respeito à qualidade literária, mas à condição “de mulher negra, semialfabetizada, mãe solteira e moradora de periferia”. A afirmação de Oliveira (2014) é facilmente comprovada se comparamos o olhar da crítica, especialmente a acadêmica, em relação à Clarice Lispector e à Carolina, próximas no tempo. As oportunidades editorais de ambas, também, são distintas: enquanto a primeira pode se expressar em diversos gêneros literários, a segunda, não conseguiu ir além de Quarto de Despejo, sendo interditada, para contos, poemas ou peças de teatro, ainda que os tenha produzidos. Desta forma, pode-se compreender que o estabelecimento tanto das obras quanto das metalinguagens literárias no Brasil é uma performance discursiva, com muitas nuances, profundamente marcada por um paradoxo: o desejo da nacionalidade e a aproximação da literatura nacional aos modelos europeus. Os textos e autores participantes do cânone resulta de um conceito de literatura excludente, tanto em relação aos que podem fazer literatura como o que se define por literatura. As formulações explicativas e normativas estão fortemente comprometidas com crenças, valores e normas socioculturais hierarquizantes, herdeiras do escravismo e da ideia de raça do eurocentrismo. 1.3. A consciência limiar e deslocamento do locus geopolítico da enunciação Às narrativas hegemônicas sobre a literatura, como privilégio dos homens, e preferência crítica pela mulher branca, agregam-se as características da sociedade brasileira, profundamente pautada pela lógica do patriarcado: imaginá