Resumo A partir de considerações gerais sobre o mito de Orfeu e suas ressonâncias na poesia brasileira, este ensaio objetiva uma análise interpretativa do poema em prosa “Orfeu”, de José Paulo Paes, publicado num dos últimos livros do autor, A meu esmo (1995). PalavRas-chave: poesia brasileira, contemporaneidade, poesia lírica, mito de Orfeu, análise poética. IntRodução Este trabalho é um recorte do projeto de pesquisa “Demandas de Orfeu (e do Orfismo) na poesia brasileira moderno-contemporânea”, que desenvolvo na Unesp, campus de Araraquara, desde 2009, na qualidade de professor da área de Literatura Brasileira. Para o momento, privilegio a leitura crítico-interpretativa de um obscuro poema de José Paulo Paes, “Orfeu”, publicado em A meu esmo (1995). Antes da análise, porém, repassemos alguns traços característicos do mito de Orfeu. o mIto de oRfeu: o oRfIsmo Tradicionalmente, o ciclo mítico de Orfeu (a narrativa) constitui- -se de quatro mitemas fundamentais: a) a fabulosa viagem do poeta ao lado dos Argonautas, em busca do Velocino de Ouro; b) o casamento infeliz com a ninfa Eurídice, que, vitimada por uma serpente, é logo perdida pelo poeta; c) a consequente catábase de Orfeu ao Hades, aonde vai para tentar resgatar a esposa do mundo dos mortos e de onde regressa * Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Araraquara, São Paulo, Brasil. E-mail: adpires@fclar.unesp.br Recebido em 4 de abril de 2012 Aceito em 15 de maio de 2013 oRfeu sem tRavessa: leItuRa de um Poema de José Paulo Paes1 antônIo donIzetI PIRes* 10.5216/sIg.v25I1.23521 PIRes, Antônio D. oRfeu sem tRavessa: leItuRa de um Poema de José Paulo Paes70 ainda mais martirizado, pois a perde pela segunda vez por causa de sua desobediência aos deuses infernais; d) por fim, a violenta morte de Orfeu, esquartejado pelas enciumadas bacantes da Trácia. Em todas as situações, sobressai o Orfeu portador da lira, cujo canto soberbo (música e palavra; construção e sentido; som e imagem) encanta os monstros marinhos, os animais da Terra e outros elementos naturais, bem como os próprios deuses do mundo subterrâneo, Hades e Perséfone. Se o primeiro mitema é vincadamente épico, tendo-nos legado epopeias e poemas épicos como a anônima Argonáuticas órficas ou a Argonáutica de Apolônio de Rodes ou a de Valério Flaco, os outros três são por natureza líricos e dramáticos: assim, o doloroso e fatal amor de Orfeu e Eurídice, a frustrada descida do Poeta ao Inferno e sua posterior morte violenta, por esquartejamento, fizeram brotar, principalmente desde Ovídio e Virgílio, uma pletora de poemas líricos, poemas dramáticos, óperas, tragédias, tragicomédias, comédias e filmes, além de pinturas, esculturas, mosaicos, contos, romances e histórias em qua- drinhos. Além dos aspectos mais gerais, afeitos aos dicionários e tratados de Mitologia, outros problemas avolumam o “feixe de contradições” (BRunel, 2005, p. 766) que é Orfeu, pois se crê que ele teria fundado um culto de mistério e de iniciação que leva seu nome: o Orfismo. Este era uma seita iniciática cujos postulados incluíam teogonia própria, atividade poético-intelectual, regras rígidas de conduta e crença na metempsicose e na origem divina do ser humano, sendo, portanto, mais vincado por aspectos místico-religiosos e menos por questões mítico- poéticas. No entanto, nem por isso o Orfismo deixou de influenciar as representações mais estritamente artísticas do bardo lendário, e o fato de fundamentar-se numa teogonia e numa cosmogonia próprias (que são nítidas nos Hinos órficos) vem embaralhar ainda mais o problema. Em suma, se em alguns momentos da literatura universal as representações mítico-poéticas possam prevalecer, em outros é quase impossível deslindar-se, no vasto acervo literário e iconográfico que provém de Orfeu, o limite entre questões estético-poéticas e questões ético-religiosas. Isto já está documentado em pelo menos duas obras literárias da Antiguidade tardia atribuídas a Orfeu, os anônimos Hinos órficos e Argonáuticas órficas (além dos lapidários e de obras várias de cunho teogônico e/ou esotérico). Na poesia brasileira recente, basta sIgnótIca, v. 25, n. 1, p. 69-80, jan./jun. 2013 71 pensarmos na obra da paulista Dora Ferreira da Silva, onde se encontram hinos aos principais deuses do panteão órfico original: Perséfone Koré, Deméter, Hécate, Hades, Dioniso, Apolo, Orfeu. Com o advento da modernidade romântico-simbolista, pode- -se dizer que a confusão entre o mito e o fundador religioso se dá principalmente nos modos por que o poeta moderno se caracteriza e se autonomeia Demiurgo, Iniciado, Vidente, Tradutor, Profeta, Vate, Eleito etc. – e tem em Orfeu seu protótipo platônico-ideal. É o início, diríamos, de um pensamento órfico mais claramente moderno, em relação à poesia e ao poeta, embora ainda seja muito complicado, hoje, afirmar-se exatamente o que constitui e o que caracteriza tal pensamento órfico: este, muito sumariamente e em grosso modo, a) pressupõe uma visão analógica do mundo e o apreço pelas misteriosas relações poesia e música (como se a poesia devesse atingir a música das esferas celestes e o número mágico constitutivo do Universo, na perspectiva pitagórica); b) perfaz-se uma forma de conhecimento esotérica que se alimenta de paganismo e cristianismo, idealismos diversos e filosofia; c) pressupõe um sentimento de inadequação do poeta, que se sabe exilado na Terra e alijado das realidades essenciais, mas sempre com a consciência de que é um eleito entre os homens e que a estes sempre pode revelar uma verdade fundamental; d) requer também o conhecimento técnico do ofício de poeta, a fim de que possa, pela palavra (que é som e sentido; mas também magia e sugestão; música e imagem) apreender e transmitir aos homens o tipo de conhecimento que só a poesia pode proporcionar (conforme ideias que se podem pinçar da obra de um Mallarmé, um Fernando Pessoa ou um Jorge de Lima); e) enfim, na perspectiva de Octavio Paz, pode-se dizer que o orfismo moderno também faz oscilar os pêndulos da analogia e da ironia, mas não é tributário, a meu ver, do que o poeta-crítico mexicano considera a tradição da ruptura – este anseio do novo a qualquer preço que vincou a arte e a poesia moderna do Romantismo à vanguarda. Assim considero porque, conquanto sejam muito diferentes as representações de Orfeu nas diversas vanguardas, parece haver um substrato comum unindo-as, pois todas buscam algo como a essência, a pureza ou os valores atemporais, simbólicos, ligados ao mito: penso, por exemplo, na bela obra pictórica, cinematográfica e poética de Jean Cocteau; em alguns momentos da arte de Pablo Picasso; ou no movimento de pintura pura, abstrata, nomeado por Guillaume PIRes, Antônio D. oRfeu sem tRavessa: leItuRa de um Poema de José Paulo Paes72 Apollinaire de “orfismo”, e do qual participou, entre 1911 e 1914, em Paris, os pintores Robert Delaunay e Frank Kupka, entre outros. oRfeu na lIteRatuRa BRasIleIRa No Brasil, ainda que não haja tradição de estudos sobre Orfeu ou sobre o Orfismo, é possível vislumbrar, na perspectiva aqui pro- posta, pelo menos três modos diferentes da aparição de Orfeu em nossa poesia lírica: no primeiro (que vai, grosso modo, do Barroco ao Parnasianismo), ele é apenas tema e motivo, conforme se constata em poemas de Gregório de Matos, Silva Alvarenga, Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Raimundo Correa ou Olavo Bilac. No segundo modo (que pode englobar Simbolismo e Pré-Moder- nismo, abarcando os anos de transição de 1893 a 1923), já subjaz certa cosmovisão órfica na obra de alguns poetas, notadamente Cruz e Sousa. Outros (Dario Veloso, Ernâni Rosas, Alceu Wamosy, Homero Prates, Clemente Ritz), oriundos do sul país, carrearam para sua poesia um intenso espírito pagão neogrego, onde não faltam temas e motivos que se reportam amiúde ao Orfeu poeta exemplar ou ao Orfeu amante infortunado. No terceiro momento (a partir dos anos 1940/50 até esta parte), decerto por influxo da divulgação, entre nós, de poetas como Rilke e Fernando Pessoa, constata-se a configuração mais plena e efetiva de uma poesia realmente órfica e original, cujos vários matizes podem: a) misturar elementos mítico-poéticos e místico-religiosos típicos do ciclo de Orfeu (Dora Ferreira da Silva); b) acrescer, a estes, atributos católico-cristãos (Jorge de Lima); c) emular Orfeu ao poeta moderno decaído, sem função na sociedade capitalista (Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade); d) explorar uma imagética mais tradicional, em termos de tema e motivo, dos vários mitemas que compõem a trajetória do lendário poeta-amante (Dante Milano, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Marly de Oliveira); e) aclimatar Orfeu à realidade social brasileira (Vinicius de Moraes no teatro) etc. sIgnótIca, v. 25, n. 1, p. 69-80, jan./jun. 2013 73 o oRfeu de José Paulo Paes José Paulo Paes (1926-1998) é um artista cuja trajetória peculiar nos quadros da produção poética brasileira dialoga de modo variado com a tradição grega, seja como tradutor da poesia antiga da Hélade (Poemas da antologia grega ou palatina, 1995; Epigramas, de Paladas de Alexandria, 1993), seja como tradutor da poesia grega moderna, brindando-nos com a antologia Poesia moderna da Grécia (1986), ou tendo introduzido entre nós a obra do fundamental poeta moderno Konstantinos Kaváfis (Poemas, 1982). Na qualidade de ensaísta, Paes debruçou-se amiúde sobre o estudo do epigrama, inclusive porque essa forma poética concisa, lapidar, breve e crítico-irônica foi das mais utilizadas no decorrer de sua própria produção literária. Em relação aos mitos, não se pode dizer que estejam presentes entre os temas recorrentes de José Paulo Paes, que talvez tenha preferido, como homem de seu tempo, a perquirição e a perseguição dos dissimulados e mais liquefeitos mitos moderno-contemporâneos, sejam estes o Estado totalitário, a Ditadura, o Consumo ou a própria História, conforme se lê no último verso de “Os inconfidentes”, poema de Novas cartas chilenas (1954): “O mito é o berço do humano” (Paes, 2008, p. 98). Contudo, se é verdade que, a partir de Prosas seguidas de odes mínimas (1992), “[...] o poeta parece ter se dado o direito de abrir a porta a um narrador mais lírico, que no entanto jamais deixou de lado a ironia dos versos anteriores [...]” (naves apud Paes, 2008, p. 27), segundo postula Rodrigo Naves na apresentação da Poesia completa (2008), também é verdade que a última fase da poesia de Paes oferece algumas releituras surpreendentes do mito clássico. Na ode mínima “Aos óculos”, por exemplo, estes antecipam, no próprio eu-lírico, “[...] o Édipo curioso / de suas próprias trevas” (Paes, 2008, p. 398). Em A meu esmo (1995) há o belo “Centaura”, que funde numa mesma imagem dinâmica moça e bicicleta, cujo passeio é acompanhado, com ardente desejo, por “[...] todos os olhos / das ruas por que passa” (Paes, 2008, p. 424). No último livro publicado em vida por Paes, De ontem para hoje (1996), tem-se “Ítaca” e “Sísifo”: o primeiro, epigramático, vincado por certo humor irônico, parece revisitar o tema do amor, embora se distancie do par Odisseu-Penélope ao enfatizar a “dor de cabeça” que é o amor e, ao mesmo tempo, a saudade que ele, Odisseu, parece PIRes, Antônio D. oRfeu sem tRavessa: leItuRa de um Poema de José Paulo Paes74 sentir das “odisseias” (das longas aventuras marítimas intermináveis, pode-se pensar, mas também das aventuras erótico-amorosas que as acompanham): Ítaca Na gaiola do amor não cabem asas de condor. Penélopes? Cefaleias! Quanta saudade, odisseias... (Paes, 2008, p. 448) Pode-se dizer que o texto é leve, se comparado ao amargor de “Sísifo”, que condensa tanto a condição do poeta, em geral (o árduo trabalho de carregar, montanha acima, a Poesia, para gáudio e interesse de ninguém), quanto, a meu ver, a condição do próprio poeta José Paulo Paes, desenganado já por vários problemas de saúde. O poema “Sísifo” é um soneto em versos redondilhos maiores, com rimas ocasionais consoantes e toantes (em “i”, sobretudo), bem vincado por grave reflexão sobre a condição do poeta e do ser humano: Sísifo hoje agora me decido depois amanhã hesito o dia detém meu passo a noite cala meu grito deuses onde? céu existe? céu existe? deuses onde? um eco que faz perguntas um espelho que responde e eu sísifo tardotriste a tilintar as correntes de dilemas renitentes lá me vou sem vez nem voz rolar a pedra dos mudos pela montanha dos sós (Paes, 2008, p. 448) sIgnótIca, v. 25, n. 1, p. 69-80, jan./jun. 2013 75 Enfim, frise-se que os dois últimos livros publicados em vida por Paes contêm poemas “[...] escritos em diferentes épocas. Deixei de incluí-los nas coletâneas que então publiquei porque destoavam do espírito delas.” (Paes, 2008, p. 439). Tais poemas, “díspares e enjeitados” (p. 439), merecem ainda o epíteto de “desgarrados”, sendo quinze em A meu esmo (p. 411) e dez em De ontem para hoje (p. 435). Ambos os livros foram, naturalmente, dedicados a Dora, a bem- amada esposa do poeta: o primeiro, “with (g)love” (p. 413); o segundo, “retrospectivamente” (p. 437). No livro de 1996 consta ainda um metapoema, “Soneto ao soneto”, que qualifica o poeta Manuel Bandeira de “Míope Orfeu” (Paes, 2008, p. 453), mas voltemos a A meu esmo (título extraído, conforme a epígrafe, de Guimarães Rosa), a fim de uma primeira leitura da versão paesiana da história de Orfeu e Eurídice: Orfeu O jabuti perdeu a companheira por causa de um ovo atravessado que nem o veterinário conseguiu tirar. Durante meses, ficou a percorrer aflito o jardim, de cá para lá, de lá para cá, procurando-a. Nas épocas de cio, soltava, angustiado e cavo, o seu chamado de amor. À falta de resultados concretos, acabou por finalmente desistir da busca. Voltou a andar no passo habitual e ficar, como antes, longas horas imóvel aquentando sol. Isso até o dia em que deixaram encostado ao muro do fundo do quintal um velho espelho. Assim que topou com ele, estacou e se pôs a balançar a cabeça de um para outro lado no esforço de reconhecimento. Quando julgou distinguir ali a companheira, soltou, mais angustiado e cavo do que nunca, seu chamado de amor. Repetiu-o o dia inteiro diante do vidro impassível. Porém ela conti- nuou para todo o sempre prisioneira do espelho. (Paes, 2008, p. 426) PIRes, Antônio D. oRfeu sem tRavessa: leItuRa de um Poema de José Paulo Paes76 O estrato ótico ou gráfico-visual do texto mostra claramente tratar-se de um poema em prosa, forma poética advinda com as muitas liberdades românticas e que se tornou paradigmática da modernidade lírica, pois subverte radicalmente a concepção tradicional de poesia ao negar os esteios fundamentais desta, ou seja, o verso e o metro, mas também a estrofação regular e um sistema de rimas fechado e estanque. No poema de Paes sobressai menos o estrato fônico, pouco trabalhado, e mais os estratos lexicais e semânticos, além do apelo a uma linguagem mais coloquial e prosaica, demonstrável pelo uso das expressões “que nem” ou “aquentando”. Se focarmos a repetição lexical, por exemplo, veremos que o substantivo “companheira”, o par adjetivo “angustiado e cavo” e a construção “seu chamado de amor” são repetidos duas vezes no texto, enquanto o substantivo “espelho” (considerado o sinônimo “vidro impassível”) o é três vezes, numa demonstração do significado decisivo que “espelho” (e seus correlatos semânticos “reflexo”, “ilusão”, “engano”, “logro”, “aparência”, “mentira” ou “inverdade”) deve apresentar no poema. Está-se, obviamente, diante de um poema narrativo que, a seu modo, reedita pelo menos dois elementos do ciclo mítico de Orfeu e Eurídice: a morte desta; a busca ansiosa do jabuti pela amada ausente. Porém, a amada é morta devido a “um ovo atravessado” (índice de reprodução mal-sucedida), e não porque, segundo a mais difundida versão da lenda, foi picada por uma serpente enquanto fugia do cerco amoroso de Aristeu. Do mesmo modo, a procura do jabuti dá- -se no espaço exíguo do jardim/quintal, iluminado pelo sol, e não nas profundezas escuras do Hades, morada dos mortos. Na sequência do poema, constata-se a passagem do tempo marcada pelas “épocas de cio”, quando o jabuti chama, sem sucesso, a parceira. Dado o resultado infrutífero, ele adota o gesto conformista de desistir da busca e de voltar a tomar sol, até o momento em que abandonam, “encostado ao muro do fundo do quintal um velho espelho.” É neste “velho espelho” que o jabuti tenta encontrar algum sinal de reconhecimento da parceira, e ao julgar reencontrá-la lança novamente, “mais angustiado e cavo do que nunca, seu chamado de amor”. Mais uma vez, é infrutífero o convite “diante do vidro impassível”, pois ela permanece “para todo o sempre prisioneira do espelho.” sIgnótIca, v. 25, n. 1, p. 69-80, jan./jun. 2013 77 Veja-se, de saída, que os sinais de reconhecimento na mitologia, na tragédia ou na epopeia grega são sempre claros, objetivos e efetivos, pois promovem de fato o reencontro entre pares (Orestes e Electra; Odisseu e sua velha ama). Porém, no poema pós-utópico de Paes, que confunde Eu e Outro, que nega identidade a um e a outro, parece não haver lugar para Orfeu na sociedade contemporânea, uma vez que esta, maculada pelo reflexo especular e espetacular, pela aparência e pelo logro, acaba por contaminar a poesia e o poeta, comprometendo sua função arcaica de fundador de uma nova realidade. Veja-se também que os atributos originais do mito (reconhecer a esposa de pronto, em meio às trevas infernais, e reavê-la dos mortos devido ao poder e à beleza de seu canto) estão complemente ausentes do poema, que limita drasticamente o poder de ação, de escolha e de conhecimento/reconhecimento do protagonista: ele não sabe quem é; ele não sabe compor/cantar/tanger a lira, pois o seu apelo amoroso, “angustiado e cavo”, é apenas um arremedo de canto, quase sem articulação. Ademais, ele não sabe quem é a esposa; ele não sabe distinguir o que é realidade e o que é reflexo no “velho espelho”; ele não sabe como descer ao Hades e, por conseguinte, não saberá desobedecer ao interdito dos deuses (ou seja, o olhar para trás para certificar-se de que Eurídice de fato o segue para fora do Hades). Em relação ao Hades, ressaltemos ainda a espacialidade do poema, que vai do “jardim” ao limítrofe “muro do fundo do quintal”: o movimento do jabuti, do jardim ao fundo do quintal, poderia sugerir a descida dele ao Hades, mas tal não pode ser porque o Inferno, no texto, está reduzido aos limites do “velho espelho”, sendo apenas “imagem falsa”, “reflexo”, “ilusão”. Isto é, o jardim tem algo de órfico, uma vez que representa os tempos felizes vividos com a companheira. Porém, o fundo do quintal perde esse status porque é o lugar onde se descartam e se amontoam as coisas imprestáveis, os restos, as velharias, os cacos, o esquecimento e a desmemória, que parecem negar cabalmente o mito, a poesia e o trabalho do poeta. Conquanto, na perspectiva da poesia moderno-contemporânea (drummondiana, por exemplo, mas também na de Paes), seja dos “resíduos” e “restos” e “imprestáveis” que se extrai a autêntica lírica dos tempos que correm. Tudo isto, aplicado ao poeta contemporâneo, parece condená- -lo (juntamente com o mito) a um ostracismo e a um rebaixamento PIRes, Antônio D. oRfeu sem tRavessa: leItuRa de um Poema de José Paulo Paes78 sem paralelos, evidenciando a precariedade e a inutilidade de seu trabalho poético em meio às coisas do mundo (por isso o prosaísmo e o cotidiano chão a vincar todo o poema). Em consequência, é ressaltada a impossibilidade e a inutilidade do próprio Orfismo, enquanto meio apto para que o poeta escape do consumismo desenfreado e conformista, da mesmice e da desolação que lhe são impostos pela liquefação contemporânea. Tal estado de coisas – de massificação, de reificação e de meca- nização do ser humano, em geral, e do artista, em particular – talvez seja explicado pela dubiedade entre título, “Orfeu”, e conteúdo do poema, que apresenta como protagonista não um ser humano, mas um animal irracional e incapaz poeticamente – embora não seja aleatória a escolha do jabuti, pois é do casco/escudo de uma tartaruga (de acordo com a lenda) que Hermes fez a lira com que Apolo distinguiu os poetas. Por ter como protagonista um animal (é uma fábula, portanto), consideremos que o poema se enquadra como alegoria, cujas proto- formas literárias tradicionais (fábula, apólogo e parábola), dizendo “a” para significar “b”, são carregadas de exemplaridade, de ensinamento e de um recado moral/ético/comportamental que deve ser observado pelo grupo (pensemos, por exemplo, nas parábolas de Jesus Cristo). Por outro lado, consideremos que a metamorfose de Orfeu num animal irracional (que lembra, em larga medida, a metamorfose kafkiana) é mais um índice do rebaixamento do mito, há muito destituído de função e de valor em nossas sociedades tecnologicamente avançadas, para o bem e para o mal. Enfim, parece-me que a alegoria sufoca e mata o simbolismo do mito, pois, segundo se crê, não é permeada pelo caráter fundador e atemporal deste, aplicando-se melhor a explicar certos traços e certas características da literatura em dado momento histórico (por exemplo, a narrativa brasileira dos anos 70, vicejada sob a ditadura militar). Seja como for, o poema em prosa “Orfeu” é coerente com a produção geral de José Paulo Paes, vincada pela ironia e autoironia, pela crítica e autocrítica, pela incisão e pela não concessão. Por isso, creio, o realismo doloroso e sem retoque através do qual, cônscio da difusa, intempestiva e mal disfarçada violência dos tempos que correm, o autor rebaixa a figura mítica de Orfeu – e a do próprio poeta na sociedade atual. É por isso também que aproximo o “Orfeu” e o sIgnótIca, v. 25, n. 1, p. 69-80, jan./jun. 2013 79 “Sísifo” paesianos, pois lidos e pensados lado a lado revelam uma visão desencantada (necessária e lúcida, porém), seja do mito fundador em si, seja da função e da capacidade do artista contemporâneo de compreender tal mito clássico fundador, para de novo incorporá-lo e usá-lo, estética e eticamente, como antídoto e como utopia, contra a monotonia de um tempo dissolvente e dissoluto, há muito invadido por toda sorte de bárbaros e barbáries. oRPheus wIthout cRossIngs: a ReadIng of a José Paulo Paes’s Poem aBstRact Starting from general considerations on the Orpheus myth and its resonance on Brazilian poetry, this essay aims at an interpretative analysis of the prose poem “Orpheus” from José Paulo Paes, published in one of the author’s latest books, A meu esmo (1995). Key woRds: brazilian poetry, contemporaneity, lyric poetry, orpheus myth, poetic analysis. nota 1 Trabalho inédito. Apresentado como comunicação nos seguintes eventos: a) Silel (XIII Simpósio Nacional de Letras e Linguística/III Simpósio Internacional de Letras e Linguística), UFU, Uberlândia, MG, 25 de novembro de 2011 (no âmbito do GT “Matizes e Matrizes da Poesia Brasileira Contemporânea”; b) XXVII ENANPOLL (Encontro Nacional da ANPOLL), UFF, Niterói, RJ, 13 de julho de 2012 (no âmbito do GT “Teoria do Texto Poético”). RefeRêncIas alexandRIa, P. de. Epigramas. Seleção, tradução, introdução e notas de José Paulo Paes. 2. ed. São Paulo: Nova Alexandria, 1993. BRunel, P. (Org.). Dicionário de mitos literários. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. KaváfIs, K. Poemas. Seleção, estudo crítico e tradução direta do grego por José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. PIRes, Antônio D. oRfeu sem tRavessa: leItuRa de um Poema de José Paulo Paes80 Paes, J. P. Poesia completa. Apresentação de Rodrigo Naves. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ______. 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