unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP VANESSA STEVAN AS CRÔNICAS DO INCA GARCILASO DE LA VEGA: UM DISCURSO DE LEGITIMAÇÃO ARARAQUARA – SP. 2010 VANESSA STEVAN AS CRÔNICAS DO INCA GARCILASO DE LA VEGA: UM DISCURSO DE LEGITIMAÇÃO Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresentado ao Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Silvia Beatriz Adoue ARARAQUARA – SP. 2010 Stevan, Vanessa As crônicas do Inca Garcilaso de la Vega: um discurso de legitimação / Vanessa Stevan – 2010 32 f. ; 30 cm Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Letras) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientador: Silvia Beatriz Adoue 1. Garcilaso de la Vega, Inca, 1539-1616. 2. Mestiços. 3. Incas. 4. Nobreza. 5. Colonização. I. Título. VANESSA STEVAN AS CRÔNICAS DO INCA GARCILASO DE LA VEGA: UM DISCURSO DE LEGITIMAÇÃO Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresentado ao Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Silvia Beatriz Adoue Data de aprovação: ___/___/____ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profa. Dra. Silvia Beatriz Adoue - UNESP Membro Titular: Profa. Dra. María Dolores Aybar Ramírez - UNESP Membro Titular: Profa. Dra. Nildicéia Aparecida Rocha - UNESP Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara DEDICATÓRIA Dedico este trabalho à minha querida mãe Clarice Mendes Stevan, por representar meu maior exemplo e experiência de amor, carinho e dedicação, e sobretudo, por acreditar nos meus sonhos e ideais. Bem como, ao meu pai Vanderci Stevan por representar meu referencial de determinação e inteligência, e sempre me apoiar nos meus estudos e em todos os momentos desta importante etapa de minha vida. AGRADECIMENTOS À minha orientadora Silvia Beatriz Adoue, pela paciência na orientação e incentivo para que fosse possível a conclusão deste trabalho; e principalmente, por contribuir com o seu conhecimento, fato que muito me ajudou para o meu amadurecimento intelectual. Aos meus pais e minha irmã pelo amor e apoio, e por representarem o alicerce para que eu chegasse até esta etapa da minha vida. Ao meu namorado Josimar Antonio Ture, pelo grande amor e carinho, bem como, pela paciência e compreensão nos momentos em que foi preciso me ausentar, e por representar o meu futuro. À minha grande amiga Lesli Neiva Leite, por me acompanhar e me apoiar em todos estes anos da graduação, com quem pude dividir a angústia das provas e a alegria de comemorações. À Marcio Figueiredo, que de maneira muito gentil, me ajudou a refletir sobre o tema estudado neste trabalho e sempre esteve disposto a compartilhar os seus conhecimentos. E à Deolinda de Jesus Freire, que me auxiliou e forneceu material para a pesquisa deste trabalho. Contando la historia desde dentro de las fronteras discursivas europeas, el Inca asume la posición de un historiador mestizo de buena cuna que intenta negociar su propio equilibrio armonioso entre dos culturas. (ROSS, 2006, p. 164) RESUMO A literatura latino-americana está marcada pela heterogeneidade existente na América Latina, e a crônica é considerada o início desta heterogeneidade, devido ao fato de narrar um mundo desconhecido a leitores que fazem parte de outra realidade, gerando assim, uma situação de conflito. Os relatos escritos das civilizações andinas, em sua maioria, são de cronistas espanhóis, no entanto, também nos deparamos com alguns cronistas “índios” e mestiços, como o Inca Garcilaso de la Vega. Ele se destaca não somente por representar esta pequena parcela, ou seja, por ser um mestiço, mas, principalmente por ser herdeiro de duas nobrezas: a nobreza espanhola e a nobreza incaica. O cronista Inca Garcilaso era filho do capitão espanhol Garcilaso de la Vega, que possuía uma família que se destacava na guerra e na literatura; e de Chimpu Ocllo, uma princesa Inca, neta do Imperador Túpac Inca Yupanqui. Porém, este privilégio em relação aos outros mestiços, não lhe garantia o reconhecimento como nobre diante da coroa espanhola. Por isso, veremos neste trabalho que um dos seus intuitos ao escrever as crônicas Comentarios Reales de los Incas e Historia General del Perú, era o de tentar legitimar o seu status social diante dos espanhóis por meio de relatos que descrevem todos os feitos e avanços dos Incas, bem como afirmar, como uma de suas justificativas, que a colonização foi aceita pelos indígenas e estes estavam aptos à catequização, sendo uma maneira do Rei da Espanha e a Igreja Católica “salvarem” este povo da barbárie. Desta maneira, o Inca Garcilaso cria um discurso contraditório, pois, ao mesmo tempo que defende os espanhóis, ele glorifica o Império Inca. Palavras – chave: Inca Garcilaso de la Vega. Mestiço. Império Inca. Nobreza. Colonização. Heterogeneidade. RESUMEN La literatura latino-americana se caracteriza por la heterogeneidad que existe en América Latina, y la crónica es considerada el inicio de esta heterogeneidad, debido al hecho que es un mundo desconocido narrado a los lectores que forman parte de otra realidad, generando así una situación de conflicto. Los relatos escritos sobre las civilizaciones andinas, en su mayoría, son de cronistas españoles, sin embargo, también nos deparamos con algunos cronistas “indios” y mestizos, como el Inca Garcilaso de la Vega. Él se destaca no sólo por representar esta pequeña porción, es decir, como un mestizo, también por tratarse de un heredero de dos noblezas: la nobleza española y la nobleza incaica. El cronista Inca Garcilaso era hijo del capitán español Garcilaso de la Vega, que tenía una familia que se destacó en la guerra y en la literatura; y de Chimpu Ocllo, una princesa Inca, nieta del Emperador Túpac Inca Yupanqui. Sin embargo, este privilegio en relación a los otros mestizos, no le garantía el reconocimiento como noble delante de la corona española. Así, veremos en este trabajo que unos de sus motivos para escribir las crónicas Comentarios Reales de los Incas y Historia General del Perú fue tratar de legitimar su posición social frente a los españoles a través de relatos que describen los hechos y avances de los Incas, así como afirmar, como una justificación, que la colonización fue aceptada por los indígenas y que éstos estaban aptos para la catequización, siendo ésta la manera aducida por manera, el Inca Garcilaso crea un discurso contradictorio, pues al mismo tiempo que defiende los españoles, él glorifica el Imperio Inca. Palabras-claves: Inca Garcilaso de la Vega. Mestizo. Imperio Inca. Colonización. Heterogeneidad. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................p. 09 1. HETEROGENEIDADE NA AMÉRICA LATINA E A LITERATURA........................p. 10 2. O INCA GARCILASO DE LA VEGA............................................................................p. 12 2.1 Crônicas do Inca Garcilaso de la Vega.......................................................................p. 13 3. A NOBREZA INCAICA E A SUA RELAÇÃO COM O INCA GARCILASO.............p. 15 3.1 A nobreza Inca............................................................................................................p. 15 3.2 O Inca Garcilaso e a mestiçagem................................................................................p. 17 4. A COLONIZAÇÃO DO PERU E O DECLÍNIO DA NOBREZA INCA.......................p. 21 4.1 Argumentações do Inca Garcilaso de la Vega para legitimar a nobreza incaica........p. 21 4.2 O episódio de Cajamarca............................................................................................p. 25 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................p. 30 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................p. 31 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA.....................................................................................p. 32 INTRODUÇÃO A literatura latino-americana, desde sua formação, está marcada pela heterogeneidade étnico-social da América Latina. Ao considerarmos o processo histórico e literário, temos o que muitos autores designam como “literatura de conquista”, caracterizada principalmente pelas crônicas escritas por colonizadores e que tinham a intenção de informar a realidade desconhecida do Novo Mundo. No entanto, também encontramos por meio desta literatura, relatos escritos de alguns “índios” e mestiços sobre o processo de colonização. Deste modo, para pensarmos sobre o período de colonização hispano-americana, mais especificamente a chegada dos espanhóis na região do Peru, estudaremos o cronista Inca Garcilaso de la Vega, uma figura importante não somente pela sua condição de mestiço, mas principalmente, por não ser uma mestiçagem qualquer, pois além de ser herdeiro da nobreza espanhola, ele era também descendente da nobreza indígena. Neste domínio de reflexão, temos na obra deste mestiço um relato que defende a conquista dos espanhóis, mas que ao mesmo tempo não deixa de apresentar para seus leitores a nobreza do Império Inca e os seus feitos. Logo, é uma forma que o Inca Garcilaso encontra para harmonizar estes dois povos distintos, bem como, reafirmar o poder desta nobreza indígena diante dos espanhóis. Assim, o intuito deste trabalho é demonstrar como Inca Garcilaso de la Vega tenta legitimar o seu status social atual nas gerações passadas, apresentando uma origem “civilizada” da nobreza incaica, por meio das crônicas de Comentarios Reales de los Incas e Historia General del Peru. Para isso, partiremos de situações relatadas em suas crônicas, como, por exemplo, o caso do episódio de Cajamarca. 1. HETEROGENEIDADE NA AMÉRICA LATINA E A LITERATURA O conceito de heterogeneidade na América Latina está relacionado ao fato da cultura não ter se formado de maneira homogênea, e sim pela presença de elementos que convivem juntos, mas nunca formam algo único. Esta definição é importante não somente para entendermos o processo social e histórico, mas também é necessária para compreendermos o sentido da literatura hispano-americana. Por meio dos estudos de Cornejo Polar (2000) percebemos o processo de formação das diversas tradições literárias da América Latina, como se observa no trecho a seguir: [...] a literatura latino-americana está formada por vários sistemas literários que são parte da heterogeneidade étnico-social da América Latina, mas estes sistemas não são independentes: produzidos dentro de um processo histórico comum, relacionam-se entre si mediante vínculos de contradição que essa história explica, e constituem, como conjunto, uma totalidade igualmente contraditória. (p. 11). A história permite explicar os motivos da pluralidade da literatura latino-americana, bem como o fato de que não podemos estabelecer os limites de um período literário, ou seja, não temos um momento inaugural e outro de encerramento no período colonial. É necessário termos consciência de como aconteceu todo o processo social e as produções literárias, pois senão sempre tenderemos a privilegiar a chamada “literatura culta”, como acontece na fortuna hegemônica, que versa sobre as produções homogêneas e desconsidera os outros sistemas literários. Na América Latina, cada sistema representa a atuação de sujeitos sociais diferenciados e em contenda, instalados em âmbitos lingüísticos distintos, idiomáticos ou dialetais, e forjadores de racionalidades e imaginários frequentemente incompatíveis. (CORNEJO POLAR, 2000, p. 50). Podemos considerar deste modo, que o início da heterogeneidade literária se manifesta nas crônicas. Estas têm o intuito de apresentar uma realidade desconhecida a um leitor que ignora totalmente ou parcialmente a situação. Assim, as “crônicas de conquista”, surgiram por meio de escritos de humildes soldados e aventureiros que improvisavam como cronistas e historiadores para poder descrever o que tinham descoberto no Novo Mundo. La crónica se vuelve un género de estudio y reflexión, cuya pretensión es ofrecer abarcadoras visiones de conjunto y compendios eruditos de la empresa conquistadora, contemplada ya con la perspectiva de más de un siglo. La intención es exhaustiva, tratando de cubrir el proceso entero o sus porciones más significativas. (OVIEDO, 2007, p.191)1 Neste caso, o leitor destes relatos são o rei e a metrópole, tendo o cronista a função de representar aquilo que está escrevendo, mas sempre interpretando de forma inteligível, acudindo a comparações para fazer uma aproximação a essa realidade desconhecida. As literaturas heterogêneas criam necessariamente uma situação de ambigüidade e conflito, características que podem ser encontradas no Barroco. Este estilo artístico, que surgiu entre o início do século XVII e meados do século XVIII na Itália, teve na América um lugar favorável para se desenvolver, principalmente, pelo contraste visto depois da colonização. Assim, na crônica “[...] o texto e o seu consumo correspondem a um universo, e o referente, a outro distinto e mesmo oposto.” (CORNEJO POLAR, 2000, p. 164). Deste modo podemos pensar que além da arqueologia e a iconografia, somente temos a reconstrução do passado por meio dos testemunhos, ou seja, das crônicas escritas por espanhóis, “índios” e mestiços. 1 “A crônica se transforma em um gênero de estudo e reflexão, cuja pretensão é oferecer abrangentes visões de conjunto e compêndios eruditos da empresa conquistadora, que já é contemplada com a perspectiva de mais de um século. A intenção é exaustiva, tratando de cobrir o processo inteiro ou suas partes mais significativas.” (esta e as seguintes traduções são da autora deste trabalho, quando não houver outra indicação de tradutor) 2. O INCA GARCILASO DE LA VEGA Inca Garcilaso de la Vega, nasceu em Cuzco, capital do Império Inca, no dia 12 de abril de 1539 – sete anos depois da conquista do Peru pelos espanhóis. Filho do capitão espanhol Sebastián Garcilaso de la Vega y Vargas e da princesa Inca Chimpu Ocllo, ele ficou conhecido pelo nome que fazia referência ao seu pai, no entanto, o seu verdadeiro nome era Gómez Suárez de Figueroa, batismo dos antepassados de sua família paterna. O capitão Garcilaso chegou ao Peru quando o governador espanhol Francisco Pizarro havia acabado de conquistar esta terra. Assim, Inca Garcilaso viveu até doze ou treze anos de idade na América, sendo sua primeira língua o quéchua – língua da capital Inca. Foi nesta época que ele aproveitou a convivência com a mãe para aprender os costumes, bem como, escutou vários relatos orais de seus parentes sobre a cultura incaica, o que lhe favoreceu na escrita de suas crônicas. Desta forma, sua infância foi marcada pela convivência com os indígenas, ao contrário de sua adolescência influenciada pelos espanhóis, como destaca Miro Quesada (s/d) no “Prólogo” de Comentarios Reales de los Incas: La vinculación sentimental con su madre y con el mundo de su madre, tan decisiva en sus años infantiles, no afectó sin embargo su corporación irreversible al mundo social y cultural que representaba su padre el Capitán. (p. XV) 2 Apesar do relacionamento que o capitão Garcilaso teve com Chimpu Ocllo, o espanhol em 1549 casou com a dama espanhola Luisa Martel de los Rios. Depois de abandonada, a princesa Inca, já batizada de Isabel, casou-se com Juan del Pedroche, espanhol que fazia parte do povo. Em 1559, o capitão Garcilaso morre e deixa um testamento em que consta que o seu filho mestiço tinha direito a seu dinheiro para poder estudar na Espanha. Com isso, no ano seguinte, Inca Garcilaso de la Vega viaja para Europa, onde se hospeda na casa do seu tio paterno Don Alonso, e permanece durante trinta anos. Neste período, o mestiço reclama seus bens paternos e ainda, em 1564 ingressa no exército, e luta na Itália e em outros países, ficando conhecido pelos grandes feitos militares como seu pai. Com a morte de seu tio, Inca Garcilaso ascende socialmente e economicamente, e em 1589 se muda para Córdoba. Posteriormente se torna sacerdote, dedicando-se a estudos voltados para a cultura humanista, bem como a redação de suas obras literárias. O mestiço 2 “A relação sentimental com sua mãe e com o mundo de sua mãe, tão decisiva nos seus anos de infância, no entanto, não afetou a sua incorporação irreversível ao mundo social e cultural que representava seu pai, o Capitão.” nunca mais retornou ao Peru e morreu em Córdoba no dia 22 de Abril de 1616. Ele foi o primeiro escritor nascido na América espanhola que ganhou nome universalmente. Sua primeira obra foi a tradução do livro renascentista Dialoghi di amore de León Hebreo (1590) – resultado do período que esteve no exército e aprendeu o italiano. Em seguida, escreve a obra Florida del Inca, historia del adelantado Hernando de Soto que foi publicada em 1605, e conta a expedição deste conquistador pela Flórida e outros territórios, de acordo com testemunhos de Gonzalo Silvestre, que acompanhou Soto nesta expedição. Es una obra cuya cualidades puramente literarias y artísticas tienen una autonomía interna aún mayor que en los Comentarios reales: siendo una crónica, largos pasajes pueden ser leídos como una narración de aventuras, con ecos de la novela de caballerías y la épica renacentista [...] (OVIEDO, 2007, p. 195)3 Posteriormente, ele publica a primeira parte de sua grande obra Comentarios Reales de los Incas (1609), sendo sua segunda parte publicada postumamente em 1617, com o título de Historia General del Peru. 2.1. Crônicas do Inca Garcilaso de la Vega Comentarios Reales de los Incas é considerada a grande obra do cronista Inca Garcilaso de la Vega. Para escrever estas crônicas, ele utilizou anotações feitas por Francisco López de Gómara, mas apoiou-se principalmente em escritos do Padre Blas Valera, que era mestiço como o Inca Garcilaso, mas por causa de seu grande conhecimento e estudo, fez parte da Companhia de Jesus. Padre Valera percorreu quase todo território peruano, o que lhe possibilitou deixar vários relatos deste país e de seu povo nativo. Esta obra é dividida em duas partes, sendo que a primeira aborda todos os períodos do povo da sua mãe, desde os tempos pré-incaicos até o último imperador da civilização Inca, Atahualpa. Com 262 capítulos, Inca Garcilaso oferece ao seu leitor detalhes dos costumes, religião, educação, atividades e outros aspectos da vida dos Incas. Para isso, ele utiliza, principalmente, as suas recordações do período que viveu no Peru, dando a obra um tom de nostalgia e melancolia, focalizando uma civilização que já não é a mesma. Já a segunda parte desta obra, trata sobre a conquista do Peru pelos espanhóis. 3 “É uma obra cujas qualidades puramente literárias e artísticas têm uma autonomia interna ainda maior que nos Comentarios Reales: sendo uma crônica, largos trechos podem ser lidos como uma narração de aventuras, com ecos da novela de cavalaria e a épica renascentista.” En la Primera [parte], lo esencial era reconstruir el cuadro histórico, totalizador de un Imperio Perdido, y de un Imperio que no tuvo letras. En la Segunda [parte], se trataba de acontecimientos más cercanos, con documentos públicos, testigos oficiales y banderías que afectaban, a través de su padre, a Garcilaso. (MIRO QUESADA, s/d, p. XXXIII)4 O Inca Garcilaso utiliza nesta obra, como um dos seus recursos, a citação de outras crônicas que relatam a história do povo que vivia no Peru. Assim, observamos trechos de Gómara, já mencionado acima, Pedro de Cieza de León, Agustín de Zárate, Padre José de Acosta, entre outros. O intuito é comprovar que tudo o que está sendo relatado é verossímil ou mesmo, El Inca es minucioso y exhaustivo con el cotejo de fuentes; largos pasajes de su texto son glosas de otros cronistas, para apoyar sus propios dichos o contrastarlas con su propia versión. Su obra absorbe y valora una gran cantidad de fuentes de información […]. (OVIEDO, 2007, p. 199)5 Outro recurso utilizado por Inca Garcilaso, considerado até inovador em relação aos relatos dos outros cronistas, é o fato de termos o discurso direto em sua obra, como por exemplo, a voz do tio que conta a história do povo Inca: “- Sobrino, yo te las diré de muy buena gana; a ti te conviene oírlas y guardarlas en el corazón […]” (GARCILASO DE LA VEGA, s/d A, p. 37).6 Mais uma vez o mestiço tem a intenção de comprovar os fatos relatados, ou seja, que fizeram parte da sua infância, mesmo que seja um relato oral. No entanto, devemos destacar que se trata de um relato proveniente da sua própria linhagem e não de qualquer outro indígena que fazia parte do povo. Apesar da primeira definição do Inca Garcilaso nesta obra ser de índio e ele assumir outras posições discursivas, Comentarios Reales de los Incas pode ser considerado um trabalho em torno da sua condição de mestiço. Com isso, ele idealiza em suas crônicas uma situação de harmonia entre espanhóis e índios, com a intenção de uma civilização e língua homogênea. Ele “[...] pretende configurar-se como afirmação e produção da homogeneidade, mas denuncia, no mesmo ato, a impraticabilidade de tal projeto.” (CORNEJO POLAR, 2000, p. 117). Segundo Carmen Bernand (1994), esta obra fez muito sucesso e foi muito difundida nos meios intelectuais tanto europeus como americanos. 4 “Na Primeira [parte], o essencial era reconstruir o quadro histórico, totalizador de um Império Perdido, e de um Império que não tinha escrita. Na Segunda [parte], tratava-se de acontecimentos mais próximos, com documentos públicos, testemunhas oficiais e banderías que afetavam, através de seu pai, a Garcilaso.” 5 “O Inca é minucioso e exaustivo com a comparação de fontes; largas passagens de seu texto são comentários de outros cronistas, para apoiar as suas próprias falas ou contrastá-las com a sua própria versão. Sua obra absorve e valoriza uma grande quantidade de fontes de informações [...].” 6 “Sobrinho, eu te contarei com muito boa vontade; e você deve ouvir-las e guardar-las em seu coração [...].” 3. A NOBREZA INCAICA E A SUA RELAÇÃO COM O INCA GARCILASO 3.1. A nobreza Inca Antes de abordamos sobre a nobreza Inca, é importante ressaltar que apesar de ser um título que está relacionado ao poder, o conceito de nobreza entre os Incas é diferente daquela da cultura espanhola, dos conquistadores. Os Incas possuíam uma vida social em que “nessa sociedade superestruturada, um indivíduo não pode ser igual a outro, e as distinções hierárquicas adquirem uma importância primordial.” (TODOROV, 1983, p. 66). A organização sócio-política desta civilização era caracterizada principalmente pela ajuda mútua comunitária e a centralização estatal. Assim, essa organização se baseava na combinação de três princípios numéricos: a dualidade, a tripartição e a divisão decimal. Podemos afirmar que os dois primeiros princípios ordenam as estruturas de parentesco, enquanto a última ordena toda burocracia Inca. Cuzco, centro de Tawantinsuyu, ou seja, do Império Inca, se divide em quatro bairros, sendo uma distribuição que segue os pontos cardeais e orienta as grandes divisões políticas. Estas partes, segundo Watchel (1976), se agrupam de dois em dois para formar as metades opostas, logo, Hanan Cuzco, o Alto Cuzco, e Hurin Cuzco, o Baixo Cuzco. Este autor também enfatiza que “la división dualista implica una significación religiosa y sobre todo, ordena los vínculos de parentesco.” (WATCHEL, 1976, p. 116)7 Seguindo esta mesma linha de reflexão, a organização dualista resulta na divisão de três grupos ou tripartição: Collana, Payan e Cayao. Essas categorias além de um sistema de parentesco, também definem o indivíduo socialmente. Assim, Collana designa o grupo dos chefes, ou seja, dos conquistadores incas; Cayao é a povo vencido, que não é inca; e por último, Payan representa um grupo misto, constituído de ajudantes ou servidores dos chefes, sendo Incas ou não. En total, Cuzco comprende dos mitades (Hanan Cuzco y Hurin Cuzco), cuatro cuadrantes o barrios (Chinchaysuyu, Collasuyu, Antisuyu, Cuntisuyu) y doce grupos de tres ceques (cuatro grupos Collana, cuatro grupos Payan y cuatro grupos Cayao). (WATCHEL, 1976, p. 118) 8 7 “A divisão dualista implica em uma significação religiosa e sobretudo, ordena os vínculos de parentesco.” 8 “No total, Cuzco compreende duas metades (Hanan Cuzco e Hurin Cuzco), quatro quadrantes ou bairros (Chinchaysuyu, Collasuyu, Antisuyu, Cuntisuyu) e doze grupos de três ceques (quatro grupos Collana, quatro grupos Payan e quatro grupos Cayao).” A organização política incaica possuía também uma base decimal, ou seja, toda a população do Império era repartida em grupos de 10, 50, 100, 500, 1000, 10000 y 40000 tributários, que correspondiam a autoridade de um curaca – antigo chefe da etnia conquistada. A nobreza que reinava este império residia em Cuzco, onde o núcleo urbano era formado pelos recintos ocupados pelo soberano e seus parentes, e a economia girava em torno das necessidades destes. Uma administração muito racional controlava a circulação do tributo e a organização do trabalho. Os distintos grupos étnicos que formavam o Império Inca, conservavam seus costumes e sua língua, mas se adaptavam também a língua franca – o quéchua. Apesar do povo se adaptar ao quéchua, é necessário destacar que somente os membros da nobreza tinham o direito de estudar na civilização incaica. Todorov (1983) aborda em seu texto, que não somente os Incas, mas outros Impérios indígenas como os astecas, tinham escolas para ensinar a elite: “A associação entre o poder e o domínio da língua é claramente marcada entre os astecas” (p.76). O próprio Inca Garcilaso (s/d A) faz referência em sua obra a este fato: Que convenía que los hijos de la gente común no aprendiesen las ciencias, las cuales pertenecían solamente a los nobles, porque no ensoberbeciesen y amenguasen la república. Que les enseñasen los oficios de sus padres, que les bastaban. (p. 203)9 Como podemos perceber, há um equilíbrio social e político, e tudo isso a partir do poder de um rei, posição adquirida de maneira culturalmente diferente dos espanhóis: “[...] a primera vista los cronistas mencionan la herencia al modo europeu, no tardaron en caer en contradicciones [...]”(ROSTWOROWSKI, 1988, p. 154).10 Os estudos recentes, como a de Maria Rostworowski (1988), apontam para a organização do núcleo familiar que se dava em torno das esposas dos Incas. Ela destaca a importância da Coya Mama Huaco nas origens dos Incas, uma etapa histórica de preeminência do materno, anterior ao patriarcado. Assim, temos as famílias nobres Incas que eram chamadas de panacas, em que todas tinham laços de parentesco entre si, porque um rei Inca não se casava com uma mulher do povo. Como ele podia ter várias mulheres, cada filho poderia ser descendente de uma panaca, 9 “Era conveniente que os filhos do povo não aprendessem as ciências, as quais pertenciam somente aos nobres, para que não sobressaissem e diminuíssem a república. Que os ensinassem os ofícios de seus pais, que já lhes bastavam.” 10 “[...] à primeira vista os cronistas mencionam a herança ao modo europeu, não tardaram em cair em contradições [...]” sendo assim estas eram importantes na vida cusquenha e nas sucessões de poder do Tahuantinsuyu. No entanto, […] al existir la doble descendencia, tanto masculina como femenina, esta costumbre aumentaba la importancia del origen y status de la madre de un futuro Inca, y pesaba enormemente en la elección de un candidato, no sólo por el linaje más o menos ilustre o poderoso de la madre, sino por la reciprocidad que podía suscitar la parentela femenina de un soberano. (ROSTWOROWSKI, 1988, p. 159)11 Isso pode ser observado por exemplo na rivalidade entre os irmãos Atahualpa e Huascar pelo reinado de Tawantinsuyu, como observamos no trecho do Inca Garcilaso (s/d A): Viendo, pues, Atahuallpa que le faltaban todos los requisitos necesarios para ser Inca, porque ni era hijo de la Coya, que es la Reina, ni de Palla, que es mujer de la sangre real, porque su madre era natural de Quitu, ni aquel reino se podía desmembrar del Imperio, le pareció quitar los inconvenientes que el tiempo adelante podían suceder en su reinado tan violento. (p. 272-273, 2º vol.) 12 Então, o que realmente legitima o Inca no poder é a família (panacas) da mãe deste indígena, logo, pelos prestígios dos membros da dinastia. Por isso, o Inca Garcilaso tinha tanto prestígio social quando morava na América, pois sua mãe era da família real. 3.2. O Inca Garcilaso e a mestiçagem Quando falamos em mestiçagem nos referimos ao mesmo tempo a mestiçagem no sentido biológico e cultural. Desta forma, ao nos remetermos ao período da chegada dos espanhóis na América Latina, mais especificamente no Peru, temos fatos como a conquista, as guerras civis dos conquistados e os conflitos para a ascensão da Coroa espanhola, que constituíram o contexto em que houve a formação da mestiçagem. Esta doble vertiente del niño mestizo y la trascendencia de los años en que le tocó venir al mundo, con la violenta y destructiva, pero al mismo tiempo 11 “[...] ao existir a dupla descendência, tanto masculina como feminina, este costume aumentava a importância da origem e status da mãe de um futuro Inca, e pesava enormemente na eleição de um candidato, não somente pela sua linhagem mais ou menos ilustre ou poderoso de sua mãe, mas pela reciprocidade que podia suscitar a parentela feminina de um soberano”. 12 “Pois vendo Atahualpa que lhe faltavam todos os requisitos necessários para ser Inca, porque nem era filho da Coya, que é rainha, nem da Palla, que é mulher do sangue real, porque sua mãe era natural de Quitu, nem aquele reino podia desmembrar daquele Império, achando necessário acabar com os inconvenientes que posteriormente podiam suceder o seu reinado tão violento.” fecunda y creadora, incorporación del Imperio de los Incas a la cultura de Occidente, a través de las armas, las creencias, los sentimientos y las normas de España, fueron sin duda decisivos para su formación espiritual. (MIRO QUESADA, s/d A, p. IX)13 Para Todorov (1983), Malinche – índia que serviu como intérprete para o encontro entre o espanhol Hernán Cortés e o asteca Montezuma, e tida como traidora por seu povo – pode ser considerada o primeiro exemplo de mestiçagem na América. Ela não se submete simplesmente ao outro (caso muito mais comum, infelizmente pensemos em todas as jovens índias, ‘presenteadas’ ou não, que caem nas mãos dos espanhóis), adota a ideologia do outro e a utiliza para compreender melhor sua própria cultura, o que é comprovado pela eficácia de seu comportamento (embora ‘compreender’ sirva, neste caso para ‘destruir’). (p. 98). A elite da primeira geração mestiça no Peru tem um papel importante na história do país. Podemos citar o Inca Garcilaso de la Vega, o Padre Blas Valera e dona Angelina, filha de Atahualpa, nomes que se dedicaram à escrita da civilização do Peru. No índio e no mestiço como cronista, temos o olhar do outro que desmente, afirma e/ou complementa muitos relatos feitos pelos europeus, que os consideravam como selvagens. No entanto, devemos destacar o que Carmen Bernand (1994) afirma em seu texto, ou seja, que a escrita mestiça não é uma mera evocação do passado, mas uma criação que terá um alcance universal por meio da ideologia cristã. A pesar de la importancia de las raíces locales de estos escritores - cusqueña o huamanguina -, los pueblos antiguos rebasan las fronteras étnicas de la humanidad, del ayllu o del terruño para formar parte de un conjunto más amplio, el de la humanidad. (p. 74)14 O Inca Garcilaso de la Vega é um exemplo perfeito da hibridação racial, histórica e cultural. No entanto, não se tratava de um simples mestiço, pois fazia parte das duas nobrezas: espanhola e incaica. Seu pai, o capitão Garcilaso de la Vega, possuía na árvore genealógica membros que se destacavam na literatura e nas guerras; bem como sua mãe, Chimpu Ocllo, uma ñusta (princesa), era no Império Inca neta do décimo imperador Túpac Inca Yupanqui. 13 “Esta dupla vertente do menino mestiço e a transcendência dos anos que nasceu, com a violenta e destruidora, mas ao mesmo tempo fecunda e criadora, incorporação do Império dos Incas a cultura do Ocidente, através das armas, das crenças, dos sentimentos e das normas da Espanha, foram sem dúvida decisivos para sua formação espiritual.” 14 “Apesar da importância das raízes locais destes escritores – cusquenha ou huamanguina -, os povos antigos ultrapassam as fronteiras étnicas da humanidade, do ayllu ou de sua terra para formar parte de um conjunto mais amplo, o da humanidade.” La suerte de los mestizos varía según el rango de sus progenitores y las circunstancias de su nacimiento. Los hijos de conquistadores permanecen en el hogar paterno y reciben una educación española, pero conservando algunas veces el recuerdo de la tradición materna también. En el otro extremo de la escala, los mestizos que quedan en las aldeas desposan a las mujeres indias y su descendencia se confunde con la masa autóctona. (WATCHEL, 1976, p. 214).15 As uniões ilegítimas, como aconteceu com o capitão Garcilaso e a princesa Chimpu Ocllo, eram mais comuns que os matrimônios, já que estes eram proibidos entre os nobres espanhóis e as indígenas. Watchel (1976) também irá discutir isso em seu texto: Para los principales conquistadores, los matrimonios con princesas estaban influidos por ambiciones políticas (Francisco Pizarro tuvo un hijo de doña Angelina, hija de Atahualpa, y otros dos hijos de doña Inés Huayllas, hija de Huayna Capac). (p. 214).16 Esta observação de Nathan Watchel nos faz refletir em um fato já abordado: que como os reis Incas, os espanhóis perceberam a importância de constituir matrimônios com mulheres da nobreza indígena, ou seja, uma forma de fortalecer o poder. Riva-Agüero, citado por Cornejo Polar (2000), fala de Garcilaso como “perfeito representante” (p. 122) do Peru, da verdadeira nacionalidade, devido a sua mestiçagem ser uma aliança de estirpes nobres. La autoridad del Inca Garcilaso, hijo de una princesa peruana y de un conquistador de noble linaje, así como la belleza de su prosa, digna del Siglo de Oro, contribuyeron a inmortalizar esa imagen ideal de esa civilización andina. (BERNAND, 1994, p. 67)17 Assim, com esta intenção de uma civilização ideal, o Inca Garcilaso em sua obra ilustra a integração do mestiço dentro do universo cristão. No entanto, longe daquilo que ele idealizava, ou seja, uma harmonia entre índios e espanhóis, os mestiços representavam para ambos os povos seres estranhos. 15“A sorte dos mestiços varia conforme a classe social dos seus pais e as circunstâncias de seu nascimento. Os filhos dos conquistadores permanecem no lar paterno e recebem uma educação espanhola, mas conservando algumas vezes, também, a lembrança da tradição materna. Por outro lado, os mestiços que ficam nas aldeias desposam as mulheres índias e a sua descendência se confunde com o povo nativo.” 16“Para os principais conquistadores, os matrimônios com princesas estavam relacionados com ambições políticas (Francisco Pizarro teve um filho de Dona Angelina, filha de Atahualpa, e outros dois filhos de Dona Inês Huayllas, filha de Huayna Capac.” 17 “A autoridade do Inca Garcilaso, filho de uma princesa peruana e de um conquistador de nobre linhagem, assim como a beleza de sua prosa, digna do Siglo del Oro, contribuíram a imortalizar essa imagem ideal dessa civilização andina.” 4. A COLONIZAÇÃO DO PERU E O DECLÍNIO DA NOBREZA INCA Como vimos até agora, antes da chegada dos espanhóis no Peru, a família do rei Inca possuía todo o poder sobre os povos daquela região. No entanto, com a colonização de Pizarro, em 1532, o império incaico é derrubado e, com isso, a nobreza Inca deixa de ter poder político e social, e passa a ser submissa ao Rei da Espanha. Para reverter esta situação, os indígenas aceitaram imediatamente os costumes e sistema político impostos pelos espanhóis, apesar de abandonarem totalmente suas tradições. Carmen Bernand (1994) diz em sua obra, que são numerosos os exemplos de caciques que se adaptaram às exigências da nova cultura para possuir posições de prestígios. A nobreza Inca, depois da conquista, ocupou uma posição relativamente privilegiada, se comparada com o conjunto dos povos submetidos na região. No entanto, em meados do século XVIII, a sua posição sofre um revés em conseqüência da mudança da Dinastia na Espanha, ou seja, ocorre a queda da Dinastia de Habsburgo e a Dinastia de Bourbon passa a reinar, levando a nobreza Inca a perder seu status social. 4.1. Argumentações do Inca Garcilaso de la Vega para legitimar a nobreza incaica O Inca Garcilaso, como um membro da nobreza incaica, ao perceber que na Espanha não seria tratado com as mesmas regalias que possuía antes na América, tenta encontrar uma maneira para que não seja reconhecido como um selvagem - visão de muitos europeus, mas como mestiço de uma civilização que mesmo indígena, possuía um sistema econômico, político e social avançado, devido ao poder da sua nobreza. Para isso, as crônicas de Comentarios Reales de los Incas e Historia General del Peru se tornam essenciais para a realização desta idealização. Desde criança, Garcilaso teve uma educação formal com gramática, latim e jogos educativos, como um nobre espanhol; mas por outro lado também aprendeu o quéchua como língua materna. A dedicação para aprender a ler e a escrever era uma maneira de poder compreender melhor a sua cultura e, com isso, reconstruir a história do Império Inca e apresentá-la diante do restante do mundo. Inca Garcilaso, Guamán Poma, Santa Cruz Pachacuti e Titu Cussi Yupanqui são exemplos de índios e mestiços que escreveram durante o período colonial. A diferença entre o Inca Garcilaso e estes outros cronistas Incas ou mestiços é que ele “[...] reinterpreta así toda la historia del Perú a la luz de la historia occidental.” (WACHTEL, 1976, p. 246)18, entendendo que a escrita era um instrumento de prestígio e de ascensão social. Logo, [...] um setor da nobreza cusquenha e alguns ‘curacas’ maiores de outras etnias começarão a fazer uso da força da letra, seja para defender seus direitos em longos relatórios às autoridades coloniais ou ao próprio Rei, seja para deixar memória daquilo que se deve recordar, seja para reformular sua identidade no espelho de uma escrita em que começam a reconhecer sua nova condição. (CORNEJO POLAR, 2000, P. 238). Esta escrita como meio de se expressar ou mesmo de se defender pode ser observada, por exemplo, no prólogo de Historia General del Perú, que além de ser um texto que oferece a obra para alguém, neste caso a Virgem Maria, será utilizada para elogiar espanhóis e principalmente destacar a sua descendência como mestiço nobre por ambos os lados. Garcilaso afirma na sua obra que se sente obrigado a escrever sobre os Incas, para que não sejam esquecidos na história. No entanto, ele faz isso de maneira inteligente, pois tenta classificar e traduzir esta sociedade dentro dos moldes europeus, apresentando o Império como modelo de uma cidade ideal. Exemplo disso é a descrição de Cuzco, capital Inca, comparada a Roma: [...] porque el Cuzco, en su Imperio, fue otra Roma en el suyo, y así se puede cotejar la una con la otra porque se asemejan en las cosas más generosas que tuvieron. La primera y principal, en haber sido fundadas por sus primeros Reyes. La segunda, en las muchas y diversas naciones que conquistaron y sujetaron a su Imperio. La tercera, en las leyes tantas y tan buenas y bonísimas que ordenaron para el gobierno de sus repúblicas. La cuarta, en los varones tantos y tan excelentes que engendraron y con su buena doctrina urbana y militar criaron. (GARCILASO DE LA VEGA, s/d A, p. 100, v. 2.)19 Ele aborda na sua obra três épocas distintas da história do Peru: no primeiro momento, os índios viviam em estado de barbárie; a segunda idade corresponde ao momento civilizador dos Incas; e a última época começa com a conquista e a introdução do cristianismo na América. Com esta divisão, este mestiço tem o intuito de demonstrar de maneira racional que os Incas aproveitaram os conhecimentos dos seus ancestrais, ou seja, dos índios do segundo período que civilizaram os povos primitivos, os ensinando a agricultura, a construção de 18 “[...] reinterpreta desta maneira toda a história do Peru, através da história ocidental”. 19 “[...] porque o Cuzco, no seu Império, foi outra Roma, e desta forma se pode comparar uma com a outra porque se assemelham nas coisas mais generosas que tiveram. A primeira e principal, por serem fundadas pelos seus primeiros Reis. A segunda, as muitas e diversas nações que conquistaram e sujeitaram ao seu Império. A terceira, nas diversas e boas leis que colocaram ordem no governo de suas repúblicas. A quarta, nos vários homens e tão excelentes que foram gerados e com boa doutrina urbana e militar criaram.” casas, de templos, palácios e principalmente ensinaram seu povo a veneração de um único Deus, o Sol. “Los españoles se admiraron grandemente de ver tanta urbanidad y cortesía en gente, que según la imaginación de ellos, vivían en toda barbaridad y torpeza.” (GARCILASO DE LA VEGA, s/d B, p. 67). 20 Para reforçar sua afirmação, utiliza o relato do Padre Blas Valera como testemunha do avanço desta civilização, como se observa no trecho a seguir, ao se referir a um dos reis Incas: “Lo que el Padre Blas Valera, como gran escudriñador que fue de las cosas de los Incas, dice de este Rey [Inca Roca], es que reinó casi cincuenta años y que estableció muchas leyes […]” (GARCILASO DE LA VEGA, s/d A, p. 203)21 A civilização incaica se destaca principalmente por constituir um sistema de governo. A expansão militar desse povo a partir de Cuzco, deu origem a um verdadeiro império. Desta forma, Garcilaso utiliza isso em sua obra, demonstrando como os Incas eram um povo forte, devido a todas as suas lutas e conquistas. Assim, apresenta como eram feitas as conquistas destes novos povos e como submetiam os “vasallos” para servir ao rei. La orden y manera que los Incas tenían de conquistar las tierras y el camino que tomaban para enseñar las gentes a la vida política y ciudadana, cierto no es de olvidar ni de menospreciar; porque desde los primeros Reyes, a los cuales imitaron los sucesores, nunca hicieron guerra sino movidos por alguna razón que les parecía bastante, como era la necesidad que los bárbaros tenían de que los redujesen a vida humana y política, o por injurias y molestias que los comarcanos hacían a sus vasallos, y antes que moviesen la guerra, requerían a los enemigos una y dos y tres veces. (GARCILSO DE LA VEGA, s/d A, p. 236).22 Outro artifício utilizado por Garcilaso para legitimar a nobreza era não falar em conquista, pois para ele a autoridade do Rei da Espanha foi livremente aceita pelos índios, defendendo que a chegada dos espanhóis ocorreu para a Evangelização dos povos da América. Desta forma, além de ver a colonização como algo grandioso, ele também arranja mais uma argumentação para se aliar aos conquistadores. 20 “Os espanhóis se admiraram muito de ver tanta urbanidade e cortesia desta gente, que segunda as suas imaginações, viviam em toda barbaridade e lentidão”. 21 “O que o Padre Blas Valera, como grande pesquisador que foi das coisas dos Incas, disse deste Rei [Inca Roca], que reinou quase cinquenta anos e estabeleceu muitas leis [...]”. 22 “ A ordem e a maneira que os Incas tinham de conquistar as terras e os caminhos que tomavam para ensinar as gentes sobre a vida política e cidadã, de certa maneira não é para esquecer e nem menosprezar; porque desde os primeiros Reis, os quais imitaram seus sucessores, nunca fizeram guerra sem possuir alguma razão, como era a necessidade que os bárbaros tinham de ser reduzidos à vida humana e política, ou por injúrias e perturbações que os habitantes faziam a seus vassalos, e antes que fizessem guerra advertiam os inimigos uma e duas e três vezes.” “[...] las grandezas de los heroicos españoles que con su valor y ciencia militar ganaron para Dios, para su Rey y para sí, aqueste rico Imperio [...]” (GARCIALSO DE LA VEGA, s/d B, p. 23). 23 Ou mesmo: “Parece que vivían de milagro, y que podemos decir que Dios los sustentaban para mostrar por ellos sus grandes maravillas [...]” (GARCILASO DE LA VEGA, s/d B, p. 50). 24 No entanto, o que mais chama a atenção dos espanhóis em seu texto é o fato dos índios estarem aptos para serem catequizados. Percebemos que ele faz referência várias vezes a este fato em sua obra. Mas el Señor Todopoderoso, cuando quiere hacer misericordias, saca las más misteriosas y necesarias de causas contrarias […] que también usó de esta piedad para enviar su Evangelio y luz verdadera a todo el Nuevo Mundo, que tanta necesidad tenía de ella, pues vivían, o, por mejor decir, perecían en las tinieblas de la gentilidad e idolatría tan bárbara y bestial como en el discurso de la historia veremos. (GARCILASO DE LA VEGA, s/d A, p. 12)25 Assim, do seu ponto de vista, o cristianismo torna-se algo que veio salvar estes índios, como percebemos no prólogo da Historia General de Peru – segunda parte de Comentarios Reales de los Incas. Que mediante las invencibles armas de los Reyes Católicos, de gloriosa memoria, vuestros progenitores, y del Emperador nuestro señor y las vuestras, se nos comunicó, por su misericordia, el sumo y verdadero Dios, con la fe de la Santa Madre Iglesia Romana, al cabo de tantos millares de años que aquellas naciones, tantas y tan grandes, permanecían en las tristísimas tinieblas de su gentilidad. (p. 26).26 Desta forma, ao escrever suas crônicas, o intuito de Garcilaso é apresentar que os Incas haviam construído uma grande civilização, e, mais especificamente, que tudo isso aconteceu devido ao poder da nobreza, o que lhes davam o direito de continuarem com o mesmo status social. 23 “[...] as grandezas dos heróicos espanhóis que com seu valor e sua ciência militar ganharam para Deus, para seu Rei e para eles mesmos, este rico Império.” 24 “Parece que viviam de milagre, e que podemos dizer que Deus os sustentavam para mostrar suas grandes maravilhas.” 25 “Mas o Senhor Todo Poderoso quando quer fazer misericórdias, tira as mais misteriosas e necessárias de causas contrárias [...] que também usou desta piedade para enviar seu Evangelho e luz verdadeira a todo o Novo Mundo, que tanto necessitava, pois viviam, ou, melhor dizendo, pereciam nas trevas dos gentis e idolatria tão bárbara e irracional como no discurso da historia veremos.” 26 “Que mediante as invencíveis armas dos Reis Católicos, de gloriosa memória, seus progenitores, e do Imperador nosso senhor, pela sua misericórdia, o supremo e verdadeiro Deus, com a fé da Santa Madre Igreja Romana, ao fim de milhares de anos que aquelas nações, tantas e tão grandes, permaneciam nas tristíssimas trevas de seu povo.” 4.2. O episódio de Cajamarca Um episódio paradigmático é o relato do caso de Cajamarca, considerado um marco para pensar na heterogeneidade presente na literatura latino americana. Trata-se de um encontro que ocorreu no dia 16 de novembro de 1532, entre o Inca Atahualpa e o Padre Frei Vicente de Valverde – representante do espanhol Francisco Pizarro. Os espanhóis, “descobrindo” o que é hoje o Peru, exigem que os Incas, como povos nativos daquela região, se sujeitem ao cristianismo e à ordem da Espanha imperial. Assim, por meio de um intérprete, o Padre Frei Vicente de Valverde entrega ao rei Inca um livro sagrado, que de acordo com a versão mais relatada pelos cronistas, este acaba atirando ao chão, o que desencadeia um violento ataque dos espanhóis aos indígenas que eram membros da comitiva imperial e, por fim, a prisão de Atahualpa. Esta cena é paradigmática, porque apresenta a escrita como instrumento de poder na discursividade colonial, já que nem os índios e nem os conquistadores ali presentes, fora o Padre Valverde, sabiam o latim, língua em que possivelmente estava escrito no breviário. Simbolicamente se refere à escrita do europeu ingressando nos Andes como uma imposição de poder. Provavelmente, para o rei Inca, este livro era mais um objeto religioso do que um texto. Desta maneira, o livro que é causador do conflito entre Atahualpa e o Padre Valverde é um objeto mágico, logo, um objeto de reverência, capaz de produzir milagres e revelações religiosas. Este acontecimento foi abordado em muitas crônicas e textos posteriores. São poucos os testemunhos dos que estiveram presentes em Cajamarca, e estes defendem o lado dos espanhóis, como o relato do irmão de Francisco Pizarro, que descreve o rei Atahualpa como tirano e ignorante: “[...] o Atahualpa pediu o livro e atirou-o no chão e disse: ‘Eu não passarei daqui até que dê tudo o que tomastes em minha terra; que eu bem sei quem sois vós e em que andais’. ” (PIZARRO, Hernando, 1533 apud CORNEJO POLAR, 2000, p. 222). Já o outro irmão de Pizarro detalha mais em seu relato, afirmando que Frei Vicente de Valverde explica ao rei Inca que se eles se sujeitassem a religião cristã, os espanhóis nada fariam para prejudicar sua terra. Assim, vendo o breviário na mão do Padre, Atahualpa lhe pediu e, sem conseguir abrir o livro, o joga no chão e ameaça os conquistadores: “Passado o que dissemos, disse-lhes que se fossem como velhacos ladrões, e que os haveria de matar a todos.” (PIZARRO, Pedro, 1978 apud CORNEJO POLAR, 2000, p. 222). Ou ainda, o relato de Cristóbal de Mena (1534), que além de apresentar neste episódio os espanhóis como bons cristãos que querem ser amigos dos índios, justifica que o massacre ocorreu devido à falta de respeito em relação ao livro e ao cristianismo: [...] pedindo o livro o padre deu-lho, pensando que queria beijar. E ele o tomou e o atirou por cima das pessoas [...] e o padre voltou-se logo gritando, dizendo: ‘Saí, saí, cristãos, e vinde a estes cães inimigos que não querem as coisas de Deus, que me atirou aquele cacique ao chão o livro da nossa santa lei!’.(apud CORNEJO POLAR, 2000, p. 223). Francisco de Xerez (1534) presenciou este episódio, devido ao fato de ser secretário e escrivão oficial da expedição de Francisco Pizarro. Apesar do seu testemunho presencial, sua versão que consta na obra Verdadera relación de la conquista del Peru y provincia de Cuzco, llamada la Nueva Castilla, fala do rei Inca como uma pessoa violenta e como um ser superior diante dos espanhóis, assim colocando toda a culpa deste acontecimento em Atahualpa. Como percebemos em sua obra, Xerez como um espanhol, não tinha intenção de compreender o que levou Atahualpa a este ato, pois seu interesse era justificar a violência desencadeada naquele momento. Atahualpa disse que lhe desse o livro para vê-lo e ele lho entregou fechado, e não conseguindo Atahualpa abri-lo, o religioso estendeu o braço para o abrir, e Atahualpa com grande desdém golpeou-lhe o braço, não querendo que o abrisse, e porfiando ele mesmo por abri-lo [...]. (apud CORNEJO POLAR, 2000, p. 223). Ao compararmos todos estes primeiros testemunhos podemos concluir que não são tão confiáveis, pois são relatados de acordo com o ponto de vista do cronista espanhol, isto é, colocando a culpa do massacre nos indígenas. Agora, ao analisar os relatos dos grandes cronistas índios e mestiços, percebemos que eles praticamente não se detêm no episódio de Cajamarca. Santa Cruz Pachacuti dedica em sua obra apenas poucas linhas, sem se referir a nenhum momento ao livro. Titu Cussi, filho de Huascar e sobrinho de Atahualpa, descreve brevemente o acontecimento em outra versão, que fala que o Rei Inca tratou muito bem os espanhóis. “Nas duas crônicas tecem-se, entretanto, complicadas estratégias de diálogo (aceitação e resistência) com o poder espanhol, situação que também desvia sua atenção desse episódio [...]” (CORNEJO POLAR, 2000, p. 231). A maior parte dos discursos cronísticos oferecem versões deste acontecimento com um esquema argumentativo muito parecido, apesar de variarem em detalhes e modificarem os julgamentos sobre o episódio, tendo algumas versões indígenas, como já mencionado, que não dão importância ao caso. No entanto, o Inca Garcilaso de la Vega representa a voz dissidente. De maneira cuidadosa ele tenta evidenciar a validade de suas fontes, com a tradição oral dos primeiros conquistadores e os relatos do Padre Valera, com a finalidade de desacreditar a versão comum. Em sua obra, ele irá narrar a cena em que os soldados espanhóis, não tendo paciência em ouvir todo diálogo entre Atahualpa e Valverde, atacam os nobres indígenas com intuito de tirar as jóias que possuíam, o que leva a um grande tumulto. Temendo algo pior, o Padre Valverde deixa cair de seu colo a cruz e o breviário e, gritando, pede que os espanhóis não façam mal aos índios, no entanto ele não é ouvido, momento em que acontece o massacre e Atahualpa é aprisionado. Garcilaso ainda afirma que o rei Inca não se negou a reconhecer a soberania do Imperador. Lo que pasó fue que Fray Vicente de Valverde se alborotó con la repentina grita que los indios dieron, y temió no le hiciesen algún mal, y se levantó aprisa del asiento en que estaba sentado hablando con el Rey y al levantarse soltó la cruz que tenía en las manos y se le cayó el libro que había puesto en su regazo […] (GARCILASO DE LA VEGA, s/d B, p. 80).27 Ao analisarmos esta versão do Inca Garcilaso, percebemos que ele tem principalmente o intuito de afirmar que não houve propriamente uma conquista, porque as condições do Rei espanhol e o cristianismo foram aceitos pelos índios. Tudo isso mostra o ideal de Garcilaso como mestiço de demonstrar a harmonia entre espanhóis e indígenas. Para apoiar a conquista espanhola, mas também para defender a nobreza Inca, ele apresenta duas justificativas: a primeira é demonstrar que o mal entendido ocorreu por causa da ignorância do intérprete – Felipe – que por ser da plebe incaica não possuía vocabulário no idioma quéchua que pudesse entender o discurso cristão: […] es de advertir en las condiciones de Felipe, indio trujamán, y falante de aquel auto, que era natural de la isla Puná, y de gente muy plebeya, mozo, que aún apenas tenía veinte y dos años, tan mal enseñado en la lengua general de los Incas, como en la particular de los españoles, y que la de los Incas la aprendió no en el Cozco, si no en Túmpiz, de los indios que allí hablaban como extranjeros […] (GARCILASO DE LA VEGA, s/d B, p. 74- 75).28 27 “O que aconteceu foi que Frei Vicente de Valverde se desordenou com o repentino grito que os índios deram, e temeu que lhe fizessem algum mal, e se levantou depressa do lugar em que estava sentado falando com o Rei e ao se levantar soltou a cruz que estava nas mãos e caiu o livro que havia posto em seu colo [...]”. 28 “[...] é preciso advertir sobre as condições de Felipe, índio trujamán e falante daquele auto, que era natural da ilha de Puná, e que fazia parte da plebe, moço, que tinha apenas vinte e dois anos, tão mal ensinado na língua geral dos Incas, como na particular dos espanhóis, e que a dos Incas não aprendeu em Cuzco, mas em Túmpiz, dos índios que ali falavam como estrangeiros [...]”. Em segundo lugar, coloca a culpa deste conflito nos soldados espanhóis, que por serem pessoas simples, sem conhecimento nenhum, não tiveram paciência em ouvir a longa conversa entre o Padre Valverde e Atahualpa, e aproveitaram para atacar os Incas. É notavelmente significativo que o projeto vivencial e ideológico do mestiço Garcilaso tenha de diluir ao máximo a presença da escrita nesse episódio, para poder imaginar uma alternativa de conciliação entre a ordem andina e a espanhola; e por outro lado, é algo paradoxal, porque finalmente esse ideal de harmonia ele próprio buscará alcançar através de sua explêndida escrita, uma escrita que se propõe como vínculo entre a voz e a letra e como tradução quéchua para o espanhol. (CORNEJO POLAR, 2000, p. 234). Agora, uma versão que é bastante difundida e que irá contestar a de Garcilaso é a de Guamán Poma de Ayala, que, ao contar este caso, enfatiza que o mal entendido é próprio do choque de culturas e não um problema de tradução. Outra forma de contradizer o relato do mestiço, que era totalmente submisso aos espanhóis, é afirmar que o Padre Valverde ao invés de pedir para os soldados espanhóis que parassem com o ataque, ele os incentivara: Lo que dicen del Padre Fray Vicente de Valverde, que tocó arma pidiendo venganza contra los indios, y que aconsejaba a los españoles que no hiriesen de tajo ni revés, sino de estocada, porque no quebrasen las espadas, y que por esto fue la mortandad de los indios tan grande, ello mismo dice que fue relación falsa que hicieron a los historiadores que escriben en España lo que pasó tres mil leguas de ella. (GARCILASO DE LA VEGA, s/d B, p. 83).29 Para este cronista, as outras versões dos historiadores estão erradas, e o fato dos generais e capitães espanhóis adotarem essas versões, é para que os mesmos não fossem condenados, e mesmo se vangloriassem de como dominaram o rei Inca. A intenção de demonstrar um mal entendido neste acontecimento é um meio para que Garcilaso possa defender os Incas e ao mesmo tempo não questionar os espanhóis. E para reforçar sua versão, ainda fala em sua crônica que se apoiava nas histórias dos outros índios, e também afirma que [...] a estas relaciones se añade la que hallé en los papeles del muy curioso y elegante Padre Blas Valera, que fué hijo de uno de los que se hallaron en la prisión de Atahualpa, y nació y se crió en los confines de Cassamarca, y así tuvo larga noticia de aquellos sucesos, sacados de sus originales, como él mismo dice. (GARCILASO DE LA VEGA, s/d B, p. 66). 30 29 “O que dizem do Padre Frei Vicente de Valverde, que pediu vingança contra os índios, e que aconselhou os espanhóis que não os cortassem, e sim dessem um golpe, para que não quebrassem as espadas, e que por isso, foi tão grande o número de índios mortos. Ele mesmo diz que foi uma relação falsa que os historiadores da Espanha fizeram do que passou a três mil léguas de lá.” 30 “[...] a estas relações, se acrescenta a que achei nos papéis do curioso e elegante Padre Blas Valera, que era filho de um daqueles que presenciaram a prisão de Atahualpa, e nasceu, e se criou em Cajamarca, e assim teve muita notícia do que aconteceu, em suas origens, como ele mesmo disse.” Como percebemos, existem várias maneiras de interpretar um acontecimento. O momento histórico se torna produto de uma construção pessoal, que é deformada intencionalmente para que seja um meio de auxiliar o projeto ideológico e social de cada indivíduo, ou seja, um acontecimento que nunca vai ser contado de maneira fiel em que ocorreu. E é exatamente isso que Inca Garcilaso, como um mestiço filho da nobreza faz ao relatar este episódio, defende o seu interesse. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho buscou apresentar, por meio das crônicas do Inca Garcilaso de la Vega, o relato de um mestiço que presenciou o período de colonização no Peru pelos espanhóis, e principalmente, acompanhou a queda do Império Inca e da nobreza incaica, classe social da qual era membro. A partir desta pesquisa foi possível perceber, que o Inca Garcilaso escreve suas obras Comentarios Reales de los Incas e Historia General del Perú, não somente para fazer uma descrição formidável da civilização Inca ou mesmo falar da conquista espanhola, demonstrando justiça e verdade, mas para ser aceito socialmente. A situação de ele ser filho também da nobreza espanhola não lhe garantia o reconhecimento diante da sociedade hispânica. Por isso, ele constantemente se contradiz em seu discurso, pois ao mesmo tempo em que apóia os espanhóis, com a justificativa de ascensão da escala da civilização, que leva a obscuridade e barbárie dos tempos primitivos a uma ordem superior dos homens, guiados pelo Rei da Espanha e a Igreja católica; ele igualmente reivindica o Império Inca diante da Europa. Apesar de apresentar os Incas ao leitor e falar das conseqüências da conquista espanhola, ele expressa parcialmente o seu ponto de vista como um índio, porque, na verdade, ele reconstrói o seu passado como um mestiço que foi para a Espanha, ou seja, por meio de um olhar da cultura européia. Enfim, o fato de escrever uma obra literária em espanhol, já implica uma integração na cultura dominante. No entanto, concluímos este trabalho destacando que a intenção primordial deste mestiço é justamente o fato de tentar elevar os Incas, especificamente a nobreza, ao nível dos espanhóis para preservar seu status social que a princípio é visto como inferior na sociedade hispânica. Assim, ele tenta ser aceito na corte espanhola com o mesmo status de um espanhol de puro sangue, pois primeiro ele luta para ter o direito de usar o nome importante de seu pai; e depois tenta acrescentar o “Inca” que destaca a sua condição de índio nobre. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BERNAND, Carmen. El mundo andino: unidad y particularismos. In: ______ (Org). Descubrimiento, conquista y colonización de América a quinientos años. México: Fondo de Cultura Económica, 1994. 67-90 p. CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa: literatura e cultura latino-americanas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. (Organização Mário J. Valdés; tradução Ilka Valle de Carvalho). GARCILASO DE LA VEGA, Inca. Comentarios reales de los Incas. 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