7 Vasculite necrosante na glomerulonefrite difusa aguda pós-infecciosa Necrotizing vasculitis in acute postinfectious glomerulonephritis Márcia C. Riyuso1; Maria Fernanda C. Carvalho2; Amélia A. T. Trindade3; Luciana B. Mendonça4; Fabiano P. Saggioro4; Rosa M. Viero5 y unitermos key words resumo Os autores relatam dois casos de glomerulonefrite difusa aguda pós-infecciosa com evolução clini- comorfológica incomum. As biópsias renais mostraram alterações características de glomerulonefrite difusa aguda associada à extensa necrose fibrinóide e infiltrado inflamatório leucocitário na parede de arteríolas e artérias interlobulares. Foram também observadas crescentes. Ambos os pacientes cursaram com insuficiência renal aguda severa, sendo que um dos pacientes recuperou a função renal e outro evoluiu para insuficiência renal crônica e óbito. Infecção Glomerulonefrite pós-infecciosa Vasculite abstract The authors report two cases of postinfectious acute diffuse glomerulonephritis with uncommon followup. The kidney biopsies showed characteristic features of postinfectious acute glomerulonephritis with extensive fibrinoid necrosis and polymorphonuclear inflammatory infiltrate in the walls of arterioles and interlobular arteries. Celular crescents were also seen. The patients follow with severe acute renal failure; one patient improved the renal function and one progressed to chronic renal failure and died. Infection Postinfectious glomerulonephritis Vasculitis 1. Professora-ass 2. Professora-assistente-doutora da disciplina de Nefrologia do Departamento de Clínica Médica da FMB/Unesp. 3. Médica; disciplina de Nefrologia do Departamento de Clínica Médica da FMB/Unesp. 4. Residente em Patologia; Departamento de Patologia da FMB/Unesp. 5. Professora-assistente-doutora do Departamento de Patologia da FMB/Unesp. Introdução A vasculite aguda necrosante de pequenos vasos é de ocorrência rara na glomerulonefrite difusa agu- da pós-infecciosa (GNDA). Há na literatura 13 casos relatados de GNDA pós-estreptocócica com vasculite necrosante, oito crianças e cinco adultos jovens, que cursaram com quadro nefrítico agudo, proteinúria e insuficiência renal(1-4, 7). As lesões vasculares podem ser localizadas ou disseminadas em vários órgãos, e não têm indicado pior prognóstico para os pacientes(1, 2, 4). Caracte- rizam-se por necrose fibrinóide da parede vascular decorrente de reação de hipersensibilidade por imunocomplexos circulantes após infecção estrep- tocócica(2, 7). Estamos relatando dois casos: uma criança e um adulto com GNDA pós-infecciosa que cursaram com J Bras Patol Med Lab • v. 40 • n. 1 • p. 7-10 • fevereiro 2004 RELATO DE CASO CASE REPORT Primeira submissão em 16/01/03 Última submissão em 13/05/03 Aceito para publicação em 11/06/03 Publicado em 15/03/04 8 Figura 1 – Glomerulonefrite proliferativa exsudativa com crescente celular (HE – 400X) Figura 2 – Arterite aguda necrosante (Massom – 660X) Figura 3 – Glomérulo com depósitos subepiteliais e polimorfonuclear na luz capilar (P = polimorfonuclear; D = depósitos; M = membrana basal glomerular); ME – 10.000X RIYUSO, M. C. et al. Vasculite necrosante na glomerulonefrite difusa aguda pós-infecciosa • J Bras Patol Med Lab • v. 40 • n. 1 • p. 7-10 • fevereiro 2004 formação de crescentes e arterite necrosante. A criança evoluiu com melhora da função renal sendo acompanhada ambulatorialmente e o outro paciente cursou com insu- ficiência renal crônica e óbito. Relato dos casos CASO 1 E. H. S, sexo masculino, branco, 11 anos, procedente de Palmital (SP). Foi internado em hospital de sua cidade, quei- xando-se, havia dois dias, de diminuição do apetite, edema de face, diarréia, vômitos e urina escura. Na internação foi constatada hipertensão arterial com PA = 220/120mmHg e temperatura de 38oC. Após uma semana iniciou quadro de oligúria, sendo encaminhado para UTI em hospital de Ourinhos (SP). Evoluiu com anúria, necessitando de diálise peritoneal e, após quatro semanas do início da doença, mantinha-se em anúria, com episódios de vômitos e pressão arterial controlada sem medicação, sendo encaminhado ao nosso serviço para investigação diagnóstica. Ao exame físico apresentava-se em bom estado geral, com edema de 1/4+ em membros inferiores, peso = 78,4kg, estatura = 157cm, PA = 100/70mmHg, Fc = 76bat/min, FR = 26mov/min. Estava com cateter de Tenchkoff, sendo mantido em diálise peritoneal contínua com cicladora. Exames laboratoriais de entrada: hemograma: Ht = 28%, Hb = 9,2g/dl; bioquímicos: proteínas totais = 8,2g%, albumina = 2,9g%, Na = 138mEq/l, K = 4,3mEq/l, Ca = 8,4mg%, P = 8,6 mg%, Mg = 1,5mg%, uréia = 172mg%, creatinina = 18,3mg%, FAN = negativo, Anca = negativo. Ultra-som renal: normal para a idade, com hiperecogenicidade. Devido à presença de vômitos, foi feita endoscopia digestiva no segundo dia de internação, evidenciando-se hérnia de hiato e duodenite com investigação negativa para Helicobacter pylori. Recebeu tratamento com domperidona e omeprazol com desaparecimento dos vômitos. Submetido à biópsia renal, no quinto dia de inter- nação, que mostrou glomerulonefrite proliferativa difusa endocapilar exsudativa com 17% de crescentes celulares (Figura 1). Mostrava ainda extensa necrose fibrinóide e infiltrado inflamatório neutrofílico na parede de arteríolas (Figura 2). Observamos ainda nefrite tubulointersticial linfomononuclear e necrose tubular aguda. A imunofluo- rescência demonstrou depósitos granulares difusos de C3 em alças capilares, mesângio e em parede de arteríolas. À microscopia eletrônica observamos depósitos eletrodensos mesangiais, subendoteliais e subepiteliais (Figura 3). No 14º dia de internação, o paciente iniciou tratamento com dois ciclos de pulsoterapia, recebendo três doses de 1g de metilprednisolona intravenosa/ciclo, intercaladas com 40mg/dia de prednisona oral. Posteriormente foi mantido com prednisona oral na dose de 40mg/dia com regressão de 10mg semanalmente. No 20º dia de inter- M D P 9 RIYUSO, M. C. et al. Vasculite necrosante na glomerulonefrite difusa aguda pós-infecciosa • J Bras Patol Med Lab • v. 40 • n. 1 • p. 7-10 • fevereiro 2004 nação apresentou quadro de hipertensão arterial, sendo tratado com propanolol, posteriormente associado ao minoxidil. No 26º dia de internação, três dias após a sexta dose de metilprednisolona, o paciente aumentou a diurese de 10ml/dia para 120ml/dia e apresentava he- matúria macroscópica. Como intercorrências apresentou quadro febril com cultura de urina positiva para fungos. As culturas do líquido peritoneal e sangue foram negativas. Foi tratado com anfotericina B por 21 dias e recebeu alta hospitalar após 44 dias de internação, com p = 79kg, sem edemas e vômitos, diurese de 900ml e pressão arterial controlada com propanolol e minoxidil. Exames laboratoriais na quarta semana da doença: uréia = 80mg%, creatinina = 3,5mg%, clearance de creati- nina = 12ml/min/1,73m2 SC, Aslo = 974UI/ml (N = até 125), C3 = 48,4mg% (N = 88 a 201). Foi orientado a retornar ao ambulatório semanalmente. Duas semanas após a alta, mantinha diurese de 900 a 1000ml, com uréia = 50mg%, creatinina = 2,1mg%, sem diálise, porém com as medicações anti-hipertensivas. CASO 2 C. P. B., sexo feminino, branca, 66 anos, viúva, proce- dente de Botucatu (SP). A paciente deu entrada no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu da Uni- versidade Estadual Paulista (FMB/Unesp), referindo quadro de fraqueza, anorexia, indisposição associada à diminuição da diurese, urina escura e tosse com expectoração espu- mosa. Apresentava antecedente de infecção de orofaringe há um mês, tratada com tetraciclina. Ao exame físico, apresentava-se em bom estado geral, afebril, peso = 63kg, altura = 147cm, PA = 140 x 80 mmHg, FC = 80bat/min, FR = 20mov/min, estase jugular discreta, roncos em bases pulmonares e fígado palpável a 5cm do rebordo costal direito. Exames laboratoriais de entrada: hemograma: Ht = 40,2%, Hb = 13,5g%, glóbulos brancos = 15.600/ mm3 com 3% de bastão, 86% de segmentados, 10% de linfócitos e 1% de monócitos, plaquetas = 202.000/ mm3. Exame de urina: densidade = 1025, pH = 5, proteínas = 4+, glicosúria = negativa, sangue oculto = 3+, hemoglobi- núria = 3+ e numerosos leucócitos, hemácias e cilindros granulosos à sedimentoscopia. Urinocultura: negativa. Proteinúria de 12 horas = 860mg. Bioquímicos: proteínas totais = 6,4g%, albumina = 3,6g%, globulinas = 2,8g%, glicemia = 156mg%, Na = 136mEq/l, K = 4mEq/l, Ca = 10mg%, P = 8,2 mg%, ácido úrico = 10,6mg%, uréia = 174mg%, creatinina = 1,84mg%, mucoproteínas = 17,6mg%, proteína C reativa = 100mg%, C3 = 8,3mg%, C4 = 42,9mg%, FAN = negativo, Anca = negativo. Ultra- som renal = normal, ECG = ritmo sinusal. Houve piora gradativa da função renal, sendo que 20 dias após a entrada apresentava uréia = 223mg%, cre- atinina = 8,3mg%, clearance de creatinina = 5,34ml/min e proteinúria de 24 horas = 3,9g. Foi submetida à biópsia renal que mostrou glomerulonefrite proliferativa difusa endocapi- lar exsudativa com 25% de crescentes associada à necrose tubular aguda. A imunoflorescência demonstrou depósitos granulares difusos de C3 em alças capilares e mesângio. À microscopia eletrônica observamos depósitos volumosos me- sangiais e subepiteliais. O conjunto dos achados foi compatí- vel com glomerulonefrite difusa aguda pós-infecciosa. Recebeu tratamento de suporte com melhora progres- siva da função renal, tendo alta seis dias após a biópsia, com uréia = 122mg%, creatinina = 2,85mg%, clearance de creatinina = 14ml/min. Cerca de duas semanas após retorna com fraqueza, queda do volume urinário, dispnéia, proteinúria de 24 horas = 9,2g, uréia = 100 mg%, creatinina = 3,17mg%, e clearance de creatinina = 9ml/min. Uma segunda biópsia renal mostrou acentuada piora em relação à biópsia anterior com 80% de crescentes e 42% de esclerose glomerular. Ob- servou-se ainda necrose fibrinóide de arteríolas e pequenas artérias com depósitos de C1q, C3, IgG e fibrina. A paciente evoluiu rapidamente para insuficiência renal crônica terminal, iniciando diálise cerca de três semanas após. Evoluiu com vários episódios de peritonites e aproximadamente nove meses após apresentou erisipela bolhosa em membro inferior direito e choque séptico, evoluindo para óbito. Discussão A glomerulonefrite difusa aguda pós-infecciosa ge- ralmente se manifesta, em crianças, com quadro agudo de edema, hematúria e hipertensão. Insuficiência renal é incomum e está relacionada a complicações como apa- recimento de crescentes(2, 4) ou necrose tubular aguda(6). Vasculite necrosante raramente tem sido relatada(1-4, 7). Apresentamos dois pacientes; uma criança e um adulto com quadro nefrítico agudo e insuficiência renal rapidamente progressiva. Inicialmente, os dados clínicos sugeriram glomerulonefrite crônica progressiva associada a doença sistêmica. No entanto, o aparecimento agudo dos 10 Endereço para correspondência Rosa M. Viero Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp CEP 18618-000 – Botucatu-SP Tel.: (14) 6802-6238 Fax: (14) 6821-2348 E-mail: viero@fmb.unesp.br sintomas com complemento baixo favorece o diagnóstico de glomerulonefrite difusa aguda pós-infecciosa. Um dos pacientes apresentou história de infecção prévia de oro- faringe que foi tratada, havendo também um período de latência entre a infecção e o aparecimento da glomerulon- efrite. Na criança não foi detectada infecção prévia, porém apresentou febre e altos títulos de Aslo. Morfologicamente, as lesões glomerulares caracterizaram-se por proliferação difusa mesangioendotelial com acentuado exsudato de neutrófilos, padrão comumente descrito na GNDA. Por outro lado, a pesquisa positiva de imunocomplexos em glomérulos e vasos, pela imunofluorescência e ultra-estru- tura foi fundamental para a confirmação da hipótese clínica de GNDA pós-infecciosa. Interpretamos as lesões glomerulares e vasculares como fazendo parte de um mesmo processo imunopatológico. Vasculite necrosante dos pequenos vasos mediada por imu- nocomplexos pode ser induzida por infecção bacteriana e estar associada a GNDA(2, 7). Foram descritos na literatura 13 casos semelhantes, oito crianças e cinco adultos jovens com infecção estreptocócica, que desenvolveram GNDA associada à necrose fibrinóide de pequenas artérias(1-4, 7). Embora raramente, glomerulonefrite proliferativa e vascu- lite podem também fazer parte das manifestações sistêmicas da febre reumática(6, 10). Têm sido descritos ainda casos de GNDA com lesões purpúricas na pele e hemorragia gastroin- testinal, sendo consideradas variantes da GNDA pós-estrep- tocócica mimetizando a púrpura de Henoch-Schönlein(5). As vasculites sistêmicas, além de se associarem ao Anca, mostram lesões glomerulares com predomínio de necrose e não-proliferação celular, e com pesquisa negativa para imunodepósitos(8, 9). Fordham et al.(4) ao descreverem quatro casos de adultos jovens com GNDA pós-estreptocócica e vasculite necrosante generalizada, denominaram as lesões vasculares de poliarteríticas. Porém, concluem tratar-se de casos de síndrome pós-estreptocócica caracterizada por GNDA apresentando vasculite necrosante. Ambos os casos desenvolveram, durante a evolução, ne- crose tubular aguda, e elevada porcentagem de crescentes que, associadas à lesão vasculítica, determinaram queda rápida da função renal. Dos 13 casos descritos na literatura, oito apresentaram proliferação extracapilar(1-4). No entanto, todas as crianças evoluíram com recuperação da função renal, mesmo as que apresentaram número elevado de cres- centes(2, 3). Dos cinco adultos relatados, quatro evoluíram para óbito e um apresentou remissão da doença(1, 4). Em conclusão, a vasculite necrosante descrita é uma lesão por imunocomplexos conseqüente ao processo infec- cioso, mais do que uma poliarterite idiopática coincidente com a lesão glomerular. 1. ANDRES, G. A. et al. Electron microscopic studies of human glomerulonephritis with ferritin-conjugated antibody. J Exp Med, v. 123, p. 399-412, 1966. 2. BODAGHI, E.; KHERADPIR K. M. H.; MADDAH, M. Vasculitis in acute streptococcal glomerulonephritis. Intern. J Ped Nephrol, v. 8, n. 2, p. 69-74, 1987. 3. Case records of the Massachussets General Hospital (case 6-1975). N Eng J Med, v. 292, p. 307-12, 1975. 4. FORDHAM, C. C. et al. Polyarteritis and acute post-streptococcal glomerulonephritis. Ann Intern Med, v. 61, p. 89-97, 1964. 5. GOODYER, P. R.; de CHADAREVIAN, J. P.; KAPLAN, B. S. Acute poststreptococcal glomerulonephritis mimicking Henoch-Schönlein purpura. J Pediatr, v. 93, n. 3, p. 412-5, 1978. 6. GUTIÉRREZ UREÑA, S. et al. 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