http://www.uem.br/acta ISSN printed: 1679-7361 ISSN on-line: 1807-8656 Acta Scientiarum Doi: 10.4025/actascihumansoc.v34i1.14186 Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 34, n. 1, p. 91-100, Jan.-June, 2012 O ensaísmo na historiografia brasileira Claudinei Magno Magre Mendes Departamento de História, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Av. Dom Antonio, 2100, 19806-900, Assis, São Paulo, Brasil. E-mail: mendes.claudinei@gmail.com RESUMO. Neste texto analisamos a questão do caráter ensaístico da historiografia brasileira da primeira metade do século XX. Examinamos esta questão em função do surgimento de uma nova tendência historiográfica relativa à colonização (Escola do Rio) que critica, dentre outros aspectos, o caráter ensaístico da historiografia. Considerando que a crítica expressa o modo como uma nova tendência rompe com a historiografia vigente, resolvemos examinar essa crítica para avaliar sua extensão. Para se promover a superação de determinada historiografia, é necessário compreendê-la em sua historicidade, isto é, as motivações que levaram historiadores a examinar a história de determinada maneira. Evidentemente, a crítica constitui um momento dessa superação. Mas, para haver uma ruptura radical, é necessária a compreensão histórica da historiografia criticada e não simplesmente a indicação de supostos equívocos, deficiências e falhas. Palavras-chave: historiografia brasileira, ensaio, colonização, escola do Rio. The question of the essays in brazilian historiography ABSTRACT. In this paper we analyze the question of character essayistic the historiography of the first half of the twentieth century. We examined this issue due to the emergence of a new trend on the historiographical colonization (School of Rio) who criticizes, among other things, the essay-like character in historiography. Whereas the criticism expressed how a new trend breaks with the existing historiography, we decided to examine this critical gauge. To promote the overcoming of a certain history is necessary to understand it in its historicity, that is, the motivations that led historians to examine the history of a given way. Of course, criticism is a moment of transcendence. But to be a radical departure is necessary to understand the historiography of historical criticism and not simply point their supposed mistakes, shortcomings and failures. Keywords: brazilian historiography, essay, colonization, school of Rio. Introdução Os estudiosos da historiografia brasileira costumam chamar a atenção para o caráter ensaístico de grande parte da historiografia brasileira do século XX, especialmente a da sua primeira metade. É verdade que, ainda que se costume caracterizar essa produção como ensaio, não existe uma preocupação com a definição dessa característica ou mesmo o esclarecimento do que viria a ser um ensaio. De um modo geral, essa definição encontra- se mais implícita do que explícita1. 1Moisés (2004, p. 146) procurou caracterizar o ensaio: “Ensaio. Lat. Exagium. Ação de pesar. Fr. essai; it. saggio; ing. essay; esp. ensayo; al. Essay, Versuch. O vocábulo ‘ensaio’, que significa ‘experiência’, ‘exame’, ‘prova’, ‘tentative’, designa um espécime literário de contorno indefinível. Como o próprio rótulo evidencia, torna-se praticamente impossível estabelecer com rigorosa precisão os limites do ensaio. Assim, os estudiosos do assunto tendem a reunir sob idêntica denominação obras contrastantes, ao passo que certos autores empregam abusivamente a palavra ‘ensaio’ no título dos seus livros. [...] Tomando por base as reflexões do moralista francês [Montaigne], pode- se assentar que o ensaio se caracteriza pelo ‘‘alto exercício da razão’ que - por isso mesmo que repele toda e qualquer ‘autoridade’ externa – busca, dentro da disciplina ‘interior’ da própria razão legisladora, tornar inteligíveis as coisas’; portanto, regem o ensaio ‘três idéias básicas: a) o ‘auto exercício das faculdades’; b) ‘a liberdade pessoal’; c) ‘o esforço constante pelo pensar original’”. Atualmente, o destaque do caráter ensaístico da historiografia brasileira vem acompanhado, com certa frequência, pelo lamento de que, nas últimas décadas, os historiadores abandonaram a preocupação com uma apreensão mais global da história do Brasil. Segundo esses lamentos, os historiadores contemporâneos estariam menos afeitos ao ensaio macrointerpretativo, preferindo as monografias técnicas, pontuais e específicas. Axt e Schüller (2004, p. 13), por exemplo, sintetizam essa postura muito bem: De fato, a tradição ensaística brasileira, tão vigorosa até o final da primeira metade do século 20, tendeu a entrar em declínio à medida que se profissionalizava o ofício do historiador, na esteira da difusão dos cursos de pós- graduação em nossas universidades. A historiografia elaborada na contemporaneidade tende a produzir menos esforços de síntese do processo histórico nacional, pretendendo-se mais monográfica, mais atenta ao tratamento das fontes e às questões de método. O nosso formalismo acadêmico de hoje nos 92 Mendes Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 34, n. 1, p. 91-100, Jan.-June, 2012 proporciona mais confiança na cientificidade do nosso ofício, mas talvez tenhamos perdido um pouco daquela irreverência criativa que produziu interpretações do Brasil associadas a projetos de nação. Se o caráter ensaístico da historiografia brasileira foi visto como algo positivo por uma parte de nossos historiadores, principalmente por se encontrar associado aos projetos de nação, ele foi encarado por outro segmento como uma fraqueza, justamente por se tratar de estudos generalizantes que não teriam apreendido as especificidades das diferentes partes e/ou épocas do Brasil. Para os historiadores que se articulam em torno do grupo que se autodenomina Antigo Regime nos Trópicos (ART), por exemplo, o caráter ensaístico da historiografia brasileira constitui, se não uma deficiência, ao menos uma limitação. É provável que esse grupo seja atualmente o principal crítico do caráter ensaístico da historiografia brasileira. Esse grupo iniciou sua trajetória pelas críticas feitas por Ciro Cardoso a Caio Prado e Fernando Novais ainda na década de 1970, vindo a se constituir uma nova tendência dentro da historiografia brasileira relativa à colonização2. Principalmente após suas observações aos dois historiadores nos anos de 1970 e 1980, apareceram, no decênio seguinte, seus primeiros frutos, em particular a publicação dos livros de João Fragoso (1998) e de Manolo Florentino (1997), inicialmente teses de doutorado – a primeira orientada pela profa. Maria Yedda Linhares e a segunda pelo próprio Cardoso3. Ainda nos anos 1990, e, principalmente, na década seguinte, foram publicados diversos livros, geralmente obras coletivas, em que se procurou colocar em prática novas propostas teóricas e metodológicas para o estudo da época colonial. É verdade que entre as primeiras críticas feitas por Cardoso e sua proposta de análise da colonização e mesmo os primeiros livros de Fragoso e de Florentino e a nova produção historiográfica há diferenças significativas, nem sempre explicitadas. A distinção mais importante refere-se ao campo em que as análises são feitas. Cardoso, para contrapor-se àquilo que denominou excessiva ênfase no comércio externo, propôs igualmente o estudo das estruturas internas das colônias americanas, única maneira, a seu ver, de explicar suas distintas trajetórias. Atualmente, a nova tendência ampliou o campo de estudo, valendo-se de dois conceitos que a caracterizam em particular, Império Português e Antigo Regime. Uma breve menção ao fato de a nova tendência historiográfica procurar superar Caio Prado e Cardoso encontra-se na introdução do livro 2Para um estudo mais detalhado desta questão, ver os seguintes textos de Cardoso (1985, 1987, 1988, 1990). 3A tese de Fragoso foi defendida em finais de 1990; a de Florentino foi defendida em 1991. Além desses livros, vide Fragoso e Florentino (2001). Na trama das redes. Tratando do livro O Antigo Regime nos trópicos, seus autores observam: Na época, tal trabalho surgiu com a pretensão de contribuir para as pesquisas de ponta na área de conhecimento então chamada de história colonial brasileira. Na verdade, pretendia-se ultrapassar – sem negar a sua importância – o debate historiográfico que trata da dependência externa versus a excessiva ênfase no caráter único e singular da sociedade colonial- escravista. Para tanto, buscou-se entender a história da América lusa entre os séculos XVI e XVIII, tendo como pano de fundo a dinâmica imperial portuguesa (FRAGOSO; GOUVÊA, 2010, p. 13). O primeiro conceito, Império português, constitui o contexto em que se inserem as novas pesquisas. Rompe-se, com isso, com as duas propostas anteriores. Em primeiro lugar, o estudo rompe com a historiografia que considera as questões no interior da relação entre metrópole e colônia. Também se verifica uma ruptura com a proposta de, sem desconsiderar essa relação, fazer incidir a análise nas estruturas internas da colônia, como havia proposto Cardoso. Desse modo, o espaço imperial é o campo de estudo da nova historiografia brasileira. Importante destacar que não se trata de uma ampliação do contexto da análise, mas de um novo modo de conceber a história. Como salientam os organizadores do livro O Antigo Regime nos trópicos, [...] trata-se de propor uma nova leitura historiográfica que não se limite a interpretar o ‘Brasil-Colônia’ por meio de suas relações econômicas com a Europa do mercantilismo [...] (FRAGOSO et al., 2001, p. 21). Também no prefácio de Nas Rotas do Império, assinado pelos organizadores do livro, encontra-se o que se pretende com a utilização do conceito de Império português. Segundo esses autores, esse estudo viria em substituição à visão centrada na relação metrópole-colônia. A utilização sistemática do conceito de império, em substituição a uma visão centrada unicamente na relação metrópole-colônia, pode ser considerada uma das principais transformações da historiografia brasileira nos últimos anos. Não se trata, é claro, do simples reconhecimento da existência de um império português, mas sim de sua incorporação efetiva como um dos mecanismos explicativos da realidade colonial. O próprio conceito, porém, transformou-se. Longe de ser visto como um todo homogêneo comandado por uma poderosa metrópole, o Império português é hoje percebido como um conjunto heterogêneo de possessões ultramarinas, cuja relação com a metrópole variava não só conforme as conjunturas, mas também O ensaio histórico como posicionamento político 93 Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 34, n. 1, p. 91-100, Jan.-June, 2012 de acordo com os variados processos históricos que constituíram essas mesmas possessões. Tais transformações obrigam o pesquisador a uma apreensão mais complexa do que foi esse “mundo português’’ (FRAGOSO et al., 2006, p. 9). O segundo conceito utilizado pela nova tendência historiográfica, Antigo Regime, tem por objetivo afirmar que as relações sociais que se travavam no interior do Império português não eram diretamente econômicas. Antes, elas seriam mediadas pela política. Essas conexões comerciais eram, sem dúvida, atravessadas pela política. Os negócios e mercados imperiais eram submetidos às regras do Antigo Regime; leia-se, entre outras coisas, ao complexo sistema de doações e de mercês régias. A expansão e a conquista de novos territórios permitiram à coroa portuguesa atribuir ofícios e cargos civis e militares, conceder privilégios comerciais a indivíduos e grupos, dispor de novos rendimentos com base nos quais se distribuíam pensões. Tais concessões eram o desdobramento de uma cadeia de poder e de redes de hierarquia que se estendiam desde o reino, propiciando a expansão dos interesses metropolitanos, estabelecendo vínculos estratégicos com os colonos (FRAGOSO et al., 2001, p. 23). Na introdução do livro Na trama das redes encontramos uma explicitação maior do uso desse conceito: Desde 2001, a importância de uma dinâmica imperial – resultado da constante interação entre todas as áreas que compunham o império português no período – na formação da sociedade colonial da América portuguesa tem sido enfatizada (FRAGOSO; GOUVÊA, 2010, p. 15). Foram os historiadores do ART que retomaram a questão do ensaísmo da historiografia brasileira. Com efeito, uma das suas críticas à historiografia então vigente diz respeito ao que denominam de caráter ensaístico. Na entrevista de abertura do livro A economia colonial brasileira (séculos XVI-XIX), por exemplo, seus autores afirmam que as pesquisas de base, que se verificaram após a disseminação dos cursos de pós-graduação, iniciada na década de 1970, fato que teria levado à efetiva profissionalização dos historiadores, tenderam “[...] a romper com ‘a tradição ensaística da historiografia nacional’” (FRAGOSO et al., 1998, p. 2). Também na introdução de Na trama das redes, seus organizadores observam que o atual debate em torno do Brasil colonial, “[...] ao contrário de outros no passado, não possui tão somente um caráter ensaísta” (FRAGOSO; GOUVÊA, 2010, p. 17). Em contraposição ao caráter ensaístico da historiografia brasileira, esses historiadores assinalam que praticam uma história fundamentada em uma farta documentação, recolhida em suas pesquisas feitas em arquivos no Brasil e no exterior. Há mesmo, em seus textos, a insistência em afirmar que suas interpretações encontram-se respaldadas em uma longa e minuciosa investigação arquivística, documental. Por se tratar de pesquisas fundadas em extensa documentação entendem que seus trabalhos não possuem caráter generalizante. Na introdução já mencionada de Na trama das redes, na sequência da passagem acima citada, encontramos a seguinte afirmação: A profissionalização do ofício de historiador fez com que os argumentos e as teses interpretativas estejam mais fundamentados em sólidas pesquisas, empreendidas em diversos arquivos e por meio de diferentes fontes. Além disso, há tempos o historiador dispõe de uma miríade de técnicas e métodos de pesquisa (FRAGOSO; GOUVÊA, 2010, p. 17). Assinale-se que também não encontramos, entre os novos historiadores, uma preocupação em definir ensaio ou caráter ensaístico da historiografia brasileira. Todavia, é possível, por oposição, levando-se em conta a caracterização que fazem da sua prática historiográfica, isto é, os aspectos que definiriam a nova historiografia, obter uma definição aproximada do que entendem por ensaio ou caráter ensaístico. A primeira característica, já tratada anteriormente, é o fato de a nova prática historiográfica sustentar-se em uma ampla base documental, fato que a historiografia até então vigente não teria feito. Segundo os novos historiadores, a partir de uma documentação limitada, muitas vezes sem pesquisa em arquivos, no Brasil e no exterior, eram feitas ilações generalizantes. A segunda característica, também tratada anteriormente, diz respeito ao campo de estudo. A historiografia vigente considera seu objeto de análise no interior da relação metrópole-colônia, ao passo que a nova historiografia concebe-o no interior do Império português. Mercadorias e homens circularam por todo Império e, por conseguinte, seria impossível compreender a América portuguesa no estreito vínculo dela com a metrópole. Assim, colocada a questão, o objetivo deste artigo é, primeiramente, entender as razões do caráter ensaístico assumido pela historiografia brasileira do século XX. A nosso ver, ele constitui um tema importante para se compreender historicamente essa produção historiográfica. O segundo objetivo é examinar o conteúdo da crítica feita pela nova historiografia. A razão disto deriva de que, para nós, a crítica feita por uma nova proposta historiográfica constitui também um caminho para se examinar esta última. Com efeito, o 94 Mendes Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 34, n. 1, p. 91-100, Jan.-June, 2012 modo como uma nova tendência se coloca diante da historiografia vigente diz respeito – e muito – ao próprio modo como ela se pensa, se explica e concebe a história. Antes de entrarmos na análise do caráter ensaístico da historiografia brasileira é importante assinalar ser ele mais visível nos textos da primeira metade do século XX do que nos da segunda. Entretanto, apesar de as obras da segunda metade, mais ou menos até a década de sessenta, não possuírem todas as características da historiografia da primeira época, elas mantêm alguns dos seus principais traços. Consideremos, pois, o caráter ensaístico da historiografia brasileira4. O ensaísmo na historiografia brasileira Desde as primeiras décadas do século XX e até, pelo menos, a década de 1960, de um modo geral, os estudos sobre a história brasileira, particularmente os da época colonial, têm entre suas principais características a não limitação de análise a esse período histórico. Antes, caracterizam-se por serem estudos que buscam compreender o processo histórico brasileiro em seu conjunto. Mais: são interpretações cujo objetivo principal é explicar o Brasil da época de seus autores. O pressuposto é que o presente é explicado pelo passado. Por essa razão, era preciso fazer uma análise da época colonial para se compreender o Brasil do presente. Alguns historiadores consideraram mesmo ser necessário ir além, abarcando a própria história de Portugal. Do seu ponto de vista, para se entender o Brasil, era preciso estudar as instituições portuguesas que haviam sido transplantadas para o solo brasileiro por meio da colonização. Independentemente disso, todavia, todos os historiadores concordam que era o modo como havíamos nos constituído como colônia que explicava nosso presente. É verdade que cada um deles tem um entendimento particular de colônia e de colonização, interpretando o período colonial de determinada maneira. Mas, para todos eles, encontrar-se-ia nesse período a chave para explicar as vicissitudes do Brasil contemporâneo. Não é casual, inclusive, que seus livros tenham no título, de um modo geral, nomes que indiquem isso, como Formação, Raízes etc. É o caso de Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior (1907-1990), Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), e Formação econômica do Brasil (1959), de Celso 4Prado (2000, p. 443), apoiando-se em outros autores mais recentes, também caracteriza os estudos históricos que se faziam por ocasião do lançamento de Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, em 1959, como ensaísmo de timbre econômico-social, geralmente de caráter marxista. Furtado (1920-2004). Antes dessas obras, em 1911, Oliveira Lima (1867-1928) já havia publicado Formação histórica da nacionalidade brasileira. Nelson Werneck Sodré (1911-1999), por sua vez, publicou, em 1944, Formação da sociedade brasileira e, em 1962, Formação histórica do Brasil. Quando o vocábulo Formação não aparece no título, encontra-se, ao menos, no subtítulo. É o caso de Casa-grande & senzala. Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal (1933), de Gilberto Freyre (1907-1987), e Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro (1958), de Raymundo Faoro (1925-2003). Mais, se ele não se encontra no título ou subtítulo do livro, encontramo-lo nos títulos dos capítulos. Como exemplo, podemos citar Populações Meridionais do Brasil (1920), de Oliveira Vianna (1883-1951). Entretanto, mesmo quando o vocábulo não aparece em qualquer um desses lugares, o pressuposto dos autores é que a explicação para o Brasil do presente residiria no seu passado colonial. Dentre essas obras podemos citar História econômica do Brasil (1937), de Roberto Simonsen (1889-1948). Alguns autores já observaram o fato de o caráter ensaístico da historiografia brasileira vir acompanhado do conceito de Formação. É o caso de Arantes (1997). Caracterizando por Formação as linhas evolutivas mais ou menos contínuas de um quadro social, Arantes (1997, p. 11) observa que isso indica uma verdadeira obsessão nacional “[...] a insistente recorrência do termo nos principais títulos da ensaística de explicação do caso brasileiro [...]”. Como exemplo arrola Formação do Brasil contemporâneo, Formação econômica do Brasil e Formação do patronato político brasileiro, acrescentando, [...] sem contar que a mesma palavra emblemática designa igualmente o assunto real dos clássicos que não a trazem enfatizada no título, como Casa-grande & senzala e Raízes do Brasil (ARANTES, 1997, p. 11). Conclui o autor que, Tamanha proliferação de expressões, títulos e subtítulos aparentados não se pode deixar de encarar como a cifra de uma experiência intelectual básica, em linhas gerais mais o menos a seguinte: na forma de grandes esquemas interpretativos em que se registram tendências reais da sociedade, tendências às voltas, não obstante, com uma espécie de atrofia congênita que teima em abortá-las, apanhava-se naquele corpus de ensaios, sobretudo, o propósito coletivo de dotar o meio gelatinoso de uma ossatura moderna que lhe sustentasse a evolução. Noção a um tempo descritiva e normativa, compreende-se além do mais que o horizonte descortinado pela idéia de formação corresse na direção do ideal de civilização relativamente integrada – ponto de fuga O ensaio histórico como posicionamento político 95 Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 34, n. 1, p. 91-100, Jan.-June, 2012 em todo espírito brasileiro bem formado (ARANTES, 1997, p. 11-12). Além dessa característica, há outra que geralmente singulariza essas obras: é que menos do que histórias elas pretendem assinalar as características peculiares da história do Brasil e suas tendências em relação ao futuro. Para se compreender as características do ensaio, como se praticou na historiografia brasileira, faremos um contraponto entre ele e os livros de história. Distinção entre ensaio e história Entre o ensaio e o livro de história5 existem diferenças fundamentais, ainda que tenham por objeto o processo histórico. O ensaio pretende explicar a história em seu conjunto, assinalando suas características principais, não se detendo em seus aspectos particulares ou em seus diferentes momentos. No caso do ensaio relativo ao processo histórico brasileiro, o pressuposto é que o passado colonial constitui sua chave explicativa. É verdade que o passado é concebido de diferentes maneiras pelos autores, fato que conduz cada um a interpretar a história do Brasil de modo distinto. Mas, apesar disso, para seus autores, o presente se explicaria pelo passado - a época colonial explicaria o Brasil contemporâneo. Em Formação, Caio Prado afirma que a “[...] interpretação do Brasil de hoje [...]” era o que realmente interessava (PRADO JÚNIOR, 1942, p. 9). Muitas vezes, no entanto, o ensaio abarca não apenas o passado e o presente, mas o próprio futuro. Nesses casos, com base na linha de desenvolvimento do passado e do presente, seus autores procuram apontar as tendências da história em relação ao futuro. Esse futuro deve ser compreendido, no mais das vezes, como o processo que se desenrola no presente. Em Raízes do Brasil, por exemplo, Holanda procura explicar a natureza da revolução que estava em curso à época em que publicou sua obra. Ao contrário do ensaio, o livro de história propriamente dito pretende narrar ou descrever um determinado processo histórico verificado no passado. É verdade que, em alguns livros, a análise chega até o presente. No entanto, a história é apresentada de maneira cronológica, acompanhando-se, passo a passo, o processo histórico. Somente ao final do livro é que se tem uma visão abrangente da história. 5Como livro de história estamos nos referindo a Varnhagen, ainda no século XIX, e os autores que, no século XX, mantiveram as principais características do autor de História geral do Brasil: Hélio Vianna, Rocha Pombo e Pedro Calmon, entre outros. Capistrano de Abreu, por seu turno, elaborou uma história valorizando mais a interpretação do que a exposição dos fatos. Pode ser considerado uma espécie de intermediário entre a história e o ensaio. No ensaio, por seu turno, por meio de um golpe de vista, procura-se assinalar as características gerais da história de determinado país, oferecendo ao leitor uma visão de conjunto dela. Para tanto, o ensaio está organizado em torno de uma tese que seu autor busca demonstrar e que, geralmente, aparece no início do texto. O livro de história fica preso aos fatos na medida em que considera o processo histórico em sua cronologia. O ensaio, por sua vez, é mais livre. É verdade que ambos se baseiam em documentos e textos. Mas, o livro de história precisa citar os fatos e acontecimentos, manter-se rente a eles, ao passo que no ensaio os mesmos fatos são mencionados em poucas oportunidades, apenas para comprovar determinadas afirmações de caráter mais geral e teórico. Sob este aspecto, o ensaio comporta uma interpretação mais geral dos fatos, não se detendo nas particularidades e nos episódios singulares. Desse modo, podemos afirmar que, enquanto o livro de história constitui uma interpretação do passado fundada nos fatos e acontecimentos, o ensaio busca descrever as tendências gerais da história. Como assinalam muitos dos autores de um ensaio, busca-se, principalmente, expor nele a linha mestra ou o fio condutor do processo histórico. Em suma, no ensaio se formula uma espécie de filosofia da história. Enquanto o livro de história se preocupa, geralmente, mais com o passado, o ensaio, ainda que se ocupe dele, tem os olhos postos mais no presente e no futuro. Na verdade, ele faz um enlace entre passado, presente e futuro. Esse enlace constitui, inclusive, uma das principais características da ensaística da primeira metade do século XX. São obras que abarcam o conjunto da história do Brasil, formulando uma interpretação geral dela. Em Formação da sociedade brasileira, Sodré deixa patente sua intenção ao escrever um ensaio: Escrevendo esta Formação da Sociedade Brasileira não tive outra intenção que a de oferecer ao leitor comum, dentro das possibilidades de um levantamento tão sumário, uma visão de conjunto de como viveu nosso povo, até os dias que precederam a crise de 1929 (SODRÉ, 1944, p. 5). De um modo geral, o ensaio, nos moldes como foi praticado no Brasil, divide-se em três partes. A primeira compreende o estudo passado, no caso, a colonização do Brasil, momento em que teriam sido lançados os fundamentos da história do Brasil. Como salientamos, a maneira como se caracteriza a colonização constitui a base sobre a qual se ergue a interpretação da história do Brasil em seu conjunto. Em outras palavras, o passado é a pedra de toque dessa interpretação. 96 Mendes Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 34, n. 1, p. 91-100, Jan.-June, 2012 A segunda examina o presente (a época do autor), que é explicado, fundamentalmente, pelo passado colonial. Os problemas do presente e que deveriam ser então solucionados são considerados heranças do passado, isto é, apesar das mudanças verificadas ao longo da história, os problemas criados no passado ainda persistiriam. Por fim, a terceira trata do futuro, que se desenha a partir da solução dos problemas do presente. Muitas vezes, é verdade, essa parte se encontra subentendida. Em Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado, percebe-se, pelo título, que seu objetivo era expor como o Brasil contemporâneo, ou seja, o Brasil da sua época, havia se formado ou se constituído. Em função disso, o autor estuda a colonização e o que ela produziu ao longo de três séculos6. Assinala, em seguida, que, durante o período compreendido entre a Independência e a data da publicação do livro, o Brasil havia se modificado, mas se tratava de um processo que se mantinha no presente. Por isso, assim define o Brasil contemporâneo: O Brasil contemporâneo se define assim: o passado colonial que se balanceia e encerra com o século XVIII, mais as transformações que se sucederam no decorrer do centênio anterior a este e no atual (PRADO JÚNIOR, 1942, p. 6). Adverte que se tratava de um processo não concluído. “Mas este novo processo histórico se dilata, se arrasta até hoje. E ainda não chegou a seu termo” (PRADO JÚNIOR, 1942, p. 6). Acreditamos que um dos autores mais expressivos para se entender o caráter ensaístico da produção historiográfica brasileira seja Caio Prado, motivo pelo qual examinaremos, de maneira comparativa, duas das suas principais obras, Evolução política do Brasil e Formação do Brasil contemporâneo. A questão do ensaio em Caio Prado Júnior Em 1942, Caio Prado Júnior publica Formação do Brasil contemporâneo, considerado por muitos historiadores e estudiosos seu livro mais importante. Nele expôs, pela primeira vez, com todos os seus elementos, a interpretação da história do Brasil que o consagrou e que nunca alterou ou abandonou em seus fundamentos. Antes, reafirmou-a nos livros e 6Acreditamos, mesmo, que este tenha sido o principal motivo que levou Caio Prado a abandonar o projeto, iniciado com Formação, de escrever outros livros, na sequência deste, abarcando a época imperial e a republicana. De certa maneira, em Formação, Caio Prado apresentou, em linhas gerais, a interpretação geral da história do Brasil. Também é verdade que este autor realizou, mais ou menos, este projeto com História econômica do Brasil. Neste livro, com base nas linhas gerais traçadas em Formação, ele analisou a história do Brasil até a Revolução de 30. Posteriormente, publicou outras edições em que acrescentou capítulos atualizando a obra, sempre mantendo a linha geral de sua interpretação da história do Brasil. textos seguintes, fazendo dela a perspectiva com que examinou o processo histórico brasileiro em seus diferentes momentos7. Ainda que seja considerado um livro dedicado à época colonial, Caio Prado não se restringe a ela. É verdade que em sua quase totalidade o livro diz respeito a esse período. Não é por casualidade que tem por subtítulo Colônia. Mas, apesar disto, seu autor não estava interessado direta e unicamente na época colonial. Analisa tendo por pressuposto que ela se constituía a base da formação do Brasil contemporâneo. Entendia que o período colonial era a chave para se compreender o Brasil de sua época. Em decorrência, ainda que em traços bastante rápidos, formula uma espécie de teoria da história do Brasil, isto é, elabora uma interpretação do conjunto do processo histórico brasileiro, que abrangia desde os inícios da colonização até a época contemporânea. Essa teoria encontra-se expressa, como veremos posteriormente em maiores detalhes, no postulado de que a história do Brasil possui uma linha mestra – portanto, que a explicava – que se configurava na transição de uma economia colonial para uma economia nacional8. É importante observar que seus estudiosos não levaram isso em conta [vide, por exemplo: Novais (2005), Reis (1999), Ricupero (2000), Rêgo (2000), Santos (2001)]. Restringiram-se, no mais das vezes, à formulação de Caio Prado acerca da colonização, encarando-o como uma espécie de historiador da época colonial. Com isso isolaram seu modo de conceber a época colonial, não percebendo que ele faz parte de uma questão maior, a própria interpretação da história do Brasil em seu conjunto. Nada mais incorreto, assim, do que o considerar uma espécie de historiador da colonização. A rigor, seu entendimento de colonização somente ganha significado se considerado como parte integrante da sua interpretação do conjunto da história do Brasil. Por conter uma teoria da história do Brasil, o livro Formação deve ser considerado um ensaio e não um livro de história. É verdade que muitos estudiosos, baseando-se inclusive no próprio autor, caracterizaram Formação como um livro de história, considerando Evolução política do Brasil, obra de 1933, em contrapartida, um ensaio. O próprio autor deu ensejo a isso, ao definir, no prefácio, Evolução como um simples ensaio, entendendo por isso uma síntese da 7Para um estudo da obra de Caio Prado, ver Mendes (2008). 8Ainda que Caio Prado tenha deixado claro o que entendia por economia colonial e economia nacional, a historiografia deu-lhe ao segundo conceito um significado que não se encontra nos textos deste autor. Por economia colonial, Caio Prado entendia uma produção voltada para o mercado exterior, para o atendimento de necessidades alheias; definia economia nacional como a produção voltada para o mercado interno, para o atendimento das necessidades da população nela envolvida (PRADO JÚNIOR, 1954; 1942). Para o entendimento de economia nacional como nação, vide Ricupero (2000). O ensaio histórico como posicionamento político 97 Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 34, n. 1, p. 91-100, Jan.-June, 2012 evolução política do Brasil. Para elaborá-la, como ele próprio indicou, escolheu, dentre os inúmeros fatos que comporiam a história do Brasil, a resultante média deles, “a linha mestra em torno de que se agrupa[ria]m estes fatos” (PRADO JÚNIOR, 1933, p. 7). Alertou mesmo para os inconvenientes desse procedimento, destacando que os mesmos não existiriam caso “[...] se tratasse de uma história e não de uma síntese” (PRADO JÚNIOR, 1933, p. 7). Assim, Caio Prado caracterizou Evolução como uma síntese, na qual procurou apresentar somente os elementos essenciais que permitiriam ao leitor compreender o processo histórico brasileiro, desde a colonização até a proclamação da República. A nosso ver, no entanto, Evolução seria antes uma história do Brasil, dada em seus traços mais gerais, uma espécie de síntese e não propriamente um ensaio. A comparação entre Evolução e Formação deixa isso claro. Em Evolução, Caio Prado analisa o processo histórico. Divide, por exemplo, a época colonial em duas fases. Na primeira, que vai dos primórdios da colonização até a segunda metade do século XVII, havia uma concordância entre os interesses metropolitanos e os grandes proprietários de terra, que dominavam na colônia econômica e politicamente. A partir de então se verifica o início de um processo de diferenciação de interesses, com a ascensão dos comerciantes, que se tornam classe dominante tanto econômica quanto politicamente. Em Formação, por seu turno, mesmo sendo um livro dedicado inteiramente à época colonial, ao contrário de Evolução, cuja primeira edição abarca a história até a proclamação da República, a economia e sociedade são analisadas em seus aspectos gerais, sem considerar o processo histórico em suas particularidades. Aliás, como destaca o autor, a análise está centrada no período compreendido entre finais do século XVIII e início do XIX. Trata-se, do seu ponto de vista, de um momento estratégico, pois, ao mesmo tempo, permite olhar para o passado e ver o que foi a colonização, de um lado; de outro, possibilita apreender o processo que se iniciara naquela circunstância e que ainda se desenrolava no momento da publicação do livro. Consideremos agora, pois, Formação, para compreender as razões pelas quais entendemos tratar-se de um ensaio. Para Caio Prado, a colônia se caracteriza por ser uma produção voltada para o mercado externo. Segundo ele, esta característica ainda predominava em sua época, estando na base dos problemas que os brasileiros enfrentavam então. Eram problemas que derivavam da maneira como a colonização do Brasil havia se processado, cujos caracteres estavam presentes na economia brasileira do século XX. Do seu ponto de vista, a grande questão política era superar esse caráter colonial da economia brasileira por meio do estabelecimento de uma economia nacional, processo que estaria em andamento: “Numa palavra, não completamos ainda hoje a nossa evolução da economia colonial para a nacional” (PRADO JÚNIOR, 1942, p. 7). Ele próprio caracteriza esse conjunto de circunstâncias como “linha mestra” do processo histórico. O estabelecimento da economia nacional constituía, por conseguinte, uma tendência que vinha se desenvolvendo desde o início do século XIX, mas que somente em meados do XX se colocara como uma questão passível de solução. Estávamos, em sua opinião, à época da publicação de Formação, atravessando a última etapa da transição da economia colonial para a economia nacional, processo que exigia uma intervenção política para se completar. Devemos, antes de tudo, atentar para um fato importante. Podemos supor que a forma como a colonização é compreendida determina uma explicação do presente. Entretanto, ainda que nos ensaios a questão assim apareça, é o oposto que ocorre. Não é a interpretação do passado que condiciona o modo de conceber o presente. Antes, é o posicionamento político dos autores diante das questões de sua época, portanto, do presente, que os leva a ter dada percepção do passado, em nosso caso, da colonização. Com isso, é a ‘solução’ que os historiadores davam às questões do presente que os levava a considerar o passado de dada maneira. Como bem observou o historiador francês François Guizot (2008), o passado muda com o presente. Pretendia com isso assinalar que, de acordo com as questões do presente, o passado é encarado de determinada maneira. É o historiador, homem do seu tempo, com suas opções políticas, com sua visão de mundo, que, munido de questões colocadas por em sua época, se volta para o passado e o analisa. Duas constatações devem ser feitas. Primeiro: alterando-se as questões do presente, ao surgirem novas, o modo de compreender o passado também se altera. Segundo: cada autor, colocando-se diante das questões do seu tempo de uma maneira determinada, considera, necessariamente, o passado de um modo próprio, em consonância com seu posicionamento político. Deriva disso o fato de, em uma mesma época, podermos verificar várias concepções distintas do passado colonial. Entretanto, independentemente do modo como os autores se posicionaram diante das questões de sua época e, por consequência, interpretaram a época colonial de determinada maneira, eles possuem algo em comum. É exatamente esse ponto em comum 98 Mendes Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 34, n. 1, p. 91-100, Jan.-June, 2012 que os leva a elaborarem seus livros na forma de ensaio. O ensaio como posicionamento político Os autores do século XX até os anos 1960, mais ou menos, com ênfase nos da primeira metade dessa centúria, tinham em comum enfrentar uma questão fundamental de sua época: o socialismo como uma alternativa ao capitalismo e o marxismo como doutrina política. Posicionaram-se contrários a eles, ainda que muitos se colocassem na condição de socialistas, comunistas ou mesmo marxistas. Essa oposição foi feita, muitas vezes, de forma implícita, indireta. A oposição ao socialismo e ao marxismo fez-se por meio de textos cuja questão central era combatê- los. Sob esse aspecto, o ensaio constituiu a forma adequada para alcançar esse objetivo. Com efeito, diante da formulação que apontava o socialismo como o futuro da sociedade, isto é, como a forma histórica de superação do capitalismo, como situava o marxismo e os próprios acontecimentos, principalmente depois da revolução russa, os autores precisavam defender a tese de que a história brasileira não caminhava na direção do socialismo. Fizeram-no de diferentes maneiras, é verdade. Mas, qualquer que fossem elas, os autores tinham de elaborar uma apreciação geral da história do Brasil – ou uma interpretação dela – que abarcasse passado, presente e futuro, com o objetivo de negar a tendência para o socialismo. Ou, ao menos, protelá- lo para um futuro distante, insistindo na necessidade de se atravessarem algumas etapas intermediárias. Os teóricos do Partido Comunista e Caio Prado, por exemplo, representam muito bem essa tendência. Para o Partido, era necessário fazer uma revolução democrático-burguesa, liberar o capitalismo dos entraves feudais ou semifeudais por meio de uma reforma agrária para, então, tendo o capitalismo se desenvolvido, lutar pelo socialismo. Para Caio Prado, a tarefa política da atualidade era o estabelecimento da economia nacional, completando a transformação que, segundo sua interpretação, se desenrolava desde os primórdios do século XIX. O principal argumento de muitos desses autores para fundamentar sua tese eram as particularidades da história brasileira. Dito de outra maneira, eles afirmavam que as formulações do marxismo, que serviam para a Europa, não eram adequadas ao Brasil justamente pelo fato de este possuir uma história que se diferenciava completamente da europeia. De certa maneira, trata-se de argumento perfeitamente válido. Com efeito, a história de cada país tem suas particularidades, que a distingue dos demais. No entanto, em nosso caso, esse argumento servia apenas para justificar uma interpretação da história que, sob o pretexto de fundar-se nessas particularidades, introduzia uma visão que se opunha frontalmente a qualquer proposta de socialismo ou, no mais das vezes, fundamentava uma concepção reformista ou etapista da história. No último caso, não se nega diretamente o socialismo, mas se afirma que ele era algo que colocaria em um futuro não muito próximo. Antes, seria preciso percorrer algumas etapas ou proceder a algumas reformas na sociedade. O ensaio é, por conseguinte, o meio apropriado para esse desígnio. A forma ensaística explica-se, assim, pelo posicionamento político dos historiadores; ela é adequada à posição política contrária ao socialismo e ao marxismo. Sob este aspecto, trata-se de uma interpretação da história que tem uma tese a defender. Vemos, então, que a questão política tem precedência sobre as demais no que diz respeito à elaboração dessas obras. Consideremos Caio Prado para melhor ilustrar isto. Caio Prado Júnior elaborou seu livro Formação em configuração de ensaio justamente com o objetivo de oferecer uma interpretação da história brasileira que se contrapusesse ao marxismo, que afirma ser o socialismo a forma histórica de superação do capitalismo. Formulou, então, uma interpretação da história do Brasil que postulava que o traço distintivo do processo histórico brasileiro era a constituição de uma economia nacional e não o socialismo. Distinguia-o, diferenciando-o, por exemplo, do Partido Comunista, era a tese de que o capitalismo também não era possível no Brasil. Afirmou que, nas condições em que o país se encontrava, o socialismo era prematuro e o capitalismo uma proposta extemporânea, formulação que apresentou em Diretrizes para uma política econômica brasileira, obra de 1954. Postulou que economia colonial/produção voltada para o mercado externo e economia nacional/produção voltada para o mercado interno eram os dois polos entre os quais se moveria a história do Brasil. Como destacou, a transformação da economia colonial em economia nacional era o fio condutor ou a linha mestra da história do Brasil. Segundo este autor: Supor por exemplo que seja possível no Brasil e nas circunstâncias atuais um regime socialista com a entrega a órgãos estatais da responsabilidade pela direção e manejamento total das forças produtivas do país, é se não fantasia de visionário, certamente maneira disfarçada de entravar as reformas que desde já se impõem e que não precisam aguardar um socialismo ainda irrealizável (PRADO JÚNIOR, 1954, p. 235-236). O ensaio histórico como posicionamento político 99 Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 34, n. 1, p. 91-100, Jan.-June, 2012 Um pouco mais adiante: Essas forças não são ainda ou não são, sobretudo, as do socialismo que começa apenas a esboçar-se entre nós e precisará aguardar ainda, para amadurecer, um largo processo das forças produtivas que não será possível sem a preliminar destruição do sistema colonial (PRADO JÚNIOR, 1954, p. 236). Como podemos observar, verificamos duas questões anteriormente assinaladas. Primeiro, a oposição ao socialismo, considerada uma proposta prematura para as condições do Brasil. Segundo, a oposição não frontal, postergando-se a proposta de socialismo para o futuro remoto. Antes, era preciso superar certas etapas para, então, propor-se o socialismo. Por fim, assinalamos anteriormente que o caráter ensaístico da historiografia brasileira é mais visível na primeira metade do século XX. Com efeito, aos poucos, este caráter ensaístico vai perdendo sua força. Isto aparece claramente no livro Formação histórica do Brasil, de Sodré, do início da década de 1960. Sodré acompanha, em linhas gerais, o processo histórico brasileiro, tratando dos seus temas maiores. No entanto, ainda que essa obra se aproxime de uma história do Brasil, ela guarda uma característica do ensaio propriamente dito. Defende o autor, indicando as particularidades da história brasileira, que existiriam etapas a serem transpostas antes de se colocar a questão do socialismo (SODRÉ, 1967). Conclusão Ao longo do texto procuramos chamar a atenção para o fato de os historiadores brasileiros do século XX, até, mais ou menos, a década de 1960, terem optado pelo ensaio, de um modo geral, em função do objetivo político a que haviam se proposto. Sob este aspecto, tinham uma tese a defender e o ensaio – e não a história – foi a forma indicada para se atingir esse propósito. O ensaio pressupõe uma tese, em torno da qual se elabora uma interpretação da história do Brasil. Menos do que fazer uma interpretação da história do Brasil com base em documentos, os historiadores defendiam a tese de que a história brasileira não caminhava na direção do socialismo ou que o socialismo não constituía uma alternativa válida para as condições do país. Era preciso demonstrar que nossa história possuía determinadas características que a afastavam do modelo proposto por aqueles que defendiam a solução socialista. Iniciamos o texto indicando que ele havia sido motivado pela crítica feita pelos historiadores do ART à vigente historiografia brasileira. Chamamos a atenção, também, para o fato de que estava em questão a superação desta historiografia. Os historiadores da nova tendência propõem-se a superar a historiografia vigente contrapondo-lhe estudos fundados em uma ampla e farta documentação, assinalando que, em função da organização da pós-graduação, teria se verificado a profissionalização dos historiadores, com métodos e fundamentação teórica que superaria o ‘amadorismo’ até então dominante na prática historiográfica. Os novos historiadores não afirmam explicitamente isso, mas o fazem implicitamente ao destacarem a recente profissionalização do historiador com a disseminação dos cursos de pós-graduação9. Ainda que esta crítica seja pertinente, acreditamos que não se pode deixar de lado a dimensão política da historiografia relativa aos estudos sobre o processo histórico brasileiro. Do nosso ponto de vista, a completa superação da historiografia até então dominante somente pode ser feita em decorrência da compreensão do papel político que desempenhou ao longo do século XX. Por fim, a lamentação de que a historiografia atual abriu mão do caráter ensaístico, menos afeita, portanto, aos textos macrointerpretativos, preferindo as monografias técnicas, pontuais e específicas, revela apenas uma incompreensão do papel político desempenhado pelos historiadores brasileiros em grande parte do século XX. Com efeito, derrotado o socialismo, a historiografia brasileira pode prescindir do seu caráter ensaístico. Referências ARANTES, P. E. Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo. In: ARANTES, O. B. F.; ARANTES, P. E. (Ed.). Sentido da formação. Três estudos sobre Antonio Cândido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. AXT, G.; SCHÜLER, F. Intérpretes do Brasil. Ensaios de cultura e identidade. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2004. CARDOSO, C. O trabalho na América Latina colonial. São Paulo: Ática, 1985. CARDOSO, C. Escravo ou camponês? O protocam- pesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987. 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