ELAINE CRISTINA CARON BELANDA RIMBAUD, MOLIÈRE E SADE LIDOS PELOS BRASILEIROS: aspectos da representação literária dos escritores franceses homenageados na coleção “Literatura ou Morte” ASSIS 2015 1 ELAINE CRISTINA CARON BELANDA RIMBAUD, MOLIÈRE E SADE LIDOS PELOS BRASILEIROS: aspectos da representação literária dos escritores franceses homenageados na coleção “Literatura ou Morte” Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientadora: Drª. Daniela Mantarro Callipo ASSIS 2015 2 A Leandro e a Amália, meus grandes amores. 3 AGRADECIMENTOS À Capes, pela concessão da bolsa, tornando esta pesquisa possível; Ao Programa de Pós-Graduação e aos funcionários da Seção de Pós-Graduação; À Profa. Drª. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti por orientar minha formação acadêmica desde o início e pelas valorosas contribuições; À Profa. Drª. Daniela Mantarro Callipo que passou a orientar a pesquisa num de seus momentos cruciais, com carinho e firmeza, proporcionando meios para que o presente trabalho se concretizasse; À Profa. Drª. Ana Maria Carlos pela participação na banca do Exame de Qualificação e por suas importantes contribuições; Ao Prof. Dr. Antonio Roberto Esteves pela participação na banca do Exame de Qualificação assim como na Comissão Examinadora da Defesa Pública. Agradeço as generosas contribuições e a leitura atenta que enriqueceram este trabalho; Aos membros da Comissão Examinadora da Defesa Pública, Profa. Drª. Adriana Dusilek, Prof. Dr. Adalberto Luís Vicente e Profa. Drª. Júlia Simone Ferreira, pelas discussões levantadas e pelas sugestões; Aos professores Dr. Álvaro Simões Junior, Dr. Gilberto Figueiredo Martins, Dr. João Luís Cardoso Tápias Ceccantini, Dr. Marco Antonio Domingues Sant’Anna e Dr. Odil José de Oliveira Filho, cujas disciplinas oferecidas junto ao programa de pós- graduação forneceram ferramentas para o desenvolvimento deste trabalho e contribuíram em minha formação acadêmica; A Leandro, meu esposo, pelo companheirismo, incentivo e apoio irrestritos em todos os momentos deste processo; À minha filha Amália, pelo sorriso que me motiva todos os dias; Aos meus pais, Luiz e Zezinha, pelo amor com que sempre se dedicaram à nossa família; A toda a minha família: meus irmãos – Lucimar e Carlos –, cunhados – Ana Claudia e Aparecido – e sobrinhos – Gabriela, Amanda, Thalia, Arthur e Davi – pelo carinho com que sempre me recebem e que se tornou força motriz desta longa empreitada; À Terezinha, Francisco, Luciano, Mariana e à toda sua família, que me acolheram com muito amor; 4 Aos queridos amigos, Geovana Gentili Santos, Elaine e Marco Aurélio Fabri, e Roberta Facina, pelo abraço reconfortante nos momentos difíceis e pela alegre companhia nos momentos de vitória; À Mara Regina Garcia Gengo, que me ensinou uma nova forma de olhar e de sentir; A todos, que direta ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho, deixo os meus sinceros agradecimentos. 5 Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial. (Alberto Manguel, Uma história da leitura) 6 BELANDA, Elaine Cristina Caron. Rimbaud, Molière e Sade lidos pelos brasileiros: Aspectos da representação literária dos escritores franceses homenageados na coleção “Literatura ou morte”. 2015. 215 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2015. RESUMO Rimbaud, Molière e Sade. Estes são os três escritores franceses homenageados, respectivamente, por Leandro Konder, Rubem Fonseca e Bernardo Carvalho, na coleção “Literatura ou morte”, de 2000, da editora Companhia das Letras. A ideia da coleção teria surgido quando Leandro Konder apresentou a seu editor os originais do romance A morte de Rimbaud, em que, além de citar o poeta francês no título, inclui referências à literatura francesa. Contente com o resultado, o editor Luís Schwarcz contatou vários escritores para criarem romances que seguissem o mesmo modelo de A morte de Rimbaud, atendendo a duas premissas fundamentais: que fossem romances policiais e envolvessem o nome de um escritor consagrado pela crítica e pelo público, já falecido. Entre os sete volumes que seguiram a proposta, estão O doente Molière e Medo de Sade. Na construção destes romances seus autores foram levados a revisitar as biografias e as obras de cada um dos escritores homenageados, proporcionando releituras e novos significados a elas. O objetivo de nosso trabalho é investigar os motivos que levaram Konder, Fonseca e Carvalho a escolherem como tema de seus trabalhos literários justamente estes três escritores, além de constatar que esta escolha não foi arbitrária, mas direcionada pela editora, que além de se promover com a referência aos nomes dos escritores clássicos, coloca diante de si um novo nicho de leitores. A coleção possibilita a seus escritores seguirem duas propostas narrativas ao mesmo tempo, pois se caracteriza tanto como uma literatura de entretenimento, marcada pela escolha da forma, narrativa policial e biografia, e uma literatura de proposta, marcada pelo tema, que são as obras de escritores clássicos. São romances escritos tanto para aquele que busca na leitura um passatempo de viagem, como o acadêmico que procura nas entrelinhas citações e alusões a outros escritores. Ademais, objetivamos traçar uma leitura que considere as três obras em conjunto, perspectiva esta que entrevê a formação de um panorama histórico-literário retratado pelos romances, que contemplam os séculos XVII, XVIII e XIX. Palavras-chave: Literatura brasileira contemporânea; Literatura francesa; Rimbaud; Molière; Sade; Konder, Fonseca, Carvalho. 7 BELANDA, Elaine Cristina Caron. “Rimbaud, Molière et Sade lus par les brésiliens: aspects de la représentation littéraire des écrivains français honorés dans la collection “Literatura ou Morte”. ” 2015. 215 f. Thèse (Doctorat ès Lettres) – Faculté des Sciences et des Lettres, Universidade Estadual Paulista, Assis 2015. RÉSUMÉ Rimbaud, Molière et Sade. Ces sont les trois écrivans français qui ont été honorés, respectivement, par les brésiliens Leandro Konder, Rubem Fonseca et Bernardo Carvalho, dans la collection “Literatura ou morte”, de 2000, publiée par Companhia das Letras. L’idée de la collection est apparue lorsque Leandro Konder a soumis à son éditeur l’originel de son roman A morte de Rimbaud, où il cite le poète français dans le titre, et en plus, il fait plusieurs références à la littérature française. Heureux du résultat, le rédacteur Luis Schwarcz a contacté plusieurs écrivains pour créer des romans qui doivent suivre le même modèle de A morte de Rimbaud, en prenant deux prémisses fondamentales: qu’ils soient des romans policiers et qu’ils contiennent le nom d’un écrivain consacré par la critique et par le public. Parmi les sept volumes qui ont suivi la proposition, on a O doente Molière et Medo de Sade. Dans la construction de ces romans leurs auteurs ont été menés à revoir les biographies et les œuvres de chacun des écrivains honorés, en fournissant des relectures et de nouvelles significations pour elles. Le but de notre travail est d'étudier les raisons qui ont fait que Konder, Fonseca et Carvalho choisissent comme thème de leurs œuvres littéraires précisément ces trois écrivains, en essayant de démontrer que ce choix n’a pas été arbitraire, mais dirigé par l'éditeur, qui à part la promotion obtenue grâce aux références faites aux noms des auteurs classiques, atteint un nouveau type de lecteurs. La collection permet à ses écrivains de suivre deux propositions de récit en même temps, elle se caractérise à la fois comme une littérature de divertissement, marquée par le choix de la forme, le roman policier et la biographie, et une littérature de proposition, marquée par le thème, concernant les œuvres de auteurs classiques. Ces sont des romans écrits à la fois pour celui qui cherche dans la lecture un passe-temps de déplacement, et pour les académiciens qui cherchent les citations et les allusions à d'autres écrivains. En outre, nous avons cherché à établir une lecture qui considère les trois œuvres ensemble, pour comprendre la perspective fournie par la formation de la scène historique et littéraire dépeinte par les romans des XVII, XVIII e XIX siècles. 8 Mots-clés: Literatura brasileira contemporânea; Literatura francesa; Rimbaud; Molière; Sade; Konder, Fonseca, Carvalho. 9 BELANDA, Elaine Cristina Caron. Rimbaud, Molière and Sade read by brazilians: aspects of literary representation of the french honored writers in the collection “Literatura ou morte”. 2015. 215 f. Thesis (Doctor of Letters) - Faculty of Science and Letters, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2015. ABSTRACT Rimbaud, Molière and Sade. These are the three french writers honored, respectively, by Leandro Konder, Rubem Fonseca and Bernardo Carvalho, at the collection “Literatura ou morte” (2000 published by Companhia das Letras. The idea of the collection would have appeared when Leandro Konder submitted to his publisher the original novel A morte de Rimbaud, in that in addition to quote the french poet in the title, includes references to french literature. Enthusiastic with the result, the publisher Luis Schwarcz contacted several writers to create novels that follow the same model of A morte de Rimbaud, serving two fundamental assumptions: that they were crime novels and involved the name of an established writer by critics and the public, now deceased. Between the seven volumes that followed the proposal are O doente Molière and Medo de Sade. In constructing these novels his authors were brought to revisit the biographies and works of each of the honored writers, providing readings and new meanings to them. The goal of our work is to investigate the reasons Konder, Carvalho and Fonseca to choose the theme of his literary works precisely these three writers, and demonstrated that these choices was not arbitrary, but directed by the publisher, which besides promoting with the reference to the names of classical writers, sets before itself a new group of readers. The collection allows its writers follow two narratives proposals at the same time, it is characterized both as an entertainment literature, marked by the choice of form, crime novel, and biography, and a proposal literature, marked by the theme, which are the classical writers works. These are novels written for both the reader who search a traveling hobby, as to the academic who seeks the references and allusions to other writers. In addition, we aimed to draw a reading that considers the three works together, this perspective that glimpse the formation of a historical-literary panorama depicted by the novels, which include the XVII, XVIII and XIX. Keywords: Contemporary Brazilian literature; French literature; Rimbaud; Molière; Sade; Konder, Fonseca, Carvalho. 10 SUMÁRIO Apresentação ....................................................................................................... p. 11 Capítulo 1 – Coleção “Literatura ou morte”: Aspectos da literatura brasileira contemporânea em A morte de Rimbaud, O doente Molière e Medo de Sade ... p. 17 1.1. A intertextualidade ....................................................................................... p. 17 1.2. A questão do romance ................................................................................. p. 25 1.3. Os detetives e os crimes ............................................................................... p. 29 1.4. A verdade da literatura: em torno do romance histórico ............................ p. 38 1.5. A literatura e o mercado .............................................................................. p. 45 1.6. Presença Francesa na coleção “Literatura ou morte” .................................. p. 51 Capítulo 2 - Rimbaud, Molière e Sade, lidos pelos brasileiros Leandro Konder, Rubem Fonseca e Bernardo Carvalho .................................................. p. 55 2.1. A morte de Rimbaud, de Leandro Konder ................................................... p. 55 2.2. O doente Molière, de Rubem Fonseca ........................................................ p. 106 2.3. Medo de Sade, Bernardo Carvalho .............................................................. p. 143 Capítulo 3 – Os clássicos da coleção “Literatura ou morte” .............................. p. 176 3.1. Por que estes clássicos? ............................................................................... p. 176 3.2. O passado revisitado: três escritores, três séculos ....................................... p. 185 3.3. A representação dos escritores franceses nos romances de Fonseca, Konder e Carvalho .............................................................................................. p. 190 Considerações Finais .......................................................................................... p. 203 Referências ......................................................................................................... p. 208 11 APRESENTAÇÃO Um crime a ser desvendado e um grande nome da literatura ocidental, já falecido, envolvido na misteriosa trama. Estas são as duas regras básicas da coleção “Literatura ou morte”, lançada em 2000 pela editora Companhia das Letras e que conta com a colaboração de oito escritores, entre os quais Leandro Konder, Rubem Fonseca e Bernardo Carvalho. A ideia da coleção teria surgido após o filósofo e escritor Leandro Konder ter mostrado a seu editor, Luiz Schwarcz, os originais de um novo romance chamado A morte de Rimbaud. A partir da observação dos elementos que compõem a trama – uma narrativa policial que chama à cena renomados escritores e discute aspectos intrínsecos do ofício de escritor – Schwarcz resolveu convidar outros escritores para que escrevessem romances, seguindo as duas regras que ele estabeleceu para, desta maneira, formar uma coleção. Este projeto de publicar uma coleção não seria uma novidade para a editora, já que a criação de séries temáticas é uma de suas estratégias de publicação. A Companhia das Letras, fundada em 1986 pela iniciativa de Luiz Schwarcz, egresso da Editora Brasiliense, começou pequena, mas foi ganhando espaço no mercado editorial até se transformar em uma das mais importantes do país. Em entrevista a Teodoro Koracakis (2005), Schwarcz afirma que sua intenção era a de criar uma editora diferenciada, em que a qualidade do texto fosse a mola propulsora, mas que também atingisse todos os outros componentes do livro. O projeto inicial da editora Companhia das Letras possuía já uma estratégia editorial bem definida que evitava grandes riscos; ou seja, só seriam publicados livros que pudessem ficar por mais tempo no catálogo da editora e não aqueles de venda rápida como os best-sellers. Além disso, o editor se concentra, até hoje, na publicação de nomes que já estão consagrados pelo público e pela crítica, não deixando muito espaço para novos escritores. Outra preocupação de Schwarcz é acompanhar de perto a produção de seus escritores e sempre fazer sugestões, encomendas e também organizar publicações em séries, o que compõe uma estratégia editorial bastante eficaz. Estas coleções podem ser mais formais, com capa, diagramação e tema iguais; ou apenas com alguma pequena conexão entre si. No caso da coleção “Literatura ou morte” houve um trabalho gráfico 12 cuidadoso, por parte do publicitário Marcello Serpa e do designer Raul Loureiro, para que todos os livros que a integram fossem visualmente identificados e para que os nomes dos autores – tanto os homenageados como os contemporâneos – ficassem em destaque no centro da capa. Desta proposta da editora surgiram mais sete romances, além de A morte de Rimbaud, que são: Medo de Sade, Os leopardos de Kafka, O doente Molière, Bilac vê estrelas, Borges e os orangotangos eternos, escritos, respectivamente, pelos brasileiros: Bernardo Carvalho, Moacyr Scliar, Rubem Fonseca, Ruy Castro e Luis Fernando Veríssimo; além de Stevenson sob as palmeiras, do argentino naturalizado canadense Alberto Manguel, e Adeus, Hemingway, do cubano Leonardo Padura Fuentes. Ainda eram esperados mais alguns romances, pois como afirma Mauricio Stycer (2000) em texto para a revista Época intitulado “O prazer do crime”, sobre o lançamento da Coleção, Ricardo Piglia escreveria sobre Leon Tolstoi, José Saramago sobre Alexandre Dumas, Patrícia Melo sobre Edgar Allan Poe, Milton Hatoum sobre Euclides da Cunha e Zuenir Ventura sobre Glauber Rocha. Outro artigo, “Companhia das Letras lança coleção Literatura ou Morte”, publicado no Diário do grande ABC (2000), que se propunha a divulgar o lançamento da coleção que ocorreria durante a Bienal de São Paulo, destacava que Schwarcz teria revelado que Jô Soares também participaria da coleção, mas ainda não havia escolhido o autor a homenagear; Luiz Alfredo Garcia-Roza escreveria sobre Melville e a escritora britânica P. D. James havia escolhido homenagear Jane Austen, revelando, portanto, que a ideia da coleção era um sucesso entre os escritores ligados à editora. Em 2001, no entanto, Schwarcz deu a coleção por encerrada e afirmou que mesmo se mais romances com a mesma proposta fossem publicados, não apresentariam a mesma identificação com a coleção. Atualmente, podemos observar que alguns dos romances que integram a coleção originalmente ganharam novas capas em suas reedições. É o caso de Bilac vê estrelas, de Os leopardos de Kafka e de Borges e os orangotangos eternos, reeditados pela própria Companhia das Letras. O doente Molière, por sua vez, também ganhou nova capa, mas o motivo é a mudança de editora. Em 2009, após vinte anos de parceria, Rubem Fonseca deixou a Companhia das Letras e suas obras passaram a ser publicadas pelo selo Agir, da Ediouro Publicações; um ano depois, os livros migraram para o selo Nova Fronteira, também da Ediouro, segundo informação contida no artigo “Nova Fronteira lança dois novos livros de Rubem Fonseca na Flip” (2011). 13 Ainda segundo Koracakis (2008), a coleção obteve sucesso no Brasil e inclusive foi publicada em outros países. A editora colombiana Norma comprou os direitos de alguns romances da coleção para publicar na América Latina e publicou outros quatro escritos sob sua encomenda: Camus, La conéxion africana, de Rafael Humberto Moreno-Duran (2003); Cinco tardes com Simenon, de Julio Paredes (2003); Rubén Dario y la sacerdotisa de Amon, de Germán Espinosa (2003), e El corazón de Voltaire, de Luis López Nieves (2005). Koracakis afirma também que a editora portuguesa ASA foi a única a publicar a coleção quase na íntegra, tendo somente substituído o romance dedicado ao brasileiro Olavo Bilac por um sobre Fernando Pessoa – Os fantasmas de Pessoa, de Manuel Jorge Marmelo (2004). Em nossas pesquisas pelos livreiros e livrarias na internet, pudemos constatar que a coleção publicada pela editora ASA manteve a arte da capa tal como foi publicada pela Companhia das Letras no Brasil. Por sua vez, a editora Norma modificou as capas, ainda que mantivesse uma identificação entre os volumes, reforçada pelo logotipo e o título da coleção. É de fácil comprovação, portanto, que a Coleção “Literatura ou morte” compõe um projeto bem sucedido, tanto no que diz respeito a sua execução, como a sua divulgação. Seu sucesso se deve à união de alguns fatores que destacaremos a seguir. O primeiro deles é a escolha dos homenageados no projeto. Foram eleitos escritores clássicos, conhecidos pela grande maioria do público leitor e que são autores de obras significativas no contexto literário universal. Além disso, suas biografias chamam a atenção por serem marcadas por aventuras, conflitos e inadequações à ordem vigente. Rimbaud foi o “poeta maldito”, o gênio da poesia que escreveu quase toda sua obra antes dos vinte anos e abandonou a literatura para se aventurar por outros países e culturas; Sade, por compor uma obra que fugia a todos os padrões de sua época e que chocou a sociedade francesa do século XVIII, viveu grande parte de sua vida encarcerado; Molière, perseguido pelos poderosos por ridicularizar a sociedade francesa do século XVII, teve algumas de suas peças censuradas; Stevenson deixou a Escócia e foi viver no Pacífico Sul, em Samoa; Hemingway participou de várias guerras e quando escolheu morar em Cuba teria sido vigiado pelo FBI; Borges criou um mundo à parte com sua literatura que envolve conceitos da cabala e do ocultismo; Kafka teve conflitos familiares, principalmente com seu pai; Bilac, o “Príncipe dos poetas”, teve uma vida literária cheia de facetas, era o poeta parnasiano, sério, de gosto refinado ao mesmo tempo em que escrevia poesias satíricas e crônicas políticas nos periódicos da época. 14 Os escritores brasileiros e internacionais que foram convidados a escrever para a coleção também são responsáveis pelo interesse dos leitores. São escritores que já se firmaram no mercado e possuem sua marca registrada, tanto com respeito ao estilo literário, quanto aos temas que circundam sua obra e leitores que acompanham sua carreira. Alguns deles já se consagraram por meio do próprio gênero policial, como é o caso de Rubem Fonseca, de Leonardo Padura Fuentes e de Luís Fernando Veríssimo. Outros, ainda que não tivessem tanta intimidade com a forma, usaram sua experiência como leitores de policiais na criação de seus romances. Outro aspecto que corroborou o sucesso da coleção é a forma como ela se apresenta, sob a roupagem do romance policial, gênero que sempre teve grande aceitação entre o público leitor e que, desde o fim do século passado vem alcançando o meio acadêmico pela grande revitalização pela qual passou. Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936), criador do personagem delegado Espinosa, citado pelo personagem Sdruws em A morte de Rimbaud, é exemplo disso. Formado em filosofia e psicologia, foi professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é autor de oito livros sobre psicanálise e filosofia. Deixou a vida acadêmica para dedicar-se à ficção policial. Seu primeiro romance, O silêncio da chuva (1996) foi ganhador do Prêmio Jabuti e do Prêmio Nestlé de literatura, ambos em 1997. Aliada ao gênero policial, a veia biográfica também corresponde à parte da atenção que se deu aos romances. O interesse pelo gênero, já consolidado em outros países, vem crescendo grandemente no Brasil nas últimas décadas, tanto no contexto literário como cinematográfico. Pensando na classificação feita por Umberto Eco (2011) e seguida por José Paulo Paes (2001), podemos pensar que a coleção “Literatura ou morte” traz implícita uma proposta de unir duas vertentes literárias distintas: uma literatura de entretenimento que é marcada pela escolha da forma narrativa: romance policial e biografia, e uma literatura de proposta que é marcada pelo tema, que são as obras de escritores clássicos, escritores que oferecem uma visão de mundo única e inconfundível, além de uma forma de representação artística da realidade em que problematiza os valores e desafia o leitor a uma interpretação crítica. Essa união leva à criação de romances mais complexos do que a grande maioria dos romances policiais encontrados no mercado, pois consideram um diversificado público leitor, ao qual atendem igualmente. É leitor da coleção tanto aquele que busca 15 na leitura um passatempo de viagem, como o acadêmico que procura nas entrelinhas citações e alusões a outros escritores. Portanto, levando em conta o cuidado com o qual a coleção “Literatura ou Morte” foi pensada e desenvolvida e partindo da constatação de que ainda não foi realizado nenhum estudo de grande porte, no sentido de analisar comparativamente os volumes publicados pela editora Companhia das Letras no Brasil, nosso objetivo é a realização deste empreendimento. Optamos por selecionar três romances que tivessem uma ligação mais estreita e que ultrapassasse a questão temática da coleção. Desta forma, o fato de existirem três volumes em que os homenageados são escritores franceses e levando em conta o fato de nossa formação em língua e literatura francesa, este pareceu-nos um critério bastante eficaz na escolha do corpus. Assim, além de trazer à tona reflexões a respeito do diálogo entre as literaturas brasileira e francesa em fins do século XX, este trabalho pretende discutir a escolha, por parte dos escritores brasileiros, de três figuras polêmicas – Rimbaud, Sade e Molière – tendo em vista que, coincidentemente ou não, cada um destes escritores representa um dos três grandes gêneros: poesia, romance e teatro. Nosso trabalho tem, portanto, como objetivo, realizar uma leitura de cada um desses romances a partir do viés da relação intertextual que está estabelecida já na capa dos romances – os nomes do escritor homenageado e do escritor que homenageia aparecem em destaque juntos – exprimindo uma proposta de diálogo que coloca os dois, o clássico e o contemporâneo, no mesmo patamar, numa relação de igualdade, de dependência recíproca. Desta forma, pretendemos observar nos três romances que dialogam com a literatura francesa como os escritores brasileiros leem esses escritores clássicos, temas de seus romances e como, em conjunto, os três volumes formam um panorama de importantes momentos da literatura francesa, marcados principalmente pela ruptura com os modelos vigentes. Além disso, nossa leitura dos três volumes da coleção “Literatura ou morte” defende a tese de que a escolha dos escritores homenageados não é meramente subjetiva, como a principio o projeto deixa entrever, haja vista que escritores representantes dos três grandes gêneros – poesia, teatro e romance – são temas dos escritores brasileiros. No primeiro capítulo, intitulado “Coleção ‘Literatura ou morte’: aspectos da literatura brasileira contemporânea em A morte de Rimbaud, O doente Molière e Medo 16 de Sade”, recapitulamos as principais teorias que utilizaremos na análise dos romances, tais como a intertextualidade, a teoria do romance, a relação da literatura com o mercado e a presença francesa na literatura brasileira. O segundo capítulo é o mais longo, pois comporta as análises dos três romances que selecionamos como corpus do trabalho. O primeiro tópico é dedicado à apresentação e análise de A morte de Rimbaud, de Leandro Konder; o segundo a O doente Molière, de Rubem Fonseca, e o terceiro a Medo de Sade, de Bernardo Carvalho. A ordem que elegemos para apresentar os romances corresponde à ordem de sua publicação. No terceiro capítulo, “Os clássicos da coleção “Literatura ou morte”, além de tomar, de forma comparativa, os três romances analisados anteriormente, nos propomos a elaborar a tese de que, em conjunto, A morte de Rimbaud, O doente Molière e Medo de Sade, recriam uma pequena história da literatura francesa, por apresentarem três personagens-escritores representantes dos três grandes gêneros literários, de forma que a coleção possa formar seus leitores para ler os clássicos e também angariar novos leitores através da associação do nome da editora (e de seus escritores) à Rimbaud, Molière e Sade. Por último, em Considerações Finais, faremos um apanhado das principais conclusões a que chegamos em nossa pesquisa. 17 CAPÍTULO 1 COLEÇÃO “LITERATURA OU MORTE”: ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA EM A MORTE DE RIMBAUD, O DOENTE MOLIÈRE E MEDO DE SADE 1.1. A intertextualidade A literatura se escreve certamente numa relação com o mundo, mas também apresenta- se numa relação consigo mesma, com sua história, a história de suas produções, a longa caminhada de suas origens. (Tiphaine Samoyault) Como é possível observar a partir da afirmação de Tiphaine Samoyault, a intertextualidade, enquanto relação de um texto com o mundo e consigo mesmo, sempre existiu. A literatura se constrói ao longo da história a partir de si mesma, dos diálogos travados entre os textos, das imitações, das inspirações, enfim, cada obra está inserida em um contexto cultural e se relaciona com ele e com o mundo. Por esta razão, ainda que repetida à exaustão, a famosa frase de Julia Kristeva, merece ser ainda uma vez lembrada: “todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” (KRISTEVA, 1974, p. 64). A definição de Kristeva, elaborada a partir dos estudos das obras Problemas da poética de Dostoievski e A obra de François Rabelais, de Bakhtin, divulgada em dois artigos, “A palavra, o diálogo no romance” (em que o termo intertextualidade apareceu pela primeira vez) e “O texto fechado”, publicados respectivamente em 1966 e 1967 na revista Tel Quel e retomados em 1969, em sua obra Séméiotikè, Recherches pour une sémanalyse, marca a tomada de consciência, por parte dos críticos e dos escritores, a respeito da relação da literatura consigo mesma e com sua história. 18 Como constata a professora, romancista, crítica literária e tradutora francesa, Tiphaine Samoyault, em A intertextualidade (2008), o que os estudos sobre a intertextualidade observam são os mesmos fenômenos de que a tradicional crítica das fontes tratava. O que muda é a perspectiva, que deixa de ser estritamente biográfica ou psicológica. Buscando uma definição para o termo, Samoyault se questiona sobre o que seria de fato a intertextualidade: Disfarce de uma antiga e tradicional crítica das fontes ou reflexão nova sobre a propriedade literária e a originalidade de um texto? Noção histórica, criada para se fazer corresponderem o discurso literário e práticas modernas de escritura, ou conceito teórico, capaz de dar conta de todos os liames das obras com a literatura? Fenômeno, entre outros, das modalidades da escritura literária ou ponto decisivo para compreender uma parte essencial de seu trabalho? (SAMOYAULT, 2008, p. 10) O termo foi utilizado e definido com tantos sentidos diferentes que se tornou uma noção ambígua, embora neutra, e muitas vezes substitui a maneira técnica pela qual se nota a presença de um texto dentro de outro, como “tessitura, biblioteca, entrelaçamento, incorporação ou simplesmente diálogo” (SAMOYAULT, 2008, p. 09). Muitas são as formas que a intertextualidade pode tomar dentro de um texto: citação, alusão, referência, pastiche, paródia plágio, colagens. Além disso, a retomada de um texto existente pode ser consciente ou aleatória, lembrança, homenagem, submissão a um modelo, inspiração ou subversão a um modelo. Samoyault apresenta uma nova maneira de abordar a questão da intertextualidade no discurso literário. A crítica francesa propõe, portanto, pensar a intertextualidade de uma forma unificada, reunido seus traços em torno da ideia de memória, dado que ela seria justamente a memória que a literatura tem de si mesma. (Idem, 2008, p. 10). Depois de ter sido produzido no contexto do estruturalismo e dos estudos sobre a produção textual, o conceito “migrou”, como diz Marc Angenot, do lado da poética e sofreu uma espantosa inflação de definições. Assim a noção situa-se no cruzamento de práticas muito antigas (citação, pastiche, retomada de modelos. . .) e de teorias modernas do texto: o caráter recente do vocábulo, o fato de que seja uma questão importante das posições teóricas atuais, não deve mascarar a idéia que permite compreender e analisar uma característica maior da literatura, o perpétuo diálogo que ela tece 19 consigo mesma; não um simples fenômeno entre outros, mas seu movimento principal. (SAMOYAULT, 2008, p. 14) Ela segue refazendo a história dos estudos sobre a intertextualidade, apontando os principais estudiosos que se debruçaram sobre ela: Mikhail Bakhtin, Roland Barthes, Michael Rifaterre, Gérard Genette, Antoine Compagnon, Laurent Jenny e Michel Schneider, apontando as contribuições de cada numa tentativa de definição. Bakhtin foi responsável pela noção de intertextualidade, presente em seus estudos, embora o termo não tenha sido por ele empregado. Segundo José Luiz Fiorin, Bakhtin empregou o termo intertextual, uma única vez: “as relações dialógicas intertextuais e intratextuais. Seu caráter específico (extralingüístico). Diálogo e dialética.” (FIORIN, 2006, 162). No entanto, pode-se chegar à conclusão de que este seria um problema de tradução, pois o termo aparece somente nas versões francesa e portuguesa, sendo que esta foi traduzida do francês, e, como tudo indica, já estava influenciada pelos estudos de Kristeva, a responsável por introduzir os estudos bakhtinianos na França. Quando comparada à versão em espanhol, traduzida diretamente do russo, nota-se que não há nenhuma ocorrência deste termo. Apesar de Kristeva ter sido a primeira a usar o termo, ela encontrou a noção para defini-lo na obra do crítico russo Mikhail Bakhtin, que defende a ideia da multiplicidade de discursos trazida pela palavra. Em Questões de literatura e de estética (2014), Bakhtin observa que o romance não foi inventado sem que houvesse alguma relação com os outros gêneros; assim, ele é fruto do questionamento, da releitura dos outros gêneros já existentes, tendo em vista uma nova época, em que surgiam novas necessidades. Em sua teoria sobre a polifonia, feita a partir da análise das obras de Dostoiévski, nas quais observa as relações do romance moderno com a tradição, Bakhtin aponta que, dentro de um mesmo texto, várias vozes diferentes criam uma relação dialógica, ou seja, uma relação de choque, de confronto, o que proporciona aos personagens terem sua própria ideologia, sua própria forma de olhar o mundo, independentes daquelas do autor. A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. [...] Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor mas os próprios 20 sujeitos desse discurso diretamente significante. Por esse motivo, o discurso do herói não se esgota, em hipótese alguma nas características habituais e funções do enredo e da pragmática, assim como não se constitui na expressão da posição propriamente ideológica do autor (como em Byron, por exemplo). A consciência do herói é dada como outra, a consciência do outro mas ao mesmo tempo não se objetifica, não se fecha, não se torna mero objeto da consciência do autor. Nesse sentido, a imagem do herói em Dostoiévski não é a imagem objetivada comum do herói no romance tradicional. (BAKHTIN, 1997, p. 04-05) Barthes aborda a intertextualidade de um prisma muito parecido com o de Kristeva. Para ele a intertextualidade não se reduz a um problema de fontes ou de influências, como foi tratado por muito tempo. Está intimamente ligada à leitura, à recepção literária, a um mergulho no universo dos textos. Rifaterre, por sua vez, encara a intertextualidade do ponto da recepção. Ele faz uma diferenciação entre intertexto e intertextualidade: aquele seria o fenômeno que orienta a leitura do texto e governa sua interpretação. Gérard Genette, em 1982, em Palimpsestes: La littérature au sécond degré, aponta que o objeto da poética não é o texto, mas o arquitexto, a arquitextualidade do texto, ou ainda, a transtextualidade, que seria tudo o que o coloca em relação com outro texto: O objeto da poética, como de certa forma eu já disse, não é o texto, considerado na sua singularidade (este é, antes, tarefa da crítica), mas o arquitexto, ou, se preferirmos, a arquitextualidade do texto (como se diz, em certa medida, é quase o mesmo que a “literariedade da literatura”), isto é, o conjunto das categorias gerais ou transcendentes – tipos de discurso, modos de enunciação, gêneros literários, etc. – do qual se destaca cada texto singular. Eu diria hoje, mais amplamente, que este objeto é a transtextualidade, ou transcendência textual do texto, que definiria já, grosso modo, como “tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta, com outros textos”. (GENETTE, 2010, p. 13) Na sequencia ele distingue cinco tipos de relações transtextuais, elencadas de acordo com uma ordem crescente de abstração, implicação e globalidade. O primeiro é o equivalente ao denominado intertextualidade por Julia Kristeva, uma relação de co- presença entre dois ou mais textos (citação, plagio, alusão): Quanto a mim, defino-o de maneira sem dúvida restritiva, como uma relação de copresença entre dois ou vários textos, isto é, 21 essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva de um texto em um outro.Sua forma mais explícita e mais literal é a prática tradicional da citação (com aspas, com ou sem referência precisa); sua forma menos explícita e menos canônica é a do plágio (em Lautréaumont, por exemplo), que é um empréstimo não declarado, mas ainda literal; sua forma ainda menos explícita e menos literal é a alusão, isto é, um enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro, ao qual necessariamente uma de suas inflexões remete... (GENETTE, 2010, p. 14) O segundo tipo é constituído pela relação – menos explícita e mais distante – que o texto mantém com o seu paratexto, que seriam título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, notas marginais e de rodapé, epígrafes, ilustrações, orelha, capa, e até mesmo autógrafos ou alógrafos, ou seja, comentários oficiais ou não que trazem informações extras ao leitor. O terceiro tipo de transcendência textual, que Genette chama de metatextualidade, é a relação, chamada de “comentário”, que une um texto a outro texto do qual ele fala, sem necessariamente citá-lo e até mesmo sem nomeá-lo. O quarto tipo de transtextualidade se refere ao principal objeto de estudo de Genette em Palimpsestos, é a hipertextualidade que é toda relação que une um texto B (hipertexto) a um texto anterior A (hipotexto) do qual ele brota de uma forma que não é a do comentário. O hipertexo geralmente é considerado uma obra literária, pois quase sempre deriva de uma obra de ficção. O quinto tipo é o mais abstrato e o mais implícito, é a arquitextualidade. Trata- se de uma relação silenciosa, uma menção paratextual, que pode ser titular (como em Poesias, Ensaios, o Romance da rosa) ou infratitular (como indicação que acompanha o título, na capa: Romance, Narrativa, Poemas). Por sua vez, Antoine Compagnon, em seu O trabalho da citação, cria uma imagem muito interessante sobre o ato da leitura e da citação, imagem esta que mais se aproxima do nosso entendimento do que seja a intertextualidade: Escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar. A citação, graças à confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citação. A citação representa a prática primeira do texto, o fundamento da leitura e da escrita: citar é repetir o gesto do arcaico do recortar- colar, a experiência original do papel, antes que ele seja a superfície de inscrição de letra, o suporte do texto manuscrito ou impresso, uma 22 forma da significação e da comunicação lingüística. (COMPAGNON, 1996, p.31) A intertextualidade, no entanto, não se limita somente à relação explícita de um determinado texto com outro; esta retomada pode se dar também pela vinculação entre os gêneros ou com outras expressões artísticas como pintura, escultura, cinema, entre outros. Como podemos constatar a partir da leitura de Compagnon, todo texto – e aqui utilizamos o conceito de texto de Kristeva, como sinônimo de discurso – apresenta-se em relação com outro(s), pois está inserido em um sistema e surge para dialogar com ele, seja para confirmá-lo, repensá-lo, ou contrariá-lo. Se a obra não for colocada em um contexto, não for relacionada com algo que a precedeu, torna-se, segundo Laurent Jenny, em seu artigo “Intertextualidades”, uma palavra desconhecida: “Fora da intertextualidade, a obra literária seria muito simplesmente incompreensível, tal qual a palavra duma língua ainda desconhecida.” (JENNY, 1979, p. 5). Portanto, é a partir da segunda metade do século XX que a consciência e a valorização da intertextualidade como recurso da produção literária passaram a ser exploradas mais deliberadamente e, desta forma, há uma retomada significativa em romances, contos e outros gêneros do uso da intertextualidade de uma forma bastante racional, chegando até mesmo a se configurar como um jogo entre autor e leitor. Com isso, os estudos da intertextualidade proliferaram a tal ponto que hoje é praticamente impossível não tentar fazer a relação entre o texto que lemos e tudo o que seu autor leu – sua biblioteca –, buscar as marcas deixadas por estas leituras. No entanto, nem sempre foi assim, pois se este aspecto da obra literária pôde ser omitido por tanto tempo, foi porque seu código cegava de tão evidente, e somente a partir do momento em que uma crítica formal se revelou, foi possível situar a intertextualidade no funcionamento da literatura. (JENNY, 1979, p.6). Esta tendência da literatura contemporânea e pós-moderna1 chama o leitor a participar da significação da obra, ele é jogado para dentro dela e se torna parte 1 Quando o utilizamos o termo pós-moderno, estamos pensando na definição proposta por Linda Hutcheon, em sua Poética do pós-modernismo. Segundo a crítica canadense, o pós-modernismo é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte, os próprios conceitos que desafia – seja na arquitetura, na literatura, na pintura, na escultura, no cinema, no vídeo, na dança, na televisão, na música, na filosofia, na teoria estética, na psicanálise, na lingüística ou na historiografia. (HUTCHEON, 1991, p.19) 23 indispensável na criação do sentido, é co-autor do texto. A leitura pode se tornar uma caça às citações e alusões, fazendo com que o leitor, desta forma, se identifique com um detetive que faz investigações em busca da biblioteca do autor que lê, ou numa atitude mais reflexiva, perguntar-se porque o “autor” leu aquele texto e o motivo de tê-lo trazido para seu próprio texto. De qualquer forma, torna-se um jogo consciente de esconde e revela, pois cada texto tem em sua tessitura fios de inúmeros outros textos e, a partir de determinada obra, passa-se a ter contato com grande número de outras por meio das relações intertextuais. Os estudos intertextuais, segundo Tiphaine Samoyault, substituíram a sucessão pelo movimento, a fixidez dos encadeamentos histórico-lógicos pelo estudo da circularidade dos liames entre os enunciados; desta forma, os textos não são atribuídos a um lugar fixo, ao contrário do que tentam estabelecer o cânone e a instituição literária. Para a estudiosa, as questões de anterioridade e de influência não contam mais, importando somente a possibilidade que oferece a intertextualidade de mostrar como se constituem, em profundidade, em espessura e em tempo, um estilo ou uma linguagem. (SAMOYAULT, 2008 p. 138-139). Todas essas mudanças também geraram uma nova forma de olhar para o artista, a identidade autoral ganhou status e em muitos casos, o interesse pelo autor e sua vida superou o interesse pela própria obra. Roland Barthes, em seu texto “A morte do autor”, aponta para o fato de que a figura do autor, tal como ainda a conhecemos hoje, é produto das modificações ocorridas na sociedade ao longo do tempo: O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade na medida em que, ao sair da Idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do individuo ou, como se diz mais nobremente, da “pessoa humana”. Então é lógico que, em matéria de literatura, seja o positivismo, resumo e ponto de chegada da ideologia capitalista, que tenha concedido a maior importância à “pessoa” do autor. (BARTHES, 2004, p. 58) O efeito colateral deste interesse pelo gênio criativo, pela pessoa do autor é que, muitas vezes, a biografia toma o lugar da obra. Como Barthes assinala, a imagem da literatura que se pode encontrar na cultura corrente está tiranicamente ligada à figura do autor, pois ele “ainda reina nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, Trata-se de uma estética que prima pela multiplicidade, pelas diferenças e pela impossibilidade de classificação, marcada pela busca da “presença do passado”, sem nostalgia, com consciência e distanciamento crítico. 24 nas entrevistas de periódicos, e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças a seu diário íntimo, a pessoa e a obra” (Idem, p. 58). É o caso, por exemplo, de Rimbaud, um dos poetas mais famosos da Literatura Francesa, que muitas vezes tem o interesse do leitor desviado de seus poemas para as curiosidades de sua biografia. No entanto, os novos estudos críticos trouxeram à tona questionamentos tanto com relação à figura do autor, como quanto à originalidade, pois os estudos dos gêneros literários apontaram para o fato de que não se pode falar em “obra original”, já que na prática toda obra se configura como uma retomada, uma releitura, um reaproveitamento do que já havia sido feito. A respeito da originalidade, Barthes afirma: Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a “mensagem” do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações oriundas dos mil focos da cultura. (BARTHES, 2004, p. 62) As raízes desse conceito podem ser encontradas nos estudos da obra de Mikhail Bakhtin. Quando discorre sobre o gênero romanesco, Bakhtin (2014) observa que ele não foi inventado sem que houvesse alguma relação com os outros gêneros; assim, ele é fruto do questionamento, da releitura dos outros gêneros existentes, tendo em vista uma nova época, em que surgiam novas necessidades. Citando Roland Barthes, podemos fazer uma síntese de todas as ideias discutidas e resumi-las a um pensamento por ele lançado e que nos parece bastante emblemático neste momento da crítica literária. Ao refletir sobre a figura do autor, ele a compara à figura do copista, assim “o escritor pode apenas imitar um gesto sempre anterior, jamais original; seu único poder está em mesclar as escrituras, em fazê-las contrariar-se umas pelas outras, de modo que nunca se apoie em apenas uma delas.” (BARTHES, 2004, p. 62). Chega desta maneira, à conclusão de que a figura responsável pela construção do texto é não o autor, mas o leitor, pois é nele que o texto atinge sua unidade: Assim se desvenda o ser total da escritura: um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de 25 que é feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino, mas esse destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é apenas esse alguém que mantém reunidos em um mesmo campo todos os traços de que é constituído o escrito. (Idem, p. 64). É, portanto, tendo em vista o jogo de leituras entrecruzadas, realizadas por Konder, Fonseca e Carvalho e a partir da consciência de que o leitor é o lugar em que o discurso passa a existir, que iremos abordar os três romances, A morte de Rimbaud, O doente Molière e Medo de Sade. 1.2. A questão do romance Um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção. (Umberto Eco) Como se sabe, A morte de Rimbaud, O doente Molière e Medo de Sade fazem parte de um projeto da editora paulista Companhia das Letras que, juntamente com outros cinco romances, formam a coleção “Literatura ou morte”. Contudo, ainda que pertençam ao mesmo projeto editorial, a leitura dos três romances selecionados como corpus do presente trabalho nos mostra que se tratam de três modelos narrativos completamente distintos. Cada autor teve a liberdade para imprimir sua personalidade e seu estilo ao responder à convocação da editora e criar uma narrativa que atendesse às duas premissas básicas lançadas pelo editor Luiz Schwarcz: um crime a ser desvendado e um grande nome da literatura, já falecido, numa trama de mistério. 26 A morte de Rimbaud se apresenta com a particularidade de não fazer parte da encomenda da editora, mas de ser, de fato, a obra que gerou a ideia da coleção. Segundo as entrevistas aos jornais e revistas na época do lançamento da coleção, Konder teria entregado os originais de A morte de Rimbaud para que seu editor lesse. O romance teria nascido de uma necessidade do escritor em dar uma pausa ao seu trabalho teórico. Após a leitura, a trama composta por Konder incitou em Schwarcz a ideia de uma sequência de textos com a mesma temática e, então, vários outros escritores foram chamados a integrá-la. Portanto, embora sigam o mote proposto pelo editor, algumas características peculiares deste romance não serão encontradas nos outros sete romances. A morte de Rimbaud é o romance que mais trata de questões inerentes ao universo literário e também que retrata de forma paródica o próprio sistema editorial. O doente Molière, escrito por um dos mestres da narrativa policial brasileira, ainda que apresente vários elementos inovadores em sua estrutura narrativa, é, entre os três, o que mais se aproxima da narrativa policial convencional, aquela conhecida do grande público. Há no romance a morte do dramaturgo Molière, indícios de que se trata de um crime, um detetive determinado a investigar e uma lista de suspeitos com motivação para cometer o crime. Medo de Sade, por sua vez, é o mais provocativo no sentido em que, ao mesmo tempo em que atende às regras propostas pela coleção, ao inserir um assassinato a ser desvendado e o nome de um escritor clássico envolvido na trama – Marquês de Sade –, se distancia dela, pois Sade figura apenas como um fantasma que percorre o imaginário do personagem e o estilo narrativo do romance, mas não como um personagem da trama. Ainda que todos se encaixem dentro da categoria de romances policiais, cada um possui uma maneira única de se adaptar ao gênero: A morte de Rimbaud é composta por uma série de narradores, são quase tantos quanto o número de personagens; O doente Molière mescla as características do romance histórico contemporâneo ao enredo policial; Medo de Sade, por sua vez, também é um romance policial, porém dividido em duas partes (Ato 1 e Ato 2), em que a primeira parte dialoga com a estrutura dramática de diálogos, lembrando uma peça de teatro. Não pretendemos, em nosso estudo, buscar uma classificação genérica destes textos, pois compreendemos que este não é um aspecto relevante na construção de nossa leitura. Nosso objetivo é lançar algumas reflexões acerca do hibridismo genérico, como 27 elemento constitutivo na narrativa, além de esboçar um panorama do romance policial e do romance histórico, a fim de observar como os modelos são assimilados e traduzidos por Konder, Fonseca e Carvalho. Bakhtin, ao discorrer sobre o romance, destaca que se trata de um gênero jovem, que se originou da mescla de outros e, por isso, é este um gênero híbrido por excelência. Buscando uma teoria do romance, Bakhtin retoma as raízes do gênero: É justamente aqui – no cômico popular – que é necessário procurar as autênticas raízes folclóricas do romance. O presente, a atualidade enquanto tal, o “eu próprio”, os “meus contemporâneos” e o “meu tempo” foram originariamente o objeto de um riso ambivalente, objetos simultâneos de alegria e de destruição. E é aqui precisamente que se forma uma nova atitude radical em relação à língua e à palavra. Ao lado da representação direta – da ridicularização da atualidade vivente – floresce a parodização e a travestização de todos os gêneros elevados e das grandes figuras da mitologia nacional. (BAKHTIN, 2014, p. 412). A paródia é, portanto, uma das características do romance que Bakhtin considera como um diferencial dos outros gêneros: “O romance parodia os outros gêneros (justamente como gêneros), revela o convencionalismo das suas formas e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à sua construção particular, reinterpretando-os e dando-lhes um outro tom.” (BAKHTIN, 2014, p. 399). Os gêneros “sério-cômicos” são, desta forma, os predecessores, os que “representam a primeira etapa, legítima e essencial, para a evolução do romance enquanto gênero em devir.” (Idem, p. 413); a partir do riso, o passado absoluto épico atualiza-se e rebaixa-se nas paródias e travestimentos, passa a ser representado no nível da atualidade. O romance, tal como se conhece, embora seja uma forma literária nova, possui muitos elementos que foram herdados dos gêneros constituídos. Bakhtin aponta o romance como um gênero em constante evolução e de caráter essencialmente híbrido e inacabado. Ele compara o estudo do gênero romanesco ao estudo das línguas vivas e jovens, enquanto o estudo dos gêneros constituídos, como da epopeia, por exemplo, seria como o estudo de uma língua morta, em que não há mudanças e evoluções. O romance é o único gênero por se constituir, e ainda inacabado. As forças criadoras do gênero agem sob nossos olhos: o nascimento e a formação do gênero romanesco realizam-se sob a luz da História. A ossatura do romance enquanto gênero ainda está longe de ser 28 consolidada, e não podemos ainda prever todas as suas possibilidades plásticas. (BAKHTIN, 2014, p. 397). Mas, se o romance nasceu a partir de outros gêneros, seu nascimento não significou uma conformidade a eles, muito pelo contrário, a relação que estabelece com os outros gêneros é complexa. Ao passo que se afirma, modifica também a maneira com a qual lidamos com os outros gêneros: Com ele e nele, em certa medida, se originou o futuro de toda literatura. Por isso, uma vez nascido, ele não pode ser simplesmente um gênero ao lado dos outros gêneros e tampouco pode estabelecer relações mútuas com eles, no sentido de uma coexistência pacífica e harmoniosa. Diante do romance todos os gêneros começam a ressoar de maneira diferente. Tem início um longo conflito pela romancização dos outros gêneros, pelo engajamento deles na zona de contato com a atualidade inacabada. (BAKHTIN, 2014, p. 427). Os gêneros anteriores a ele, já constituídos, foram revistos, parodiados e questionados, já que não se adequavam à nova realidade, na qual a verdade e o passado absoluto da epopeia não encontram espaço. Desta forma, o melhor representante da era moderna seria um gênero que expressasse as tendências evolutivas deste novo mundo. Em O universo do romance, Roland Bourneuf e Réal Ouellet, descrevem o que consideram ser a característica mais marcante do gênero, responsável por lhe assegurar sucesso e vida longa: O caráter “aberto” do género, que permite trocas recíprocas, a sua aptidão para integrar, segundo dosagens diversas, os elementos mais díspares – documentos em bruto, fábulas, reflexões filosóficas, preceitos morais, canto poético, descrições –, a sua ausência de fronteiras, numa palavra, contribui para fazer o seu sucesso – cada um acaba por nele encontrar o que procura – e para lhe assegurar longa vida: a extrema maleabilidade permitiu-lhe sair triunfante de todas as crises.” (BOURNEUF, OUELLET, 1976, p. 27) Este gosto pela variedade e pela mescla de gêneros se acentua principalmente no período identificado por Linda Hutcheon (1991) como pós-modernidade; segundo ela, podemos observar que a mídia, nos tempos atuais, influencia a escrita contemporânea e muitos romances inserem elementos midiáticos em sua própria constituição. Entretanto, desde a década de 1920 já era possível apontar o florescimento da influência dos meios 29 de comunicação, em especial o cinema e o jornalismo, nas obras dos escritores vanguardistas que caminhavam rumo à nova estética. Como a ideia central da coleção “Literatura ou morte” era a criação de narrativas policiais, este é um aspecto que concerne aos três títulos que iremos analisar. Desta forma, parece-nos relevante fazer algumas considerações a respeito da tradição do gênero policial. 1.3. Os detetives e os crimes O crítico é como um detetive que tenta decifrar um enigma, ainda que não haja enigma. É um aventureiro que se move entre os textos perseguindo um segredo que, às vezes, não existe. Nesse sentido, o prazer da crítica – ou, de um modo geral da leitura – estaria não num objetivo final, o de desvendar o mistério, mas nas próprias conjecturas, nas formulações possíveis. (Flávio Carneiro) As narrativas policiais fizeram muito sucesso entre o público leitor desde o seu surgimento. Como aponta Sandra Reimão em seu livro O que é romance policial (1983), no século XIX, quando Poe lançou as bases do gênero, a população estava se acostumando com a leitura cotidiana de jornais e folhetins e algumas publicações possuíam um espaço reservado aos fatos diversos, ou seja, histórias excepcionais e crimes raros que começaram a fazer crescer as vendas dos exemplares. Desta forma, as narrativas policiais que apresentavam histórias de crimes misteriosos e aparentemente insolúveis, desvendados por detetives hábeis, chamavam a atenção dos leitores e também garantiam uma boa vendagem. No entanto, por muito tempo, no Brasil, a narrativa policial permaneceu relegada quase sempre ao rol da literatura comercial e foi considerada, em sua grande maioria, de baixa qualidade literária. Mesmo quando o autor conseguia ultrapassar a barreira do 30 valor estético, ainda se deparava com o preconceito. A esse respeito vejamos um depoimento de Paulo Medeiros e Albuquerque, intitulado “As dificuldades encontradas por quem envereda no gênero policial”: Em 1973, quando publicamos o livro Os Maiores Detetives de Todos os Tempos, edição da Editora Civilização Brasileira em convênio com o Instituto Nacional do Livro, onde, em tom jornalístico, o mais informal possível, fizemos uma análise dos principais detetives da ficção policial, desde Zadig, de Voltaire, até os mais modernos, como o negro Virgil Tibbs, o rabino David Small, a equipe do 87º Distrito Policial e outros. Livro puramente de divulgação, teve relativamente boa aceitação, apesar da chamada crítica “oficial” tê-lo ignorado. Porém, todos os órgãos de imprensa divulgaram-no, criticando favoravelmente em sua esmagadora maioria. [...]. O curioso é que, em alguns casos, os mesmos críticos que ignoraram o aparecimento de nosso livro nos escreveram para elogiar o mesmo. Em poucas palavras: não queriam se comprometer com o público que os lê como grandes ditadores das linhas tradicionais de nossa literatura. E falar num livro policial, sem discutir algumas teses pour épater, não seria recomendável para sua própria imagem... (ALBUQUERQUE, 1979, p.216-217) Naquele momento da história da intelectualidade brasileira, a leitura das narrativas policiais só era possível às escondidas, sem que fosse declarado publicamente o prazer da leitura. Contudo, esse panorama mudou e é possível observar um fenômeno de revitalização do gênero. Este gosto pelo gênero policial, que é um dos que melhor representam a chamada “cultura de massa”, vem sendo deliberadamente explorado tanto pelos escritores como também pela crítica pós-moderna, por conter elementos importantes seja para garantir um público leitor, seja para conquistar novas gerações. Como se sabe, os antecedentes da narrativa policial tradicional podem ser encontrados já no século XVIII em uma narrativa de Voltaire chamada Zadig ou o destino (1748), em que o protagonista que dá título à história possui um alto poder de dedução e de percepção, características estas que iriam compor o perfil dos primeiros detetives policiais de Poe. Além desta obra de Voltaire, pode-se considerar como antecedente das narrativas policiais o romance gótico. A principal característica deste subgênero romanesco, segundo Vasconcelos (2002), é o esforço, por parte do narrador, em criar uma atmosfera narrativa que envolva o leitor na história, para, em seguida, assustá-lo, mas de modo que lhe provoque prazer. Alguns elementos bastante explorados para compor esta atmosfera são: as histórias geralmente se passam na Idade Média, que é a 31 época das trevas e do mistério; os cenários sãos castelos e abadias habitados por espectros ou clérigos maléficos; há descrições de ambientes estranhos, oníricos e fabulosos; é intensa a presença do locus horrendus (as florestas sombrias, as grandes altitudes, os lugares muito frios, os desertos e os abismos); a obsessão pelo passado também aparece como um elemento importante da narrativa gótica. Além disto, a ameaça quase sempre era manifesta em países (ou por personagens provenientes de países) católicos em que as monarquias absolutistas e a Inquisição não respeitavam os direitos dos cidadãos. Portanto, entendida como efeito narrativo, a literatura gótica é um dos mais influentes modelos narrativos para as histórias de romance policial, por criar a atmosfera de suspense e medo. De acordo com Reimão (1983), no entanto, foi somente no século XIX que surgiram as condições necessárias para que o gênero policial se cristalizasse como um modelo que viria a ser retomado, parodiado, transgredido e subvertido. Reimão aponta fatores como o aparecimento dos jornais de grande tiragem, o crescimento dos centros urbanos, a formação da polícia como instituição, entre vários outros elementos que juntos propiciaram o desenvolvimento do gênero. O marco estabelecido para o “nascimento” das narrativas policiais é o conto de Edgar Allan Poe, Os assassinatos da Rua Morgue, de 1841, narrativa em que surge o grande detetive Auguste Dupin, intelectual de gostos excêntricos e que não trabalha para a polícia, mas que, com um senso dedutivo apuradíssimo, consegue desvendar o assassinato das duas mulheres da Rua Morgue, algo fora do alcance da polícia comum, dado que o crime, curiosamente, passara-se em uma sala fechada, sendo praticamente impossível compreender como o assassino pôde ali entrar e sair dali. Com muita segurança e praticamente sem sair de seu escritório, Dupin consegue, rapidamente, através de deduções e argumentações lógicas, chegar ao verdadeiro assassino – um orangotango que havia escapado de seu dono. Estão lançadas, pois, as bases do gênero e muitos serão os escritores que utilizarão o modelo de Poe como base para suas próprias narrativas, seja para dialogar com ele ou subvertê-lo. Um dos mais importantes e conhecidos em todo mundo é Conan Doyle (1859- 1930) que, com seu famoso detetive Sherlock Holmes, difundiu ainda mais o gênero. Nos romances de Doyle observam-se algumas alterações em relação ao modelo de Poe, como, por exemplo, a importância central que o narrador ganha. O Dr. Watson é um narrador fixo que aparece em vários romances, é um memorialista que narra as aventuras de seu grande companheiro, o detetive Holmes. 32 Como o detetive é uma “mente dedutiva” que, através de pistas, vestígios e indícios, reconstrói a história do crime e encontra o culpado, é necessário que exista alguém que reconstrua os passos que ele deu para chegar até o culpado, evidenciando sua genialidade em desvendar o crime, além de possibilitar uma identificação por parte do leitor médio que, assim como ele, não alcança o nível de dedução de Holmes. Daí a importância dos personagens-narradores. Seguindo a tendência dos romances de Doyle, vemos que surgem várias outras possibilidades de tipos de narrador para o romance de enigma, como o narrador impessoal, a presença de vários narradores, ou de personagens-narradores que podem ser fixos, memorialistas ou historiógrafos dos detetives. Watson, por exemplo, é uma espécie de “detetive do detetive”, pois ele seleciona as aventuras a serem narradas e opta pela forma de narrar. Outra mudança marcante que acontece com o desenvolvimento do gênero é que o detetive também é humanizado, pois ele já não tem mais tantas certezas e começam a aparecer seus “defeitos”. Ele deixa de ser uma máquina dedutiva perfeita (como Sherlock Holmes) e passa a ser simplesmente um homem que também pode cometer erros. Em 1928, o escritor e crítico americano, Van Dine publicou, no The American Magazine, “As vinte regras do Romance Policial”, as quais deveriam nortear a produção dos romances de enigma. Estas regras foram reduzidas a oito por Todorov em seu ensaio “Tipologia do romance policial”: o romance deve ter no máximo um detetive e um culpado, e no mínimo uma vítima; o culpado não deve ser um criminoso profissional, não deve ser o detetive e deve matar por razões pessoais; não deve haver relações amorosas no romance policial; o culpado deve gozar de certa importância: não pode ser um empregado ou uma camareira e sim uma das personagens principais; o fantástico não é admitido; não há lugar para descrições nem para análises psicológicas; é preciso conformar-se à seguinte homologia, quanto às informações sobre a história: “autor: leitor = culpado: detetive”; é preciso evitar as situações e as soluções banais. (TODOROV, 2006, p.100-101). Entretanto, vale ressaltar que o próprio Van Dine nem sempre seguia as regras que ele próprio estabeleceu e, ao longo do tempo, elas foram sendo “subvertidas”. Algumas das obras de Agatha Christie, que têm como personagem Hercule Poirot – o detetive mais conhecido depois de Holmes –, rompem com a estrutura clássica do romance policial em questões essenciais como a possibilidade de o ajudante do detetive ser o assassino, e de todos os personagens principais poderem morrer. 33 Com base no modelo clássico de romance de enigma criado por Poe, surgiram (e ainda surgem) muitas vertentes de narrativas policiais. Outro tipo bastante divulgado é a série noire ou romance negro, cujo criador foi Dashiell Hammett. Um dos seguidores mais expressivos do “romance negro” e que o tornou mais conhecido foi Raymond Chandler. O romance negro, segundo Tzvetan Todorov, é um romance que funde as duas histórias ou, por outras palavras, suprime a primeira e dá vida à segunda. Não é mais um crime anterior ao momento da narrativa que se conta, a narrativa coincide com a ação. Nenhum romance negro é apresentado sob a forma de memórias: não há ponto de chegada a partir do qual o narrador abranja os acontecimentos passados, não sabemos se ele chegará vivo ao fim da história. A prospecção substitui a retrospecção. (TODOROV, 2006, p. 98-99). Vários fatores históricos influenciaram o surgimento deste tipo de romance, tais como a expectativa gerada pela percepção de que o mundo estava às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Além disso, uma crise assolava o mundo todo, pois havia acontecido o “Crack” da Bolsa de Nova Iorque. Também nesta época novas ideias surgem com a filosofia de Nietzsche, com o vitalismo de Bergson e com a psicanálise de Freud, além da oposição entre Existencialismo e Positivismo. Por causa dos fatores apontados acima e que refletiram no modo de se pensar a vida e, consequentemente, no modo de se pensar a literatura, o romance negro abandonou várias das características clássicas, como o otimismo, a moralidade convencional, o espírito conformista e a presença de um mistério, acrescentando uma série de inovações ao romance de gênero policial, tais como o fato de a ênfase recair na ação e não mais na dedução do detetive; de situações angustiantes e violentas tornarem- se temas destes romances; de o emprego da linguagem coloquial ser utilizada de forma consciente pelo escritor; de ocorrer uma síntese entre o protagonista e o narrador em um único personagem; de deixar de existir a garantia da imunidade física do detetive, portanto, ele deixa definitivamente de ser uma máquina e é humanizado; de não haver mais verdade indiscutível, e tudo passar a ser relativizado; e, finalmente, o fato de haver a presença de uma crítica ético-social-política que passa a fazer parte das narrativas. Além de todas estas inovações, a intertextualidade e a paródia tornam-se elementos constitutivos da narrativa, pois o detetive deste tipo de romance satiriza o detetive 34 infalível dos romances clássicos e o leitor ganha um papel importante diante do texto – ele precisa complementá-lo. Ao comentar as diferenças existentes entre as duas principais escolas detetivescas: o policial de enigma e o roman-noir, que se configuram como representações de dois imaginários distintos, Flávio Carneiro (2005), nos mostra que cínicos e desconfiados, os detetives do roman noir, de que Sam Spade (Dashiell Hammet) e Philippe Marlowe (Raymond Chandler) são os maiores representantes, “encarnam – ao contrário de seus colegas Dupin, Sherlock, Poirot – o espírito de uma época descrente” (CARNEIRO, 2005, p. 21). Mais humanos, mais cheios de conflitos – com a polícia e com a sociedade –, mais descrentes de que seu trabalho possa mudar ou melhorar o mundo, são eles os modelos seguidos pelos escritores de narrativas policiais no Brasil, que ganharam força e destaque a partir da década de 1980, principalmente com a obra de Rubem Fonseca. A prosa policial no Brasil, segundo Carneiro (2005), instaura-se como uma literatura que interage com a mídia, na qual desaparece a preocupação de estabelecer limites e que não luta contra a inserção no mercado. Muitos escritores, como é o caso de Fonseca, utilizam os recursos midiáticos na construção de seu texto, o que os torna produtos vendáveis: Essa nova postura aparece já nos primeiros livros de Rubem Fonseca, especialmente em Lúcia McCartney (1969). No conto que dá título ao livro temos a linguagem midiática, na apropriação de certos clichês de programas de rádio, na utilização de rubricas típicas de roteiros para TV ou na concisão e velocidade da escrita, lembrando o discurso jornalístico. Além disso, outro fator liga o livro à mídia: Lúcia Mc Cartney foi, ainda é, um produto vendável. Suas sucessivas edições, suas transposições para o teatro e para a televisão comprovam isso. (CARNEIRO, 2005, p. 24) Os romances que compõem a coleção “Literatura ou morte” seguem essa linha, recusam a distinção entre cultura erudita e cultura de massa e absorvem elementos de ambas as esferas, atendendo a todos os públicos, servem tanto aos leitores interessados apenas numa história policial bem contada quanto àqueles que buscam uma escrita mais sofisticada, repleta de citações literárias e jogos intertextuais. Outro nome que se destaca dentro da tradição da narrativa policial e que sem dúvida mudou os rumos do gênero é o escritor argentino Jorge Luís Borges, admirador e leitor confesso de romances policiais. Como aponta Ricardo Piglia em O laboratório do 35 escritor (1994), Borges difundiu amplamente o romance policial inglês, já que este fazia parte de sua formação como leitor, mas não só por isso; também e, talvez principalmente, com outros interesses: como forma de se favorecer, preparando os leitores das suas próprias narrativas policiais: O romance policial inglês fora difundido com grande eficácia por Borges, que, por um lado, procurava criar uma recepção adequada para seus próprios textos e tentava tornar conhecido um tipo de narrativa e de manejo da intriga que estava no centro de sua própria poética, e, por outro, fez um uso excelente do gênero: “La muerte y la brújula” é o Ulisses do conto policial. A forma chega ao seu auge e se desintegra. (PIGLIA, 1994, p. 78) Em Cinco visões pessoais, Borges afirma que o gênero policial perdeu muito de sua importância nos Estados Unidos, país em que nasceu Edgar Allan Poe (nasceu em Boston em 1809 e morreu em Baltimore, em 1849) e que a origem intelectual do conto policial tem sido esquecida, sendo preservada apenas na Inglaterra onde ainda se escrevem romances que transcorrem sem muita violência, em aldeias inglesas, com o predomínio do caráter intelectual. Esta questão também é abordada por Flávio Carneiro, ao falar da tradição de narrativas policiais no Brasil. Segundo ele, A ficção policial brasileira não vai buscar em Poe o modelo do detetive. Vai buscá-lo em Hammet. Sam Spade é o detetive que servirá de modelo para a nossa narrativa policial. É a literatura americana da década de 30, a prosa noir de Hammet, Chandler e outros, e não a anterior, de Poe, que mais se aproxima do que temos produzido no gênero. (CARNEIRO, 2005, p. 20) Borges, neste texto sobre a narrativa policial, destaca também a importância de Poe. Para ele, “falar do conto policial é falar de Edgar Allan Poe, criador do gênero” (BORGES, 1987, p. 31), não pela importância em si de cada página que Poe nos deixou, mas pela memória de sua obra, como um todo e, principalmente, por ele ter criado o tipo de leitor de ficção policial, pois segundo o escritor argentino, “nós, ao lermos uma novela [sic] policial, somos uma invenção de Edgar Allan Poe” (BORGES, 1987, p. 37). E a existência desta invenção – o leitor de narrativas policiais – é essencial para que a leitura da obra de Borges alcance o efeito esperado. 36 Há um tipo de leitor atual, o leitor de ficção policial. Esse leitor, que se encontra em todos os países do mundo e que se conta aos milhões, foi criado por Edgar Allan Poe. Suponhamos que não exista esse leitor, ou – algo talvez mais interessante – que se trate de uma pessoa distante de nós. Pode ser um persa, um malaio, um camponês, uma criança, uma pessoa a quem dizem, por exemplo, que Dom Quixote é um conto policial. Imaginemos que esse hipotético personagem tenha lido novelas [sic] policiais e comece a ler Dom Quixote. Quê lê, então? (Idem, p. 32). Este questionamento sobre o papel da leitura permeia toda a obra de Borges, ele pensa o leitor não apenas como um mero receptador do conto ou do romance, mas como um elemento de significação da obra, pois é no momento da leitura que o texto se concretiza verdadeiramente e permite a existência de diversos sentidos e sentidos diversos dentro da mesma obra, conforme o grau de comprometimento do leitor. Em “La muerte y la brújula” [“A morte e a bússola”], Borges, partindo do pressuposto de que um leitor habituado à ficção policial e com experiência em leituras detetivescas, será guiado por um método durante a leitura, em que a busca e a análise das pistas será o fio condutor para também tentar desvendar o crime, tece um jogo, um simulacro, de forma a desconstruir o modelo. São deixadas inúmeras pistas ao longo da narrativa e que, não por acaso, vão se encaixando facilmente e que, em uma primeira leitura, dão ao leitor uma sensação de esperteza e de capacidade de deduzir e desvendar todos os crimes, pois suas conclusões podem se assemelhar bastante àquelas do detetive. No entanto, logo o jogo é deflagrado e o leitor é colocado em sua condição de impotência diante da ardilosa construção do texto. As pistas são falsas e plantadas ali justamente para alcançar o efeito de ludibriar o leitor. E embora as pistas falsas tenham sido construídas dentro da narrativa, já no primeiro parágrafo o narrador dá ao leitor uma chave de leitura que, quando seguida, o leva ao final do conto sem surpresas. O tema maior de “A morte e a bússola” não é, portanto, o de desvendar uma série de misteriosos crimes, mas de incitar uma reflexão a respeito da narrativa policial enquanto gênero, de criar um jogo em que outro tipo de leitor é criado. Se Poe é responsável pelo surgimento do leitor de narrativas policiais, Borges é o criador do des- leitor, para usar o termo de Harold Bloom (1995), de narrativas policiais, daquele que lê desconstruindo o modelo, pois após a publicação e difusão de suas obras não é mais possível ler nada com os mesmos olhos “ingênuos” de antes. 37 Esta autoconsciência do trabalho com a palavra escrita proporciona uma leitura que prevê que os narradores devem ser encarados como os primeiros suspeitos, pois ludibriam o leitor todo o tempo, por isso, como afirma Figueiredo (2003), o leitor não consegue se acomodar na leitura e é preciso trabalhar e desvendar os crimes do texto. Voltando ao texto em que Borges fala sobre o conto policial e sobre Poe, vemos que a questão proposta por Borges neste texto é a que vai, segundo Piglia, permear toda sua obra, pois o modelo estrutural da narrativa policial clássica (assim como de qualquer conto) supõe sempre duas histórias – uma visível, que é construída em primeiro plano e outra secreta – que se cruzam. “Para Borges a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros lhe oferecem.” (PIGLIA, 1994, p. 40). Todos os seus contos são construídos com base nesse procedimento. A história visível seria contada segundo os estereótipos (levemente parodiados) de uma tradição ou gênero, enquanto a história secreta – que é o tema central – seria uma história construída com duplicidade, pois ela narra, como por exemplo, em “A morte e a bússola”, a história de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os materiais da história visível. No caso do conto borgeano a que nos referimos, esta história visível seria a tentativa do detetive (e do leitor) de desvendar os crimes que, aparentemente, são cometidos para evitar que as teorias ocultistas e os segredos da cabala viessem à tona, e por isso são inseridas diversas referências a estas teorias. No entanto, a história que irá submergir completamente apenas no final, é a do próprio gênero policial, sua desconstrução, e a discussão sobre o papel do leitor. Da mesma forma, o leitor tem papel central na significação dos romances que analisaremos neste trabalho. O leitor é o co-autor do texto e é necessário ativar seus conhecimentos e leituras para preencher as lacunas. Esta característica da narrativa contemporânea é a responsável por permitir que existam tantas possibilidades de leitura. No capítulo seguinte, quando abordaremos cada um dos três romances que constituem o corpus do trabalho, teremos oportunidade de observar como cada autor retomou o gênero, apontando as suas inovações e/ou desconstruções. 38 1.4. A verdade da literatura: em torno do romance histórico A recomposição do passado que acontece na literatura é quase sempre falaz. A verdade literária é uma, a verdade histórica, outra. Mas, mesmo que esteja repleta de mentiras – ou melhor, por isso mesmo –, a literatura conta uma história que a história, escrita pelos historiadores, não sabe, nem pode contar. (Mario Vargas Llosa) Muito se discute a respeito da relação entre a ficção e a história e, em tempos em que, como apontam Antonio Roberto Esteves e Heloísa Costa Milton (2007, p. 9), há uma grande proliferação de narrativas que exploram o elemento histórico, os questionamentos referentes às fronteiras de um e de outro ficam ainda mais evidentes. Os estudiosos apontam ainda para o fato de que nunca se viram, como a partir da década de 1970, tantas biografias – seja de personagens históricos nacionais recentes, seja de tempos e lugares distantes –; romances históricos; crônicas de viagem; autobiografias; livros de memória; entre outros gêneros discursivos. Além das narrativas citadas acima, Esteves e Milton (2007, p. 11-12) destacam também o surgimento de um grande número de filmes, novelas ou seriados de televisão, tanto no Brasil como no exterior, nos quais a ação é concentrada no passado. Entender as causas deste fenômeno é difícil, mas alguns elementos, que podem ter colaborado para o sucesso da atual recriação do passado, são apontados pelos estudiosos: a hiperfragmentação cultural causada pela globalização, que transformou a cultura em objeto de consumo; a rapidez na produção e divulgação de informação que acaba por produzir indivíduos cada vez mais individualistas e fechados em si mesmos, que, alienados dos meios de produção, perdem seus parâmetros quanto à produção artística, facilitando ao mercado criar necessidades, ao mesmo tempo em que se incrementa por meio delas; além disso, o desejo de fuga do cotidiano hostil também seria motivo do sucesso destas narrativas. Ainda que a contemporaneidade tenha demonstrado um interesse maior pelas narrativas de extração histórica (TROUCHE, 2006), não data daí sua criação. Sabemos 39 que as raízes da narrativa histórica se misturam com as da própria literatura, pois o homem sempre sentiu necessidade de contar seu passado, suas lendas e as histórias que conhecia. Até mesmo antes de existir a escrita, esta necessidade já habitava o ser humano, é por esta razão que a ficção e a história se mesclaram e acabaram por constituir este gênero. Ainda que Aristóteles os tenha separado claramente, destacando como tarefa do historiador tratar do que realmente aconteceu, enquanto a do poeta devia ser a de tratar do que poderia ter acontecido, o que vemos, na prática, é que os dois discursos sempre caminharam lado a lado. Esteves e Milton, no artigo já mencionado, citam como exemplo a história dos povos gregos que chegou até nós por meio da obra do poeta Homero. Esteves (2010, p. 18) acrescenta a esta lista de exemplos de fronteiras tênues entre história e ficção, a obra de Virgílio, Eneida, em que é divulgada a história dos romanos; o Cantar de mío Cid, poema fundador da literatura espanhola e a Chanson de Roland, épico da literatura francesa, que são ambos mistos de literatura e história. No século XIX conferiu-se à história um caráter científico e suas dimensões épica, mítica e dramática foram reduzidas. Apesar de ser muito difícil estabelecer os limites precisos entre as duas disciplinas, elas se afastaram e assim pôde surgir a narrativa histórica ficcional. O modelo de romance histórico, tal como conhecemos hoje, surgiu apenas no século XIX, embora possamos encontrar, segundo afirma George Lukács, até mesmo na Antiguidade e na Idade Média o que ele chama de “antecedentes do romance histórico” (LUKÁCS, 1965, p. 17). O teórico húngaro, entretanto, defende que essa variante genérica cristalizou-se tendo como ponto de referência os romances de Walter Scott (1771-1832), cujo modelo foi recriado já a partir do Romantismo, sendo que duas de suas características foram mantidas, sendo essenciais para a sua existência enquanto subgênero. Elas são citadas por Esteves e Milton em outro texto, “O novo Romance Histórico Hispano-americano” (2001, p. 89), os quais afirmam que a primeira condição é a de que se trate realmente de romance, ou seja, de ficção, de produto da invenção; e a segunda é que a narrativa se fundamente em fatos históricos reais e não inventados. O romance histórico, em suas origens, tinha como principal objetivo o de contribuir para a construção de uma identidade nacional, pois ele surgiu em uma época em que começava a nascer o sentimento de nacionalidade, de pátria. A busca de 40 elementos de um passado repleto de glórias ou a idealização e a supervalorização dessas vitórias foram parte de suas funções nesses projetos nacionalistas. Segundo Vera Follain de Figueiredo (2003, p. 128), trata-se de um momento no qual tanto os defensores da restauração como os que procuravam manter vivos os ideais da revolução burguesa revelavam uma consciência histórica crescente e buscavam fazer grandes reinterpretações do passado, seja para idealizar a Idade Média, em contraponto com as contradições e conflitos do período revolucionário, seja para dar ênfase ao progresso humano, ressaltando como passo decisivo a Revolução Francesa. Foi, portanto, justamente durante o Romantismo que este subgênero pôde florescer. O modelo criado por Scott foi muito reproduzido e se expandiu por todo o mundo. Muitos de nossos escritores românticos nele se inspiraram para criar suas obras, como é o caso, por exemplo, de José de Alencar. A partir da segunda metade do século XX, então, o romance histórico passa por uma grande revitalização na América Latina, principalmente nos países hispano-americanos. Surgem romances como El reino de este mundo (1949) e El arpa y la sombra (1979), de Alejo Carpentier; Yo el supremo (1974), de Augusto Roa Bastos; Terra nostra (1975), de Carlos Fuentes; Aventuras de Edmond Ziller en tierras del Nuevo Mundo (1977), de Pedro Orgambide; Damión (1978), de Abel Posse, entre outros, que compõem o que alguns teóricos chamam de “Novo romance histórico latino-americano”. Esta nova categoria de narrativa histórica busca revisar a versão oficial, escrita, na maioria das vezes pelos vencedores. Assim, é preciso repensar a historiografia para poder negá-la, modificá-la e reinterpretá-la. Esteves (2010, p 21), dialogando com o escritor Abel Posse, afirma “A literatura tem, segundo ele, a clara função de desmistificar a história para tentar descobrir uma versão mais justa”. O Brasil, por sua vez, também tem um número representativo de romances que abordam questões históricas e, por isso, se inserem nesse novo momento da história do gênero. Basta para isso assinalar que, a partir da metade da década de 1970 e início da década de 1980, houve entre nós um aumento significativo da publicação de romances deste subgênero. É o caso, por exemplo, de romances como Galvez, imperador do Acre (1976), Mad Maria (1980), O brasileiro voador (1986) e Lealdade (1997), do amazonense Márcio Souza; Em Liberdade (1981), de Silviano Santiago; Viva o povo brasileiro (1984) e O feitiço da Ilha do Pavão (1997), de João Ubaldo Ribeiro; Boca do Inferno (1989), O retrato do rei (1991) e A última quimera (1995), de Ana Miranda; todos citados por Esteves (1998) e que, como ele mesmo destaca, são apenas alguns dos 41 muitos exemplos de romances que poderiam ser citados para ilustrar a amplitude desta tendência. O romance histórico do século XX, portanto, começa a mudar a forma de olhar para o passado e, consequentemente, de escrever sobre o passado, ou seja, o esquema proposto por Scott, que já havia sido alterado ao longo dos anos, é agora “transgredido”, “subvertido”. Muitas são as classificações e categorizações que giram em torno da narrativa de extração histórica. A grande maioria dos teóricos concorda com a existência de duas fases principais: a do romance histórico clássico e a do novo romance histórico, tendo em vista que, entre estes dois grandes marcos, há uma variedade considerável de novas formas, mas que não chegam a romper ou mudar significativamente as características do subgênero. Entretanto, Vera Lúcia Follain de Figueiredo, em seu texto “Detetives e historiadores” (2003), traça uma nova tipologia na qual propõe três momentos. O primeiro é o romance histórico clássico que surge na Europa no século XIX e do qual Walter Scott é considerado um dos maiores representantes. Neste momento, olha-se para o passado, geralmente a Idade Média, no caso da Europa, com nostalgia e busca-se nas glórias passadas afirmar o nacionalismo e projetar esses valores positivos para o futuro. O segundo momento proposto por Figueiredo é o romance histórico que surge na América Hispânica no século XX, chamado de Romance de Resistência, que questiona ferozmente as verdades históricas. Existe, conforme a estudiosa, uma “proposta de releitura da história como parte do esforço de descolonização, que se realiza contra toda uma mentalidade perpetuada pelas elites locais, pelos discursos da história oficial.” (FIGUEIREDO, 2003, p. 130). Este movimento do romance histórico teve maior repercussão na América Hispânica. Segundo Figueiredo, El reino de este mundo (1949), de Alejo Carpentier, é o romance que marca a transição entre um momento e outro, embora ainda não apresente todas as inovações constantes nos que o sucederam. O terceiro momento, finalmente, surge nas últimas décadas do século XX e é o que ela chama de romance histórico pós-moderno. O que caracteriza este terceiro momento do subgênero histórico é que não há interesse, por parte dos escritores, em criticar a fundo e corrosivamente a história oficial: “a versão ficcional pode se constituir pelo viés do humor, desconstruindo a ‘grandiosidade’ dos gestos consagrados pela história oficial, para oferecer ao leitor cenas dos bastidores, segredos de alcova, mexericos de antigamente.” (FIGUEIREDO, 2003, p.132). Portanto, o romance 42 histórico pós-moderno, segundo Figueiredo, não tem como objetivo centralizar a tensão existente no romance de resistência; ela está, ao contrário, diluída, já que o interesse não é o de criticar corrosivamente fatos e personagens históricos e nem de engrandecê-los. O principal ponto discutido por este terceiro momento do romance histórico é o da necessidade de preencher as lacunas deixadas pelos registros oficiais; contudo, isto é feito sem que haja uma tentativa de negar tudo o que já foi escrito, mas tentando proporcionar uma nova maneira de olhar para a história. Este voltar-se para o passado deve ser feito de forma consciente e reflexiva; por isso também a historiografia deve fazer parte deste jogo admitindo-se como uma construção, um discurso produzido por pessoas que, mesmo que tentem desaparecer por trás do texto, são responsáveis pelas escolhas tomadas em sua realização. Além disso, uma questão tratada pelos romances históricos pós-modernos é a de que o passado não é repleto apenas de glórias, mas também de muitas outras histórias que o discurso historiográfico omitiu, seja simplesmente por não querer fazê-lo, por descuido ou por falta de percepção. Portanto, não há uma única versão verdadeira, tudo depende do ponto de vista pelo qual os fatos do passado realmente acontecido, ou da “passeidade”, termo utilizado por Leenhardt e Pesavento (1998), são interpretados. Em um primeiro momento, a história foi escrita pelos dominadores; portanto, o discurso é, em princípio, suspeito, não podendo ser aceito sem questionamentos. A tarefa do romancista é, portanto, a de apontar os fatos que a história oficial não mostra e revisá-los. Se, por um lado, o romance de resistência faz esta revisão a partir da perspectiva engajada política e socialmente, o pós-moderno, por outro, ao trazer esta mesma preocupação, coloca a ênfase não só na denúncia das “faltas” que o discurso historiográfico cometeu, mas, principalmente, de forma a reconstruir a história por outra(s) ótica(s), que pode(m) ser a do humor e da ironia. O romance histórico pós-moderno toma como princípio o fato de que o discurso da História tem vazios que devem ser preenchidos, e para esse trabalho o autor conta com total liberdade, pois já “que tudo são versões, o autor tem toda a liberdade de apresentar a sua própria versão” (FIGUEIREDO, 2003, p. 132), o que pode ser feito com o auxílio da imaginação e com uma pesquisa detalhada de documentos e fatos de época. Há que se destacar que, anterior à definição de Figueiredo, a crítica canadense Linda Hutcheon (1991), utiliza o termo metaficção historiográfica para descrever e 43 estudar esta relação contraditória e complexa do passado com o presente e da história com a ficção, muito comum nos romances pós-modernos. O romance pós-moderno, através da metaficção historiográfica, segundo Hutcheon, se propõe a sugerir novas versões e a preencher as lacunas do discurso historiográfico, tendo como principais instrumentos deste trabalho a paródia e a ironia. Desta forma, a volta ao passado não leva a um retorno nostálgico ou saudosista, e sim a uma reavaliação crítica, estabelecendo com ele um diálogo irônico. A metaficção historiográfica sugere que verdade e falsidade podem não ser os melhores termos para discutir a ficção, pois só existem verdades no plural, e não uma só Verdade, assim também a falsidade em si raramente existe, trata-se de verdades alheias. (HUTCHEON, 1991, p. 146). Desta forma, o que a metaficção historiográfica revela é a natureza construída e imposta desse sentido de verdade, confundindo deliberadamente a noção de que o problema da história é a verificação, enquanto o problema da ficção é a veracidade. Tanto a ficção quanto a história são sistemas culturais de signos, construções ideológicas cuja ideologia inclui em sua aparência de autônomas e autossuficientes. (Idem, p. 149). A metaficção historiográfica se aproveita das verdades e das mentiras do registro histórico; utiliza os detalhes e dados históricos a fim de proporcionar uma sensação de verificabilidade ao mundo ficcional, mas raramente os assimila. A metaficção historiográfica demonstra que a ficção é historicamente condicionada e a história é discursivamente estruturada, e, nesse processo, consegue ampliar o debate sobre as implicações ideológicas da conjunção foucaultiana entre poder e conhecimento – para os leitores e para a própria história como disciplina. (HUTCHEON, 1991, p. 156) Segundo Karl Eric Schollhammer (2011), em Ficção brasileira contemporânea, a democratização, em meados da década de 1980, levou o processo literário a encontrar novos rumos no Brasil, que os críticos brasileiros – como Heloisa Buarque de Hollanda, Flora Süssekind, Alfredo Bosi e Silviano Santiago – chamaram de a “década pós- moderna”. O desenvolvimento de uma economia de mercado que integrou as editoras e profissionalizou a prática do escritor nacional é a principal condição para que isso acontecesse. 44 Ele ainda aponta que os romances pós-modernos encontraram um novo critério de qualidade que une características de best sellers com as narrativas épicas clássicas a fim de retornar aos clássicos mitos de fundação e do desenvolvimento de uma identidade cultural, ao mesmo tempo em que são uma reescrita da memória nacional a partir da perspectiva de uma historiografia metaficcional pós-moderna, feita sob uma ótica irreverente. Schollhammer cita como exemplo o romance Boca do Inferno (1989), de Ana Miranda, que obteve grande sucesso de público ao seguir o modelo de Umberto Eco em O nome da rosa (1980). Eco agradou tanto o público leitor que buscava entretenimento, quanto os críticos de literatura, passando por várias outras classes de leitores, pois se trata, como tantos outros exemplos apontados por Schollhammer (2011, p. 30), “de literatura sobre literatura, ficção que discute sua própria construção e reflete sobre como tais mecanismos afetam a percepção do mundo que se costuma conhecer como real.” Para ele, a grande referência para essa narrativa que chama de metarreflexiva ou metarreflexão literária, é a obra do escritor argentino Jorge Luis Borges, escrita principalmente na década de 1940 e descoberta tardiamente nas décadas de 1970 e 1980, mas que se mostrou determinante na renovação da narrativa. Schollhammer afirma ainda, que na década de 1980, a mescla entre a alta e a baixa literatura, “propiciada pelo novo diálogo entre a literatura, a cultura popular e a cultura de massa, ou mescla entre os gêneros de ficção e as formas de não ficção, como a biografia, a história e o ensaio” (SCHOLLHAMMER, 2011, p. 31), era o elemento mais utilizado para identificar essa vertente pós-moderna. Contudo, ele concorda com Flora Süssekind quando esta afirma que, na verdade, a principal dimensão híbrida se dá com a combinação entre a literatura e os outros meios de comunicação, como fotografia, cinema e publicidade. Chegamos à conclusão, no entanto, de que as diversas classificações e nomenclaturas não são relevantes e que o ponto central de nosso olhar para o romance histórico, ou narrativa de extração histórica ou metaficção historiográfica, deve ser a possibilidade de refletir a respeito da importância da releitura da história proposta pelo romance. Finalizamos, portanto estas considerações a respeito dos romances históricos com a bela imagem proposta por Esteves, a partir de um ensaio do escritor argentino Tomás Eloy Martínez: 45 As ficções sobre a história reconstroem versões, opõem-se ao poder e, ao mesmo tempo, apontam para adiante. Mas o que significa apontar para o futuro? Não significa certamente ter a intenção de se criar uma nova sociedade por meio do poder transformador da palavra escrita. Significa que se escreve apenas para forjar o leito de um rio pelo qual navegará o futuro no lugar dos desejos humanos. (ESTEVES, 2010, p. 25). 1.5. A literatura e o mercado ... toda modificação dos instrumentos culturais, na história da humanidade, se apresenta como uma profunda colocação em crise do “modelo cultural” precedente; e seu verdadeiro alcance só se manifesta se considerarmos que os novos instrumentos agi