MARIA ALDA BARBOSA CABREIRA A REPRESENTAÇÃO DE TIRADENTES NA NUMISMÁTICA E NA FILATELIA ASSIS 2019 MARIA ALDA BARBOSA CABREIRA A REPRESENTAÇÃO DE TIRADENTES NA NUMISMÁTICA E NA FILATELIA Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para obtenção do título de Doutora em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). Orientador: Dr. André Figueiredo Rodrigues ASSIS 2019 Dedico este trabalho aos meus pais, João e Audália (in memorian); aos meus filhos, Eduardo, Ricardo e Renato; às minhas noras, Gisele e Bárbara; aos meus netos, Lucas, Heloisa e Diego; e ao Aparecido, companheiro. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pela oportunidade à vida. Aos meus pais pela oportunidade da concepção e pela dedicação em me educarem e me fazerem gente. Aos meus avós, sou muito grata. Aos meus filhos, minha vida e continuidade, amo vocês incondicionalmente. Aos netos, minha vida e alegria. Ao companheiro, pelo tempo e pela luta. Às noras, “filhas” amadas. Ao Prof. Dr. André Figueiredo Rodrigues, grandioso e competente orientador, de inteligência e sabedoria extraordinárias, pelos ensinamentos e humanização. À Isabel Cristina Santos de Oliveira Rodrigues pelo apoio e amizade. À Profa. Dra. Lucia Helena Oliveira Silva pelo carinho dispensado, minha gratidão. Ao Prof. Dr. José Otávio Aguiar pelos importantes comentários no exame de qualificação e na defesa, e pela amizade construída. Aos Professores Dr. Jorge Miklos e Dra. Eliane Veiga Porto pelos comentários e ensinamentos na defesa de doutoramento. À Direção e aos Professores da UNESP-Assis, pelo tratamento carinhoso para com os alunos e pelo empenho em manterem a qualidade do Ensino e da Pesquisa na Instituição. Aos funcionários da FLC-Assis pela dedicação dispensada aos alunos. À Direção e aos professores e funcionários da FATEC de Garça. Aos colegas de curso de Pós-Graduação pela convivência e apoio, em especial ao Charles Nascimento de Sá e ao Augusto Henrique Assis Resende. Aos professores dos ensinos Fundamental e Médio, da Graduação e do Mestrado pela formação e incentivo à continuidade de meus estudos. Aos conterrâneos paulojacintenses (de Paulo Jacinto, no Estado de Alagoas), pelos maravilhosos momentos de aprendizado e convivência, lembranças eternas. CABREIRA, Maria Alda Barbosa. A representação de Tiradentes na numismática e na filatelia. 2019. 152 f. Tese (Doutorado em História). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2019. RESUMO Diversos personagens da história do Brasil tiveram suas “representações faciais” ou “alguns de seus feitos heroicos” estampados no dinheiro e no selo postal brasileiro. Dentre os personagens selecionados, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, conhecido pelo seu apelido de Tiradentes, está entre as celebridades escolhidas pelo governo federal para ilustrar algumas de nossas moedas e cédula e também alguns de nossos selos postais. Assim sendo, é propósito desta Tese analisar as representações que Tiradentes recebeu tanto da numismática quanto da filatelia. Para isto, o texto está dividido em três capítulos. No primeiro analisam-se a sua trajetória de vida, o seu envolvimento no movimento da Inconfidência Mineira e a construção simbólica a que foi submetido para ser o herói da pátria. No segundo capítulo, analisamos a representação e a apropriação de Tiradentes no meio circulante, discutindo-se a aparição e a representação de sua imagem em duas moedas e em uma cédula de dinheiro. No terceiro capítulo, estudamos a imagem de Tiradentes na filatelia, recuperando-se a sua imagem em três momentos distintos, mas não conflitantes: em 1948, 1992 e 2008. Palavras-chave: Tiradentes. Representação. Numismática. Filatelia. Dinheiro. Selo Postal. CABREIRA, Maria Alda Barbosa. The representation of Tiradentes in numismatics and philately. 2019. 152 f. Thesis (History Doctor Degree). – São Paulo State University (UNESP), Faculty of Sciences and Languages, Assis, 2019. ABSTRACT Several characters in the Brazil history had their “facial representations” or “some of their heroic deeds” stamped on the money and the Brazilian postage stamp. Among the selected characters, Joaquim José da Silva Xavier, known by his nickname Tiradentes, is among the celebrities chosen by the federal government to illustrate some of our coins and money bank note and also some of our postage stamps. Thus, it is the purpose of this thesis to analyze the representations that Tiradentes received from both numismatics and philately. For this, the text is divided into three chapters. The first one analyzes his life trajectory, his involvement in the movement of the Inconfidência Mineira and the symbolic construction to which he was submitted to be the hero of the country. In the second chapter, we analyze the representation and appropriation of Tiradentes in the circulating medium, discussing the appearance and the representation of its image in two currencies and in a money bank note. In the third chapter, we studied the image of Tiradentes in philately, recovering its image in three distinct but not conflicting moments: in 1948, 1992 and 2008. Keyword: Tiradentes. Representation. Numismatics. Philately. Money. Postage Stamp. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 Antônio Parreiras – A jornada dos mártires (1928) 14 Figura 2 Francisco Andrade – Tiradentes (1926) 18 Figura 3 Coluna Saldanha Marinho 69 Figura 4 Coluna Saldanha Marinho, em foto de 1890 69 Figura 5 Monumento a Tiradentes em Ouro Preto 70 Figura 6 Detalhe da Estátua de Tiradentes no Monumento em sua homenagem em Ouro Preto 71 Figuras 7 a 16 Cédulas da série Vultos nacionais da história do Brasil (1948 a 1973) 86-88 Figura 17 Efígie de Tiradentes na cédula de cinco mil Cruzeiros (1963-1974) 90 Figura 18 Tiradentes no reverso da cédula de cinco mil Cruzeiros 914 Figura 19 Rafael Falco – Tiradentes ante o carrasco (1951) 92 Figuras 20 e 21 Alferes Joaquim José da Silva Xavier 93 Figura 22 Tiradentes, reproduzido no Plutarco escolar brasileiro 97 Figura 23 Angelo Agostini – Alegoria ao dia de Tiradentes (1890) 100 Figura 24 Moeda comemorativa alusiva a Tiradentes (1992-1994) 101 Figura 25 Décio Vilares – Tiradentes (1890) 102 Figura 26 Décio Vilares – Tiradentes 105 Figuras 27 a 31 Moedas circulantes da segunda série de Real (1997-...) 107 Figura 32 Moeda de 1 centavo de Real (1997-2004) 107 Figura 33 Moeda circulantes de 5 centavos de Real alusiva à Tiradentes (1997-...) 108 Figura 34 Penny Black (1840) 114 Figuras 35 a 37 Selos Olhos de Boi (1843-1844) 116 Figura 38 Selo Tiradentes (1948) 118 Figura 39 Aurélio de Figueiredo – Martírio de Tiradentes (1893) 120 Figuras 40 a 46 Série postal Vultos célebres da história do Brasil (1963- 1966) 122 Figura 47 Tiradentes na série Vultos célebres da História do Brasil 124 Figura 48 Tiradentes: desenho de Angelo Agostini e selo (1963- 1966) 125 Figura 49 Tiradentes no bloco comemorativo ao seu bicentenário (1992) 127 Figura 50 Tiradentes no selo do bloco de seu bicentenário 127 Figura 51 Bruno Giorgi – Tiradentes 129 Figura 52 Tiradentes no Panteão da Pátria e da Liberdade 130 Figura 53 Livro de Aço constante no Panteão da Pátria e da Liberdade 131 Figura 54 Página com a inscrição do nome de Tiradentes no Livro de Aço do Panteão da Pátria e da Liberdade 132 Figura 55 Folha de selos Heróis da pátria (2008) 134 Figura 56 Selo Tiradentes, da folha de selos Heróis da pátria 135 Figura 57 Cartão postal com o selo Tiradentes, da folha Heróis da pátria 138 SUMÁRIO Introdução A pesquisa: referenciais temáticos 12 Premissas teóricas • A história e a memória 21 • O herói na história 28 • A imagem como documento 35 1 – Tiradentes: o homem, a história e a construção simbólica da nação Preâmbulo 46 A trajetória do alferes Joaquim José da Silva Xavier 47 Tiradentes e a Inconfidência Mineira 56 Tiradentes no panteão da pátria 64 O culto de Tiradentes como herói em Minas Gerais 66 O culto cívico de Tiradentes 72 2 – Tiradentes e a numismática: o herói no meio circulante A numismática como objeto de estudo da história 82 A representação de Tiradentes no dinheiro 84 • Tiradentes na série Vultos Nacionais da História do Brasil (1948-1973) 84 • Tiradentes na cédula de cinco mil Cruzeiros (1963-1974) 89 • Tiradentes na moeda comemorativa de cinco mil Cruzeiros (1992) 101 • Tiradentes na moeda de cinco centavos de Real (1997-...) 106 3 – Tiradentes e a filatelia: o herói em miniatura Os selos postais como objeto de estudo da história 111 Tiradentes nos selos postais 117 • Tiradentes (1948): a imagem monumental 117 • Tiradentes entre os Vultos célebres da história do Brasil (1963-1966) 121 • Bicentenário de Tiradentes (1992) 126 • Tiradentes na série Heróis da pátria (2008) 132 Considerações Finais 139 Referências 142 12 INTRODUÇÃO A pesquisa: referenciais temáticos A tese tem o objetivo de historiar na filatelia e na numismática as representações imagéticas do alferes Joaquim José da Silva Xavier, conhecido pelo apelido de Tiradentes e tido pela memória, tanto a popular quanto a oficial, como o maior de todos os heróis brasileiros. A aceitação de Tiradentes como herói, já iniciada nos últimos anos do Império, viu com a Proclamação da República sua imagem cair na simpatia popular. Como libertário, republicano e mártir, construíram-se à sua imagem traços nazarenos. Sua figura oficial, retratada no final do século XIX, consolidava a formulação de uma concepção política dos adeptos do positivismo de Augusto Comte, que terminaram colaborando de maneira decisiva na Proclamação da República.1 E, somente com ela, a República, Tiradentes incorporou-se à representação pictórica brasileira. Vestindo a alva dos condenados, barba e cabelos longos, tem sempre uma boa transparência. Pintaram-no em cenas que ocorreram desde a sua prisão na Rua dos Latoeiros, no centro do Rio de Janeiro, até episódios diversos da devassa aberta para julgar o crime dos envolvidos na tentativa de rebelião de 1789: a leitura da sentença, Tiradentes agrilhoado, a vã tentativa de resistência, para, finalmente, mostrá-lo frente ao carrasco e nas quatro partes em que seu corpo foi dividido para ser exposto à execração pública no caminho entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais.2 A morte na forca, o suplício e o seu julgamento ainda hoje continuam a provocar revoltas e repulsa. Dos partícipes do movimento mineiro, o alferes foi o único a morrer na forca, em virtude de ter sido o único a assumir o crime de rebelião, enquanto seus colegas de infortúnio, mortos de medo, transformaram-se em “homúnculos”, “tal a sordidez com que alguns se portavam, acusando-o, difamando- o, cobrindo-o de injúrias e calúnias”.3 1. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 56-58. 2. COSTA, João. Os pintores e o suplício de Tiradentes. Rio de Janeiro: ALERJ, 1992, p. 8-9. 3. Ibidem, p. 9. 13 Nos depoimentos à devassa, Tiradentes portou-se com dignidade e firmeza. Diante de todas as pressões e das ameaças que lhe faziam, jamais se amedrontou. Aceitou tudo com estoicismo e resignação. E em virtude disto, e por ter sido salvo espiritualmente pela fé religiosa na Santíssima Trindade, foi condecorado ao patamar de herói. Por não se conhecer sua descrição física, artistas concederam-se o direito de licenças poética e artística para retratá-lo alegoricamente. E, graças a isto, durante muito tempo, os quadros históricos pintados sobre o seu envolvimento na Inconfidência e mesmo os resultados dele advindos, prescindiram das “caraterísticas de fidelidade documentada aos assuntos neles apresentados”. Chegou-se a afirmar que “a Arte, alegava-se com superioridade, era uma coisa; a História, outra.”4 Os artistas do Novecentos – alguns deles serão ao longo deste trabalho nomeados e estudados em detalhes – tinham por interesse colocar na tela o sublime, o grandioso, ainda que à custa da verdade. Pouco interessava a exatidão dos detalhes, contanto que o conjunto resultante da construção do fato “histórico” fosse de magnífico efeito estético. Felizmente esse ponto de vista foi superado e, modernamente, exige-se que a elaboração de um quadro histórico seja precedida de paciente pesquisa no sentido de serem evitados anacronismos, paisagens trocadas ou mescladas, alterações de traços físicos de personagens retratados, além de outras minúcias ligadas à execução completa do trabalho.5 Como exemplo da “reinvenção” da história, representando, de certa maneira, a visão da sociedade do século XIX e início do século XX sobre o passado, considerando-se a pintura histórica como uma “reprodução do passado da nação” e de suas aspirações coletivas, pode-se citar o caso da pintura A jornada dos mártires, de Antônio Parreiras (Figura 1), de 1928, que retrata a partida dos inconfidentes, depois da prisão, em Vila Rica (atual cidade de Ouro Preto), passando pelo povoado de Nossa Senhora da Conceição de Matias Barbosa, nas proximidades de Juiz de Fora, em Minas Gerais, após pernoitarem na fazenda Soledade, do coronel Manuel 4. MATHIAS, Herculano Gomes. Tiradentes através da imagem. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969, p. 25. 5 Ibidem, p. 25-26. 14 do Vale Amado, com destino à cidade do Rio de Janeiro, então capital do Estado do Brasil. FIGURA 1 Antônio Parreiras – A jornada dos mártires (1928) Fonte: PARREIRAS, Antônio Diogo da Silva. A jornada dos mártires. 1928. Museu Mariano Procópio. Juiz de Fora / MG. Disponível em: . Na pintura, Antônio Parreiras reuniu na escolta homens que foram detidos em locais diferentes e em momentos cronológicos distintos. Tal infidelidade histórica pode ter sido ocasionada por ele não ter consultado documentação sobre o assunto, juntando, em um mesmo instante, presos remetidos em separado, com intervalos temporais de quase dois anos, assim como os fazendo caminhar a pé de Minas Gerais ao Rio de Janeiro.6 6. Análise sobre esta pintura e sua falta de fidelidade histórica, consultar: Ibidem, p. 26. Vale a informação que o quadro A jornada dos mártires faz parte de uma série sobre a Inconfidência Mineira, que contou com uma segunda imagem correspondente à prisão de Tiradentes em seu esconderijo no Rio de Janeiro – Prisão de Tiradentes (Museu Júlio de Castilhos, Porto Alegre, Rio Grande do Sul) – e, uma terceira pintura – A Inconfidência (Centro Cultural da Justiça Eleitoral, Rio de Janeiro) –, que retrata a figura do alferes Tiradentes no patíbulo. Sobre Antônio Parreiras e mesmo a análise histórica e artística da pintura reproduzida na Figura 1, conferir, por exemplo: PARREIRAS, Antônio. História de um pintor contada por ele mesmo. 3. ed. Niterói: Niterói Livros, 1999; SALGUEIRO, Valéria. A arte de construir a nação: pintura de história e a Primeira República. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 30, p. 3-22, 2002; STUMPF, Lúcia Klück. A terceira margem do rio: mercado e sujeitos na pintura de história de Antônio Parreiras. São Paulo, 2014. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Estudos 15 O romancista português Eça de Queirós, em artigo intitulado “Idealismo e Realismo”, da coletânea Cartas inéditas de Fradique Mendes e mais páginas esquecidas, de 1929, organizada pelo seu filho José Maria, lega-nos um exemplo interessante do que seja fidelidade artística: Ora aqui tens, meu caro concidadão: supõe que tu queres ter na tua sala a imagem de Napoleão I passando os Alpes (estas fantasias são-te permitidas: a parede é tua, e podes cobri-la de escarros ou de figuras imperiais; são coisas que ficam com a tua consciência e com o Deus severo que te há de julgar um dia). Que fazes tu? Chamas dois pintores: um que é idealista e que vem com a sua grenha, o seu casaco de veludo e o seu chapéu de aba larga; e outro que é realista, e que vem, como tu, de chapéu alto, com a sua caixa de tintas debaixo do braço. Dás-lhes o teu assunto e vais aos teus negócios. E aqui está o que se passa na tua ausência sobre a tua parede: O pintor idealista arregaça as mangas e brocha-te imediatamente este quadro: um píncaro de montanha; sobre este píncaro, um cavalo com as proporções heroicas do cavalo de Fídias, empinado; sobre esse cavalo, premindo-lhe as ilhargas, Napoleão, de braços e pernas nuas, como um César romano, com uma coroa de louros na cabeça. Em volta, nuvens; em baixo, a assinatura. Dir-me-ão: é falso! – Como, falso? Este quadro foi, creio que é ainda, uma das joias do Museu do Luxemburgo. Durante esse tempo, o pintor realista, tendo lido a história, consultado as crônicas do tempo, estudado as paisagens dos Alpes, os uniformes da época, etc., deixou na tua parede o seguinte quadro: sob um céu triste, um caminho escabroso de serra; por ele, resfolgando e retesando os músculos, sobe uma mula; sobre a mula, Bonaparte, abafado em peles, com um barrete de lontra e óculos azuis por causa da reverberação da neve, viaja, doente e derreado... Qual destes quadros escolhes tu, caro concidadão? O primeiro, que te inventou a história ou o segundo, que ta pintou? O idealista deu-te uma falsificação, o naturalista, uma verificação. Toda a diferença entre o Idealismo e o Naturalismo está nisto. O primeiro falsifica, o segundo verifica.7 Brasileiros, Universidade de São Paulo; LEVY, Carlos Roberto Maciel. Antônio Parreiras: pintor de paisagem, gênero e história. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1981; GASPARRETTO JUNIOR, Antonio. A jornada de Parreiras: da pintura de paisagem aos mártires. Ibérica: Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos, Juiz de Fora, ano 3, n. 10, 2009, p. 22-35; SILVA, Paloma Ferreira Coelho. A Inconfidência revisitada: Antônio Parreiras e a Jornada dos Mártires. Revista Tempo de Conquista, n. 3, jul. 2008. Disponível em: ; SILVA, Graciene Lilian Lima. O traço de Antônio Parreiras sobre a Inconfidência Mineira. Brasília, 2017. Monografia (Graduação) – Departamento de História, Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília. Disponível em: . 7. QUEIRÓS, Eça de. Cartas inéditas de Fradique Mendes e mais páginas esquecidas. Porto: Livraria Chardon de Lello & Irmão, 1929, p. 195-197. Apud. MATHIAS, Herculano Gomes. op. cit., p. 26-28. 16 Este exemplo – apesar de literário e não historiográfico – ilustra o ocorrido com as representações físicas pintadas sobre o alferes Joaquim José da Silva Xavier. Os nossos artistas plásticos, a quem deveriam ser dados às tarefas de criarem, por assim dizer, a imagem do Tiradentes, enfrentaram, de início, o problema de contarem quase exclusivamente com a própria inspiração, já que os documentos existentes eram escassos e de pouca valia. Especificamente sobre seu aspecto físico, partiu-se praticamente do zero. Em todos os 11 volumes dos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, documento oficial aberto para se apurar a premeditada rebelião de 1789, há apenas duas únicas referências a sua figura. Trata-se da apreciação ligeira e fugidia feita pelo poeta Inácio José de Alvarenga Peixoto referindo-se ao primeiro encontro que tiveram no escritório do contratador João Rodrigues de Macedo, em Vila Rica: “um oficial feio e espantado”.8 O estalajadeiro João da Costa Rodrigues acrescentou um pequeno detalhe: que na época da pregação revolucionária, o alferes “tinha cabelos brancos”.9 Em depoimento prestado a 29 de maio de 1860, portanto 68 anos após sua morte, o centenário capitão de milícias Antônio Dias Barbosa Ferreira, na época tenente e que assistiu ao enforcamento de Tiradentes, disse que naquele dia, 21 de abril de 1792, o padecente, que ele pessoalmente conhecia, e em cujo rosto se via a “resignação e a coragem”, era “de mediana estatura, e de cabelos louros”.10 Já na edição de 19 de novembro de 1892, o Diário Oficial do Governo do Estado de Minas Gerais traz impresso o relato de Severino Francisco Pacheco, então com 115 anos, ex-praça de cavalaria do Segundo Regimento de Ouro Preto, que joga mais luz sobre a figura do alferes: “era um homem alto, simpático, bonito e gênio alegre”. Pacheco diz que estava no início da adolescência quando viu Tiradentes várias vezes em uma casa do Largo do Rosário a “tocar violão e cantar modinhas, no que era perito”.11 8. PEIXOTO, Inácio José de Alvarenga. 2ª inquirição – Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, 14/1/1790. In: AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial, v. 5, 1982, p. 117. 9. LAGO, Basílio de Brito Malheiro do. Apenso XXIV – Diligência na estalagem de João da Costa Rodrigues. Carijós, 8/5/1789. In: AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira. op. cit., v. 2, 1978, p. 450. 10. Apud. COSTA, João. op. cit., p. 10. 11. WERNECK, Gustavo. Mais de 200 anos após sua morte, Tiradentes segue sem um rosto. 20 abr. 2012. Disponível em: . 17 Como ponto de partida, pela ausência e discrepâncias de referenciais físicos do alferes, optou-se por um modelo que agregava a figura do bravo conspirador mineiro com a sublime imagem de Jesus Cristo, o homem que se sacrificou pela causa da justiça e da verdade e que recebeu como recompensa uma coroa de espinhos e a cruz do martírio.12 Disto, fez-se a semelhança o “rosto” do alferes, cristianizando-se a sua imagem. A relação de Tiradentes com Jesus Cristo manifestou-se primeiramente nas letras, ao interpretar a cena, os procedimentos e o ritual de execução do 21 de abril em termos bíblicos, depois ao ser retratado pelas artes plásticas (gravura, pintura e estatuária).13 Na literatura, a formação do herói seria dialética, pois, ao mesmo tempo em que se alimenta desse imaginário cristológico, refletindo internamente nas obras a mentalidade de seu contexto, “ajuda a criar e consolidar uma nova simbologia, influenciando o externo”.14 As artes também seguirão por este caminho. São importantes que se investiguem esses fenômenos em sua historicidade, entendendo-os com a vocação própria da época que emoldura os fatos e que conforma a cronologia e o sentido. Mas, se cada época fabrica mentalmente seu universo, como fazer para pensar, já que utilizamos como base referências atuais, as ferramentas de uma determinada época? Apesar de a imagem não responder tudo, ela diz muito e, por esse motivo, ela deve ser evocada, não se reduzindo apenas à análise de sua aparência, mas compreendendo também o contexto artístico de sua produção e divulgação. Eis alguns dos desafios enfrentados por nossa tese: identificar a representação imagética que a figura do alferes Joaquim José da Silva Xavier recebeu na numismática e na filatelia. Vale a lembrança que o Decreto nº 58.168, de 11 de abril de 1966, promulgado por ato do então presidente general Humberto de Alencar Castelo Branco, no período da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), estabeleceu como modelo para reprodução da figura do alferes Tiradentes a estátua ao ar livre de autoria do 12. MATHIAS, Herculano Gomes. op. cit., p. 28. 13. SERELLE, Márcio de Vasconcellos. Os versos ou a história: a formação da Inconfidência Mineira no imaginário do Oitocentos. Campinas, 2002. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, p. 22-23. 14. Ibidem, p. 23. 18 escultor Francisco Andrade, existente em frente ao palácio da antiga Câmara dos Deputados, hoje Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, julgando-a a melhor “gravada pela tradição na memória do povo brasileiro”.15 (Figura 2) FIGURA 2 Francisco Andrade – Tiradentes (1926) Fonte: ANDRADE, Francisco. Tiradentes. Monumento ao ar livre localizado em frente à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Palácio Tiradentes). 1926. Rio de Janeiro / RJ. Altura de 4,5 m. Fotografia de: André Figueiredo Rodrigues. 2017. 15. DECRETO nº 58.168 de 11 de abril de 1966. In: AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira. op. cit., v. 1, 1976, p. 85. 19 Essa iniciativa, aliás, pertencente a um conjunto mais amplo de medidas e eventos que visavam fortalecer o culto cívico dos grandes heróis de nosso passado, iniciou-se em 1936, durante o governo do Estado Novo, do presidente Getúlio Vargas, quando se promulgou o Decreto nº 756-A, de 21 de abril de 1936, que repatriou os restos mortais de 13 dos protagonistas da Inconfidência Mineira, então levados para o panteão erguido no interior do Museu da Inconfidência (criado pelo Decreto-Lei nº 965, de 20 de dezembro de 1938), em sala construída para receber aquelas ossadas trasladadas da África para o Brasil.16 Em 1965, pouco mais de quatro meses antes da oficialização de uma “imagem” de Tiradentes, o herói da Inconfidência foi declarado “Patrono Cívico da Nação Brasileira”, sob a Lei nº 4.897, de 9 de dezembro de 1965, por ato do presidente Castelo Branco. A Lei previa a exibição de sua imagem nas forças armadas, nos estabelecimentos de ensino, nas repartições públicas e de economia mista, nas empresas concessionárias de serviços públicos e nas sociedades anônimas em que o Poder Público fosse acionista.17 E neste mesmo mês e ano, em Minas Gerais, o então governador José de Magalhães Pinto baixou o Decreto nº 9.220, no dia 23, determinando “a obrigatoriedade da colocação, em recinto nobre, da efígie do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, em todos os estabelecimentos de ensino, repartições públicas e unidades da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais.”18 O alferes Tiradentes na qualidade de patrono da Nação Brasileira, em semelhança estética da “construção” fisionômica de Jesus Cristo – personagem que também não apresenta qualquer descrição real de sua aparência física –, como bem quis representar Francisco Andrade em sua obra escultórica, objetivava operar sobre a sociedade brasileira a ideia que Cristo morreu para redimir os pecados da humanidade e Tiradentes para libertar o Brasil da exploração estrangeira. Naquele contexto, durante o período da Ditadura Civil-Militar, recuperar os heróis do passado não ajudaria aquele regime político, instalado em 1964, a legitimar-se como 16. LEMOS, Carmem Silva. Reflexões acerca do processo de repatriamento das ossadas dos inconfidentes degredados para a África. Oficina do Inconfidência: Revista de Trabalho, Ouro Preto: Museu da Inconfidência, ano 2, n. 1, p. 195-221, 2001; CARVALHO, José Murilo de. op. cit., p. 71. 17. LEI nº 4.897, de 9 de dezembro de 1965. In: AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira. op. cit., v. 1, p. 83-84. 18. DECRETO nº 6.220, de 23 de dezembro de 1965. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte. Disponível em: . 20 libertador da influência externa, notadamente a comunista, que se aventava, por parte dos militares, existir naquele instante? Assim, torna-se oportuno investigar o percurso de construção da imagem do alferes Tiradentes, o único de nossos vultos históricos nacionais que teve oficializado por lei a sua representação física. Mas, afinal, por quais caminhos seguiram determinados artistas para desenhar a imagem do herói da Inconfidência Mineira? Como a representação da imagem de Tiradentes foi apropriada no dinheiro brasileiro? Como nos selos postais aparece representada sua imagem? Por que a imagem de 1966, de Francisco de Andrade, tornou-se a escolhida para representar uma “possível” memória visual do alferes Tiradentes? Mesmo depois, com a revogação da decisão de se oficializar uma imagem como sendo a de Tiradentes, sua representação imagética perdurou no tempo, e a interpretação de um alferes com barba e cabelo venceu, tal qual se propôs na estátua de Francisco Andrade.19 O alferes real, careca e sem barba levado à força, ficou nos estudos históricos, contrastando com o gosto popular e de extrema religiosidade elaborada em torno do alferes Joaquim José. Mas, antes e mesmo depois de Francisco Andrade, outros desenharam, pintaram e esculpiram imagens do alferes Tiradentes. Na numismática e na filatelia, quais são estas imagens? Quais momentos da vida de Tiradentes aparecem ali representados? Quem foram seus artistas? Como se define o mito do alferes Tiradentes nestas imagens? Eis algumas de nossas indagações. E para examinar tais questões, a tese encontra-se dividida em três capítulos. No primeiro apresentamos – de maneira panorâmica – a trajetória de vida do alferes Joaquim José da Silva Xavier. Em um segundo momento, discutiremos o seu envolvimento no movimento da Inconfidência Mineira. Na sequência, 19. Em virtude do aspecto físico – notadamente as barbas que lhe foram atribuídas –, em 20 de julho de 1976, o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, “como o apoio de instituições e mestres igualmente dedicados à História do Brasil”, e o Conselho Federal de Cultura solicitaram ao então presidente Ernesto Geisel a revogação da decisão de 1966, alegando ser “recomendável a preservação da liberdade criativa no tratamento artístico do tema reputado inconveniente a admissão oficial de modelos que serão, sempre, produto da imaginação e da interpretação subjetiva.” Então, o Decreto de 1966 foi revogado por meio do Decreto nº 78.101. Conferir: DECRETO nº 78.101, de 20 de julho de 1976. Diário Oficial da União, Brasília, seção I, 21 jul. 1976, p. 9.687. Disponível em: 21 empreenderemos estudo a sua construção simbólica como herói da pátria. Afinal, como ocorreu o culto cívico de Tiradentes como herói da nação? No segundo capítulo, analisaremos a representação e a apropriação de Tiradentes no meio circulante. Para tanto, discutiremos a utilização da moeda como documento e como narrativa e imagem de uma história monumental. Especificamente neste item será analisada a representação do alferes Tiradentes na cédula de 5.000 cruzeiros, de 1963, e em duas moedas: a primeira de 1992, por título Liberdade, cidadania e Tiradentes, de 5.000 cruzeiros; e a segunda, sua imagem na moeda de 5 centavos de real, de 1998. No terceiro capítulo, estudaremos a imagem do Tiradentes na filatelia. Para isto, discutiremos a utilização da imagem como documento e como narrativa e imagem de uma história monumental, tal como se propõe no selo postal emitido em sua homenagem em 1948. Também empreenderemos análise sobre os selos postais comemorativos e a materialidade do alferes Tiradentes em três outras impressões: o Tiradentes entre os Vultos célebres da história do Brasil (1963-1974), o bicentenário de sua morte (1992) e a sua elevação ao rol dos heróis nacionais na série do Panteão da Pátria (2008). Enfim, múltiplas imagens e representações de uma personagem que desde os tempos de infância está presente em nossa memória. Premissas teóricas a-) A história e a memória O historiador francês Pierre Nora em uma longa entrevista concedida à Ana Cláudia Fonseca Brefe para o periódico História Social, da Universidade Estadual de Campinas, informa, de maneira instigante, seus temas de pesquisa e o porquê decidiu estudar assuntos relacionados à “memória coletiva”. Em um determinado momento – apesar de longo o trecho transcrito – disse: 22 Assim, entre 1978 e 1979, eu me deixei flanar longamente entre temas aparentemente diferentes uns dos outros que começavam com memoriais completamente verdadeiros, como o Panteão, como os monumentos aos mortos, o cemitério Père Lachaise, os museus de monumentos franceses e, pouco a pouco, entre temas que tinham uma relação com esses memoriais para mim evidente, mas não tão evidente para o grande público, por exemplo, o que a bandeira francesa, o que um emblema, uma instituição como a Academia francesa, uma região como a Vendée20 transmitiam de expressão nacional de memória; o que monumentos como o ‘Mur des Fédérés’21 carregavam como história e como símbolos; o que certas bibliotecas populares, onde poderíamos ainda pesquisa seus fichários, apresentavam de tipos de cultura popular constituídos em um dado momento; qual foi a história do 14 de julho como festa nacional, que atualmente não tem mais grande importância, mas já teve uma enorme, funcionando como um rito republicano absoluto; o que foi um manual, tal como Le Tour de France por deux enfants. Eu me dei conta de que nunca fora feita a história da maior parte desses objetos, inclusive do Panteão, da bandeira francesa, que foi apenas estudada por militares. Fui, então, literalmente tomado por uma espécie de embriaguez. Eu vi se abrir diante dos meus olhos uma espécie de campo, ao fundo cada vez mais largo, um horizonte de problemas que se punham a cada dia de forma mais enfática: que tipo de relação haveria entre a psicologia coletiva e a memória coletiva; que princípio de nação se elabora; quais seriam as diferenças entre o sentimento nacional e o sentimento puramente francês ou republicano; quais problemas colocariam as comemorações, que estudamos tão pouco e, em si, a teoria do ritualismo e da comemoração; em resumo, era todo um campo, o próprio patrimônio, sua história que repentinamente começava a emergir como história e em grande quantidade.22 Em sua fala, Pierre Nora descreve seu percurso historiográfico nos estudos que tiveram como baliza assuntos relacionados à memória e às representações sociais, ou no que denominou chamar de “lugares de memória”, estabelecidos pela sociedade e pelos poderes constituídos sobre o que deve ser preservado e relembrado e o que deve ser silenciado e esquecido. Segundo ele, os lugares da memória são criações contemporâneas realizadas pela sociedade para impor determinada memória. E, como ele, devemos propiciar a determinados temas uma centralidade que nunca tiveram ou que não lhes foi possível ter. 20. “Departamento francês do ‘Pays de la Loire’. Também conhecida no período revolucionário pela insurreição monarquista e contra-revolucionária.” Nota explicativa n. 6. Apud. BREFE, Ana Cláudia Fonseca. Pierre Nora, ou o historiador da memória. História Social, Campinas, p. 13-33, 1999, p. 24. 21. “Muro do cemitério Père Lachaise de Paris, diante da qual foram executados os últimos defensores da Comuna de maio de 1841.” Nota explicativa n. 10. Apud. Ibidem, p. 24. 22. Ibidem, p. 24-25. 23 Em nosso caso, por exemplo, selos e moedas, apesar de serem considerados objetos tão diferentes uns dos outros, guardam semelhanças no tocante aos lugares de como a memória se apropriou e/ou se privilegiou da dimensão simbólica da história ali presente e representada. O alferes Tiradentes, personagem central de nossa tese, teve sua “imagem” construída e divulgada em objetos de filatelia e de numismática. Como lugares de memória, selos e moedas constituem-se como criações para impor determinada memória, notadamente àquela vinculada aos sentimentos patrióticos, constituindo formas de violência simbólica que silenciam e uniformizam a pluralidade de memórias associadas a um determinado grupo político e social.23 Ao se eleger Tiradentes o protomártir da nação e se construir uma imagem oficial de seu rosto, o que se pretende apagar da memória? E o que se pretende preservar como memória? Para Pierre Nora, os lugares de memória apresentam-se, necessariamente, sob três sentidos simultâneos: material, funcional e simbólico, em graus diversos. Mesmo um lugar de aparência material, como um arquivo, “só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica”. Mesmo um lugar puramente funcional, “como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual”. “Mesmo um minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal”, servindo, periodicamente, para uma “chamada concentrada da lembrança”. Estes três aspectos coexistem. Como exemplo dessa relação cita a noção de geração, que seria material, “por seu conteúdo demográfico”; funcional por hipótese, ao garantir, ao mesmo tempo, a “cristalização da lembrança e sua transmissão”; e simbólica, em que um acontecimento ou uma experiência vividos por um pequeno número caracteriza “uma maioria que deles não participou”.24 A memória, no sentido primeiro da expressão, como nos lembra Carlos Henrique Farias de Barros, “é a presença do passado”. A memória é uma construção que acarreta “uma representação seletiva do passado, que nunca é 23. BARROS, Carlos Henrique Farias de. Ensino de História, memória e história local. Revista de História da UEG, Porangatu (Goiás), v. 2, n. 1, p. 301-321, 2013, p. 312. 24. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993, p. 21-22. 24 somente aquela do indivíduo, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social e nacional.”25 Tal como o francês 14 de julho ser uma festa nacional, o nosso 21 de abril celebra o dia da morte do alferes Tiradentes e a memória da Inconfidência Mineira. No jogo da política, celebrações cívicas e estímulos aos sentimentos patrióticos são especialmente úteis e eficazes, pois lidam com a história e com a memória.26 Memória, na concepção de Jacques Le Goff, exposta em seu livro História e memória, é a propriedade que temos de conservar certas informações, atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como passadas. O estudo da memória passa pela psicologia e a memória social é um dos meios fundamentais para se abordar os problemas do tempo e da história. De acordo com ele, “como o passado não é a história, mas o seu objeto, também a memória não é a história, mas um dos seus objetos e (...) um nível elementar de elaboração histórica.”27 Partindo da premissa que os sujeitos históricos reconstroem a memória na relação e no diálogo com o passado e dela se alimentam para representar as diferentes épocas; estes, logo, não devem prescindir de um instrumento tão significativo para o relato e a continuidade dos acontecimentos históricos. Peter Burke esclarece em capítulo dedicado ao embate entre história e memória social, que os indivíduos se identificam com acontecimentos públicos importantes, principalmente se estes eventos forem relevantes para o seu grupo social. Segundo ele, as pessoas lembram muito de fatos ou histórias que não vivenciaram diretamente. “Um artigo de noticiário, por exemplo, às vezes se torna parte da vida de uma pessoa. Daí pode-se descrever a memória como uma reconstrução do passado.”28 Dentre os questionamentos elaborados por Peter Burke ao descrever os meios pelos quais os indivíduos recordam e também registram o passado está à complexa relação entre memória individual e coletiva, onde uma influencia a outra, formando as estruturas sociais e culturais. Apesar disto, a memória social é seletiva, fazendo-se necessário identificar os princípios de seleção e como um processo de 25. Ibidem, p. 312. 26. FONSECA, Thaís Nívia de Lima. A comemoração do 21 abril: o cenário do jogo político. Anos 90, Porto Alegre, v. 12, n. 21-22, p. 437-486, 2006, p. 438. 27. LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Campinas: Editora UNICAMP, 2006, p. 50. 28. BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 70. 25 escolha varia de lugar para lugar, ou de um grupo para outro grupo, transformando- se na passagem do tempo. De acordo com Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva, em verbete explicativo sobre memória, de seu Dicionário de conceitos históricos, o estudo da memória coletiva começou a se desenvolver com a investigação oral. A partir das ideias de Michel de Certeau, explicadas pelos autores referenciados acima, esse tipo de memória apresenta as seguintes características: primeiro, gira em torno quase sempre de lembranças do cotidiano do grupo, como enchentes, boas safras ou safras ruins, quase nunca fazendo referências a acontecimentos históricos valorizados pela historiografia, e tende a idealizar o passado. Em segundo (...), a memória coletiva fundamenta a própria identidade do grupo ou comunidade, mas normalmente tende a se apegar a um acontecimento considerado fundador, simplificando todo o restante do passado. Por outro lado, ela também simplifica a noção de tempo, fazendo apenas grandes diferenciações entre o presente (‘nossos dias’) e o passado (‘antigamente’: por exemplo). Além disso, mais do que em datas, a memória coletiva se baseia em imagens e paisagens. O próprio esquecimento é também um aspecto relevante para a compreensão da memória de grupos e comunidades, pois muitas vezes é voluntário, indicando a vontade do grupo de ocultar determinados fatos. Assim, a memória coletiva reelabora constantemente os fatos. Outra distinção entre história e memória está no fato de a história trabalhar com o acontecimento colocado para e pela sociedade, enquanto para a memória o principal é a reação que o fato causa no indivíduo. A memória recupera o que está submerso, seja do indivíduo, seja do grupo, e a História trabalha com o que a sociedade trouxe a público.29 Assim, conhecer a história e o significado da memória permite aos sujeitos históricos entender na essência o que está por traz do aparente, para o resgate da identidade histórica e social, mas sem prejuízo do respeito aos valores que aparecem inseridos no contexto, tanto individual quanto coletivo. Conforme Ana Maria da Costa Montenegro, A memória tem como característica fundante o processo relativo que a realidade provoca no sujeito. Ela se forma e opera a partir da reação, dos efeitos, do impacto sobre o grupo ou o indivíduo, 29. Apud. SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2006, p. 276. 26 formando um imaginário que se constitui em uma referência permanente de futuro.30 Nesta perspectiva, a memória se constitui no alicerce e no pilar que sustentam a história, portanto, é a “matéria prima” do historiador. E dentre as fontes de pesquisa, os depoimentos orais são fontes construídas pela memória, que reelabora a realidade vivida pela imaginação. Cultivar a memória significa recuperar a história no processo que a envolve e lutar para que ela se mantenha presente, viva e disponível a todas as pessoas, de todos os segmentos sociais. No contexto, para Jacques Le Goff, a memória é uma ferramenta importante para a construção da história, uma vez que seu papel é auxiliar na classificação e em processos de legitimidade. De acordo com ele, A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Mas a memória coletiva é não somente uma conquista é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social é sobretudo oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.31 Por esta definição, a memória coletiva, enquanto instrumento do qual a história se apropria e se alimenta, é imprescindível para se pensar na revigoração do passado, mas não apenas para servir ao presente e ao futuro, mas para ser trabalhada como instrumento democrático, com o intuito de libertar os homens.32 A memória, portanto, tem um espaço significativo na história, por meio dos laços estabelecidos entre as gerações caracterizadas pelas raízes culturais e históricas construídas ao longo da vida. Tem o papel de recuperar os fatos ocorridos no passado, para conhecê-los e refleti-los à luz do pensamento histórico, para que todos tenham a oportunidade de entendê-los e revivê-los, enquanto referência cultural de uma sociedade. 30. Apud. BARROS, Carlos Henrique Farias de. op. cit., p. 313-314. 31. LE GOFF, Jacques. op. cit., p. 476. 32. Ibidem, p. 477. 27 As questões postas remetem à recuperação da memória de Tiradentes enquanto sujeito inserido no movimento que pretendia romper com os laços políticos, econômicos e culturais ditados por Portugal. Porém, a memória do sujeito histórico estava atrelada à manipulação dos fatos pela historiografia tradicional e oficial, a qual oferecia uma identidade pautada nos valores e interesses da classe dominante republicana. Será esta “apropriação”, a partir das discussões de memória coletiva, o foco de análise do presente estudo: a “representação” imagética da figura do alferes na filatelia e na numismática.33 A memória do alferes Tiradentes perpetuou-se ao longo do tempo. Entretanto, falta-nos compreender ainda como isto ocorreu em dois símbolos de forte apelo popular e lugares de memória: o selo e o dinheiro. Ao mandar ou receber uma carta, ou ao receber ou pagar uma conta ou comprar algo, a figura de Tiradentes esteve presente nas mais diversas ações cotidianas, desde a década de 1940 até os nossos dias. A trajetória de Tiradentes como herói da nação demonstra o que disse Pierre Nora ao referir-se aos lugares de memória, em um misto de história e memória. Não há como enxergá-lo apenas pelo viés da história ou da memória. No caso de nossa personagem, as ações devem ser vistas de maneira híbridas, uma vez que não há como se ter somente a memória como referente no estudo do selo ou do dinheiro, já que temos a necessidade de identificar a origem da personagem e de sua apropriação pela história; em algo que proporcione relegar a memória ao passado. Apontamentos de Pierre Nora lembram-nos, ainda, que os “lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter aniversários, pronunciar 33. Vêm de Roger Chartier as ideias de “apropriação” e de “representação”. Para ele, “apropriação (...) tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem.” Por “representação” se entende como a expressão da apropriação, “a qual se imputam valores à figura representada.” As maneiras como um texto e uma imagem podem ser lidas devem, ainda segundo ele, ser estudadas, a fim de se buscar uma história destas formas de leitura, algo que nos permita observar algo ausente. Conferir: CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988, p. 26. Detalhes sobre o conceito de representação em Chartier podem ser lidos em: CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. O conceito de representações coletivas segundo Roger Chartier. Diálogos, Londrina: UEM, v. 9, n. 1, p. 143-165, 2005; VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 127-162; FALCON, Francisco J. Calazans. História e representação. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (Org.). Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000, p. 41-80. 28 elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações não são naturais”.34 A criação destes espaços, pelas vias da moeda e do selo serão os próximos passos analíticos desta tese. Antes disto, porém, analisemos a figura do herói na história. b-) O herói na história A partir da premissa de que ninguém nasce herói, um indivíduo galgado a este patamar é uma construção histórica, pensada e produzida com um propósito determinado, permeada por representações, apropriação de símbolos e mitos, sempre manifestada em manipulação e legitimação do poder. A produção de heróis não é recente, já era realizada desde a Antiguidade, e sempre esteve atrelado a questões políticas, econômicas, culturais e sociais, que possibilitavam referendar um regime político ou promover o enaltecimento de um indivíduo ao patamar de grandeza, o que já demonstrava se constituir em um instrumento de poder. Na interpretação de José Murilo de Carvalho, heróis são símbolos poderosos, encarnações de idéias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São, por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos. Não há regime que não promova o culto de seus heróis e não possua seu panteão cívico.35 Nesta perspectiva, a construção do herói demanda um trabalho complexo, o que implica a busca por ideias, valores, projetos, convencimento das massas da veracidade dos fatos para a modelagem do perfil, refletida nos monumentos e nas imagens, como a bandeira, o hino, selos, moedas, charges, caricaturas, elementos estes significativos para se decifrar a mitologia e a simbologia de um sistema político. 34. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993, p. 13. 35. CARVALHO, José Murilo de. op. cit., p. 55. 29 Arlene Enders em seu Os vultos da nação analisa como instituições do Brasil imperial e republicano (da primeira metade do século XX) fabricaram seus heróis, atentando-se para as personalidades que se destacaram como exemplos edificantes no processo de consolidação da nação, tendo como referência as relações entre encarnação do poder e sistemas políticos. Para ela, Os heróis são frutos de uma circulação entre as iniciativas individuais, a adesão popular, a cultura erudita e o poder político. No entanto, eles são muito mais complexos, em virtude de sua mobilidade e capacidade de fixar as emoções coletivas. Na história brasileira, nenhum dirigente foi objeto de um culto à personalidade suficientemente intenso e duradouro para o elevar à altura de um Atatürk ou de um Mao. E o fato é que a figura de Tiradentes deve seu sucesso à congruência de sua elaboração pelos intelectuais e dos sentimentos que ela veio a despertar na população.36 As palavras de Arlene Enders permite-nos compreender as condições de surgimento de heróis. Como explica Francisco Eduardo Alves de Almeida, em artigo sobre “A formação do herói Tamandaré na Marinha do Brasil”, todas as nações do mundo procuram cultivar heróis. Não existem povos que não cultivem os seus heróis. “A preservação dos mitos heroicos do passado não somente forja o caráter desses povos, mas principalmente mantém as bases fundamentais para um futuro caráter nacional”, constituído por grupos “unidos por uma origem comum, por interesses comuns e principalmente por ideais e aspirações comuns”.37 Ainda de acordo com Francisco Eduardo Alves de Almeida, por serem os heróis uma construção histórica, “motivada por interesses diversos que vão desde a preservação de valores culturais de determinada nação até o enaltecimento de exemplares a serem seguidos”, é assim que ele deve ser analisado: como uma construção. Afinal, por que alguns assuntos ou personagens representantes de “atos heroicos” se perdem nas brumas da história enquanto outros não? Por que alguns “heróis” são escolhidos e outros não? De que maneira e como atos “heroicos” do 36. ENDERS, Arlene. Os vultos da nação: fábrica de heróis e formação dos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014, p. 21. 37. ALMEIDA, Francisco Eduardo Alves de. A formação do herói Tamandaré na Marinha do Brasil: uma breve análise teórica. Navigator: Subsídios para a História Marítima do Brasil, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, p. 69-77, 2007, p. 69-70. 30 alferes Tiradentes, construídos e transmitidos nas faces de selos e moedas, impregnaram a memória e o imaginário popular?38 A palavra herói tornou-se um jargão impregnado de dúvidas e questionamentos que, ao ser incutido no inconsciente das pessoas, aventa situações muitas vezes difíceis de ser explicadas e entendidas, um universo que demanda compreensão do processo e dos resultados para discussão dos elementos que formam a teia de envolvimento dos sujeitos promotores de heróis.39 Já para Sidney Hook, o herói é um indivíduo “a quem podemos atribuir influência preponderante na determinação de um desfecho ou acontecimento cujas conseqüências teriam sido profundamente diferentes se ele não agisse”.40 Francisco Eduardo pontua que a palavra herói tem sido defendida até então “em sentido amplo e vago, dentro de um tempo histórico determinado e em perspectivas distintas, conforme a percepção dos que atribuíram significação a esse atributo, o heroísmo”. Ele sugere que tal interpretação deve ser abandonada, a fim de que se busquem características mais concretas, “considerando o tempo presente como fulcro”.41 Tanto Sidney Hook quanto Francisco Eduardo Alves de Almeida assinalam os propósitos da construção do herói enquanto sinônimo de influências, de poder. O segundo ainda acrescenta que para se analisar o herói deve-se buscar fazê-lo com perspectiva lastreada no tempo presente. Ao longo da história, a percepção de herói mudou. A palavra herói remonta aos tempos do poeta épico da Grécia antiga Homero e tem sua origem ligada ao conceito de “arete”. Infelizmente, em língua portuguesa não há um vocábulo equivalente a esse termo. Talvez a palavra “virtude” seja a que mais se aproxima de seu sentido literal.42 38. Ibidem, p. 70. 39. A relação entre o nascimento de heróis, os estereótipos de lendas de heróis e os seus fundamentos psicológicos, podem ser lidos em: RANK, Otto. O mito do nascimento do herói: uma interpretação psicológica dos mitos. São Paulo: Cienbook, 2015. A primeira edição deste livro data de 1909. 40. HOOK, Sidney. O herói na história. Rio de Janeiro: Zahar, 1962, p. 130. 41. ALMEIDA, Francisco Eduardo Alves de. op. cit., p. 73. 42. Ibidem, p. 70. 31 Para os gregos antigos, a palavra “arete” significava a expressão do mais alto ideal guerreiro, unido a uma conduta cortês e heroica. Nas suas obras clássicas Ilíada e Odisseia, Homero entendia “arete” como “qualidades morais e espirituais”. Na Ilíada, por exemplo, enaltecia-se “o herói como a expressão do valor moral do combatente, sua valentia, sua coragem e seu espírito de sacrifício”, tanto imortalizado em personagens como Heitor quanto em Aquiles.43 Cerca de 800 anos depois, o grego Plutarco escrevia suas Vidas paralelas, em que biografa 23 personalidades analisadas comparativamente, sendo um indivíduo grego e uma pessoa romana. Seu propósito era moralizante, indicando “exemplos a serem seguidos”. Dentre os personagens estudados, dois se destacam como heróis da Antiguidade: Alexandre e César. Em seu texto, Plutarco procurou enaltecer “a grandeza, a virtude cívica, o heroísmo”. E nisto, ele foi “em grande parte responsável pela construção do mito do herói desses dois grandes personagens históricos.”44 Já durante a Idade Média, a concepção de herói vai além da defesa da virtude, concentrando-se também na defesa da fé cristã, instituída pela Igreja Católica. Ainda segundo Francisco Eduardo: O herói medieval representava o bem acima de tudo, o valor cavalheiresco, a nobreza, a pureza de coração, a valentia ao enfrentar os inimigos e, o mais importante, a fé inabalável em Cristo e no cristianismo. Morrer por sua fé defendendo-a dos infiéis era o máximo que um nobre cavalheiro poderia aspirar. (...) Os heróis seriam os instrumentos divinos para a eliminação da heresia e conversão dos infiéis, defendendo a bandeira de Cristo. A morte na defesa da fé era o ápice do heroísmo.45 Como se percebe, a Igreja, como a principal instituição medieval e responsável pela disseminação da fé e da ética, estimulava o conceito de “guerra justa”, na qual os “justos”, por meio de guerra, deveriam controlar os “ímpios”, pecadores. Neste contexto, os heróis seriam os instrumentos divinos para a eliminação da heresia e conversão de infiéis, defendendo a bandeira de Jesus Cristo. “A morte na defesa da fé era o ápice do heroísmo.”46 43. Ibidem, p. 70. 44. Ibidem, p. 71. 45. Ibidem, p. 71. 46. Ibidem, p. 71. 32 Na Idade Moderna, as contemplações ao herói tornaram-se menos explícitas, talvez em decorrência do recrutamento de mercenários para lutarem junto aos exércitos nas “guerras de reis e príncipes”. Isto não impediu, por exemplo, que personagens militares fossem enaltecidos no período, como Gustavo Adolfo, rei da Suécia e líder inconteste de seu país na sangrenta Guerra dos Trinta Anos, considerado o último conflito religioso da Europa.47 No final do século XVIII e início do XIX, Francisco Eduardo Alves de Almeida busca Georg Friedrich Hegel, que, ao observar a figura majestosa de Napoleão Bonaparte, vencedor triunfante da batalha de Iena sobre os prussianos, em 1806, teve a certeza de que contemplava “o espírito do mundo a cavalo”. Analisa tal feito baseado na razão e não mais na “arete”, defendida por Homero, e nem pela fé imposta pela Igreja; mas um herói dotado de discernimento, razão e liberdade, representante do espírito de seu tempo.48 Arlene Enders ratifica a informação transmitida por Francisco Eduardo e diz: Ao reconhecer em Napoleão a encarnação cega da razão, o momento em que se funda o Estado Moderno, Hegel inaugura uma corrente filosófica que identifica o herói – sinônimo de grande homem – com um momento da história da humanidade a caminho do progresso.49 No raciocínio da autora, a contemplação por meio do culto ao herói não significa concorrer com os santos, mas “introduzir na sociedade as virtudes e os princípios dos novos tempos”.50 Outro exemplo pontuado no culto ao herói é analisado por Alfred Thayer Mahan, que escreveu uma das biografias de Lord Horatio Nelson, morto em combate na Batalha de Trafalgar, em 1805, quando exposto à artilharia francesa, no convés de um navio, em defesa do império britânico, o que gerou crítica, por se suspeitar que ele tenha provocado a morte, para tornar-se o grande herói naval que faleceu ao sacrificar-se na defesa da pátria.51 47. Ibidem, p. 71. 48. Ibidem, p. 72; HOOK, Sidney. op. cit., p. 56. 49. ENDERS, Arlene. op. cit., p. 19. 50. Ibidem, p. 19. 51. Sobre a análise de Alfred Mahan sobre Lord Nelson, consultar: ALMEIDA, Francisco Eduardo Alves de. Os gigantes da estratégia naval: Alfred Thayer Mahan e Herbert William Richmond. Curitiba: Prismas, 2015. 33 Sidney Hook contribui para o entendimento das questões postas e defende o herói como homem-momento e como homem-época. Para ele, O homem-momento é qualquer homem cujas ações tenham influenciado desenvolvimentos subseqüentes numa direção completamente diferente daquela que teria sido seguida se essas ações não tivessem sido perpetradas. O homem-época é um homem-momento cujas ações são as conseqüências de extraordinária capacidade de inteligência, vontade e caráter, em vez de acidentes de posição. Essa distinção tenta fazer justiça à crença geral de que um herói é grande não somente em virtude do que faz, mas em virtude do quer ele é.52 Pelo exposto, o homem-época não deixa de ser o homem-momento, pois ambos aparecem em pontos de inflexão da história, porém as ações do primeiro vão além; elas são resultado da capacidade do uso da inteligência, da vontade e do caráter; virtudes estas que extrapolam seus feitos, para contemplar o ser herói. Já as qualidades do homem-momento geralmente se traduzem em atitudes comuns, sem a devida grandeza, pois esta se constitui em “algo que deve envolver extraordinário talento de alguma espécie, e não meramente a sorte composta de existir e estar no lugar certo num momento feliz”.53 Para Francisco Eduardo, que também se atém a esta mesma diferenciação, o homem–momento age no instante adequado, por meio de um ato relativamente simples de profunda influência no curso da História. O momento chega e o ato se consuma, sendo este o ato supremo do homem-momento. O homem-época, por outro lado, encontra uma bifurcação na estrada da História, no entanto ajuda também a criá-la. Aumenta dessa forma as probabilidades de sucesso para a alternativa que escolhe em virtude das excepcionais qualidades que possui. Ele, assim, possui uma vantagem em relação ao homem-momento. Ele não espera o instante, ele transforma e molda aquele ato decisivo em uma ação refletida e estudada, daí sua superioridade. Assim independe do momento. Ele perdura antes, durante e após o evento histórico.54 52. HOOK, Sidney. op. cit., p. 130. 53. Ibidem, p. 131. 54. ALMEIDA, Francisco Eduardo Alves de. A formação do herói Tamandaré na Marinha do Brasil. op. cit., p. 73. 34 As questões levantadas acima contribuem para pensar em qual situação encontra-se a personagem Tiradentes. Francisco Eduardo Alves de Almeida, a partir de explicações de Sidney Hook, pontua que a partir do século XIX, a concepção de herói está vinculada à nação, não necessariamente a partir do estabelecimento dos estados nacionais, mas enquanto resultado da produção histórico-cultural, desde os tempos remotos, pelas sociedades unidas pela origem, interesses e ideais comuns, os quais conferem identidade e as bases para a construção e permanência de um futuro caráter nacional, permeado pelo espírito contemplativo de preservação dos heróis, refletida no culto à nacionalidade e ao patriotismo, até os dias atuais. A Nação é uma entidade moral no sentido pleno do termo, do qual emanam conceitos importantes e específicos como nacionalidade, que compõe-se de um conjunto de traços morais que dão uma fisionomia especial a ela e ao patriotismo, amálgama indefinível de sentimentos de simpatia recíproca de amor às mesmas tradições, de aspirações de grandeza futura, de unidade e permanência de uma personalidade coletiva. O herói provém exatamente dessas duas características notáveis de Nação: nacionalidade e patriotismo.55 A situação colocada traduz o pensamento incutido na produção de heróis e a apropriação que se faz, enquanto elemento incorporador de valores simbólicos, o que se constitui em disputas e tensões. Na concepção de José Murilo de Carvalho, Herói que se preze tem de ter, de algum modo, a cara da nação. (...) responder a alguma necessidade ou aspiração coletiva, refletir algum tipo de personalidade ou de comportamento que corresponda a um modelo coletivamente valorizado.56 De acordo com o raciocínio apresentado, o herói na história não nasce desvinculado das questões sociais e políticas e nem pode prescindir de sua identidade com a nação, pois sem essas premissas as possibilidades de construção do mito e do herói, enquanto propósitos para disputar e legitimar um regime político se esvaziam e os candidatos ao posto acabam caindo em esquecimento ou são ridicularizados pela maioria da população envolvida. 55. Ibidem, p. 69-70. 56. CARVALHO, José Murilo de. op. cit., p. 55. 35 As definições pontuadas sobre o significado de herói, segundo Arlene Enders ajudam a esclarecer alguns aspectos fundamentais do heroísmo contemporâneo e sugerem seis conjuntos de observações: Essência ou artefato: o estofo dos heróis. Discute as concepções de heroísmo divididas em dois campos heteróclitos: ‘funcionalista’, considera o ‘herói’ produto da conjunção de um indivíduo como os anseios coletivos; o ‘essencialista’, enfatiza as qualidades intrínsecas que fazem do indivíduo um ‘herói’. Na ‘essencialista’, ‘é a personalidade única e excepcional de um personagem que lhe permite influenciar e marcar o curso dos acontecimentos’.57 As questões e concepções defendidas pelos autores contribuem para afirmar se Tiradentes reúne as condições colocadas para se constituir de fato em um herói nacional. Estes pontos, em detalhes, serão discutidos a partir do segundo capítulo, quando se analisará – especificamente – a construção simbólica da nação em torno da figura do alferes Tiradentes. Muitos dos atributos até aqui discutidos serão ali retomados, para que se compreenda a memória e o atributo de “herói da pátria” cognominado ao alferes Joaquim José da Silva Xavier. c-) A imagem como documento Entre fins do século XIX e início do século XX, tivemos o domínio da dimensão política como assunto dos estudos da história. Naquele instante, por exemplo, vivia-se a construção e a consolidação dos Estados nacionais que, para legitimar seus projetos de poder, utilizaram-se da historiografia, baseada em uma história positivista, para enaltecer seus feitos e heróis, conclamando amor à pátria e nacionalismo, contextos identificados ao Estado.58 Ao longo de boa parte do século XIX, a escrita e os documentos de arquivos e fontes oficiais foram os itens dominantes na produção da chamada Escola Metódica, dita positivista. Nos finais daquela centúria, intelectuais e pesquisadores da história 57. ENDERS, Arlene. op. cit., p. 15. 58. D’ALESSIO, Marcia Mansor. A política no fazer e no saber históricos. In: SEBRIAN, Raphael Nunes Nicoletti et alii (Org.). Dimensões da política na historiografia. Campinas: Pontes, 2008, p. 39- 49; p. 39. 36 indicavam que novos elementos podiam e deviam ser incorporados ao fazer histórico.59 Dentre os instrumentos que passaram a ser utilizados pelos pesquisadores da história para melhor compreender e discutir o passado e a sua gênese encontrava- se a iconografia, isto é, as imagens. Instrumento de grande valor histórico e, também, didático, durante a Idade Média, quando a Igreja católica fez uso de imagens sacras para melhor evangelizar as populações analfabetas da Europa, a representação pictórica sempre esteve presente na sociedade humana. Pinturas rupestres estão entre os mais antigos vestígios deixados pelo ser humano em sua passagem por diferentes regiões do planeta. Grupos espalhados por regiões tão díspares, como o deserto do Saara ou a Amazônia brasileira, encontravam na exposição via imagens uma maneira de transmitir aos seus e aos outros que por ali passassem que aquela área havia sido o habitáculo de pessoas. Cavernas, paredões, rochas ou qualquer área seca e ao abrigo da chuva eram utilizados para expressarem anseios e fatos cotidianos. A imagem, assim, é um item que caminha ao longo da história da humanidade. O uso da imagem como documento tornou-se algo natural na expansão dos elementos que serviriam de apoio para a pesquisa dos historiadores. Quadros, pinturas, esculturas e a fotografia se tornaram instrumentos para reconstituição e compreensão do passado humano. A incorporação desse elemento dinamizou e ampliou a capacidade de entendimento que pesquisadores e estudiosos fizeram sobre a história do homem no globo. Pensando a questão da imagem, Charles Monteiro apresenta um resumo interessante do uso dessa ferramenta pelo historiador. Para ele, 59. Por Escola Metódica ou Escola Positivista entende-se a maneira como a investigação científica delegava à história o status de ciência, com a utilização de métodos científicos que a afastasse (a história) do domínio de qualquer especulação filosófica ou literária. Tem por princípio o entendimento de que a história deve julgar o passado e instruir o presente para o benefício das gerações futuras. Neste contexto, é tarefa do historiador reunir um número significativo de fatos e dados, a partir da leitura e da análise de documentos, para descrever o que realmente aconteceu, já que se compreendia que as fontes históricas eram reveladoras da verdade. No contexto, em virtude do prestígio delegado à dimensão política da história, na segunda metade do século XIX, fundou-se a revista Revue Historique, em 1876, pelos historiadores Gabriel Monod e Gustave Charles Fagniez. O grupo da Revista, conhecido como Escola Metódica, tinha como ênfase o político e, como metodologia, uma história linear, factual e centrada no uso de um tempo curto, pontual e cronológico. Conferir: Ibidem, p. 41. 37 As imagens acompanham o processo de hominização e de socialização do homem desde a Pré-história. Antes de apreender e de interpretar o mundo por meio de códigos escritos, o homem desenha, pinta e educa o olhar através de imagens. Nas sociedades atuais, as imagens perpassam a vida cotidiana de indivíduos e de organizações sociais, interferindo nas relações entre os homens com o visível e o invisível.60 Charles Monteiro, utilizando-se da análise do filósofo francês Régis Debray, em Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente, de 1993, discute a função social das imagens. Segundo ele, para o francês, as diferentes relações dos homens com as imagens podem ser dividas em três midiasferas: “logosfera, grafosfera e videosfera”. Cada uma delas – nas palavras de Debray – “‘descreve um meio de vida e de pensamento, com estreitas conexões internas, um ecossistema da visão, e, portanto, um certo horizonte de perspectiva do olhar’.”61 Etimologicamente, ainda de acordo com Charles Monteiro, apoiando-se nas ideias de Régis Debray, o termo imagem “está relacionado a ídolo que vem de ‘eidolon, que significa fantasma dos mortos, espectro, e, somente em seguida, imagem, retrato’.” 62 A logosfera caracteriza-se por um olhar mágico, pois a imagem arcaica tinha uma função mágica, que permitia ao homem representar o irrepresentável, o inexplicável e imortalizar o morto por meio de seu duplo. Na Antiguidade, a confecção de máscaras mortuárias e a produção de lápides para as sepulturas apontavam para a relação entre imagem e morte. A produção deste duplo também estava ligada à necessidade de preservar a memória do morto. A imagem seria o duplo, a sombra, que representaria o triunfo da vida sobre a morte. A representação por intermédio da imagem era um privilégio social e, também, um perigo público, que deveria ser politicamente controlado. Nem todos deveriam merecer o direito à representação. Os poderes não estavam nas imagens, mas nos usos sociais que se faziam delas. 63 60. MONTEIRO, Charles. Pensando sobre a história, imagem e cultura visual. História, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 3-16, 2013, p. 4. 61. Apud. Régis Debray. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 206. In: Ibidem, p. 4. 62. Apud. Régis Debray. Vida e morte da imagem. op. cit., p. 24. In: Ibidem, p. 4. 63. Ibidem, p. 4-5. 38 Segundo Debray, na análise de Monteiro, as imagens são “potência de algo diferente de uma simples percepção, sua capacidade – aura, prestígio ou irradiação – muda com o tempo”.64 Os usos políticos da imagem também são claros desde a pré-história, pois “de seu controle dependia a legitimidade do exercício do poder”. Desde o princípio, a imagem “esteve relacionada à representação e à imitação do real”. Para Monteiro, A noção de mimese, como cópia do real por meio da semelhança, e a representação, visando tornar presente uma ausência e conferir-lhe significados sociais precisos e controlados. Uma troca simbólica e um simulacro fabricado para enfrentar a destruição provocada pela passagem do tempo, agenciar a memória, manter a coesão social e, também, exercer o controle político. Funções sociais que não abolem a dimensão artística do ato de criação da imagem no tempo pelos artistas.65 Ainda como nos alerta Charles Monteiro, a passagem para uma nova midiasfera teria ocorrido entre os séculos XV e XVIII, pelo maior conhecimento e controle do homem sobre o mundo circundante, por intermédio de meios técnicos que lhe permitiram afrontar o ‘pânico’ diante da morte, modelar os materiais do mundo e dominar os procedimentos da figuração. O que teria promovido a passagem da produção, da contemplação do ídolo religioso e da imagem mágica para a imagem de arte.66 Partindo desse pressuposto, Ulpiano Bezerra Toledo de Meneses indica, utilizando-se de Gottfried Boehm, um dos grandes teóricos da imagem, no texto História e imagem: iconografia/iconologia e além, que “a questão da imagem não dispõe de um lugar único e não pode, consequentemente, ser afrontada como um problema coerente.”67 64. Apud. Régis Debray. Vida e morte da imagem. op. cit., p. 15. In: Ibidem, p. 5. 65. Ibidem, p. 5. 66. Ibidem, p. 5. 67. Apud. Gottfried Boehm. História e imagem: iconografia/iconologia e além. In: MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. História e imagem: iconografia / iconologia e além. In. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 243-252; p. 243. 39 Dentre os sentidos do ser humano, a visão tem lugar privilegiado e é por intermédio dela que se codificam e se entendem os diversos signos e significados que fazem do mundo um espaço natural, mas, também, cultural e histórico. A imagem, assim, “nas suas diversas modalidades, tecnologias e funções, foi penetrando todos os tempos e espaços de nossa contemporaneidade”.68 O uso da imagem pela história não fica circunscrita apenas àquilo que está em maior destaque dentro o documento. O imagético possui variáveis, bem como uma multiplicidade de significados e papéis que estão presentes em sua simbologia. Toda fotografia ou pintura é sempre um recorte, uma fração de um todo. Nesse sentido, ao visualizar uma parte e não outra, o autor da imagem interfere, consciente ou inconscientemente, na escolha do que deva ser destacado. O uso da imagem recebe o nome de iconografia. Em sua raiz etimológica indica um “papel descritivo, capaz de alimentar classificações, comparações tradições, circulação”.69 Isto, porém, não é o que define a iconografia em sua relação com a história. Para Boehm, é necessário buscar na imagem “a significação interna de significações externas”.70 A iconografia, como toda criação humana, encontra-se carregada de simbolismo, possuindo, por isso mesmo, característica de transmissora de anseios e de desejos do homem. A imagem, sob muitos aspectos, é também um ato de poder, um poder simbólico. Nesse sentido, Pierre Bourdieu, em sua obra O poder simbólico, define este poder como “construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo”.71 A imagem, em sua constituição simbólica, é a expressão de uma experiência e de um poder. Nela se sintetizam a visão de um determinado olhar sobre a humanidade, sob a história, sob as vivências dos seres humanos e sua realização tecnológica, história, guerras, personalidades, figura tidas como heroicas, mitologia, natureza. A imagem compendia, de modo simbólico, a visão que a humanidade tem de seu tempo e sua sociedade. 68. Ibidem, p. 243. 69. Ibidem, p. 15. 70. Apud. Gottfried Boehm. História e imagem. op. cit., p. 29. In: Ibidem, p. 244. 71. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. São Paulo: Difel, 1989, p. 9. 40 Se a imagem expressa um poder, se ela manifesta ideias e predileções de um grupo ou indivíduo, de uma classe, de uma ideologia, ela é, no entanto, “uma forma transformada, quer dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder”.72 Nesse sentido, o entendimento da imagem e sua simbologia exigem que se compreenda e interprete o que o visual transmite. Desse modo, “o visível é sintoma do invisível, e todo o objeto, toda a imagem, significa mais do que a aparência e pode conduzir à circunscrição de um inconsciente coletivo, uma cosmovisão, um espírito da época”.73 O entendimento e a apropriação da imagem no campo do historiador proporcionaram significativos avanços no estudo da história. Neste sentido, ao trazer para o campo da história um elemento tão cheio de simbolismo e que representa um recorte da realidade e uma escolha deliberada do autor daquela obra, o historiador pode melhor discutir e entender os silêncios que compõem a própria história. Os espaços que não são tomados ou abarcados pelos documentos escritos, e por testemunhos orais, pelas experiências de grupos e pessoas, podem ser incluídos no estudo historiográfico, a partir do uso das imagens. Vale lembrar que no início do século XX, a Escola dos Annales criticou a concepção de documento utilizada pelos membros da Escola Metódica, procurando ampliar o rol de fontes históricas, incluindo-se nelas as imagens, na busca, por exemplo, de informações sobre práticas cotidianas, como aspectos do universo privado, da leitura, da infância, etc.74 Porém, de acordo com Charles Monteiro, o uso que se fez dessas imagens no processo de interpretação da história era ainda muito limitado e, em alguns casos, mais uma vez, carecia de um diálogo com as questões postas pelo campo da História da Arte. Os historiadores que mais se aventuraram na interpretação das imagens foram aqueles que investigavam a Antiguidade e o Medievo.75 72. Ibidem, p. 243. 73. MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. op. cit., p. 245. 74. A Escola dos Annales é um movimento historiográfico constituído em torno da revista francesa Annales d’Histoire Économique et Sociale, de 1929, que propunha ir além das interpretações positivistas ou metódicos da história como crônica de acontecimentos. 75. MONTEIRO, Charles. op. cit., p. 8. 41 Apesar disso, Monteiro, apoiando-se em discussão proposta por Jean Claude Schmitt, na introdução de O corpo das imagens, de 2007, observa que “ao longo da história da disciplina teria ocorrido um grande desencontro entre a História (social, política e mesmo cultural) e a História da Arte.”76 No entanto, Monteiro nos lembra de que uma mudança de postura ocorre nos anos 1970, “tanto pelo impacto crescente da televisão, do videocassete, do cinema, da fotografia, da publicidade e de novas práticas artísticas híbridas (videoinstalações, performances, etc.) na vida cotidiana, quanto pelas rupturas epistemológicas no campo das Ciências Sociais.” Nesse momento, surgiram os Estudos Visuais, tributários de um movimento mais amplo de renovação do campo das Ciências Sociais, na esteira dos chamados estudos culturais, pós-estruturalistas, pós-coloniais, de gênero e sobre etnicidade, que colocaram em pauta temas transversais aos estudos sobre literatura, cinema, artes visuais e meios de comunicação.77 As imagens e seu uso pela historiografia possibilitam a uma integração entre o visual e a compreensão e entendimento do funcionamento e transformação de uma sociedade. Isso, no entanto, não significa que esta prescinda do texto. Ao contrário, o estudo, a discussão, a análise e o entendimento da imagem utilizada enquanto fonte documental pelo historiador necessita da escrita. É, por meio da escrita, das palavras e frases postas em uma página para construção de um texto, que o historiador pode expressar sua compreensão e seu estudo sobre determinada imagem, utilizada ali como documento histórico. Essa interpretação, é preciso dizer, não significa o fim do entendimento sobre o documento iconográfico. Ao contrário, cada historiador faz uso da iconografia partindo sempre da necessidade de responder a questões e indagações por ele aventadas em sua pesquisa. O problema, os objetivos de um projeto e o tema selecionado são os vetores que levam o pesquisador a buscar na análise iconográfica um arcabouço para responder às dúvidas por eles acionadas em seu trabalho. 76. Apud. Jean Claude Schmitt. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: Edusc, 2007. In: Ibidem, p. 8. 77. Ibidem, p. 8. 42 A interpretação e o entendimento do estudo de uma imagem e seu contexto limitam-se, assim, pelas balizas que a pesquisa científica impõe a qualquer cientista. Umberto Eco indica que Consequentemente, texto algum pode ser interpretado segundo a utopia de um sentido autorizado fixo, original e definitivo. A linguagem sempre diz algo mais do que seu inacessível sentido literal, o qual já se perdeu a partir do início da emissão textual.78 As imagens são imagens do real, mas não são o real. Elas possuem a característica de transmitir um determinado conhecimento sobre o real, mas não são de fato o real em sim. Limitam-se pelas fronteiras e visões que o responsável por aquela iconografia indicou. Nesse sentido, tendo-se como base as ideias de Roger Chartier, podemos apontar que as “representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinados pelos interesses de grupo que a forjam”.79 A iconografia é também uma forma de linguagem. Sobre esse prisma, o historiador inglês John Pocock, ao falar sobre linguagem e a sua relação com a época em que foi feita, esclarece que cada contexto linguístico indica um contexto político, social ou histórico, no interior do qual a própria linguagem se situa (..) somos obrigado a reconhecer que cada linguagem, em certa medida, seleciona e prescreve o contexto dentro do qual ela deverá ser reconhecida.80 Para conseguir trabalhar em benefício do ser humano, a história precisa esclarecer elementos do passado, explicar eventos, indagar e lançar novas respostas para problemas que angustiam a humanidade em seu presente. Para pesquisar, o historiador recorre às fontes históricas. Tudo aquilo que o homem produziu pode e deve ser utilizado como uma fonte histórica. Por meio dela se obtém saberes sobre os regimes de historicidades de sociedades passadas. É preciso entender, porém, que o conhecimento histórico é maior do que qualquer fonte. Reinhart Koselleck diz que 78. ECO, Umberto. Os limites da interpretação. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. XIV. 79. CHARTIER, Roger. op. cit., p. 16. 80. POCOCK, John Greville Agard. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003, p. 37. 43 toda fonte, ou, mais precisamente, todo vestígio que se transforma em fonte por meio de nossas interrogações nos remete a uma história que é sempre algo mais ou algo menos que o próprio vestígio, e sempre algo diferente dele. Uma história nunca é idêntica a fonte que dela dá testemunho. Se assim fosse, toda fonte que jorra cristalina seria já a própria história que se busca conhecer. 81 Na impossibilidade de se atingir uma verdade absoluta, encontra-se a explicação para o que Koselleck afirma. Ao trabalhar com vestígios, com indícios deixados pelo homem em sua passagem pela Terra, estará o historiador trabalhando com dados que jamais exprimirão a totalidade de um acontecimento. O conhecimento histórico é feito pelo permanente diálogo com fontes, conceitos, autores. Diferentes saberes auxiliam no trabalho do historiador, somente pelo diálogo com outras áreas das ciências é que o conhecimento histórico avança. Ao elaborar um texto, o pesquisador procura sempre manter um diálogo com toda a comunidade acadêmica, de modo que sua pesquisa possa vir alicerçada por uma gama de outros autores que estão ali para corroborar, por meio de seus conceitos e saberes, com aquilo que o historiador está escrevendo. Nesse sentido, o saber histórico é sempre devedor de outras áreas com as quais comunga. Longe de representar uma fraqueza, isso significa que o conhecimento histórico é o mais amplo possível. A leitura representada pela análise iconográfica nos permite aprofundar a compreensão de comportamentos humanos e de nossa produção cultural e social. Por isso, muitos trabalhos históricos passaram a adotar sua abordagem. Mas não se trata de uma chave universal e única de compreensão da história; ela é apenas um elemento de explicação, dentre outros. Ao utilizar a iconografia em seus estudos, o historiador entende esse elemento dentro de um sistema de comunicação visual que agrega ambientes visuais. As imagens se traduzem como linguagem, possuindo, assim, significado próprio. Dessa maneira, o domínio do visual compreenderia os sistemas de comunicação visual e os ambientes visuais, bem como os suportes institucionais dos sistemas visuais, as condições técnicas, sociais e culturais de 81. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição a semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006, p. 92. 44 produção, circulação, consumo e ação dos recursos e produtos visuais, para poder circunscrever a iconosfera, isso é, o conjunto de imagens-guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage.82 Tratar da imagem e de seu uso pela história é também escrever a respeito da fotografia e seu desenvolvimento. Desde que as primeiras chapas fotográficas foram retiradas na Europa, no século XIX, que este produto tecnológico se tornou item fundamental para entendimento das sociedades contemporâneas. O desenvolvimento da fotografia, e de toda a indústria a ela associada, possibilitou que se desenvolvessem jornais, revistas, livros, indústria de quadrinhos, cinema e toda uma gama variada de tecnologia voltada para o lazer, para a diversão, o trabalho e os estudos. Com a fotografia, o mundo capitalista do século XX obteve uma de suas mais destacadas características: a primazia do visual sobre a escrita. As sociedades modernas passaram a valorizar a imagem e o seu uso para exprimir alegrias e angústias. O desenvolvimento da indústria associada à fotografia, tais como filmes, câmeras, estúdios, máquinas e toda uma variedade de instrumentos e pessoas voltadas para esse tipo de atividade fim, direcionou a sociedade capitalista moderna para o uso intensivo do imagético em seu cotidiano. Criou-se uma tradição iconográfica, que, por sua vez, produziu memórias sociais que foram forjadas “por intermédio da narração”. Pragmaticamente as imagens produzidas no século XX eram “cada vez mais carregadas de significados e cada vez mais persistentes ao longo do tempo”.83 A sociedade contemporânea, a partir da consolidação do visual entre a população, passou a problematizar a forma como os diversos tipos de imagens perpassam a vida social cotidiana criando a visualidade de uma época, relacionada às técnicas de produção e de circulação das imagens, às formas de se visualizar os diferentes grupos e espaços sociais (estabelecendo padrões de visualidade), permitindo, assim, problematizar o olhar ou modos de ver (a visão), experiência que medeia a nossa compreensão da realidade e inspira modelos de ação social (os chamados regimes de visualidade).84 82. MONTEIRO, Charles. op. cit., p. 10. 83. MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. op. cit., p. 250. 84. MONTEIRO, Charles. op. cit., p. 12. 45 Nesse sentido, o uso da imagem pelos historiadores, as problemáticas daí advindas, as possibilidades de interpretação e o diálogo que foram forjadas com o uso da iconografia e a ampliação do escopo de fontes e documentos, que o universo da história tem para compreender o passado, só evidencia o quanto os estudos históricos têm a contribuir para o melhor entendimento do mundo moderno e suas problemáticas. 46 1 Tiradentes: o homem, a história e a construção simbólica da nação Preâmbulo Em seus quase 227 anos, desde o final trágico dos conjurados mineiros sentenciados pelo crime de lesa-majestade em 1792, a historiografia em torno da Inconfidência Mineira está recheada de controvérsias e paixões, a começar pelo estudo de seu mais destacado participante, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, que ainda muito pouco se conhece de sua vida anterior ao movimento mineiro, seu patrimônio, sua formação intelectual, seus descendentes, etc.85 Mesmo nos últimos anos com o aparecimento de novas publicações sobre a Inconfidência ou alguns de seus integrantes, pouco se avançou. Exceções foram as contribuições de Laura de Mello e Souza sobre a história do poeta mineiro Cláudio Manuel da Costa e sua família;86 as de Adelto Gonçalves sobre Tomás Antônio Gonzaga e sobre Salvador Carvalho do Amaral Gurgel87; e as de Rosalvo Gonçalves Pinto sobre os inconfidentes Resende Costa.88 Publicações outras oriundas de pesquisas acadêmicas – realizadas como dissertações de mestrado ou teses de doutorado – também proporcionaram avanços significativos ao desvendar relações econômicas, políticas e sociais de inconfidentes e suas famílias no universo das Minas Gerais setecentista, como as desenvolvidas por João Pinto Furtado sobre os conflitos de interesses pessoais e políticos no movimento89; por Maria Lúcia Resende Chaves Teixeira sobre as fazendas e escravos em Minas Gerais da primeira metade do século XIX, com dados sobre a 85. Apenas no final de julho de 2018, a história do alferes Tiradentes ganhou uma biografia moderna. Conferir: FIGUEIREDO, Lucas. O Tiradentes: uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 86. SOUZA, Laura de Mello e Souza. Cláudio Manuel da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 87. GONÇALVES, Adelto. Gonzaga, um poeta do Iluminismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; Idem. O inconfidente que virou santo: estudo biográfico de Salvador Carvalho do Amaral Gurgel. Estudos Avançados, São Paulo: IEA-USP, v. 24, n. 69, p. 119-141, 2010. 88. PINTO, Rosalvo Gonçalves. Os inconfidentes José de Rezende Costa (pai e filho) e o Arraial da Lage. 2. ed. rev. e ampl. Resende Costa: AMIRCO, 2014. 89. FURTADO, João Pinto. O manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 47 família de José de Resende Costa90; as de André Figueiredo Rodrigues sobre a constituição do patrimônio material dos inconfidentes mineiros91; e as de Francisco Eduardo Pinto sobre a ocupação de terras na capitania de Minas Gerais, ao estudar detidamente Alvarenga Peixoto.92 No tocante às histórias de vida dos demais partícipes da Inconfidência, as obras já clássicas de Márcio Jardim e de José Crux Rodrigues Vieira são referências.93 No contexto, pesquisas sobre Tiradentes, apesar de serem a maioria dentre as produções sobre a Inconfidência Mineira, “são artigos curtos, sucintos ou palestras repetitivas, apresentados na data comemorativa” do aniversário de sua morte.94 Mas, afinal, quem foi o alferes Tiradentes? De sua biografia ainda muito pouco se conhece de sua vida que seja anterior ao movimento intentado em Minas Gerais no final do século XVIII. Mesmo assim, tentemos apresentá-lo. A trajetória do alferes Joaquim José da Silva Xavier Pouco se sabe sobre os anos iniciais da vida de Tiradentes. Isto ocorre, notadamente, pela ausência de documentos de época, em virtude de muitos deles terem sido perdidos ou sofrido alterações, o que gerou incertezas sobre momentos de sua vida, ou, então, não terem sido produzidos. 90. TEIXEIRA, Maria Lúcia Resende Chaves. Família escrava e riqueza na Comarca do Rio das Mortes: o Distrito da Lage e o Quarteirão do Mosquito. São Paulo: Annablume; Coronel Xavier Chaves: Prefeitura Municipal de Coronel Xavier Chaves, 2006. 91. RODRIGUES, André Figueiredo. Um potentado na Mantiqueira: José Aires Gomes e a ocupação da terra na Borda do Campo. São Paulo, 2002. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; Idem. A fortuna dos inconfidentes: caminhos e descaminhos de bens de conjurados mineiros (1760-1850). São Paulo: Globo, 2010. 92. PINTO, Francisco Eduardo. Hidra de sete bocas: sesmeiros e posseiros em conflito no povoamento das Minas Gerais (1750-1822). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2014. 93. JARDIM, Márcio. A Inconfidência Mineira: uma síntese factual. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1989; VIEIRA, José Crux Rodrigues. Tiradentes: a Inconfidência Mineira diante da História. Belo Horizonte: 2º Clichê Comunicação & Design, 1993. 3 v, 2 t. 94. RODRIGUES, André Figueiredo. O clero e a Conjuração Mineira. São Paulo: Humanitas FFLCH- USP, 2002, p. 25. 48 Para a historiografia, ainda existem perguntas sobre sua trajetória que carecem de respostas, como sobre sua infância e personalidade empreendedora ao lançar-se quando jovem em atividades de comércio e mineração, suas relações com os irmãos e parentes próximos, suas convicções políticas, sua aparência física e o seu verdadeiro papel no movimento insurreto mineiro. De acordo com João Pinto Furtado, suas características físicas, segundo a historiografia oficial, são ser “um homem magro, [com] cabelos longos e negros, [e] barbudo”.95 Com base nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira existem poucas informações sobre seu aspecto físico. Lê-se em apenas três depoimentos que Tiradentes “não era moço e já tinha cabelos brancos”96, que era “um oficial feio e espantado”97 e que “já tinha cabelos brancos e (...) falava com muita liberdade”.98 O alferes Tiradentes nasceu na Fazenda do Pombal, propriedade de seus pais situada na circunscrição territorial da vila de São João del-Rei. Esta fazenda era, segundo José Crux Vieira, uma propriedade respeitável: casa grande, capela, senzalas, moinho, etc. A casa tinha dois pavimentos, com largo alpendre, acomodações no térreo para guardar carros e ferramentas, com oficina de consertos. Ao lado, a ermida erguida em honra de N. Sra. da Ajuda. Pena que o tempo tenha arruinado tudo. Hoje, encontra-se apenas vestígios das ruínas da fazenda. A capela de N. Sra. da Ajuda, oratório familiar, foi depois também votada a São Sebastião, pois, [na certidão] do batizado [de Tiradentes], o celebrante fez constar ‘Capela de São Sebastião do Rio Abaixo’. A casa e o santuário já não existem.99 95. FURTADO, João Pinto. op. cit., p. 61. 96. Formação de culpa (II) – Minas Gerais: inquirição da testemunha Basílio de Brito Malheiro do Lago. Casa de aposentadoria do desembargador José Pedro Machado Coelho Torres, Vila Rica, 28/07/1789. In: AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira. op. cit., v. 4, 1981, p. 89-90. 97. Auto de perguntas ao coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto. 2ª inquirição. Fortaleza da Ilha das Cobras, Rio de Janeiro, 14/01/1790. In: AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira. op. cit., v. 5, 1982, p. 117. Neste mesmo depoimento, Alvarenga refere-se também à conversa que tivera com o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, na qual o militar lhe contara que Tiradentes falava tão inflamado que chegava a chorar. Nesse depoimento, a palavra “feio” equivale a não- refinado, não-elegante, uma pessoa que não agrada à primeira vista pelo modo de se vestir. Já o vocábulo “espantado” parece equivaler a exaltado, “tendo-se como referência ser o alferes aquele tipo de pessoa que tem o olhar vivo, sempre alerta, penetrante e que dá ideia de estar permanentemente atento ao que se passa em sua volta, característica de personalidade agitada, exaltada, inquieta.” In: JARDIM, Márcio. op. cit., p. 80. 98. Formação de culpa (II) – Minas Gerais: inquirição da testemunha Basílio de Brito Malheiro do Lago. Casa do desembargador Pedro José Araújo de Saldanha, Vila Rica, 18/07/1789. In: AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira. op. cit., v. 1, 1976, p. 228. 99. VIEIRA, José Crux Rodrigues. op. cit., v. 1, p. 7. 49 Quanto à data de seu nascimento, muito provavelmente deva ter ocorrido em 1746, já que não se tem qualquer documento alusivo a este registro de nascimento, apenas a sua certidão de batismo, ocorrido em 12 de novembro de 1746; o que nos permite pressupor que ele tenha nascido naquele mesmo ano.100 Na certidão do batismo lê-se: Aos doze dias do mês de novembro de mil setecentos e quarent