112 CLARABOIA: Revista do Curso de Letras da UENP, Jacarezinho–PR, n. 1/1, p. 112-120, jan./jun. 2014. Polifonia, Carnavalização E Paródia Na “Teoria Do Medalhão”, De Machado De Assis: Confronto Com Le Père Goriot, De Balzac POLYPHONY, CARNAVALIZATION AND PARODY IN THE “TEORIA DO MEDALHÃO”, BY MACHADO DE ASSIS: CONFRONTATION WITH LE PÈRE GORIOT, BY BALZAC Daniela CALLIPO1 RESUMO: Em “Teoria do Medalhão”, escrito por Machado de Assis em 1881, um pai zeloso resolve dar bons conselhos a seu filho que acaba de completar 21 anos. Servindo-se de um discurso pertencente à ideologia oficial dos oitocentos, ou seja, aquela instituída pela hegemonia dominante, inclusive na França de Balzac, o pai sugere ao filho que abandone seus ideais, utilizando máscaras e anulando seus pensamentos e gostos, a fim de se tornar um verdadeiro Medalhão. O diálogo que se estabelece entre ambos é permeado de ironia e humor, pois o pai faz um discurso aparentemente sábio, mas que, na realidade, é vazio e tolo, levando a pensar nas noções de paródia e carnavalização de Bakhtin. Além disso, ao construir seu conto em forma de diálogo, Machado de Assis transfere a palavra às personagens, num cruzamento de vozes que leva a pensar em “embriões” de polifonia. Este trabalho visa, portanto, fazer uma leitura bakhtiniana do conto machadiano, contrapondo-o ao romance Le Père Goriot, de Balzac. PALAVRAS-CHAVE: Conto machadiano. Polifonia. Carnavalização. Paródia. Le Père Goriot ABSTRACT: In the short story “Teoria do Medalhão”, written by Machado de Assis in 1881, a zealous father decides to give good advices to his son who just turned 21 years old. Using a speech that represents the official ideology of the eighteenth century, created by the dominant hegemony, including the France of Balzac’s time, the father suggests that the son abandons his ideals, using masks and annulling his thoughts and tastes to become a true Medalhão. The dialogue that is established between both of them is surrounded by irony and humor, because the father makes an apparently wise speech, which is, actually, empty and fool, leading to think about the concepts of parody and carnavalization by Bakhtin. Besides that, when he built a story in dialogue form, Machado de Assis transfers the word to the characters, in a crossing of voices that makes us think about “embryos” of polyphony. This work aims to make a bakhtiniana reading of the machadiano short story, “Teoria do Medalhão” in opposition to the novel Le Père Goriot by Balzac. KEY-WORDS: Short story of Machado. Polyphony. Carnavalization. Parody. Le Père Goriot 1 Doutora em Literatura Francesa pela Universidade de São Paulo. Professora de Língua e Literatura Francesa na Unesp/Assis. Endereço eletrônico: danielacallipo@gmail.com 113 CLARABOIA: Revista do Curso de Letras da UENP, Jacarezinho–PR, n. 1/1, p. 112-120, jan./jun. 2014. O conto “Teoria do Medalhão” “Teoria do Medalhão” foi publicado na primeira página do jornal carioca Gazeta de Notícias em 18 de dezembro de 1881 e republicado, no ano seguinte, na coletânea intitulada Papéis Avulsos. O conto tem apenas duas personagens: o pai e seu filho Janjão, que acaba de comemorar seu aniversário com um “modesto jantar”. Após a partida do último conviva, o pai anuncia que deseja ter uma conversa “séria” com o filho que acaba de completar 21 anos. Manda-o fechar a porta, abrir a janela, sentar-se e ouvir com atenção quais são as expectativas paternas em relação a ele. O conto foi objeto de excelentes estudos: em “Janjão e Maquiavel: a ‘Teoria do Medalhão’”, Villaça (2008) aponta a profundidade dessas páginas machadianas que levam o leitor a refletir acerca de um “quadro mais grave, mais dramático, no qual a graça, sem desfazer-se completamente, dá presença a mazelas que entre nós já se institucionalizaram” (2008, p. 37). O pesquisador analisa a importância da alusão feita a O príncipe, de Maquiavel, no final do conto, demonstrando que ela reforça os procedimentos a serem adotados para se chegar ao poder. Em “A Paideia inversa: ‘Teoria do Medalhão’ de Machado de Assis”, Montesini (2010) estuda a intertextualidade estabelecida entre o conto e a Mitologia Clássica. Para a pesquisadora, o conto representa uma inversão irônica da educação dos jovens na Antiguidade Clássica, que primava pela paideia; ou seja, pela formação de um homem ético, que vivesse e morresse com dignidade e honra, “sendo capaz de respeitar a si e ao outro” (2010, p. 334). Os conselhos que o pai oferece a Janjão no dia de seu aniversário representam, de fato, o oposto da ética, da dignidade e da honra. Ele não lhe passa valores morais, mas lhe transmite uma fórmula para obter sucesso: “o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos, notável, que te levantes acima da obscuridade comum” (ASSIS, 1998, p. 328) Como é preciso, porém, ter um ofício “para a hipótese de que os outros falhem”, aconselha-o a tornar-se “medalhão”. Se esses valores transmitidos podem surpreender, porque se opõem à ética, eles se aproximam, entretanto, daqueles estabelecidos pela burguesia no século XIX no Brasil e na Europa, como se pode observar em três romances franceses do período: Le Rouge et le Noir (1830)2, de Stendhal, Le Père Goriot (1834) e Illusions Perdues (1843), ambos de Honoré de Balzac. Os protagonistas desses romances, Julien Sorel, Eugène de Rastignac e Lucien de Rubempré 2 Ver, a esse respeito, o excelente estudo de SILVA, Maria Elvira Lemos da. A Representação do arrivismo social nos romances Le Rouge et le Noir de Stendhal e A Mão e a Luva de Machado de Assis. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2011. 114 CLARABOIA: Revista do Curso de Letras da UENP, Jacarezinho–PR, n. 1/1, p. 112-120, jan./jun. 2014. caracterizam-se pelo desejo de ascensão social e o abandono de valores transmitidos por suas famílias. No Père Goriot, romance que interessa mais de perto, Eugène de Rastignac é um estudante de Direito que, apesar de nobre, tem uma situação humilde e necessita morar na pensão burguesa de Madame Vauquer, enquanto completa seus estudos. O rapaz chega à capital da França com o coração puro e a intenção de enriquecer pelo trabalho. Um ano após sua chegada, entretanto, Rastignac vê-se contaminado pelo desejo de possuir belas carruagens, vestimentas caras e divertir-se em meio à ostentação e ao luxo. Perde suas ilusões da infância e as ideias provincianas herdadas pela família. Para alcançar seus objetivos de forma rápida e eficiente, o rapaz pede conselhos a uma parenta aristocrática, chamada Madame de Beauséant, que lhe ensina de que maneira poderá frequentar os salões da nobreza parisiense, tornando-se rico e invejado. O diálogo entre o jovem e a parenta, intermediado por uma amiga da viscondessa, assemelha-se a uma lição, da mesma forma que o diálogo entre Janjão e seu pai, pois Rastignac ignora as leis que regem aquela sociedade e precisa conhecê-las para poder fazer parte dela: Rastignac, em cuja história é possível reconhecer momentos da vida de Balzac, e que se pode ver como representante dessa geração, sente-se atraído pelos encantos dessa sociedade que ele quer conquistar, mesmo quando conhece também suas aberrações. Sua ambição é muito mais de integração do que de dominação dessa sociedade. (MACHADO, 2001, p.60) Madame de Beauséant será sua instrutora nessa “escola parisiense”. O primeiro ensinamento diz respeito ao cálculo: quanto mais friamente o jovem calcular seus passos, mais sucesso obterá. Em seguida, a nobre dama afirma que ele deve agredir para ser temido, esconder seus verdadeiros sentimentos, não revelar seu amor e sempre desconfiar do mundo que o cerca. É importante, igualmente, tornar-se o amante de uma bela mulher, para ser desejado por todas as outras. Afinal, em Paris, o sucesso é a chave do poder, capaz de atrair homens e mulheres (BALZAC, 1971, p. 115). Desse modo, ele poderá conhecer a corrupção feminina e a vaidade dos homens, sem se deixar abater ou enganar. Rastignac, na sequência, recebe outra lição, desta vez oferecida pelo enigmático Vautrin: o foragido, que se apresenta na pensão de Madame Vauquer como negociante. Afirma que se o rapaz deseja vencer em Paris, tornar-se rico e respeitado, deve, primeiramente, esquecer a honestidade, que não serve para nada. Os moralistas não conseguirão mudar esse mundo, porque o homem é imperfeito e Paris é uma cidade que acolhe um milionário infame, estende-lhe os braços, vai às suas festas, come seus jantares e brinda à sua infâmia (BALZAC, 1871, p. 157). 115 CLARABOIA: Revista do Curso de Letras da UENP, Jacarezinho–PR, n. 1/1, p. 112-120, jan./jun. 2014. Vautrin propõe um assassinato a Rastignac, que recua, horrorizado, diante de tal infâmia. Mas conclui que o pensionista burguês havia dito “cruamente” o que a viscondessa havia explicado de forma sutil: era preciso deixar seus princípios de lado para triunfar em Paris. O romance de Balzac critica o materialismo da sociedade oitocentista, carregando nos tons sombrios e no desfecho trágico de Goriot. Rastignac, entretanto, já aprendera sua “lição” e, apesar de lamentar a morte do homem que representava para ele a paternidade, lança o célebre desafio a Paris: “A nous deux maintenant” (BALZAC, 1871, p. 410). Servindo-se de um narrador onisciente e intruso, Balzac constrói um romance monofônico, no qual a intenção é transmitir uma mensagem moralizadora: “Em sua análise vigorosa, ele sintetiza uma crítica à política, à falta de sentimentos humanitários e ao modelo de educação ao homem de seu tempo” (MANTOVANI, 2005, p. 103). Em “Teoria do Medalhão”, o tema é o mesmo daquele apresentado por Balzac em seu romance; contudo, o diálogo que se estabelece entre pai e filho é permeado de ironia e humor, pois o progenitor faz um discurso aparentemente sábio, mas que, na realidade, é vazio e tolo, levando a pensar nas noções de paródia e carnavalização de Bakhtin. Além disso, ao construir seu conto em forma de diálogo, Machado de Assis transfere a palavra às personagens, num cruzamento de vozes que poderia caracterizar a “Teoria do Medalhão” como obra com características polifônicas. “Embriões” de polifonia Bakhtin desenvolveu a noção de polifonia a partir dos romances de Dostoiévski, o criador do romance polifônico, um gênero romanesco novo, que não podia ser enquadrado em nenhum esquema conhecido até então. O escritor russo, ao construir suas personagens, teria colocado sua concepção filosófica em um segundo plano, recobrindo-a com a voz do herói, que possuiria uma “autoridade ideológica” e uma “perfeita independência”, passando a ser compreendido como autor de suas próprias concepções e não como objeto da visão artística de Dostoiévski (BAKHTIN, 1970, p. 31). No romance polifônico, a personagem não deveria ser a porta-voz da ideologia de seu criador, mas ter um ponto de vista particular sobre o mundo e sobre si mesmo, pois o importante seria não apenas saber o que a personagem representa no mundo, mas o que o mundo representa para a personagem e o que ela representa para si mesma (BAKHTIN, 1970, p. 82). Instaura-se, desse modo, a noção de consciência de si; ou seja, as características da personagem, sua profissão, seu aspecto espiritual e mesmo físico tornam-se objeto de sua própria reflexão. Assim, a parte 116 CLARABOIA: Revista do Curso de Letras da UENP, Jacarezinho–PR, n. 1/1, p. 112-120, jan./jun. 2014. descritiva da personagem, anteriormente compreendida como um momento de definição na narrativa que emanava do autor, passa a ser um momento de autodefinição. O herói, portanto, nunca representa o autor, rompendo a unidade monológica do mundo artístico e tornando-se relativamente livre e autônomo. Parece possível vislumbrar “embriões” da polifonia na “Teoria do Medalhão” de Machado de Assis, da mesma forma que Bakhtin observou nas obras de Shakespeare, Rabelais e Cervantes. Ao comentar o estudo de Lounatchrski sobre os precursores3 de Dostoiévski no domínio da polifonia, o filósofo argumenta: Il nous semble que A.V. Lounatcharski a raison, dans la mesure où l’on trouve effectivement dans les drames de Shakespeare certains éléments, certains embryons, de la polyphonie. Shakespeare, Rabelais, ainsi que Cervantes, Grimmelshausen et d’autres encore, appartiennent à ce courant de la littérature européenne où ont lentement mûri les germes de la polyphonie, et que Dostoiévski est venu couronner. (BAKHTIN, 1970, p. 69) “Teoria do Medalhão” é um conto construído em forma de diálogo direto, sem a presença, portanto, de um narrador. As personagens não são apresentadas ao leitor, que tem acesso somente à conversa que se inicia após o jantar:  Estás com sono?  Não, senhor.  Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?  Onze.  Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros ...  Papai ... (ASSIS, 1998, p. 328) Por meio do diálogo, sabe-se o horário em que a conversa se inicia, a data de nascimento de Janjão, pormenores da aparência física do rapaz e de sua vida pessoal. Ouvem-se as vozes de Janjão e de seu pai, o que leva a pensar em “pluralidade de vozes autônomas”, já que elas não representam, de forma alguma, o ponto de vista de Machado de Assis e sim se manifestam como “consciências independentes e distintas” (BAKHTIN, 1970, p. 32-33). Além disso, Janjão e seu pai não servem de porta-vozes da filosofia machadiana. É bem verdade que o diálogo estabelecido entre pai e filho parece um “monólogo autoritário”, como bem apontou Villaça (2008). Mas as interrupções de Janjão ocorrem, quer seja para discordar do pai, quer seja 3 Lounatcharski refere-se a Shakespeare e Balzac em De la pluralité des voix chez Dostoiévski. (APUD BAKHTIN, 1970, p. 68) 117 CLARABOIA: Revista do Curso de Letras da UENP, Jacarezinho–PR, n. 1/1, p. 112-120, jan./jun. 2014. para ceder a seus argumentos. Além disso é importante observar que seu vocabulário e sua forma de expressão diferenciam-se daqueles utilizados por seu pai. Quando o progenitor ensina o filho a se expressar, indica que o vocabulário deve ser “naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...”. Tal comentário enerva Janjão que exclama: “ Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...(ASSIS, 1998, p. 332) A expressão “isto é o diabo” utilizada pela personagem mais jovem e descontraída, distingue-a do pai, cujo vocabulário é mais formal. Como foi mencionado acima, não há narrador no conto, não há descrição das personagens e o leitor as conhece por meio do diálogo que encetam, diálogo este revelador de suas idades, de seu estatuto familiar e de sua situação financeira. A ausência do narrador favorece os traços de polifonia, já que se ouve a palavra dos protagonistas sobre si mesmos e sobre o mundo sem a interferência do autor, como se essas personagens tivessem ideias próprias e independentes. Literatura Carnavalizada Outro ponto a ser observado é a carnavalização. Em La Poétique de Dostoiévski (1970), Bakhtin trata de gêneros múltiplos que se formaram no final da Antiguidade Clássica, e misturavam o cômico e o sério, como o diálogo socrático, a sátira menipeia e a poesia bucólica, opondo-se aos gêneros sérios: a epopeia, a tragédia, a história e a retórica clássica. Em comum, esses gêneros possuíam uma “visão carnavalesca do mundo” (p. 151); a partir deles, Bakhtin desenvolveu a noção de “literatura carnavalizada”. Dois gêneros cômico-sérios merecem destaque no estudo de Bakhtin: o diálogo socrático e a sátira menipeia. É esta última que interessa mais de perto. O filósofo aponta 14 particularidades essenciais desse gênero, dentre as quais: o caráter não moralizante, o elemento cômico e o uso da paródia. Em “Teoria do Medalhão”, o leitor se depara com um diálogo entre pai e filho, no momento em que este completa 21 anos e se torna maior de idade. O pai resolve ter com ele uma conversa “séria” e lhe explica que está na hora de escolher uma carreira, pois já tem “algumas apólices” e um “diploma” que lhe permitiriam entrar no parlamento, na magistratura, nas letras, no comércio; ou seja, trabalhar. Mas não é esse o desejo do pai, e sim que ele se torne “grande e ilustre”, ou, ao menos, “notável” Para tanto, o melhor “ofício” seria se tornar um “medalhão”: “Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e 118 CLARABOIA: Revista do Curso de Letras da UENP, Jacarezinho–PR, n. 1/1, p. 112-120, jan./jun. 2014. acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti” (ASSIS, 1998, p. 329). Nota-se, por meio do diálogo encetado pelo pai, que os conselhos dados a Janjão não possuem nada de enobrecedor. Não é esse o tipo de conselho que se dá a um filho que alcança a maioridade e o qual se deseja preparar para a vida, para o mundo. Normalmente, pais ensinam seus filhos a serem honestos, dignos, confiáveis. O pai de Janjão, ao contrário, deseja ver o filho “acima da obscuridade comum”, e tenta convencê-lo a pensar exclusivamente na importância que poderá adquirir na sociedade em que vivem, sociedade esta que prioriza as aparências, a publicidade conquistada por meio de “pequenos mimos, confeitos, almofadinhas”. Ele chama a D. Quixote um “ilustre lunático” ao desejar fazer-se conhecido graças a ações heroicas ou custosas: O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. (ASSIS, 1992, p. 334) Outro ponto a destacar é o elemento cômico, ausente em Le Père Goriot, de Balzac. Nesse romance, o leitor pode chegar às lágrimas, revoltando-se com a indiferença e o egoísmo das filhas de Goriot. No conto machadiano, apesar do diálogo ser aparentemente sério, ele é permeado de ideias absurdas que levam ao riso: quando o pai sugere a Janjão que siga a “carreira” de Medalhão, o rapaz duvida de sua própria capacidade. Mas a explicação paterna o convence: ele é naturalmente “dotado da perfeita inópia mental”, ou seja, da pobreza de ideias:  Tu, meu filho, se não me engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição de memória. Não, refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. (ASSIS, 1992, p. 330) No entanto, as ideias podem surgir, porque são “espontâneas e súbitas”. É preciso refreá- las com um regime “debilitante”: “ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc.” (ASSIS, 1992, p. 330). O passeio nas ruas também pode ser útil, sobretudo se ele não andar desacompanhado, pois “a solidão é oficina de ideias”. O cúmulo da exposição do pai ocorre quando ele sugere ao filho que tome cuidado com livrarias e só as frequente para comentar os 119 CLARABOIA: Revista do Curso de Letras da UENP, Jacarezinho–PR, n. 1/1, p. 112-120, jan./jun. 2014. boatos do dia, as anedotas da semana, “um contrabando, uma calúnia”; ou seja, para conversar, e não comprar livros. Outra sugestão paterna é a de que, ao cair de um carro, “sem outro dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais” (ASSIS, 1992, p.330). Finalmente, o último aspecto da literatura carnavalizada a ser analisado é a paródia, considerada por Bakhtin um elemento inseparável da sátira menipeia. Na sua origem, o conceito significa “canto paralelo” ou “contra canto” e tem como uma de suas características a inversão irônica. Para o filósofo russo, “toute chose a sa parodie, c’est-à-dire son aspect comique, car tout renaît et se renouvelle à travers la mort” (BAKHTIN, 1970, p. 175). O título do conto, “Teoria do Medalhão” é uma desconstrução paródica de textos científicos, morais, religiosos ou elevados, pois “teoria” remete a estudo, ao resultado de análise séria e refletida, enquanto “medalhão” é o sujeito desprovido de talento, lançado a posições importantes devido às amizades, ao dinheiro e/ou à publicidade. Além disso, a conversa estabelecida entre um pai e seu filho que acaba de completar 21 anos é uma inversão irônica do diálogo ideal que deveria ser mantido entre o progenitor, exemplo de comportamento, e o rapaz, que se lança para a vida; ou seja, da paideia, como bem apontou Montesini (2010). A paródia que leva ao riso não deve, entretanto, escamotear o sentido do conto: para triunfar na sociedade carioca oitocentista, é preciso usar máscaras, reprimir as ideias, seguir a ideologia dominante. Se o uso do termo “medalhão” e o teor paradoxal do discurso supõem um tom de escárnio, convém, mais uma vez, não esgotar a leitura no seu efeito de riso e paródia. Como o alienista, o medalhão traz em si o carisma da autoridade, é a voz sempre igual da soberania e dos seus validos; e se o candidato ao galarim da fama deve reprimir e suprimir afetos ou ideias espontâneas, é porque a vida social média tampouco tolera que se mostre a cara por um minuto sequer. A mascarada é séria. (BOSI, 1992, p. 94) Servindo-se, portanto, de um discurso pertencente à ideologia oficial do oitocentos, ou seja, aquela instituída pela hegemonia dominante, o pai sugere ao filho que abandone seus ideais, anulando seus pensamentos e gostos, a fim de se tornar um verdadeiro Medalhão. O mesmo ocorre em Le Père Goriot de Balzac: Madame de Beauséant e Vautrin mostram a Rastignac que os ideais provincianos ligados à família, à honestidade e ao trabalho devem ser substituídos pela ambição e pelo cálculo. A diferença entre o conto e o romance baseia-se nas vozes que se manifestam nessas obras: em “Teoria do Medalhão”, as vozes das personagens apresentam independência na estrutura da obra e são equipolentes, enquanto em Le Père Goriot elas se tornam 120 CLARABOIA: Revista do Curso de Letras da UENP, Jacarezinho–PR, n. 1/1, p. 112-120, jan./jun. 2014. dependentes da consciência una do autor. No primeiro capítulo do romance francês, por exemplo, o narrador parece irritar-se com a indiferença de seu leitor burguês que busca apenas a diversão: Ainsi ferez−vous, vous qui tenez ce livre d'une main blanche, vous qui vous enfoncez dans un moelleux fauteuil en vous disant : Peut−être ceci va−t−il m'amuser. Après avoir lu les secrètes infortunes du père Goriot, vous dînerez avec appétit en mettant votre insensibilité sur le compte de l'auteur, en le taxant d'exagération, en l'accusant de poésie. Ah ! sachez−le : ce drame n'est ni une fiction, ni un roman. All is true, il est si véritable, que chacun peut en reconnaître les éléments chez soi, dans son coeur peut−être. (BALZAC, 1971, p. 17) O romance de Balzac seria monológico, pois, apesar da existência de várias personagens, suas vozes não são ideologicamente distintas, enquanto na “Teoria do Medalhão”, as vozes de Janjão e de seu pai têm o mesmo peso e valor e a voz do narrador foi extirpada, visto tratar-se de um conto construído na forma de diálogo. Leitor de Dostoiévski, Rabelais e Cervantes, Machado de Assis observou em suas obras a arte de criar personagens, dando-lhes voz e identidade, ausentando-se de sua obra, não se intrometendo em sua própria narrativa, como fazia Balzac. Soube usar a ironia e o humor, estabelecendo diálogos com a sociedade de sua época e com outros autores, sem impor sua própria ideologia. Referências ASSIS, Machado de. Contos, uma antologia. (org. John Gledson). São Paulo: Companhia das Letras, 1998. BAKHTINE, Mikhaïl. La Poétique de Dostoiévski. Paris: Seuil, 1970. BALZAC, Honoré. Le Père Goriot. Paris: Gallimard, 1971. BOSI, Alfredo. O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999. VILLAÇA, Alcides. Janjão e Maquiavel: a “Teoria do Medalhão”. In: GUIDIN, M.L.; GRANJA, L.; RICIERI, F.W (orgs). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2008. MACHADO, Guacira M. Romantismo e Realismo em Le Père Goriot. In: Lettres Françaises, n.4, UNESP/ Araraquara, 2001. MANTOVANI, Marcos Roberto. Balzac e a representação de mudanças na educação e nas relações familiares. Dissertação de Mestrado. Maringá:UEM, 2005. MONTESINI, Cláudia de Fátima. A paideia inversa: “Teoria do medalhão”, de Machado de Assis. Anais do II Colóquio da Pós-Graduação em Letras. Disponível em: www.assis.unesp.br/coloquioletras