UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO HUMANO E TECNOLOGIA RECURSOS DIGITAIS E TECNOLÓGICOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: (CO)RRELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS CARITA PELIÇÃO Rio Claro – SP 2023 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO HUMANO E TECNOLOGIA RECURSOS DIGITAIS E TECNOLÓGICOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: (CO)RRELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS CARITA PELIÇÃO Rio Claro – SP 2023 Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista - UNESP, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento Humano e Tecnologias. Área: Tecnologia, corpo e cultura Orientador: Professor Dr. Afonso Antonio Machado. Dedico este trabalho aos meus pais, que me apoiam incondicionalmente. AGRADECIMENTOS “Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé” (Antoine de Saint-Exupéry) Materializado nesta dissertação está a finalização de uma etapa muito importante da minha vida e a realização de um desejo que eu almejava há alguns anos. Por isso, meu primeiro e maior agradecimento é para meu orientador, Afonso Antonio Machado, que me acolhou sem me conhecer, confiou em mim e me ofereceu todo apoio que pôde ao longo da minha trajetória. Mesmo com as dificuldades da vida e da distância, fez superar o título de professor doutor, ao qual eu já possuía respeito, e passou a ser alguém por quem eu guardo enorme admiração e carinho. Te agradeço de coração, professor! Agradeço a todos que contribuíram para a construção desta pesquisa de alguma forma, em especial: À minha mãe, Palmira, e ao meu pai, Leonardo, porque vocês são maravilhosos, me dão suporte, me apoiam e estão sempre caminhando ao meu lado, incentivando minhas loucuras acadêmicas. Amo vocês! À Taís Pelição, minha irmã, que me encorajou a fazer o mestrado, mesmo eu tendo desanimado devido a algumas tentativas anteriores que foram frustadas. Ela, que viveu toda a experiência do Programa em Desenvolvimento Humano e Tecnoligas antes de mim, guiou meu caminho, oferecendo suporte para que eu também pudesse ter acesso às excelentes oportunidades de aprendizado que ela teve no mestrado. Ao Pedro, meu namorado, que ouviu minhas angústias e dificuldades enfentadas no decorrer dos estudos, que me ajudou com o inglês e me socorreu com sua expertise em informática, além de contribuir lendo e opinando sobre este trabalho. À Fernanda Jardim Maia, Marta Baggio Bippus e Ielson José dos Santos, meus companheiros de pesquisa e pessoas incríveis. Formamos um grupo muito parceiro, trocamos mensagens, informações, nos apoiamos, produzimos juntos, tivemos a oportunidade de viajar ao Rio de Janeiro para um congresso. Foi uma jornada muito gratificante com vocês. Agradeço por tudo! À Aline Diniz de Oliveira Bodo, minha amiga e companheira de escola em época de pandemia. Obrigada por comemorar comigo meu ingresso no mestrado e pelo incentivo, mesmo estando no mesmo barquinho furado que eu! À professora Ana Paula Prado e à professora Regina Celia de Melo Ramos, pelas substituições nas dispensas de mestrado, sou extremamente grata à vocês. À Livia Maria Ribeiro Leme Anunciação e à Adriana Marianeli de Matos Mascaro. Obrigada pela compreensão e orientação. Vocês são pessoas incríveis e excelentes gestoras. À Secretaria de Educação do Município de Bauru/SP, pela autorização da aplicação do questionário e pela aprovação da minha dispensa para estudos. À todas as professoras e professores que se dispuseram a responder o questionário desta pesquisa. À Seção Técnica de Pós-Graduação, principalmente à Milena Filier e à Ivana T. Brandt, pela atenção, respostas às dúvidas, paciência e consideração. Aos membros da banca de qualificação e defesa, Prof. Dr. Gustavo Lima Isler e Prof. Dr. Guilherme Bagni, que fizeram apontamentos relevantes e contrubuíram para o aperfeiçoamento deste estudo. Por fim, agradeço à CAPES pela bolsa, que me ajudou em participações de eventos e publicações científicas. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. PRIMEIRO DIA Um olhar desconfiado analisa o ambiente Uma nova sensação enche o coração já agitado É angústia, felicidade, medo exacerbado Não demora, corre a lágrima consciente A fortaleza foi rompida, é bastante evidente Lá se vai o afago, o colo materno e paterno A insegurança assume que está presente Um passo ponderado é dado Ainda é ingênuo, é desajeitado Um tombo inesperado acometeu-lhe de repente Que susto! Todo esforço fora insuficiente! Já desiludido, eis que sente um abraço fraterno Abraço singelo; uma ação altruísta e pertinente O coração, então, aquietou-se admirado Aquele gesto o havia acalmado Agora, sereno e acolhido, percebe-se sorridente Que lugar incrível era aquele! Surpreendente! Escola: infâncias e esperanças do hodierno. (PELIÇÃO, 2021, p. 53) RECURSOS DIGITAIS E TECNOLÓGICOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: (CO)RRELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS RESUMO Esta pesquisa é fruto da perspectiva docente da autora principal, que vivenciou o período de pandemia de Covid-19 no formato remoto de ensino e experienciou incertezas, angústias e tentativas de utilização de recursos digitais e tecnológicos voltados à Educação Infantil no município de Bauru/SP. Assim, teve como objetivo principal identificar como se deu o uso de recursos digitais e tecnológicos aplicados ao contexto da Educação Infantil do sistema de ensino do município de Bauru/SP, voltados às crianças de 4 a 5 anos de idade, antes e durante a pandemia de Covid- 19, e após a retomada do ensino presencial, especificamente entre os anos de 2019 a 2022. Ademais, este estudo se justifica por abordar uma temática atual, constantemente debatida no meio educacional e midiático, mas ainda pouco direcionada para o ensino de crianças pequenas, especialmente até 5 anos de idade, que corresponde à creche e à pré-escola no Brasil. Esta pesquisa usou de abordagem qualitativa, de caráter exploratório, que contou com a aplicação de um questionário com 21 (vinte e uma) questões, como técnica de coleta de dados, cujos respondentes foram 26 (vinte e seis) professores de Educação Infantil do sistema de ensino do município de Bauru/SP. As questões foram divididas em cinco tópicos principais: questões sociodemográficas; contexto e perspectiva pessoal-profissional; questões específicas da pesquisa (uso de recursos digitais e tecnológicos na Educação Infantil); equipamentos de trabalho e finalização – relacionada à verificação de necessidade de formação. O questionário foi planejado e organizado para representar a realidade dos professores que atuam no sistema de ensino de Bauru/SP, sendo semiestruturado e composto por perguntas abertas e fechadas. Os resultados principais apontam que os docentes recorreram ao uso de recursos digitais e tecnológicos durante o período de Covid-19, sendo mais recorrente a televisão, o DVD, o aparelho de som e as músicas e vídeos acessados por meio da internet, através do YouTube. No entanto, verificou- se que mesmo os docentes que apontaram reconhecer a importância do uso de recursos digitais e tecnológicos na Educação Infantil não continuaram com a mesma prática após a retomada das aulas presenciais. Um dos indicadores para tal evidência encontrada foi que existem dificuldades por parte dos professores em relação ao manejo de recursos digitais e tecnológicos aplicados ao contexto infantil e ainda dúvidas em como vinculá-los ao pressuposto teórico adotado pelo município de Bauru/SP, que é a Pedagogia Histórico Cultural, pensada por Lev Vigotsky e colaboradores. Conjuntura que assinala a necessidade e demanda docente por qualificação profissional. Palavras-chave: Educação Infantil; Recursos Digitais; Recursos Tecnológicos; Idade pré-escolar; Perspectiva histórico-cultural. DIGITAL AND TECHNOLOGICAL RESOURCES IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION: CONTEMPORARY (CO)RELATIONSHIPS ABSTRACT This research is the result of the teaching perspective of the main author, who experienced the period of the COVID-19 pandemic in the remote teaching format and experienced concerns, anxieties and attempts to use digital and technological resources aimed at Early Childhood Education in the municipality of Bauru/SP. Thus, its main objective was to identify how digital and technological resources were used in the context of Early Childhood Education in the teaching system of the municipality of Bauru/SP, aimed at children aged from 4 to 5 years old, before and during the COVID- 19 pandemic, and after the restart of face-to-face teaching, specifically between the years of 2019 to 2022. In addition, this study is justified by addressing a current theme, constantly debated in the educational and media environment, but still little directed towards teaching of small children, especially up to 5 years of age, which correspond to daycare and preschool in Brazil. This research used a qualitative, exploratory approach, which involved the application of a dialogue with 21 (twenty-one) questions, as a data collection technique, whose respondents were 26 (twenty-six) Early Childhood Education teachers from the city of Bauru/SP. The questions were divided into five main themes: sociodemographic issues; context and personal-professional perspective; specific research questions (use of digital and technological resources in Early Childhood Education); work equipment and finishing equipment – related to the training needs from participants. The plan was devised and organized to represent the reality of teachers who work in the teaching system of Bauru/SP, thus being semi- structured and composed of open and closed questions. The results indicate that teachers continued to use digital and technological resources during the COVID-19 period, with television, DVD, some devices and music and videos accessed through the Internet, through YouTube – the last being more recurrent. However, even the teachers who recognized the importance of using digital and technological resources in Early Childhood Education did not continue to practice it after the resumption of face- to-face classes. One of the indicators for such evidence found was that there are difficulties on the part of teachers in relation to the management of digital and technological resources applied to the children's context and still doubts on how to link them to the budget adopted by the municipality of Bauru/SP, which is Pedagogy Cultural History, designed by Lev Vigotsky and collaborators. Conjuncture that indicates the need and demand for teaching professional qualification. Keywords: Child education; Digital Resources; Technological Resources; Preschool age; Historical-cultural perspective. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Atividades pedagógicas disponíveis no site da Prefeitura de Bauru........15 Figura 2 – Exemplo de recorte de atividade pedagógica desenvolvida pelo app Genially...................................................................................................................16 Figura 3 – Recorte de vídeo editado pela autora para compor atividade do app Genially...................................................................................................................17 Figura 4 – Cards dos convites para Contação de História síncrona.........................17 Figura 5 - Síntese da Cronologia da História Geral..................................................20 Figura 6 - Madonna and Child, Bono da Ferrara (século XV)...................................32 Figura 7 - Roda Infantil, João Candido Portinari, 1932 (século XX)..........................33 Figura 8 - Síntese gráfica da teoria da periodização do desenvolvimento de D. B. Elkonin....................................................................................................................39 Figura 9 – Sorteio de setores para aplicação do questionário (na imagem, setor 6).............................................................................................................................49 Figura 10 – Convite aos professores.......................................................................50 Figura 11 – Resposta à pergunta 1 do questionário.................................................54 Figura 12 – Resposta à pergunta 2 do questionário.................................................55 Figura 13 – Resposta à pergunta 3 do questionário.................................................55 Figura 14 – Resposta à pergunta 4 do questionário...............................................56 Figura 15 – Resposta à pergunta 5 do questionário...............................................56 Figura 16 – Justificativas para a pergunta 5 do questionário....................................57 Figura 17 – Resposta à pergunta 6 do questionário...............................................58 Figura 18 – Resposta à pergunta 7 do questionário.................................................58 Figura 19 – Resposta à pergunta 8 do questionário ................................................58 Figura 20 – Nuvem de palavras que compreendem recursos digitais e tecnológicos educacionais para os professores participantes da pesquisa..................................59 Figura 21 – Resposta à pergunta 10 do questionário...............................................62 Figura 22 – Resposta à pergunta 12 do questionário...............................................64 Figura 23 – Resposta à pergunta 13 do questionário..............................................66 Figura 24 – Frequência na utilização de RDT antes da pandemia...........................67 Figura 25 – Resposta à pergunta 14 do questionário...............................................68 Figura 26 – Frequência na utilização de RDT durante a pandemia..........................69 Figura 27 – Resposta à pergunta 14.3 do questionário............................................69 Figura 28 – Resposta à pergunta 15 do questionário...............................................70 Figura 29 – Resposta à pergunta 16 do questionário...............................................73 Figura 30 - Resposta à pergunta 17 do questionário................................................75 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Categoria dos participantes....................................................................60 Quadro 2 – Utilização de RDT na EI antes e durante a pandemia de Covid-19, e após a retomada do ensino presencial......................................................................72 LISTA DE ABREVIATURAS APP Aplicativo ATPC Aulas de Trabalho Pedagógico Coletivo EI Educação Infantil PHC Pedagogia Histórico-Crítica PHC Psicologia Histórico-Cultural PPG Programa de Pós-Graduação RDT Recursos Digitais e Tecnológicos TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecimento TDIC Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação THC Teoria Histórico-Cultural UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” SUMÁRIO MEMORIAL, EXPERIÊNCIA E APRESENTAÇÃO DA PESQUISA.......................13 1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................20 2 JUSTIFICATIVA ..................................................................................................24 3 HIPÓTESE E OBJETIVOS DO ESTUDO ...........................................................26 3.1 Hipótese inicial da pesquisa ..............................................................................26 3.2 Objetivo geral ...................................................................................................27 3.3 Objetivos específicos ........................................................................................27 4 REVISÃO DE LITERATURA ...............................................................................28 4.1 Recursos digitais e tecnológicos ......................................................................28 4.2 Criança e infância, concepções não lineares ...................................................32 4.3 Breve histórico da Educação Infantil no Brasil...................................................34 4.4 Periodização do desenvolvimento psíquico da criança: períodos da Primeira Infância e da idade Pré-Escolar segundo os pressupostos da Teoria Histórico- Cultural....................................................................................................................36 4.5 O uso de recursos digitais e tecnológicos e a periodização do desenvolvimento psíquico ..................................................................................................................45 5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ...........................................................47 5.1 Método de pesquisa .........................................................................................47 5.2 Caracterização: Contexto, Participantes da pesquisa e Procedimentos........................................................................................................48 5.3 Instrumentos da pesquisa.................................................................................51 5.4 Análise dos dados.............................................................................................52 6 RESULTADOS....................................................................................................54 6.1 Categorização da amostra...... .........................................................................54 6.2 Discussão. ........................................................................................................77 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................86 REFERÊNCIAS......................................................................................................88 REFERÊNCIAS DAS FIGURAS.............................................................................93 APÊNDICE A - QUESTIONÁRIO PARA PROFESSORA(E)S SOBRE O USO DE RECURSOS DIGITAIS E TECNOLÓGICOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL................................................................................................................94 APÊNDICE B - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE) ..............................................................................................................................100 ANEXO A - PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP.....................................103 ANEXO B – Autorização de pesquisa concedida pela Secretaria de Educação do Município de Bauru/SP..................................................................................109 ANEXO C - Regulamento de adesão ao chip de dados móveis para servidores integrantes do Quadro do Magistério de Bauru/SP..........................................110 ANEXO D - Figura 5 ampliada (Síntese da Cronologia da História Geral) ..............................................................................................................................111 13 MEMORIAL, EXPERIÊNCIA E APRESENTAÇÃO DA PESQUISA Desde pequena tenho enorme admiração pela docência e guardo na memória lembranças carinhosas de excelentes professores que marcaram minha trajetória de vida pessoal, a começar pela Márcia Magda, minha professora do pré-primário (hoje o atual primeiro ano do Ensino Fundamental I). Desde aquele período, quando eu tinha por volta de cinco ou seis anos de idade, lembro-me claramente de dizer a qualquer um que me perguntasse (e para quem não me perguntasse também, claro – o importante era compartilhar meu entusiasmo!) que quando eu crescesse eu seria professora. Aquela fala era dita com tanta convicção e com um sentimento tão genuíno que os momentos do brincar, dentro e fora da escola, eram meu refúgio favorito para assumir tal papel, que estando na condição de criança não seria possível que fosse concretizado. Mas sorte mesmo tiveram minha irmã e meus primos, que puderam estudar com afinco durante as brincadeiras que eu fazia questão de planejar e organizar com seriedade nos períodos do contraturno da escola! Enfim, meu impulso foi tamanho que hoje, de fato, exerço esse tão importante ofício e posso finalmente afirmar que as ações dos notáveis professores que passaram pela minha vida estão refletidas de alguma maneira em minhas práticas profissionais. Assim, minha jornada teve início com uma primeira graduação em Licenciatura em Artes Visuais, pela Universidade Estadual Paulista – Unesp de Bauru/SP e, após a conclusão desta, comecei lecionando para crianças e adolescentes entre 11 e 18 anos de idade (o que corresponde a turmas do Ensino Fundamental II e Ensino Médio) da rede pública do estado de São Paulo. Não satisfeita com a primeira graduação, tratei logo de cursar outra Licenciatura (dessa vez em Pedagogia e pela Universidade Nove de Julho – Uninove) com a intenção de ministrar aulas para crianças da Pré-Escola (incluindo a Primeira Infância, que equivale à creche), e durante esse período participei de um concurso de um município no interior do estado de São Paulo para atuar na Educação Infantil. Em fevereiro de 2020 lá estava eu começando a fazer meus primeiros planejamentos pedagógicos para a etapa da Educação Básica que eu tanto queria atuar. 14 Mas, deparei-me com um primeiro desafio; o currículo do sistema de ensino do município aludido era inteiro pautado nos pressupostos teóricos do pesquisador e psicólogo soviético Lev Vigotsky e seus colaboradores (perspectiva histórico-cultural ou sócio-histórica). Foi um desafio porque não se tratava de uma teoria que eu tinha tanta familiaridade e, diante do cenário que eu estava inserida, senti a necessidade de compreendê-la melhor. Percurso este que ainda trilho por meio de estudos e formação continuada. Depois, com o final do mês de fevereiro de 2020, defrontei-me com um segundo e ainda maior desafio e que provavelmente marcou muitas outras pessoas; a pandemia de Covid-19, que causou profundos impactos em numerosos setores da sociedade. No que concerne à ótica educacional, certamente há muitos relatos e estudos sobre esse momento histórico, mas o fato é que para a minha vivência pessoal, o uso emergencial de recursos digitais e tecnológicos - RDT voltados ao planejamento de aulas para crianças tão pequenas, de dois a cinco anos de idade, não foi uma tarefa simples. Todavia, esse uso não ocorreu de imediato. A princípio, quando estávamos vivenciando integralmente o modelo remoto de ensino, os professores receberam a orientação para que as atividades pedagógicas fossem planejadas semanalmente e elaboradas em um arquivo de texto, sendo este disponibilizado digitalmente para as famílias dos estudantes. A disponibilização, por sua vez, era feita via whatsapp - processo realizado pela gestão da escola, no caso dos docentes que optaram por não aderirem à grupos de mensagens, ou pelos próprios professores, quando havia adesão voluntária ao uso do referido aplicativo. Com a manutenção da pandemia e o consequente prolongamento do ensino remoto, as escolas começaram a oferecer as atividades impressas, bem como materiais artísticos e escolares para as famílias retirarem com prévio agendamento. Ademais, a equipe de tecnologia da Prefeitura de Bauru programou um espaço específico no site oficial do município, em que as atividades puderam ser armazenadas e acessadas (Figura 1) por qualquer pessoa e de qualquer computador ou smartphone, desde que estivesse conectado à internet. 15 Figura 1 – Atividades pedagógicas disponíveis no site da Prefeitura de Bauru Fonte: Recortes do site da Prefeitura de Bauru (2022) Entretanto, na escola em que eu atuava, o retorno dos familiares em relação às atividades das crianças foi baixo em determinados momentos, para não dizer nulo. A propósito, essa foi uma característica prevalente em todo o sistema escolar de Bauru, conforme relatos de professores e gestores durante as infindáveis reuniões que eram promovidas constantemente entre a equipe pedagógica via Google Meet. De maneira geral, as famílias costumavam argumentar que não tinham dificuldades em acessar o material elaborado para o ensino remoto, porém não realizavam tal ação por três principais motivos recorrentes: (1) não conseguiam realizar as atividades propostas em casa (uma vez que não compreendiam o que era para ser feito ou por não saberem como conduzir o processo de aprendizagem de forma adequada), (2) possuíam uma quantidade inferior de aparelho celular ou computador em relação ao número de filhos para estudar, ou então a qualidade dos dados móveis/internet residencial não era adequada, e (3) priorizavam os estudos dos filhos mais velhos em detrimento dos filhos que estavam matriculados na Educação Infantil (até 5 anos). https://www2.bauru.sp.gov.br/educacao/atividades_distancia.aspx 16 Assim, considerando a circunstânica apresentada, a gestora da minha sede escolar à época propôs que nós, professoras, déssemos prioridade ao uso de imagens, esquemas e vídeos (autorais ou não) na estruturação das atividades. Estas ainda estão disponíveis no site da Prefeitura de Bauru e podem ser consultadas (para visualizá-las, clique em ‘site’ ou consulte o endereço eletrônico nas referências das figuras). Além disso, no ano de 2020, eu fiquei responsável por adaptar as atividades de todas as turmas para um formato mais atrativo visualmente, que continha imagens dinâmicas, áudios, músicas e vídeos, através de um aplicativo (app) chamado Genially. Esse programa cria uma apresentação sequenciada (como o PowerPoint), que é acessada virtualmente, por meio de um link. O interessante é que a introdução desse formato facilitou a compreensão das atividades pelos familiares, que seguiam orientações mais simples e assertivas, e com intermédio de figuras norteadoras animadas. Figura 2 – Exemplo de recorte de atividade pedagógica desenvolvida pelo app Genially Fonte: (PELIÇÃO, 2020b, p. 8) Com relação aos vídeos, eu busquei aprender sobre alguns princípios básicos de edição para ajudar no meu trabalho pedagógico e no das demais professoras. Foi moroso no início, pois eu não tinha conhecimento prévio e ainda precisava conciliar o aprendizado com a administração do prazo semanal para as publicações. Em contrapartida, é muito satisfatório olhar para o percurso que eu trilhei e analisar que minha prática trouxe resultados positivos para as famílias e crianças da escola. Um exemplo claro que chamou a atenção e encantou quem pôde assistir, foi um pequeno vídeo que eu editei tendo como base a canção https://www2.bauru.sp.gov.br/educacao/atividades_distancia.aspx?t=1&a=20&b=04#1 https://www2.bauru.sp.gov.br/educacao/atividades_distancia.aspx?t=1&a=20&b=04#1 https://view.genial.ly/5eda3e019b21c40d919760c1/presentation-infantil-v-7a-semana 17 tema de abertura dos filmes Star Wars, considerando que o assunto trabalhado era lua e estrelas – universo. Figura 3 – Recorte de vídeo editado pela autora para compor atividade do app Genially Fonte: (PELIÇÃO, 2020a, p. 8) Em complemento a tudo o que foi mencionado, também realizamos (professoras e gestora) alguns encontros virtuais síncronos1 com a comunidade escolar para oportunizar momentos conjuntos de contações de histórias. Figura 4 – Cards dos convites para Contação de História síncrona Fonte: Cards elaborado pela autora (2021) 1 Encontros realizados por videoconferência, viabilizados por intermédio do Google Meet, e que aconteciam em tempo real. https://view.genial.ly/5f1f07ebc43a880d757f82dc/presentation-infantil-ii-e-iii-14a-semana 18 Com o cenário da pandemia amenizado, não pude deixar de notar o quanto a área da educação – especialmente a Educação Infantil, que eu vivenciei integralmente - ainda carece de melhorias na vertente de recursos digitais e tecnológicos - RDT, além de perceber e experienciar uma carência na formação de professores, que demonstraram certa relutância e/ou dificuldade em usar e aplicar esses recursos nas aulas e atividades, principalmente no ensino remoto. Por conseguinte, observei alguns momentos de inquietação e preocupação dos docentes, inclusive eu mesma, com a seleção acertada e adequada de recursos digitais e tecnológicos possíveis de serem utilizados para aquela circunstância, que fossem condizentes com o currículo escolar da Educação Infantil de Bauru e que caminhassem ao encontro da periodização do desenvolvimento psíquico das crianças. Isso tudo em meio a uma contradição aparente; a de que a sociedade contemporânea (o que abrange tanto professores quanto estudantes) está diretamente imersa nas Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação – TDIC (TEZANI, 2017), ou seja, as tecnologias estão postas e de algum modo elas fazem parte da nossa vida, sendo uma característica vigente. A partir dessas reflexões paradigmáticas e de tudo que foi enfrentado, surgiram várias dúvidas, como: (1) Será que no período anterior à pandemia, a aproximação com o digital e o tecnológico era realmente limitada na educação como um todo? (2) Durante a pandemia, os professores de Educação Infantil do sistema de ensino de Bauru/SP conseguiram fazer uso de recursos digitais e tecnológicos? Se sim, quais foram esses recursos e como foram aplicados no ensino remoto? (3) Os professores de Educação Infantil de outros sistemas de ensino, também conseguiram utilizar os recursos? De que maneira? Quais foram as experiências a nível nacional? (4) E quanto ao pós pandemia, a Educação incorporaria de fato esses recursos às atividades pedagógicas de Educação Infantil ou seria passageiro? Desses questionamentos surgiu a necessidade de pesquisar sobre uma pergunta principal: O uso de recursos digitais e tecnológicos aplicados ao contexto da Educação Infantil do sistema de ensino do município de Bauru/SP 19 (minha área de atuação), voltados às crianças de 4 a 5 anos de idade, ocorreu antes, durante e após2 a pandemia de Covid-19? A escolha pela faixa etária delimitada se deu porque apesar de o sistema de ensino no qual eu atuo oferecer matrículas com aulas regulares para crianças de 2 a 5 anos e vagas para bebês a partir de 4 meses, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (BRASIL, 1996) e a Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988) deixam claro que a Educação Básica é obrigatória e gratuita a partir dos 4 (quatro) anos de idade; sendo, portanto, a Educação Infantil gratuita e obrigatório dos quatro aos cinco anos de idade. Nesse sentido, a realização de uma pesquisa de levantamento bibliográfico (melhor descrita na seção de Procedimentos Metodológicos) que pudesse responder ao problema inicial, seria melhor viabilizada considerando a idade obrigatória por lei. Além disso, antes dos quatro anos de idade, existem períodos cujas atividades-guia - explicitados pela psicologia histórico-cultural (melhor descritos na seção de Revisão de Literatura) -, demandam relação direta da criança com o adulto e com os objetos do meio. Isto posto, para concretizar minha necessidade de compreender as motivações apontadas, busquei participar do processo seletivo do Programa de Pós-Graduação - PPG em Desenvolvimento Humano e Tecnologias, do Instituto de Biociências, da Universidade Estadual Paulista - Unesp de Rio Claro/SP, indicando a orientação do Professor Dr. Afonso Antonio Machado. Meu interesse pelo programa ocorreu por intermédio da minha irmã, Taís Pelição, que havia cursado Licenciatura em Educação Física pela Unesp de Bauru/SP e depois o referido PPG, e que me incentivou e me deu suporte para que eu também pudesse ter acesso às excelentes oportunidades de aprendizado que ela teve no mestrado. E, assim, após um caminho de dedicação, estudos, pesquisa, erros e acertos, eis que minha dissertação tomou uma forma final, sendo esta que você, leitor, pode apreciar. 2 Como pós pandemia, entende-se o ano de 2022, considerando o período de realização desta pesquisa). https://ib.rc.unesp.br/#!/pos-graduacao/secao-tecnica-de-pos/programas/desenvolvimento-humano-e-tecnologias/ https://ib.rc.unesp.br/ https://ib.rc.unesp.br/ https://unesp.br/portaldocentes/docentes/156605?lang=pt_BR http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8058919Z3&tokenCaptchar=03AD1IbLDpyLljN8osvUgu-661jLJlyN3s9OQp5xP40hjdIS6_oLjXH6K4ON-vxgZmsdU4MkOAs7FFSiZRXV7kijE0bDDfeI7gVjR1Xu4FtiIpMByoHEwPjrASXm-nRXsZjpQyX1PaAInybxLveUn4O3lduAX6Iw1QuSSU8Av9jlghWa6skUW0T2fT1yrHHo48FYN-JPipScbtl3n83TUiNII1jA_KROaf-VI6MzWXrMlFfbwE7wEtZxXZlhS9gWRCMViJkn6XXoOQAJDStlJBac-_21u9JSFQINOSYxwYkYWYhvEEGfje-0YYHBAZWMlMwugox8Bk04VPYwpVSe36Z4g-iaIfVUhByCT3zGR9c3pAScvt0Bt1tfKqlGlo0IbyAWs_O5eRQCOd9kEQ8MrIvB4bt8FfiGuoCJHtWom4fziVEINhlQA6MvWlS840h0iil_vlhD7YfV-BzjS7rUgQn05Qk7yKF8W_yPpeYeKTySaibrFzTABdbRgxCGDUoGx6iKy6uWKV89bhnamzgBm8Q_t6WA8lNJHou_U24TLtF-Cs3nuut6bsGptDZjUtbnbPZoD63iJJ8R0KE-yABDpVQTEw4qN_76-HkA http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8058919Z3&tokenCaptchar=03AD1IbLDpyLljN8osvUgu-661jLJlyN3s9OQp5xP40hjdIS6_oLjXH6K4ON-vxgZmsdU4MkOAs7FFSiZRXV7kijE0bDDfeI7gVjR1Xu4FtiIpMByoHEwPjrASXm-nRXsZjpQyX1PaAInybxLveUn4O3lduAX6Iw1QuSSU8Av9jlghWa6skUW0T2fT1yrHHo48FYN-JPipScbtl3n83TUiNII1jA_KROaf-VI6MzWXrMlFfbwE7wEtZxXZlhS9gWRCMViJkn6XXoOQAJDStlJBac-_21u9JSFQINOSYxwYkYWYhvEEGfje-0YYHBAZWMlMwugox8Bk04VPYwpVSe36Z4g-iaIfVUhByCT3zGR9c3pAScvt0Bt1tfKqlGlo0IbyAWs_O5eRQCOd9kEQ8MrIvB4bt8FfiGuoCJHtWom4fziVEINhlQA6MvWlS840h0iil_vlhD7YfV-BzjS7rUgQn05Qk7yKF8W_yPpeYeKTySaibrFzTABdbRgxCGDUoGx6iKy6uWKV89bhnamzgBm8Q_t6WA8lNJHou_U24TLtF-Cs3nuut6bsGptDZjUtbnbPZoD63iJJ8R0KE-yABDpVQTEw4qN_76-HkA 20 1 INTRODUÇÃO Figura 5 - Síntese da Cronologia da História Geral Iniciemos esta seção refletindo sobre a linha do tempo da Humanidade ou História Geral da Humanidade. Se observarmos apenas um breve recorte desta (como o que indica a Figura 5), sem dispender esforços com análises detalhadas, notaremos que não houve a existência de uma única sociedade, homogênea, com os mesmos valores éticos e morais e que produziu ciência, arte e filosofia de forma equivalente e uniforme. Mas, o que é sociedade? Para o sociólogo alemão Norbert Elias (1994), a sociedade é a soma de todas as pessoas; somos ‘nós’. Porém, ele alerta que na composição geral da sociedade existem várias outras sociedades, instituídas pelas características específicas do modo de viver das pessoas e que delineiam cada país. Para o autor, ‘nós’, no Brasil, somos uma sociedade diferente do ‘nós’ da Grã-Bretanha, por exemplo. Ainda assim, mesmo uma grande quantidade de indivíduos fazendo parte de uma mesma sociedade e vivendo de maneira similar, estes não planejaram intencionalmente tal comunhão. A sociedade, portanto, molda a si própria conforme ocorrem as mudanças impostas pelo tempo e pela história. Em consonância com o que pondera Elias e retomando a reflexão inicial desta introdução, na realidade, talvez nem seja possível falarmos em uma linha temporal quando o assunto é sociedade, uma vez que a história nos conta Fonte: Adaptado de Moraes (2022) 21 narrativas múltiplas, que se entrecruzam como um emaranhado conjunto de rizomas3 culturais que circulam e circularam entre as sociedades plurais. Aliás, qual é a definição do conceito de cultura, intimamente conectado ao de sociedade? Adiantamos que o primeiro é tão complexo quanto o segundo e, como tal, tem significados que variam conforme o olhar de quem o estuda. Em uma vertente sociológica, Santos (2006) afirma que “cultura é uma preocupação contemporânea, bem viva nos tempos atuais, uma preocupação em entender os muitos caminhos que conduziram os grupos humanos às suas relações presentes e suas perspectivas de futuro” (p. 7). Nessa vertente, esse pesquisador enfatiza que numerosas divergências marcaram o desenrolar do desenvolvimento da Humanidade; marcas que foram registradas justamente pelos “modos diferentes de organizar a vida social, de se apropriar dos recursos naturais e transformá-los, de conceber a realidade e expressá-la” (SANTOS, 2006, p. 7), até culminar nos moldes atuais. Desse modo, assumimos cultura como essas marcas que vão surgindo e se impregnando nas sociedades, as quais fala o autor José Luiz dos Santos, marcas que proclamam a lógica interna de cada sociedade, povos e nações, que por sua vez, culminam em uma linha de pensamento, práticas, costumes e padrões que têm certa semelhança e afinidade no interior de um mesmo grupo social. E, pela cultura estar intimamente vinculada à sociedade, ambas são modificadas com o transcorrer do tempo, podendo sofrer verdadeiras metamorfoses. Com efeito, compreender minimamente a base desses dois pontos teóricos nos ajuda a assumir que as sociedades e culturas são heterogêneas e, por conseguinte, sofreram variações ao longo dos tempos e das múltiplas memórias que contemplam a Humanidade. Logo, a partir da compreensão acerca das abundantes realidades culturais e das modificações pelas quais 3 Segundo Dias e Nassif (2013, p. 153) “Originalmente, o conceito "Rizoma" - palavra de origem grega "rhysos", que quer dizer raiz - foi utilizado na botânica e significa que, na estrutura de algumas plantas, os brotos podem ramificar-se em qualquer ponto, assim como engrossar e se transformar em um bulbo ou tubérculo, que pode funcionar como raiz, talo ou ramo, independente de sua localização na planta”. Posteriormente, o termo foi reutilizado pelo filósofo Gilles Deleuze e pelo psiquiatra Félix Guattari, em 1972, por meio do trabalho intitulado ‘O Anti- Édipo’, em que procuraram “combinar temas e estruturas da filosofia, literatura, antropologia, arte, economia, ciência, política e biologia para explorar uma série de perspectivas da realidade, pois, segundo os autores, era preciso tentar algo novo para a filosofia” (DIAS; NASSIF, 2013, p. 154). 22 estas passaram, podemos chegar a dois pontos que pretendíamos com a argumentação exposta até aqui: (1) a percepção e o sentimento sobre o que é a infância e a criança também variaram com os desdobramentos temporais, assim como (2) houve uma verdadeira renovação da relação existente entre as pessoas e as tecnologias, refletindo também na érea educacional. Esses dois pontos serão melhor explicitados na seção de Fundamentação Teórica e são alicerces para esta pesquisa, que tem como objetivo geral investigar sobre o uso de recursos digitais e tecnológicos - RDT aplicados ao contexto da Educação Infantil do sistema de ensino do município de Bauru/SP, voltados às crianças de 4 a 5 anos de idade, antes e durante a pandemia de Covid-19, e após a retomada do ensino presencial (neste estudo, o ano de 2022 foi considerado o período de retomada do ensino presencial). Já os objetivos específicos consistem em (1) compreender o contexto histórico da Educação Infantil no Brasil e a relação com os recursos digitais e tecnológicos, (2) delimitar a definição de recursos digitais e tecnológicos, e (3) compreender as especificidades das crianças em Idade Pré-Escolar, entre 4 e 5 anos de idade, com base nos pressupostos da teoria Histórico-Cultural. O interesse pelo tema surgiu a partir da motivação pessoal da autora principal, que vivenciou a problemática do uso emergencial de recursos digitais e tecnológicos na Educação Infantil, no município de Bauru/SP, durante e após o ensino remoto estabelecido em decorrência da pandemia. Esta pesquisa se justifica por abordar uma temática atual e ainda pouco direcionada para o ensino de crianças pequenas - conforme experiência pessoal da autora principal -, sendo de suma importância para aprofundar o debate entorno do uso dos recursos digitais e tecnológicos na Educação Infantil, tendo como suporte os apontamentos dos próprios docentes que atuam diretamente com tal etapa escolar. Para tanto, na seção 4, realizamos um levantamento bibliográfico ou revisão de literatura, em que constam os seguintes tópicos: (4.1) Recursos digitais e tecnológicos, (4.2) Criança e infância, concepções não lineares, (4.3 ) Breve histórico da Educação Infantil no Brasil, (4.4) Periodização do desenvolvimento psíquico da criança: períodos da Primeira Infância e da idade Pré-Escolar segundo os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural e (4.5) O uso de recursos digitais e tecnológicos e a periodização do desenvolvimento 23 psíquico. Sobre a periodização do desenvolvimento psíquico da criança, adotamos os preceitos teóricos da Teoria Histórico-Cultural ou sócio-histórica, contemplando fundamentos defendidos por autores e estudiosos como Dermeval Saviani (2021), Juliana Pasqualini e Yaeko Tsuhako (2016), Teresa Cristina Rego (2012), Lev Vigotsky (1996; 2000), Alexis Leontiev (1987; 2004; 2010) e D. B Elkonin (1987). Os procedimentos metodológicos, que contemplam o instrumento de coleta de dados (questionário semiestruturado), bem como os dados obtidos com a aplicação do questionário e a análise deles, estão descritos na seção 5. Já na seção 6, há a categorização da amostra participante da pesquisa (vinte e seis professores do município de Bauru/SP) e a discussão sobre os pontos encontrados, comparados com a literatura especializada, principalmente Dermeval Saviani (2021), José Manuel Moran (2017), Vani Moreira Kenski (2014) e Janaína Santana (2021). Ainda na seção 6, os resultados indicam que antes do período de pandemia de Covid-19, os professores participantes da pesquisa não tinham intencionalidade quando utilizavam recursos digitais e tecnológicos nas aulas, estes eram apenas acessórios ou distratores. Assim, mesmo a pandemia de coronavírus tendo evidenciado a importância do uso de recursos digitais e tecnológicos na educação como um todo e, especialmente na Educação Infantil, a maioria dos professores só utilizou tais recursos como suporte para as aulas em período remoto e, com estas encerradas, o ensino voltou aos padrões tradicionais antes estabelecidos, ou então sofreram poucas adaptações. Também foi verificado que nem todos os professores têm conhecimento e estruturas de base que lhes garantam a condição de tecnologicamente incluídos, evidenciando uma urgente necessidade de investimento em formação continuada e apoio da gestão escolar. 24 2 JUSTIFICATIVA Esta pesquisa se justifica por abordar uma temática atual, constantemente debatida no meio educacional e midiático, mas ainda pouco direcionada para o ensino de crianças pequenas, especialmente até 5 anos de idade, que corresponde à creche e à pré-escola no Brasil. Trata-se de uma afirmativa que é corroborada pela experiência da própria autora principal, que viveu a realidade docente nas etapas do Ensino Fundamental II (6º, 7º, 8º e 9º anos) e Ensino Médio (1º, 2º e 3º anos), na rede estadual de ensino de São Paulo, e agora, desde 2020, vem experienciando a realidade da Educação Infantil, no sistema municipal de ensino de Bauru/SP. Assim, a autora pôde notar três aspectos que ficaram evidentes nas duas realidades: (1) distanciamento do uso de recursos digitais e tecnológicos voltados às aulas do Ensino Fundamental II e Ensino Médio, em comparação com as aulas da Educação Infantil, uma vez que parece haver mais variedades (ou maior difusão) desses recursos que são direcionados ao trabalho pedagógico para estudantes com maior idade, (2) os professores que atuam com crianças pequenas têm mais resistência ao uso desses recursos em decorrência de uma concepção já enraizada de que a etapa da Educação Infantil precisa ter foco no brincar; um brincar corporal, gestual, de amplitude, que explore os espaços e coloca a criança em contato com meio físico, um brincar praticamente livre (um brincar, na verdade, que não tem a uma definição consensual), e (3) tendência dos gestores e das instituições em priorizar os investimentos digitais e tecnológicos nas etapas mais avançadas da Educação, seguindo uma lógica similar ao aspecto anterior. Como destacado antes, há maior predisposição para o uso dos recursos digitais e tecnológicos nas etapas do Ensino Fundamental e Médio do que na Educação Infantil, mas isso não significa que uma está em melhores condições do que a outra, já que ambas possuem carências, sendo que a pandemia de Covid-19 evidenciou as dificuldades enfrentadas pela educação, externando-as para além dos muros da escola. A propósito, a pandemia fez da docência uma profissão laboriosa naquele período com muitas angústias, tentativas de adaptar as aulas para o formato remoto, erros e acertos que pareciam não ter fim. A sensação era que aquele 25 longo tempo de imersão digital e tecnológica finalmente renovaria a Educação, com destaque à Educação Infantil. Mas, será que essa renovação realmente aconteceu no pós pandemia? Será que no período anterior à pandemia, a aproximação com o digital e o tecnológico era limitada na Educação Infantil? Durante a pandemia, os professores conseguiram fazer uso de recursos digitais e tecnológicos - RDT? Essas perguntas são de suma importância para aprofundar o debate entorno do uso dos recursos digitais e tecnológicos na referida etapa, convertendo-se em justificativa plausível. Outra justificativa é em relação aos benefícios desta pesquisa, que consistem em proporcionar resultados mais aprofundados acerca do uso desses recursos na Educação Infantil, principalmente no período que corresponde à Idade Pré-Escolar, promovendo novas discussões e atualização de resultados clássicos ou antes divulgados. 26 3 HIPÓTESE E OBJETIVOS DO ESTUDO 3.1 Hipótese inicial da pesquisa Esta pesquisa pretende responder ao seguinte problema ou pergunta fundamental: Como se deu o uso de recursos digitais e tecnológicos aplicados ao contexto da Educação Infantil do sistema de ensino do município de Bauru/SP, voltados às crianças de 4 a 5 anos de idade, antes e durante a pandemia de Covid-19, e após a retomada do ensino presencial, especificamente entre os anos de 2019 a 2022? Ademais, também intenciona responder outros três questionamentos: (1) No período anterior à pandemia, a aproximação com o digital e o tecnológico era limitada na educação como um todo? (2) Durante a pandemia, os professores de Educação Infantil do sistema de ensino de Bauru/SP conseguiram fazer uso de recursos digitais e tecnológicos? Se sim, quais foram esses recursos e como foram aplicados no ensino remoto? (3) E quanto ao pós pandemia, a Educação incorporou de fato esses recursos às atividades pedagógicas de Educação Infantil ou seria passageiro? Para tanto, elaboramos 3 (três) hipóteses, com a intenção de sugerir explicações possíveis para o assunto investigado. Tais hipóteses foram numeradas, a fim de facilitar a posterior identificação delas na análise dos dados. Hipótese 1: A hipótese inicial desta pesquisa é que antes da pandemia, mesmo a tecnologia estando inserida na conjuntura da sociedade e fazendo parte da rotina diárias das pessoas, muitos professores tinham dificuldades de inserir recursos digitais e tecnológicos no planejamento das aulas de Educação Infantil e, principalmente, atuar com eles na prática por não saberem como usá- los com objetividade e em consonância com os objetivos e conteúdos traçados. Hipótese 2: Na mesma vertente antes exposta, presume-se que mesmo a pandemia de coronavírus tendo evidenciado a importância do uso recursos digitais e tecnológico na educação como um todo e, especialmente na Educação Infantil, a maioria dos professores só utilizou tais recursos como suporte para as aulas em período remoto e, com estas encerradas, o ensino voltou aos padrões tradicionais antes estabelecidos, ou então sofreram poucas adaptações. 27 Hipótese 3: Também acredita-se que muitos docentes ainda não possuem acesso a recursos tecnológicos no ambiente de trabalho ou, se possuem, esses devem ser de baixa qualidade ou limitados. Ademais, é provável que no caso de acesso, não haja incentivo por parte da gestão educacional para a utilização devida deles ou não haja a oferta de formação e qualificação para um correto manejo. 3.2 Objetivo geral • Investigar sobre o uso de recursos digitais e tecnológicos aplicados no contexto da Educação Infantil no sistema de ensino do município de Bauru/SP. 3.3 Objetivos específicos • Compreender o contexto histórico da Educação Infantil no Brasil e a relação com os recursos digitais e tecnológicos; • Delimitar a definição de recursos digitais e tecnológicos; • Compreender as especificidades das crianças em Idade Pré-Escolar, entre 4 e 5 anos de idade, com base nos pressupostos da teoria Histórico- Cultural. 28 4 REVISÃO DE LITERATURA 4.1 Recursos digitais e tecnológicos Em meio a imersão tecnológica e informacional da sociedade contemporânea, as instituições escolares, principalmente as públicas, parecem estar descontextualizadas, vinculadas aos modelos tradicionais de ensino, mantendo um certo distanciamento das novas necessidades e demandas dos estudantes. O contato direto com computadores, internet, televisão, vídeos e celulares provoca nas pessoas um certo deslumbre, uma ilusão de que possuem competência ilimitada do uso e manuseio de tais recursos e o domínio das informações, que transitam em uma velocidade inimaginável para uma sociedade do século passado. Temos que, devido aos moldes atuais que perpassam os novos meios de comunicação e de informação, o “conceito de cultura foi profundamente alterado”, conforme bem aponta Bruno Ollivier (2012, p. 217), havendo hoje uma lógica caótica e imediatista que “exige uma explosão de ritmos sociais” (p. 217). Nesse aspecto, se pensarmos na Teoria Histórico-Cultural (THC), a qual diz que o homem é um ser que carrega consigo história e cultura, como tal, está sendo intensamente modificado e influenciado pela enormidade de fluxo informacional e de comunicação desenfreado e sem hierarquia, facilitado pelas mídias e tecnologias digitais. Podemos, então, olhando sob a ótica da instituição escolar, pressupor que se o papel desta é ‘transmitir’ conhecimentos historicamente acumulados, então existe um abismo, pois a escola está estagnada e a história que ela tem contado no interior de seu perímetro não mais conquista, não mais interessa aos alunos, porque os distancia da experiência que vivenciam no dia a dia (CHIZZOTTI, 2020; DESCHAMPS; CALEGARI, 2015). Ou seja, o que se aprende na escola, não se aplica ao mundo real. Há claramente um conflito de interesses geracionais. Não há mediação dos saberes culturais e históricos. Com relação à última afirmação, refletindo de forma simplificada acerca da mediação em um sentido mais geral, temos que esta é “um processo no qual um mediador está envolvido” (OLLIVIER, 2012, p. 274), ou seja, que demanda de uma terceira pessoa (uma pessoa externa) para conduzir uma intervenção 29 entre duas partes. Nessa mesma vertente, podemos afirmar que o professor é um mediador e tem relações estreitas com os estudantes e os saberes. Para Ollivier, “a mistura dos públicos nos eventos artísticos foi pensada como uma forma de criar laços sociais e, nesse contexto, a mediação cultural é um modo de corrigir as desigualdades sociais em relação à cultura” (2012, p. 277-278). Ou seja, é possível comparar o professor ao mediador cultural, mas levando em consideração que o objeto de trabalho do primeiro não se restringe tão somente aos fins artísticos, mas também ao amplo conhecimento científico, filosófico e cultural da humanidade. Isso porque o professor é aquele que, assim como um mediador de uma instituição museológica, “abrange uma gama de atividades diversas que têm em comum exercer-se no domínio da cultura (museus, artes, bibliotecas...) e envolvem uma atividade de comunicação” (OLLIVIER, 2012, p. 277), ou seja, tem o papel de viabilizar uma comunicação efetiva e uma consequente troca dos estudantes com a cultura. Se, portanto, a cultura ensinada na/e pela escola é oposta à cultura de seu público-alvo dela; a criança, o jovem, os estudantes, então é razoável ponderar que não está havendo mediação na escola e, consequentemente, nunca antes foi tão explícita a desigualdade social com relação à cultura - aqui considerada como conhecimento científico, histórico, artístico e filosófico (OLLIVIER, 2012; PASQUALINI; TSUHAKO, 2016). O desempenho escolar na etapa da Educação Básica têm índices baixos (BRASIL, 2019, s/p), e o resultado da conjuntura educacional atual no Brasil é que os estudantes não aprendem efetivamente. O porquê, como enfatizamos, é que a escola não oferece atrativos, insiste no ensino tradicionalista, talvez pelo conforto da manutenção de uma posição já conhecida, mas que é incompatível com os anseios dos estudantes atuais. Para Moran (2017, p. 72): Enquanto a sociedade muda e experimenta desafios mais complexos, a educação formal continua, de maneira geral, organizada de modo previsível, repetitivo, burocrático, pouco atraente. Apesar de teorias avançadas, predomina, na prática, uma visão conservadora, repetindo o que está consolidado, o que não oferece risco nem grandes tensões. As crianças nascem cada vez mais envolvidas com o ‘mundo conectado’, fato que vai ao encontro do que afirma a THC; uma vez que ao nascer a criança 30 se apropria do contexto social por intermédio da compreensão dos usos dos objetos que fazem parte dele. E, na perspectiva mais atual, nunca antes as pessoas estiveram tão conectadas aos aparelhos celulares e às mídias sociais como ocorre hoje (TOLEDO et al, 2012). As Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação – TDIC (TEZANI, 2017) não estão, portanto, limitadas aos jovens e adultos, mas estendem-se às crianças também. A escola e a educação de maneira geral parecem ignorar tal fato. De tudo que expomos, podemos inferir que os recursos digitais e tecnológicos- RDT estão postos, eles fazem parte da vida do ser humano. O professor e, consequentemente, a escola, necessitam inserir esse conhecimento histórico-cultural da humanidade nas práticas pedagógicas de sala de aula e em consenso com as perspectivas contemporâneas, fazendo uma verdadeira mediação, com o objetivo de diminuir e/ou erradicar as desigualdades sociais com relação à cultura, aos conhecimentos (DARLING-HAMMOND, 2019). Isso implica sair da inércia do tradicionalismo e ensinar em uma perspectiva do presente, do concreto, envolvendo o estudante com aquilo que o atrai. Após esta introdução teórica e contextual, fica claro que são vários os termos vinculados ao tecnológico. Por isso, faz-se necessário evidenciar que esta pesquisa faz uma abordagem específica sobre recursos digitais e tecnológicos na Educação Infantil, cabendo esclarecer a definição que assumimos acerca desses termos. Comecemos com a palavra recurso. Conforme o Michaelis – Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, esta pode ser definida como “Ato ou efeito de recorrer; Invocação de ajuda, apoio ou socorro; Meio de que se lança mão para vencer uma dificuldade ou um embaraço; venábulo” (2023). Por tecnologia, entende-se qualquer tipo de material, matéria, ferramenta ou conhecimento científico utilizado com o objetivo de facilitar e favorecer as atividades desempenhadas pelas pessoas, diminuindo o esforço humano. Na área educacional, portanto, os recursos tecnológicos mais convencionais são: lousa (quadro escuro e giz), livro didático, apostilas, cadernos, canetas, televisão, videocassete, mimeógrafo e depois fotocopiadora etc. 31 Hoje, porém, esses recursos foram aperfeiçoados e são diversos, como: projetor, microfone, aparelho de som com tecnologia Bluetooth, quadro branco ou lousa inteligente, tablets, etc. Ou seja, recursos físicos, palpáveis. Já a palavra digital, é definida pelo Dicionário Online de Português - Dicio, como “[Informática] Produzido por meio de tecnologias digitais, eletrônicas, em oposição à existência real, palpável, em papel: assinatura digital” (2023, s/p). Nesse ponto, podemos exemplificar recursos digitais como ferramentas que estão disponíveis em um ambiente digital ou virtual, como: aplicativos de mensagens, softwares, plataformas educacionais (gerenciadores de aulas, por exemplo), a própria internet e os navegadores, redes sociais, jogos, etc. Moran (2017, p. 351) afirma que As tecnologias digitais móveis provocam mudanças profundas na educação presencial e a distância. Na presencial, desenraizam o conceito de ensino-aprendizagem localizado e temporalizado. Podemos aprender desde vários lugares, ao mesmo tempo, on-line e off-line, juntos e separados. Na educação a distância, permitem o equilíbrio entre a aprendizagem individual e a colaborativa, de forma que os alunos de qualquer lugar podem aprender em grupo, em rede, da forma mais flexível e adequada para cada aluno. Nesse sentido, Magalhães e Mill (2013) reforçam que a educação e a tecnologia, hoje cada vez mais digital, possuem uma relação direta, assim como ocorre entre as sociedades contemporâneas e o uso constante das tecnologias digitais, que mais se assemelha à extensão do próprio corpo do ser humano. Ocorre que essas tecnologias e recursos digitais potencializam os processos comunicacionais entre as pessoas, sendo o “o principal eixo transversal e motivador da interatividade como instrumento primordial da construção do conhecimento. A aprendizagem é social e as TIC [...] criam melhores condições para a aprendizagem efetiva (MAGALHÃES; MILL, 2013, p. 333). Concordamos com o autor José Moran quando ele afirma que “não são os recursos que definem a aprendizagem, são as pessoas, o projeto pedagógico, as interações, a gestão. Mas não há dúvida de que o mundo digital afeta todos os setores, as formas [...] de comunicar-se e de aprender” (2017, p. 63). Isto posto, nesta pesquisa, nossa concepção de recursos digitais e tecnológicos na educação não condiz com os aparatos tradicionais de ensino, abrangendo uma versão mais avançada, mais atual, mais condizente com as 32 relações sociais-tecnológicas que vemos fora dos muros da escola, ou seja, procuramos nos afastar da velha expressão “mais do mesmo”. 4.2 Criança e infância, concepções não lineares No texto da Introdução apresentamos duas concepções que dão base para esta seção, que são sociedade e cultura. Vimos que ambas estão vinculadas e são modificadas com o transcorrer do tempo, com a história da Humanidade. Logo, a partir da compreensão acerca das abundantes realidades culturais e das transformações pelas quais estas passaram, chegamos a dois pontos: (1) a percepção e o sentimento sobre o que é a infância e a criança também variaram com os desdobramentos temporais, assim como (2) houve uma verdadeira renovação da relação existente entre as pessoas e as tecnologias, refletindo também na área educacional. Para ilustrar a primeira tese, tomemos como exemplo duas obras: uma do pintor italiano Bono da Ferrara, intitulada Madonna and Child, datada do final dos anos de 1450 (portanto, realizada durante o século XV, em um momento de transição ideológica entre Idade Média e Renascimento); e outra do pintor brasileiro João Candido Portinari, intitulada Roda Infantil e datada do ano de 1932 (século XX, portanto, cinco séculos após a pintura de Ferrara). Detalhe da pintura de Ferrara Figura 6 - Madonna and Child, Bono da Ferrara (século XV) Fonte: Szépmüvészeti Múzeum (Museu Virtual de Belas Artes de Budapeste, Hungria) 33 Figura 7 - Roda Infantil, João Candido Portinari, 1932 (século XX) Fonte: Projeto Portinari Se no ano de 2023 (data de publicação desta dissertação), uma determinada pessoa, que desconhece a História da Arte olhasse rapidamente para as duas obras supracitadas, seguindo a sequência da Figura 6 para a Figura 7, provavelmente seria tomada por um sentimento de espanto, estranheza e depois de familiaridade e conforto. Isso porque os quadros, como já dissemos antes, são separados por cinco séculos de história e, consequentemente, cerca de quinhentos anos que distanciam a compreensão das sociedades sobre o que é ser criança, que distanciam a compreensão que o pintor Ferrara (e outros do tempo dele) tinha em 1450, em meados do fim da Idade Média, para a compreensão do pintor Portinari, em 1932. Mesmo porque há uma variação cultural que marca as sociedades na Itália e no Brasil. Com relação ao período da Idade Média, este é até os dias atuais, costumeiramente denominado como Idade das Trevas no senso comum, em alusão à considerável influência que a igreja católica exercia sobre as pessoas. Esse domínio, em meio a uma sociedade majoritariamente analfabeta, era praticado com o apoio das imagens, das pinturas, que tinham a função de catequizar e transmitir os preceitos religiosos do catolicismo (GOMBRICH, 2000). Somando-se a isso, havia também no medievo a ideia da criança como 34 um adulto em miniatura, uma vez que “as crianças pequenas não tinham função social antes de trabalharem” (ANDRADE, 2010, p. 48). Nesse contexto, compreende-se que na Figura 5 a criança tenha aparência de adulto, com músculos bem delimitados e postura firme, para que houvesse uma associação com a imagem ideológica europeia mais propagada de Jesus Cristo; um indivíduo adulto, branco e dotado de graça. Daí a difusão do estereótipo de homúnculo; criança com aspecto de homem pequeno, mas bastante presente no imaginário das pessoas religiosas pertencentes à classe social mais baixa (servos e camponeses). Já na Figura 7, nota-se a representação da criança englobando diferenças físicas e pessoais, que em uma perspectiva contemporânea, cabem a elas, ou seja, em sua heterogeneidade. Isso em meio a um cenário comum no interior das cidades do Brasil; com casas simples, uma igreja central, o brincar em conjunto, a dança circular. Isto é, uma ideia dos brasileiros sobre a liberdade da infância (que, infelizmente, vem se perdendo com o avanço da violência nas ruas, da verticalização das moradias e da diminuição dos espaços verdes). 4.3 Breve histórico da Educação Infantil no Brasil A concepção acerca da criança e da infância sofreu um percurso heterogêneo e bastante desigual ao longo do tempo e das variadas sociedades, conforme dissemos antes. Para Sonia Kramer (2001), historicamente a criança foi compreendida enquanto natureza infantil (frágil, incompleta, dependente do adulto) e não como a enxergamos hoje; “segundo uma perspectiva do contexto histórico em que está inserida” (p. 17). Aliás, essa atual percepção começou a ser assimilada a partir do surgimento da sociedade capitalista, uma vez que, diferente do feudalismo em que “a criança exercia um papel produtivo direto (“de adulto”) assim que ultrapassava o período de alta mortalidade”4 (KRAMER, 2001, p. 19), com o capitalismo e especificamente na burguesia, ela não necessitava mais trabalhar avidamente para a sobrevivência própria e de sua família, passando a tornar-se alguém que demanda cuidados e preparação escolar para a vida adulta futura. 4 Situação comum àquele momento devido às condições adversas impostas às pessoas. 35 Contudo, essa não é uma ideia universal e consensual, já que o capitalismo não gerou apenas a classe burguesa, mas muitas classes sociais no centro de sua dinâmica, cujo papel das crianças no interior delas difere bastante ainda hoje. Assim, considerando esta última vertente, nosso país ofereceu aos filhos da classe trabalhadora, principalmente das mães que precisavam trabalhar na indústria até meados da década de 1970 (AZEVEDO, 2019), não um espaço voltado à educação, mas sim assistencialista, com o claro objetivo de que houvesse um lugar seguro em que as crianças pudessem ser ‘olhadas’ e alimentadas. Diante do exposto, é possível dizer que o papel pedagógico era inexistente ou então coadjuvante naquele momento e o que prevalecia era uma espécie de educação compensatória, que visava suprir as necessidades primárias das crianças, superando a miséria e pobreza, de forma a reparar toda a privação cultural e científica que havia sido posta até então (KRAMER, 2001; AZEVEDO, 2019). No Brasil, somente ao final do século XX, entre as décadas de 1980 e 1990 (quando ocorreu maior abertura política), intelectuais e educadores começaram a denunciar as atrocidades praticadas pelos grandes empresários, políticos e governantes e, então, mais conscientes da conjuntura que circundava as creches e a pré-escolas, homens e sobretudo as mulheres, iniciaram um forte debate5 sobre a educação pública de qualidade que girou em torno da Constituição - 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente - 1990 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – 1996 (KRAMER, 2006; KRAMER, 2001), resultando na “necessidade de formular políticas de formação de profissionais e de estabelecer alternativas curriculares para a Educação Infantil” (KRAMER, 2006, p. 802)6. Em paralelo a todo o cenário apresentado, a gestão e administração se sobressaia no meio industrial capitalista (PARO, 2022), e, sendo adaptado deste, 5 Característica que Vitor Paro denomina como ‘transformação social’, que pode ser resumido como o “processo pelo qual a classe fundamental dominada busca arrebatar a hegemonia social das mãos da classe dominante, construindo um novo bloco histórico sob sua direção” (2022, p. 2386). 6 É importante enfatizar que as políticas relacionadas à educação pré-escolar não finalizaram com os movimentos provenientes do final do século XX, afinal é um capítulo recente da história e vêm se modificando, tendo muito o que avançar, inclusive a superação da concepção assistencialista, que ainda vigora em muitas instituições escolares e nas famílias brasileiras. 36 começava a ganhar destaque também na área da educação. Deste modo, advinda dos conceitos tradicionais de administração projetados por Frederick Winslow Taylor7 e Henri Fayol8, “a gestão educacional é uma expressão que ganhou evidência na literatura e aceitação no contexto educacional, sobretudo a partir da década de 1990” (LÜCK, 2017, p. 292), inclusive na Educação Infantil, pois com a instituição das creches e pré-escolas com foco no pedagógico, era essencial que houvesse também a figura do gestor, que desse conta de mediar e guiar o cotidiano escolar e atender às novas demandas sociais. No entanto, Silva (2007) destaca que mesmo a administração escolar tendo sido embasada em muitos aspectos da prática administrativa capitalista, ela “traz em seu bojo uma infinidade de peculiaridades inerentes às suas naturezas educativas, populares e participativas” (p. 24). Tais elementos marcaram o início do perfil de gestão democrática previsto para o ensino público contemporâneo e mais tarde promulgado pela Constituição de 1988, em seu artigo 206, inciso VI (BRASIL, 1988) e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (BRASIL, 1996), em seu artigo 3º, trazendo à tona a importância da educação para a primeira infância. 4.4 Periodização do desenvolvimento psíquico da criança: períodos da Primeira Infância e da idade Pré-Escolar segundo os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural Antes de discorrermos a respeito da periodização do desenvolvimento psíquico da criança em idade Pré-Escolar, é importante saber que o sistema de ensino do município de Bauru/SP, no qual a autora principal atua, adota os preceitos da Pedagogia Histórico-Crítica (SAVIANI, 2021) e da Psicologia Histórico-Cultural, frutos dos pressupostos da perspectiva histórico-cultural – projetada por Lev Vigotsky -, que por sua vez são criteriosamente abordados pela Proposta Curricular para a Educação Infantil do município de Bauru (PASQUALINI; TSUHAKO, 2016). Pelo fato deste estudo ter pesquisado as concepções de professores inseridos no contexto educacional do referido município, este é, portanto, o motivo pelo qual tal teoria embasa este estudo. 7 Engenheiro norte-americano, criou a escola de Administração Científica (SILVA, 2007). 8 Engenheiro francês, criou a Escola Clássica de administração (SILVA, 2007). 37 Como dissemos antes, a perspectiva histórico-cultural foi desenvolvida por Lev Vigotsky, um célebre pesquisador soviético e colaboradores como Alexei Nikolaievich Leontiev (1904-1979) e Alexander Romanovich Luria (1902-1977), que destacaram a essência histórica e cultural da nossa espécie. A fonte científica que alicerçou os estudos de Vigotsky foi o pensamento marxista. Podemos identificar os pressupostos filosóficos, epistemológicos e metodológicos de sua obra na teoria dialético-materialista. As concepções de Marx e Engels sobre a sociedade, o trabalho humano, o uso dos instrumentos, e a interação dialética entre o homem e a natureza serviram como fundamento principal às suas teses sobre o desenvolvimento humano profundamente enraizado na sociedade e na cultura (REGO, 2012, p. 25). Vigotsky criticava severamente a ideia do desenvolvimento humano puramente biológico e afirmava que a fala e o pensamento são próprios de um desenvolvimento que avança do biológico para o histórico-social. Ou seja, o pensamento verbal não é inerente ao ser humano, não é inato e nem transmitido geneticamente, é necessário que convivamos em sociedade, com outros humanos, com a cultura, com os instrumentos socias (VIGOTSKY, 2000; PASQUALINI, 2016; REGO, 2012). Esse convívio não é simples e meramente como o que ocorre nos animais, a exemplo dos lobos nas alcateias ou um bando de gorilas. Nos animais, o convívio tem como base uma comunicação primitiva, instintiva, limitada (VIGOTSKY, 2000; LEONTIEV, 2010b) e “no fundo, essa comunicação através de movimentos expressivos não merece sequer ser chamada de comunicação, devendo antes ser denominada contágio” (VIGOTSKY, 2000. p. 11), já que a reação de um único animal à determinada situação consegue fazer com que todos os demais a repitam, como resposta à sobrevivência, mas não consegue transmitir o porquê do ocorrido. Já os seres humanos são capazes de planejar, de fazer inferências, de transmitir ideias e conceitos complexos ao outro por meio da linguagem. A comunicação, estabelecida com base em compreensão racional e na intenção de transmitir idéias e vivências, exige necessariamente um sistema de meios cujo protótipo foi, é e continuará sendo a linguagem humana, que surgiu da necessidade de comunicação no processo de trabalho (VIGOTSKY, 2000. p. 11). 38 Para Vigotsky (2000), nós, seres humanos, possuímos características que são próprias e particulares, permitindo que estejamos em constante transformação a partir das realizações ativas que praticamos nos diferentes contextos culturais e históricos. É, portanto, no meio social, no contato com outras pessoas, que nos humanizamos, incluindo a criança. O pesquisador ainda chama a atenção para essa estrutura complexa enraizada nas ligações entre história individual e social, que é o que vai impulsionar a história do desenvolvimento da criança. Na mesma vertente, Leontiev (2010b, p. 59) explica que “a infância pré- escolar é o período da vida em que o mundo da realidade humana que cerca a criança abre-se cada vez mais para ela”, e complementa dizendo que uma vez que a realidade concreta é para a criança apresentada e por ela experimentada e apreendida, esta realidade passa a alterar progressivamente “o lugar que ela objetivamente ocupa no sistema das relações humanas” (2010b, p. 59). E nesse aspecto, a escola tem papel importante porque é nela que esse impulso é marcado fortemente pelas trocas com o professor, por intermédio de ações e práticas que precisam ser meticulosamente planejadas, preparadas e imbuídas de intenção. Mas, afinal, o que são essas práticas educativas e ações intencionais e qual é a relação delas com o que expomos? Dermeval Saviani (2021) - reconhecido estudioso brasileiro que formulou a Pedagogia Histórico- Crítica -, argumenta que a “educação é um fenômeno próprio dos seres humanos” (p. 43). À vista disso, a prática educativa é “uma modalidade específica da prática social” (p. 30), como um confronto à prática política. Assim A natureza humana não é dada ao homem mas é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica. Consequentemente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens (SAVIANI, 2021, p. 39). Então, como vimos, o Homem se humaniza à medida que convive em sociedade e apreende conhecimentos/cultura historicamente construídos. Isso se dá por intermédio das relações sociais, mas também da educação, que é própria do ser humano; uma vez que este a usa por meio do trabalho e prática educativa, para produzir nos indivíduos a humanidade histórica e coletiva social. 39 Se a prática educativa tem esse objetivo específico, ela demanda, pois, de intencionalidade. Afinal, Saviani (2021) deixa claro que para produzir saber é vital “antecipar em ideias os objetivos da ação” (p. 44), e continua ao afirmar que isso “significa [...] [representar] mentalmente os objetivos reais. Essa representação inclui o aspecto de conhecimento das propriedades do mundo real (ciência), de valorização (ética) e de simbolização (arte)” (p. 44). Nesse sentido, para que o professor exerça uma prática pedagógica guiada pelos preceitos teóricos descritos e com direcionamento e propósito, é preciso que ele conheça os aspectos que envolvem a periodização do desenvolvimento psíquico das crianças com as quais trabalha. A periodização também é importante para esta pesquisa, uma vez que a escolha pela faixa etária entre 4 a 5 anos de idade, que corresponde ao período Pré-escolar, foi definida considerando os aspectos centrais da psique infantil em relação à periodização. Assim, analisemos a figura abaixo: Figura 8 - Síntese gráfica da teoria da periodização do desenvolvimento de D. B. Elkonin Isso porque, Fonte: Material didático elaborado por Angelo Antonio Abrantes, docente do Departamento de Psicologia, Faculdade de Ciências, UNESP/Bauru (PASQUALINI; TSUHAKO, 2016, p. 107) 40 Daniil Borisovich Elkonin (1904-1984) foi um psicólogo soviético que, a partir dos estudos sócio-históricos de Vigotsky e Alexis Leontiev, foi responsável por elaborar uma teoria com a intenção de compreender o processo de desenvolvimento psíquico das crianças (PASQUALINI, 2016). O diagrama (Figura 8), elaborado pelo professor Angelo A. Abrantes, esquematiza de maneira eficaz tal teoria. Nele podemos ver a existência de três épocas; Primeira Infância, Infância e Adolescência, sendo cada uma delas compostas por dois períodos. No entanto, considerando o objetivo deste trabalho, o período a partir da Idade Escolar (6 anos em diante) não será descrito e o período denominado Primeiro ano (de 0 a 1 ano) apenas será mencionado. Isso porque nas escolas municipais de Educação Infantil de Bauru/SP, as crianças que são efetivamente atendidas por professores, possuem entre 2 a 5 anos de idade e integram turmas denominadas como Infantil II, III, IV e V, cuja nomenclatura foi adotada para corresponder às respectivas idades das crianças matriculadas em cada uma delas. Antes dos 2 anos de idade, os bebês têm um espaço próprio reservado nas escolas, que é o berçário, e são atendidos por profissionais, que são as auxiliares. Dito isso, nos interessa compreender acerca de dois períodos específicos; a Primeira Infância (de 1 a 3 anos, aproximadamente) e a Idade Pré-escolar (de 3 a 6 anos, aproximadamente), e o porquê definimos o segundo (especialmente crianças entre 4 a 5 anos de idade) como âmago desta pesquisa, e desconsideramos o primeiro. Para isso, faz-se necessário saber que cada período tem em seu cerne uma atividade9 dominante ou atividade guia, que como o próprio nome sugere, é uma atividade social específica dentre muitas outras que ocorrem em diálogo com as demandas socias, e que conduz o processo de transformação da criança, contribuindo para que ela alcance níveis psicológicos superiores em comparação com o período anterior. 9 O termo atividade representa aqui uma categoria teórica [...]. Como conceito científico, seu significado difere de sua acepção no senso comum e em outras teorias. Atividade é um processo que se constitui de uma cadeia de ações, voltadas a determinados fins, os quais, encadeados, atendem ao motivo que impulsiona a atividade (sendo que o motivo reflete uma necessidade humana e identifica o objeto que a satisfaz). Atividade não é, portanto, sinônimo de ação ou de simplesmente “fazer alguma coisa” (PASQUALINI; TSUHAKO, 2016. p. 52). 41 A atividade é para os autores soviéticos uma categoria e trata-se de uma necessidade interpessoal, que é exigida pela vida real que cerca não só a criança, mas uma pessoa ao longo da vida (LEONTIEV, 2004; LEONTIEV, 2010b). Em síntese, é uma maneira que o ser humano organiza a própria relação com o meio, com o outro e consigo mesmo; uma organização orgânica e orientadora do comportamento. É por intermédio da atividade que um indivíduo se humaniza e é capaz de transformar sua realidade subjetiva, ou seja, sua percepção individual sobre a realidade à sua volta. Pois bem, no período da Primeira Infância, a atividade dominante é a objetal manipulatória, e no período da idade Pré-Escolar, a atividade é o jogo de papéis. A expressão objetal manipulatória nos remete à manipulação de objetos, e é justamente isso o que vai impulsionar e promover uma mudança significativa no desenvolvimento psíquico da criança no período da Primeira Infância. Conforme Vigotsky (1996, tradução nossa), no primeiro ano de vida o bebê demanda de cuidado e responde à estímulos dados pelos adultos, em função das características de adaptação do organismo ao nascer (estrutura esquelética e muscular incompletas, centralidade nas necessidades vitais). Ele não se comunica diretamente com o adulto, mas manifesta seus desconfortos através do choro, por exemplo. “O adulto é o centro de qualquer situação no primeiro ano. É compreensível, portanto, que a simples proximidade ou afastamento do adulto signifique para a criança uma mudança abrupta e radical na situação em que se encontra” (VIGOTSKY, 1996, p. 236, tradução nossa). Após o primeiro ano de vida, essencial para os próximos passos no desenvolvimento psíquico da criança, esta adentra o período da Primeira Infância, que vai dos 2 até os 3 anos de idade, aproximadamente. Vigotsky (1996, tradução nossa) afirma que se trata de um período latente da formação ou nascimento da linguagem, proporcionada em decorrência da convivência com os adultos e outras pessoas durante todo o primeiro ano de vida. Aqui inicia-se a assimilação das formas de comunicação, o que passa a reestruturar todo o comportamento da criança, exigindo novas necessidades. É justamente a linguagem que proporcionará maior expansão do contato da criança com a conjuntura do meio físico e social, o qual faz parte. Ela “aprende a responder cada vez mais às exigências do adulto: seguir suas instruções, submeter-se à proibição, entender o elogio, o incentivo” (LEONTIEV, 1987, p. 58, 42 tradução nossa). No entanto, suas ações demandam motivo e suas necessidades estão essencialmente orientadas para a assimilação dos objetos (‘mundo funcional das coisas’), passando a atribuir sentido a eles. “Portanto, trata-se de um período em que tem preponderância o desenvolvimento da esfera das possibilidades operacionais técnicas da criança” (PASQUALINI, 2016, p. 120). Ainda ao que se refere ao período da Primeira Infância, ocorre o que Vigotsky (1996) denomina como dependência da própria situação ou apenas dependência da situação. No livro Obras escogidas – tomo IV, usando como exemplo um experimento científico realizado por K. Lewin, um psicólogo alemão estruturalista, Vigotsky expressa o seguinte: O experimento demonstra em que consiste isso [a dependência da situação]: é como se de cada objeto emanasse um afeto de atração ou repulsão, que é o motivo que estimula a criança. O objeto ou "atrai" a criança para tocá-lo, pegá-lo nas mãos, manuseá-lo ou, ao contrário, induzi-lo a evitar o contato. O objeto adquire o que Lewin chama de Aufforderungscharakter – um certo caráter imperativo -. Todo objeto tem algum afeto, que é tão estimulante que adquire para a criança o caráter de afeto "coercitivo", pelo qual a criança dessa idade se encontra no mundo dos objetos e das coisas como num campo de forças onde os objetos agem sobre isso o tempo todo, de modo a atrair ou repelir (VIGOTSKY, 1996, p. 265, tradução nossa). Ressaltamos, então, que a materialidade e propriedade dos objetos deixa de ser explorada como ocorria no período anterior, dando lugar ao entendimento da usabilidade dos objetos, com auxílio da imitação ou reprodução das ações dos adultos. Sob essa ótica, é de suma importância que o professor de Educação Infantil que atua com crianças nesse período do desenvolvimento, planeje previamente a organização do espaço e o que estará disposto nele, oferecendo e estruturando objetos e as formas de uso deles, incitando ações que orientarão e suprirão a atração mais urgente nas crianças. Da Primeira Infância, a criança adentra uma nova época, que é a Infância, e percorre o período da idade Pré-Escolar (de 3 a 6 anos, aproximadamente), tendo como atividade dominante o jogo de papel ou protagonizado. Por se tratar da somatória de um novo período com uma nova época, é normal que a criança enfrente uma crise10 acentuada, já que essa nova etapa parece não mais 10É importante salientar que crise, para os preceitos vigotskianos, representa “a ocorrência de mudanças bruscas na personalidade e na conduta da criança em um curto período de tempo, configurando um período de trânsito ou período crise” (PASQUALINI, 2016, p. 126). 43 responder ao intenso desenvolvimento intelectual e mostra-se como se fosse insuficiente para os novos anseios da criança. Aos três anos, particularmente, ocorre a chamada crise dos três anos, em que a criança apresenta sintomas como “protesto violento, despotismo e ciúmes” (PASQUALINI, 2009, p. 37), e que podem se acentuar dependendo da forma como o adulto ou o professor lida com a situação. Segundo Leontiev (1987), é preciso compreender que a organização psicológica interna da criança está muito mais completa e complicada; ela passa a entender o “eu”, a ter independência, autonomia. Agora, ela consegue escolher por si mesma qual objeto ela realmente quer alcançar, não porque se trata de algo mais atraente em meio a outros objetos chamativos, mas porque este tem importância significativa ou porque já compreende que pode evitar uma situação indesejável com a posse dele. É como se a criança se desprendesse do outro, como se não precisasse mais de vínculos com os adultos à volta dela. Esse salto qualitativo no desenvolvimento da consciência (do eu e do mundo) abre inúmeras novas possibilidades para a criança em seu novo período do desenvolvimento, marcado pela tendência à atividade independente. Essa tendência tem papel decisivo para a emergência e desenvolvimento do jogo de papéis, atividade que guiará o psiquismo da criança pré-escolar na conquista de novas capacidades (PASQUALINI, 2016, p. 128-129). E o que é o jogo de papéis, mencionado por Pasqualini no trecho acima? Leontiev (2010a) nos explica que trata-se de uma atividade estruturada a favor do processo da criança e que é comumente denominada como brincadeira. Contudo, esta brincadeira não é simplesmente intuitiva, da forma como é para os animais. Ela vai muito além, ela é objetiva e estritamente humana; é “base da percepção que a criança tem do mundo dos objetos humanos” (LEONTIEV, 2010a, p. 120). No período anterior, o brinquedo ou o objeto satisfazia o desejo da criança em conhecê-lo, de compreender sua utilidade. No período pré-escolar, por toda a configuração psicológica que apontamos, o brinquedo e as atividades tornam- se ainda mais fundamentais e têm importância para a criança expandir a consciência do mundo objetivo que a cerca, um mundo composto não só dos objetos que ela manipula e opera, “mas também os objetos com os quais os 44 adultos operam, mas a criança ainda não é capaz de operar, por estarem ainda além de sua capacidade física” (LEONTIEV, 2010a, p. 120). As clássicas falas “eu mesmo” e “me deixa”, proferidas pelas crianças, as quais Leontiev (2010a) chama a atenção para a predominância nesse período, são reforçadas pelo imperativo da criança querer agir sobre o universo dos adultos e não somente contemplá-lo. Nesse aspecto, essa contradição do agir é resolvida com o brincar; o jogo de papéis. “A criança quer, ela mesma, guiar o carro; [...] mas não pode agir assim, e não pode principalmente porque ainda não dominou e não pode dominar as operações exigidas pelas condições objetivas reais da ação dada” (LEONTIEV, 2010a, p. 121). Para isso, ela brinca de guiar o carro, ela assume o papel social de motorista. Como já discorremos, a Psicologia Histórico-cultural “defende que a brincadeira é um meio pelo qual a criança toma consciência do mundo que a circunda, pois passa a compreender as relações entre os homens no interior da sociedade”, (PASQUALINI, 2016, p. 133) ela toma consciência de si. Assim, ao encontro dessa afirmativa, Elkonin (1987, p. 99) assevera que “o jogo é importante para quase todos os processos psíquicos na idade pré-escolar”, já que ajuda a desenvolver a totalidade da personalidade da criança; ela controla os impulsos, compreende normas e regras de comportamento sociais. O autor complementa explicando que “o jogo [...] é o protótipo da futura atividade séria. Da necessidade que o jogo faz desejar à necessidade da qual se toma plena consciência: tal é o caminho que conduz do jogo às formas superiores da atividade humana” (ELKONIN, 1987, p. 99). Ou seja, ao longo do período pré- escolar, deve haver uma organização do jogo – rompendo com o espontaneísmo ou o naturalismo, muitas vezes atribuídos ao brincar infantil -, de modo que este ganhe complexidade e garanta o desenvolvimento dos níveis psicológicos superiores. 45 4.5 O uso de recursos digitais e tecnológicos e a periodização do desenvolvimento psíquico A partir da teoria acima exposta e considerando a definição acerca de recursos digitais e tecnológicos que adotamos, chegamos ao seguinte pressuposto: as práticas pedagógicas voltadas às crianças do período Primeira Infância - entre 2 e 3 anos de idade, que no município de Bauru/SP correspondem à turmas de Infantil II e III, respectivamente – demandam de ações que priorizem ao máximo o contato dos pequenos com a atividade dominante do referido período; que é a manipulação e apropriação dos objetos que fazem parte da cultura social, tanto da escola quanto fora dela. É um momento crucial de domínio de linguagem e assimilação dos modos humanos de relação social. A formação central nessa idade é surgimento da consciência e a “compreensão verbal dos objetos e de sua própria conduta” (PASQUALINI, 2009, p. 37), significando que a criança imbuí sentido às suas ações a partir da associação entre linguagem e objetos. Ou seja, é propício que os professores que atuam com crianças no período da Primeira Infância direcionem as práticas pedagógicas para ajudá-las a suprirem suas atividades dominantes em relação à díade linguagem-objeto. Assim, tal pressuposto nos faz compreender que o acesso aos recursos digitais deve ser evitado durante a época da Primeira Infância e passe ser introduzido a partir das próximas épocas ou no próximo período, que é a Idade Pré-Escolar; quando as crianças tiverem mais conscientes da realidade objetal do entorno, dos aspectos comportamentais sociais e da própria conduta. Assim, nossa escolha em pesquisar opiniões de professores do município de Bauru que atuaram especificamente com turmas de Infantil IV e V se fundamenta devido aos argumentos apresentados, uma vez que no Período Pré- Escolar, que abrange a faixa etária entre 4 e 5 anos de idade, as crianças demandam compreenderem as dinâmicas sociais que observam nas relações entre os adultos e outros indivíduos mais experientes. E, já que essas relações são cercadas, em muitos momentos, pelos aparatos digitais e tecnológicos, consequentemente, existe uma necessidade intrínseca da criança, guiada pela atividade-guia deste período específico, em 46 compreender como se dá o uso e a aplicabilidade desses aparatos nas dinâmicas vivenciadas pelos indivíduos que estão vinculados à ela. Ressaltamos, então, três condições gerais que se relacionam; (1) a atividade-guia do Período Pré-Escolar é marcada pela necessidade de vivenciar os papéis sociais dos adultos, (2) as dinâmicas sociais dos adultos são mediadas por recursos digitais e tecnológicos, e (3) a escola deve abordar não só os conhecimentos históricos clássicos determinados pelo currículo escolar, mas também aqueles que extrapolam os muros dela. Desse modo, o conjunto dessas três condições indicam que uma abordagem pedagógica direcionada para crianças entre 4 e 5 anos de idade pautada em recursos digitais e tecnológicos – no sentido que apresentamos na subseção 4.1 – é bem-vinda para enriquecer o aprendizado e garantir o contato das crianças com os aparatos que fazem parte do cotidiano social. 47 5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS A fim de atingir os objetivos aqui delineados, esta seção descreve os procedimentos metodológicos utilizados nesta pesquisa tendo em vista o propósito de garantir a lisura do processo de estudo, bem como a possibilidade de replicabilidade das etapas e ações adotadas por outros pesquisadores. Vale evidenciar que a base do referencial adotado para essa finalidade foi a descrita por Antonio Carlos Gil (2002; 2008). 5.1 Método de pesquisa Este estudo tem natureza qualitativa, e foi desenvolvido por meio de levantamento bibliográfico de materiais já publicados e de significativa importância para o tema elencado (seção 4 – Revisão de Literatura). Sobre isso, Vosgerau e Romanowski afirmam: Os estudos de revisão consistem em organizar, esclarecer e resumir as principais obras existentes, bem como fornecer citações completas abrangendo o espectro de literatura relevante em uma área. [...]. Muitas vezes uma análise das publicações pode contribuir na reformulação histórica do diálogo acadêmico por apresentar uma nova direção, configuração e encaminhamentos (VOSGERAU; ROMANOWSKI 2014, p. 167). O caráter deste estudo é exploratório, uma vez que é desenvolvido “com o objetivo de proporcionar visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fato” (GIL, 2008, p. 27), além de permitir ao pesquisador esclarecer ideias e conceitos “com vistas na formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores” (GIL, 2008, p. 27). Também caracteriza-se por ser descritiva, pois, segundo Gil (2008, p. 28): As pesquisas deste tipo têm como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações entre variáveis. [...] Dentre as pesquisas descritivas salientam-se aquelas que têm por objetivo estudar as características de um grupo [...]. São incluídas neste grupo as pesquisas que têm por objetivo levantar as opiniões, atitudes e crenças de uma população. 48 O método para o desenvolvimento desta pesquisa contou com duas fases ou etapas. A primeira etapa contou com a aplicação de questionários com perguntas estruturadas abertas e fechadas como procedimento de coleta de dados. Já a segunda etapa correspondeu à análise e interpretação dos dados e resultados obtidos. Para isso, foi utilizado o método de interpretação de dados, descrito por Antonio Carlos Gil (2008). Para o autor, à pesquisa qualitativa não cabe uma única forma de interpretação dos dados e nem pode ser comparada à interpretação quantitativa. Além disso, Gil (2008) assevera que tanto o processo de análise quanto de interpretação, na pesquisa de natureza qualitativa, estão intimamente relacionados e até contemplam a mesma seção em muitos relatórios. Com relação à interpretação, Gil (2008) afirma que é de suma importância a revisão de literatura. “Essa bagagem de informações, que contribuiu para o pesquisador formular e delimitar o problema e construir as hipóteses, é que o auxilia na etapa de análise e interpretação para conferir significado aos dados” (p. 178). Todas as etapas serão explicadas nas próximas subseções. 5.2 Caracterização: Contexto, Participantes da pesquisa e Procedimentos A rede de ensino do município de Bauru/SP conta com 66 (sessenta e seis) escolas de Educação Infantil (creche e pré-escola), que atendem crianças no período integral ou em meio período; denominadas como EMEIs (Escola Municipal de Educação Infantil – meio período) e EMEIIs (Escola Municipal de Educação Infantil Integral). Essas escolas são divididas em sete setores geográficos, que contemplam aproximadamente dez escolas. Cada um dos setores conta com a orientação de uma pessoa responsável pela supervisão. Levando em consideração o número elevado de docentes vinculados às escolas e visando otimizar o resultado da pesquisa, foi feito um sorteio aleatório de 4 (quatro) dos 10 (dez) setores, contemplando, portanto, cerca de 40 (quarenta) escolas. Para Gil (2008), é impossível considerar a totalidade de participantes quando se trata de uma pesquisa social. Por isso a importância de se “trabalhar com uma amostra, ou seja, pequena parte dos elementos que compõem o universo” (p. 89). 49 Nesta pesquisa, trabalhamos com a amostragem aleatória simples, que “consiste em atribuir a cada elemento da população um número único para depois selecionar alguns desses elementos de forma casual” (GIL, 2008, p. 91). Dessa forma, a amostragem aleatória simples foi realizada através do site sorteador.com, sendo contemplados os setores 2, 4, 6 e 7, confirme exemplo demonstrado na figura abaixo: Figura 9 – Sorteio de setores para aplicação do questionário (na imagem, setor 6) Fonte: Recorte do site sorteador.com (2022) Na sequência, a autora principal desta pesquisa entrou em contato com a Secretaria Municipal de Educação de Bauru/SP, respeitando todos os procedimentos e trâmites para executar tal ação, além da apresentação do Parecer Consubstanciado do CEP, nº 5.848.435. Assim, obtivemos autorização (ANEXO B) para a efetivação da coleta dos dados. Após a obtenção da autorização para coleta de dados junto aos professores do município de Bauru/SP, a autora conversou com as supervisoras dos setores sorteados via aplicativo de mensagens (WhatsApp), que orientaram sobre a forma de contato com as escolas e divulgação do questionário. Depois, para efetivar a aplicação do questionário, foi enviado às escolas sorteadas um endereço eletrônico com acesso ao formulário online (Google Forms), acompanhado de um convite em formato de imagem (Figura 10), além do Termo de Consentimento Livre e Esclarecimento (TCLE). O endereço 50 eletrônico foi encaminhado por e-mail às gestoras de cada escola, sendo este reencaminhado aos docentes. Figura 10 – Convite aos professores Fonte: elaborado pela autora (2023) A princípio, esperava-se contar com a ampla participação dos professores de Educação Infantil dos setores sorteados, mas não obtivemos o retorno esperado. Por isso, após aproximadamente um mês do acesso liberado ao questionário, iniciamos uma abordagem particular via WhatsApp com algumas gestoras e professoras, cuja autora principal tinha contato. Além disso, foram disponibilizadas duas cópias impressas do questionário em cinco escolas. Ao final, obtivemos 27 (vinte e sete) respostas – uma delas foi duplicada e, portanto, excluída do estudo, contando com 26 (vinte e seis) respostas no total (apenas um professor declarado homem e as demais foram professoras declaradas mulheres). Vale ressaltar que a segunda estratégia, as cópias impressas, não surtiram efeito e não foram respondidos, mas devido à primeira estratégia, o contato direto com gestoras e professoras via WhatsApp, foi viabilizar o retorno de algumas respostas. No entanto, compreende-se que os critérios estabelecidos por esta pesquisa acabaram limitando a quantidade de respostas, uma vez que muitos docentes ingressaram na rede de Bauru em meados de 2020, assim como a autora principal, e, portanto, não tiveram a experiência anterior à pandemia ou ainda não atuaram especificamente com turmas de Infantil IV e V entre os anos de 2019 a 2022. 51 5.3 Instrum