UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Assis ANDERSON VICENTE DOS SANTOS “POSSO FALAR O QUE A PATROA FAZIA COMIGO?”: Rupturas e continuidades a partir das memórias de trabalhadoras domésticas em São Paulo (2014-2024) ASSIS 2024 ANDERSON VICENTE DOS SANTOS “POSSO FALAR O QUE A PATROA FAZIA COMIGO?”: Rupturas e continuidades a partir das memórias de trabalhadoras domésticas em São Paulo (2014-2024) Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Assis, para a obtenção do título de Mestre em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). Orientadora: Dra. Lucia Helena Oliveira Silva Bolsista: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. ASSIS 2024 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ana Cláudia Inocente Garcia - CRB 8/6887 Santos, Anderson Vicente dos S237p "Posso falar o que a patroa fazia comigo?" : Rupturas e continuidades a partir das memórias de trabalhadoras domésticas em São Paulo (2014-2024) / Anderson Vicente dos Santos. — Assis, 2024 151 f. : il. Dissertação de Mestrado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientadora: Dra. Lúcia Helena Oliveira Silva 1. Trabalhadoras domésticas - São Paulo (Estado). 2. Memória. 3. História oral. 4. Interseccionalidade (Sociologia). 5. Mulheres negras - Condições sociais. I. Título. CDD 305.48896081 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Assis CERTIFICADO DE APROVAÇÃO TÍTULO DA DISSERTAÇÃO: “POSSO FALAR O QUE A PATROA FAZIA COMIGO?”: Rupturas e continuidades a partir das memórias de trabalhadoras domésticas em São Paulo (2014-2024) AUTOR: ANDERSON VICENTE DOS SANTOS ORIENTADORA: LUCIA HELENA OLIVEIRA SILVA Aprovado como parte das exigências para obtenção do Título de Mestre em História, área: História e Sociedade pela Comissão Examinadora: Profa. Dra. LUCIA HELENA OLIVEIRA SILVA (Participaçao Virtual) UNESP/FCL - Assis Prof. Dr. ANDRÉ FIGUEIREDO RODRIGUES (Participaçao Virtual) UNESP/FCL - Assis Profa. Dra. MARIANA ESTEVES DE OLIVEIRA (Participaçao Virtual) UFMS - Três Lagoas Assis, 05 de junho de 2024 Faculdade de Ciências e Letras - Câmpus de Assis - Av. Dom Antonio, 2100, 19806900 http://www.assis.unesp.br/posgraduacao/historia/CNPJ: 48.031.918/0006-39. http://www.assis.unesp.br/posgraduacao/historia/CNPJ À minha amada mãe Maria Nilza e a todas as “donas de casa” que, assim como ela, não tiveram a oportunidade de “concluir” os seus estudos. AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, Laroyê, Exú! Okê Arô meu pai Oxóssi! Agradeço de todo o meu coração a todas as trabalhadoras domésticas, sobretudo as trabalhadoras que me cederam as entrevistas, possibilitando assim, de diferentes formas, o desenvolvimento desta pesquisa. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Agradeço imensamente à minha mãe, Maria Nilza, por ser a minha maior inspiração e a minha maior referência, mostrando-me na prática o verdadeiro significado das palavras amor, fé e compaixão. Ao meu pai, Manoel Vicente, por ser o meu maior exemplo de homem honesto, trabalhador, digno e responsável, que, ao lado de minha mãe, mesmo em meio a tantas dificuldades, nunca desistiram de lutar pelos seus objetivos, obrigado por serem exemplos tão maravilhosos em nossas vidas. Agradeço especialmente à minha orientadora, Dra. Lúcia Helena Oliveira Silva, por ter sido muito mais que uma profissional, que a partir de sua vasta bagagem como historiadora e professora, se dedicou a me orientar tão bem nesse trajeto. À minha companheira, Nicole, magnífica historiadora e professora, por todo amor e carinho que expressa por mim e pelas pessoas que ama. Não teria conseguido sem o teu acolhimento e sem o teu amor, muito obrigado por caminhar ao meu lado, eu te amo. Às minhas quatro irmãs, Vera, Deise, Andréa e Uani, por serem tão importantes na minha vida, proporcionando-me a alegria de ser irmão de mulheres tão surpreendentes e maravilhosas, que enfrentaram diversas barreiras ao meu lado, e me ensinaram as melhores e mais importantes lições da vida, ajudando-me em diversas questões e me fazendo sentir um imenso orgulho por cada uma delas, muito obrigado por tudo, meus amores. Aos membros da família, sobrinhos/as, Otto, Ramon, Rocco, Murillo, Ian, Rebecca, Nina e Mirella, que alegram a nossa vida e estão crescendo rápido demais. Aos/as cunhados/as, Wash, Greg, Kléber, Renan e Magda, muito obrigado por se tornarem parte da minha família e por me acolherem tão bem. Aos meus sogros, Louro e Dona Nenê, que tanto amo e quero bem, obrigado por todo o apoio e acolhimento. Às minhas tias, em especial tia Célia, tia Amália e tia Marizete, obrigado por tudo que fizeram por mim ao longo da vida. Em memória da minha finada madrinha, Cida, e das minhas finadas avós, Dora e Olívia, por todas as boas lembranças que deixaram em minha memória e em meu coração. À Verônica Matos, por todo o cuidado, mesmo que à distância. Aos irmãos e irmãs da corrente Flor Sagrada, em especial à dirigente Claudinha, por nos abrir os caminhos, por todos os ensinamentos e toda a cura proporcionada. Aos estimados/as colegas do PPGH da Unesp – Assis, em especial Berno, Geovan, Marcos, Camila, Abner e Paulo, por terem sido tão importantes nessa jornada de pós- graduação. Aos amigos/as/es que tanto amo e que são tantos... Por isso, peço que me perdoem por não mencionar todos/as/es: Kau, Gi, Mila, Thiago, Barbara (Ba), Luiza, Marquinhos, Moniza, Samuel, Matheus, minha afilhada Maya, Dayane, Rudg, Dai, Sabah, Gi Matos, Nathalie, Débora (DCS), Felipe, Kat, Brenda, Denis (Menor), Leticia (Lelets Ilha), Beatriz (Bela), Nat e Renato, Bia Miraldi, Tai, Flávia, Otávio Ítalo (Uzumaki), Dori, Well, Bianca Coitim, Isoca, Nat, Marcela, Gi Madeira, Gabi, e tantas outras amizades que tive o privilégio de construir ao longo da minha história de vida. Aos amigos da Av. Onix (Vila Ayrosa), de Carapicuíba e de todas as quebradas por onde passei. Ao meu mano Alex (em memória), ao seu irmão Xandi, a Tia Isaura e tio Nenê (em memória) e todas as amizades com quem compartilhei bons momentos da vida e nas quebradas de Osasco, Carapicuíba e Zona Oeste em geral. Aos colegas de profissão das Escolas Rosa Maria e Mércia de Itu e da Escola Maria Ivone em Sumaré, que mesmo diante de tantos ataques contra a categoria de professores/as e de todo sucateamento da educação no Brasil, seguem dando o seu melhor em sala de aula, resistindo diariamente por uma educação pública digna e de qualidade. Das amizades maravilhosas que fiz no Mato Grosso do Sul em tempos de graduação: Éder, Hugo, Maycon, Andresinha, Lorena, Janai, Raissa, Davi, Amanda, Ana Beatriz, Ret, Priscila Hampel, Kevin, Giovanna Zuque, Gleice, Daya, Aliucha, Samuel, Paulo, Edson (Onixarti), Lorena, Janai, Raissa, Elemir, Valdelice, Anarandá, Inah, Emilly, Aliucha, Franciellen, Juliana, Lau, Karime, Silvano Ofaié, Jacke, Deise, Sarah, Andressa, Luiza, Maria Laíse, nunca irei me esquecer de tudo que fizeram por mim e vocês sempre estarão presentes em meu coração. Agradeço ao corpo docente da licenciatura em história da UFMS CPTL, em especial: Luiz Bento, Vitor Wagner, Rafael Athaides, Leandro Hecko, Fortunato e, em especial, minhas estimadas professoras Maria Celma Borges, Mariana Esteves, Cíntia Lima e Marciana Santiago, que na graduação me ensinaram, acima de tudo, sobre a importância de um/a professoro/a na vida de um aluno, fazendo-me criar forças para seguir estudando e me preparando cada vez mais para a sala de aula. Aos docentes Paulo Fioravanti, Ana Laura, Belon, Mie, Tarcísio, Fontoura, Preto Tommaselli, por todos os ensinamentos e por todas as lutas que travamos lado a lado na cidade de Três Lagoas. Aos alunos e alunas que me proporcionam tanta alegria e me fazem acreditar que outro mundo é possível a partir da educação. À minha psicóloga, Érica, por ter me acompanhado nesse período tão importante na minha trajetória, o meu muitíssimo obrigado por não soltar a minha mão. Agradeço à professora Dra. Mirian Garrido (Unitau), pelas riquíssimas contribuições tecidas juntamente à professora Dra. Mariana Esteves de Oliveira, como titulares da banca avaliadora da qualificação deste trabalho. Ao prezado professor Dr. André F. Rodrigues, pelas contribuições e pela participação como membro titular na banca de defesa deste trabalho. Ao corpo docente e todos os trabalhadores do PPGH da Unesp (Assis/Franca), por terem sido extremamente dedicados em trazer cada vez mais qualidade ao programa de pós-graduação em história da Unesp, contribuindo assim para a formação de grandes historiadores/as que passaram por esse programa. E, por fim, não menos importante, aos nossos amigos não humanos. Panky, por ter sido tão companheira nos longos anos em que viveu comigo e com a minha família, ao Dragon, que também é um grande companheiro que nos alegra com suas estripulias. Oroiná (gatinha que também atende por “Pacote”), por nos fazer companhia nas longas jornadas de estudo, pedindo carinho, atenção e nos fazendo lembrar do quanto nunca estamos sozinhos e que sempre podemos contar com a companhia de nossos amiguinhos não humanos. Eu disse: o meu sonho é escrever! Responde o branco: ela é louca. O que as negras devem fazer... É ir pro tanque lavar roupa. (Carolina Maria de Jesus) SANTOS, Anderson Vicente. “Posso falar o que a patroa fazia comigo?": rupturas e continuidades a partir das memórias de trabalhadoras domésticas em São Paulo (2014- 2024). 2024. 151 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2024. RESUMO Ao longo da história, especialmente no contexto do Brasil, onde o motor social colonial foi impulsionado pela mão de obra escravizada, as trabalhadoras domésticas sofreram várias formas de exploração e opressão. Passaram-se séculos desde as amas de leite e escravizadas domésticas na América Portuguesa até as trabalhadoras domésticas no Brasil contemporâneo; no entanto, é possível observar continuidades ao longo desse período. Entendendo-as como sujeitos históricos, podemos considerar ainda que elas resistem individual e coletivamente, haja vista a existência de sindicatos e associações, bem como a conquista da Lei Complementar n°150/2015, que garantiu uma importante ampliação de direitos para a categoria. Esta dissertação tem como objetivo analisar as rupturas, recriações e continuidades no trabalho doméstico a partir dos relatos contidos nas entrevistas que realizamos com trabalhadoras e ex-trabalhadoras domésticas em diferentes regiões do estado de São Paulo. As análises foram realizadas com base nas relações entre gênero, raça e classe, adotando-se a perspectiva da interseccionalidade como recorte, ainda que a principal metodologia empregada, isto é, a história oral, nos permitiu apreender outras nuances das memórias e histórias de vida dessas mulheres. Como resultados da análise das entrevistas, observamos que após a implementação das novas legislações, houve alguns impactos significativos que permitiram com que parte das trabalhadoras passasse a obter justiça e maiores garantias de direitos. No entanto, é possível afirmar também que a partir do desenrolar dos processos históricos que envolvem lutas por direitos, micros e macros conquistas, novas legislações nos diferentes contextos e sobretudo na última década, as trabalhadoras domésticas ainda enfrentam uma realidade complexa, em que resistem de diferentes formas contra as desigualdades e preconceitos que ainda sofrem por exercerem a sua profissão. Palavras-Chave: Trabalhadoras domésticas. Memória. História oral. Interseccionalidade. Mulheres Negras. SANTOS, Anderson Vicente. “Can I tell you what the boss did to me?”: ruptures and continuities from the memories of domestic workers in São Paulo (2014-2024). 2024. 151 p. Dissertation (Master in History) – São Paulo State University “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), School of Science, Humanites and Languages, Assis, 2024. ABSTRACT Throughout history, especially in the Brazilian context, where the colonial social engine was driven by enslaved labor, domestic workers suffered various forms of exploitation and oppression. From wet nurses and domestic slaves in Portuguese America to domestic workers in contemporary Brazil, centuries have passed; however, there have been historical sequences. Understanding them as historical subjects, we can also consider that they resist individually and collectively, given the existence of unions and associations, as well as the achievement of complementary Law no. 150/2015, which guaranteed an important expansion of rights for the category. This dissertation aims to analyze the ruptures, recreations, and continuities in domestic work based on the reports contained in the interviews we carried out with domestic workers and former domestic workers in different regions of the state of São Paulo. The analyses were carried out based on the relationships between gender, race, and class, by focusing on the perspective of intersectionality, although the main methodology adopted, that is, oral history, allowed us to grasp other nuances of memories and life stories of these women. The analysis of the interviews revealed that the implementation of the new legislation had some significant impacts that allowed some workers to obtain justice and greater guarantees of rights. However, based on the unfolding of historical processes that involve struggles for rights, micro and macro achievements, new legislation in different contexts, especially over the last decade, domestic workers still face a complex reality, where they resist against the inequalities and prejudices that they still suffer from exercising their profession. Keywords: Domestic workers. Memory. Oral history. Interseccionality. Black Women. LISTA DE IMAGENS Imagem 1. Anúncios de Ama do Diário de Pernambuco (abril de 1876).............. 39 Imagem 2. Anúncio de venda de mulher escravizada como Ama de Leite........... 40 Imagem 3. Anúncio de aluguel de mulher escravizada (junho de 1821)............... 41 Imagem 4. Ama de Leite e Menino Augusto (séc. XIX)....................................... 44 Imagem 5. Anúncio de Ama de Leite do Diário de Pernambuco do (abril de 1876).................................................................................................... 47 Imagem 6. Babá brincando com criança em Petrópolis, clicada em 1899 por Jorge Henrique Papf............................................................................ 52 Imagem 7. Infográfico da DIEESE: Faixa etária de trabalhadoras domésticas comparando os anos de 2013 e 2022................................................... 120 LISTA DE TABELAS Tabela 1. Tabela de informações sobre as trabalhadoras domésticas entrevistadas............................................................................................ 23 Tabela 2. Histórico dos reajustes do piso regional no estado de São Paulo (SP) válido para empregados domésticos (2007 a 2024)................................ 67 LISTA DE QUADROS Quadro 1. Proporção de ocupados nos três primeiros meses de 2020 que não estavam trabalhando no 2° trimestre.................................................... 115 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO............................................................................................. 16 2 AS ORIGENS COLONIAIS DO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL.......................................................................................................... 34 2.1 A origem e a transição do trabalho doméstico do período escravocrata para o período pós-abolição.......................................................................... 36 2.2 Racismo científico, divisão sexual do trabalho e subalternidades após a proibição da escravização no Brasil............................................................. 50 2.3 Subalternidade, racismo, invisibilidade e exploração no trabalho doméstico em São Paulo (2014-2024) .......................................................... 62 3 MEMÓRIAS DE TRABALHADORAS DOMÉSTICAS EM SÃO PAULO........................................................................................................... 71 3.1 Interseccionalidades nas relações de gênero, raça e classe no trabalho doméstico em São Paulo................................................................................ 71 3.2 Memórias sobre o trabalho infantil: invisibilidade, desvalorização e negação de direitos no trabalho doméstico em São Paulo......................... 80 3.3 Os ciclos migratórios e a exploração de trabalhadoras domésticas na capital.............................................................................................................. 87 4 IMPACTOS NO COTIDIANO DE TRABALHADORAS DOMÉSTICAS A PARTIR DA LEI N.º 150/2015..................................... 100 4.1 Reformas, teto dos gastos e pandemia: um breve histórico da conjuntura política e social e seus impactos no trabalho doméstico na última década................................................................................................. 101 4.2 Continuidades: novas formas de exploração no trabalho doméstico em São Paulo........................................................................................................ 108 4.3 Avanços significativos: recriações e rupturas após a Lei n.º 150 de 2015.. 117 4.4 Resistência: trajetória de lutas e conquista de direitos das trabalhadoras domésticas............................................................................. 125 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 133 FONTES ORAIS........................................................................................... 137 REFERÊNCIAS............................................................................................ 138 16 1 INTRODUÇÃO Em 15 de junho de 2015, foi sancionada a Lei Complementar n.º 150/2015, que alterou grande parte da antiga legislação trabalhista, trazendo uma ampla extensão de direitos que ainda não haviam sido garantidos aos trabalhadores domésticos no Brasil. Após décadas de lutas, as trabalhadoras domésticas comemoravam uma de suas conquistas mais importantes desde o surgimento da primeira associação de trabalhadores domésticos, criada em 1936 por Laudelina de Campos Melo1, trabalhadora doméstica e militante do movimento negro pela Frente Negra Brasileira, além de filiada ao Partido Comunista do Brasil. Este estudo é centrado em entrevistas realizadas com trabalhadoras domésticas moradoras de bairros periféricos da cidade de São Paulo, chamando-nos a atenção para a urgência de discutirmos sobre a garantia desses direitos conquistados, que, em muitos casos – como revelam alguns dos relatos das próprias trabalhadoras domésticas – ainda não são exercidos na prática. Os relatos das trabalhadoras que entrevistamos, ao mesmo tempo em que nos sensibilizam com relação às opressões sofridas por elas, demonstram que as lutas travadas no passado ainda reverberam de diferentes formas no mundo do trabalho doméstico e na história de vida de mulheres que, mesmo não atuando em sindicatos ou associações de trabalhadoras domésticas, resistem de distintas formas no cotidiano do trabalho doméstico no Brasil. Tais narrativas nos possibilitam ainda compreender sobre algumas das principais rupturas, recriações e continuidades que se deram no âmbito do trabalho doméstico no decorrer da última década, ou seja, desde o ano de 2014, um ano após a promulgação da Emenda Constitucional n.º 72.2 Após dois anos da promulgação da PEC das Domésticas, em junho de 2015, a Presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei Complementar n.º 150, que dispõe sobre o contrato de trabalho 1 De acordo com Bernardino-Costa (2015a), foi na década de 1930 que Laudelina de Campos Melo fundou a primeira associação de trabalhadores domésticos no Brasil, na cidade de Santos – SP. Segundo o autor, a Associação Profissional de Empregados Domésticos surge na década de 1930, visando alcançar o status de sindicato, para que assim pudesse negociar o reconhecimento jurídico da categoria de trabalhadores domésticos e, com isso, dar início à jornada de lutas pela conquista de direitos trabalhistas. Ver mais em: Bernardino-Costa, Joaze. Decolonialidade e interseccionalidade emancipadora: a organização política das trabalhadoras domésticas no Brasil. Sociedade e Estado, Brasília, v. 30, n. 1, p. 147–163, 2015. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/sociedade/article/view/5955. Acesso em: 29 abr. 2023. 2 A PEC 478/2010: Emenda Constitucional n.º 72 de 02/04/2013, conhecida como PEC das Domésticas, revoga o parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal, para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os empregados domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais. Ver mais em: BRASIL. PEC n.º 478, de 14 de abril de 2010. Revoga o parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal, para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os empregados domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais. Brasília, Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=473496. Acesso em: 08 abr. 2024. http://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=473496 http://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=473496 17 doméstico, e regulamentou a Emenda Constitucional n° 72, tratando de garantir direitos que há muitos anos vinham sendo reivindicados pela categoria. No entanto, pesquisas recentes a respeito do trabalho doméstico, realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) contínua de 20233, mostram que mesmo quase 10 anos após a implementação da Lei nº 150 de 2015, o trabalho doméstico no Brasil ainda é majoritariamente ocupado por mulheres, além de continuar representando um dos empregos mais desvalorizados do mundo (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 2023). Com grandes avanços, mas com importantes mudanças ainda por se realizarem, o Brasil – sendo um dos países que mais possuem trabalhadoras domésticas no mundo – carrega até o presente momento o peso da colonização, do período em que o trabalho doméstico surgiu na forma da escravização e, que de forma lenta e gradativa, passou por essas transformações que se deram ao longo dos séculos. Apesar das mudanças ocorridas desde a colonização do Brasil, é importante ressaltar que mesmo com o surgimento e Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), em 1943, e a promulgação da Constituição Federal de 1988, os direitos trabalhistas que já haviam sido garantidos para a grande maioria das categorias não se aplicaram à profissão do trabalho doméstico no Brasil. O objetivo principal deste trabalho é investigar quais foram as principais rupturas, recriações e continuidades no trabalho doméstico em São Paulo, após a implementação da Lei Complementar n.º 150 de junho de 2015. As análises foram realizadas a partir de um recorte interseccional entre gênero, raça e classe, com base em bibliografias que dialogam com as temáticas do feminismo negro, interseccionalidade e do trabalho doméstico. Para além de uma ótica voltada às questões legislativas que dizem respeito aos direitos trabalhistas e aos direitos das mulheres, temos ainda como propósito analisar as interseções entre as questões de gênero, raça e classe no âmbito do trabalho doméstico no Brasil, uma vez que estamos falando de uma profissão na qual a grande maioria das trabalhadoras domésticas é de mulheres negras e que sobrevivem às margens da sociedade em regiões periféricas. Nossas análises foram realizadas, principalmente, a partir dos relatos obtidos em entrevistas feitas com mulheres trabalhadoras domésticas, moradoras de bairros da Região 3 A Pnad Contínua de 2023 analisou os dados referentes ao ano de 2022, em que, segundo infográfico elaborado e disponibilizado pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), no Brasil, havia 5,3 milhões de trabalhadoras domésticas mulheres, representando em média 91,4% do total de pessoas exercendo essa função. Disponível em: https://www.dieese.org.br/infografico/2023/infograficosMulheres2023.pdf Acesso em: 08 fev. 2024. http://www.dieese.org.br/infografico/2023/infograficosMulheres2023.pdf http://www.dieese.org.br/infografico/2023/infograficosMulheres2023.pdf http://www.dieese.org.br/infografico/2023/infograficosMulheres2023.pdf 18 Metropolitana de São Paulo e do interior paulista, majoritariamente no primeiro semestre de 2022, as quais se constituem como nossas fontes principais. Os relatos de trabalhadoras contidos na obra da autora Preta Rara (2019), em “Eu, empregada doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada”, se constituíram também como importantes fontes para a pesquisa em questão. Compreender as rupturas e continuidades nas relações de exploração e resistência nesse âmbito, a partir das memórias e dos olhares das próprias trabalhadoras, nos parece imprescindível para revelar as faces de um Brasil que se pensava superado, mas que ainda tem de lidar com relações de trabalho que possuem muitos aspectos e elementos do trabalho doméstico no período escravocrata. No primeiro capítulo, abordamos as origens do trabalho doméstico no Brasil ocorrido no período escravocrata. Diante de notícias de trabalho doméstico “análogo à escravidão”, às quais nos deparamos ano após ano – que evidenciam casos de trabalhadoras domésticas sendo mantidas em cárcere privado pelos seus patrões, obrigadas a comerem os restos de suas refeições e sofrendo diversos tipos de violências e abusos – compreendemos que o trabalho doméstico ainda carrega o peso dos horrores da escravização dos/as negros/as e indígenas no Brasil. Apesar do nosso recorte em um período recente, o primeiro capítulo abordará a questão da origem escravocrata do trabalho doméstico no Brasil, pois julgamos imprescindível uma maior compreensão das opressões, preconceitos e formas de exploração às quais foram inseridas as trabalhadoras domésticas com permanências na atualidade. Constantemente nos deparamos com notícias de trabalhadoras domésticas que sofreram algum tipo de exploração, racismo, abusos e violências, tendo acontecido inclusive, em alguns casos mais extremos, a morte de algumas dessas vítimas. Casos como o de Cleonice Gonçalves4 – uma das primeiras pessoas a vir a óbito por consequência da pandemia da covid-19 no Brasil – escancaram inúmeras questões sociais, tais como o sexismo, o racismo estrutural, a desigualdade social, dentre outros preconceitos e descasos aos quais muitas trabalhadoras domésticas ainda estão submetidas no Brasil. No segundo capítulo, buscamos realizar uma análise interseccional das questões de gênero, raça e classe que se revelam a partir das memórias das trabalhadoras domésticas que entrevistamos. Buscamos ressaltar quais foram as principais mudanças e permanências no que 4 Ver mais em: COSTA, Fernanda da. Morte de trabalhadora doméstica por coronavírus escancara falta de políticas para proteger a classe. Jornal da Universidade Ufrgs. Porto Alegre, mar. 2020. Disponível em: https://www.ufrgs.br/jornal/morte-de-trabalhadora-domestica-por-coronavirus-escancara-falta-de-politicas-para- proteger-a-classe/. Acesso em: 01 ago. 2022. http://www.ufrgs.br/jornal/morte-de-trabalhadora-domestica-por-coronavirus-escancara-falta-de-politicas-para- http://www.ufrgs.br/jornal/morte-de-trabalhadora-domestica-por-coronavirus-escancara-falta-de-politicas-para- 19 tange ao trabalho doméstico no Brasil contemporâneo, sobretudo a importância histórica que as vozes dessas trabalhadoras devem ocupar na historiografia, uma vez que os seus relatos contribuem para o rompimento tanto do silenciamento histórico quanto da invisibilidade que as mulheres trabalhadoras domésticas sofreram ao longo de todos esses anos. No terceiro e último capítulo, buscamos ressaltar quais foram, de fato, os principais impactos da implementação da Lei Complementar n° 150/2015 na história de vida dessas trabalhadoras domésticas que entrevistamos. A partir de seus relatos, trouxemos à tona as melhorias, os retrocessos, as conquistas e, sobretudo, suas opiniões a respeito de todas essas transformações que ocorreram no trabalho doméstico no Brasil nessa última década. Em nossa pesquisa, trabalhamos com as teorias da história social do trabalho e da história e gênero, em relação às quais nos apropriamos de referências como E. P. Thompson (2015), Scott (1992; 1995) e Perrot (1988), entre outras. Além da história social do trabalho e da história e gênero, destacamos o uso de outras duas discussões de cunho teórico metodológico: sobre a história oral e a memória como fonte. Estamos de acordo com Delgado ao afirmar que “Tempo e espaço têm na memória sua salvação […]. Ambos são esteios das identidades. São suportes do ser no mundo. São referenciais que tornam os homens sujeitos de seu tempo.” (Delgado, 2009, p.16). Optamos pela utilização de referências como Le Goff (1990), Maurice Halbwachs (1990) e Paul Ricoeur (2007), entre outros historiadores que trabalham a perspectiva do uso da memória como fonte, como possibilidade de contribuirmos para discussões que valorizem as identidades e as representações das narrativas de sujeitos/as comuns, uma vez que as trabalhadoras domésticas, passam a serem as protagonistas de suas próprias histórias. Para isso, utilizamos algumas obras de destaque no assunto, como os livros “Manual de história oral”, de Alberti (2013), e “Uso e abuso da história oral”, organizado por Ferreira e Amado (2006), entre outros. São inúmeros os debates e contribuições que a história oral trouxe para a historiografia desde o seu surgimento. A escolha pelas entrevistas de trabalhadoras domésticas como nossas principais fontes nos direciona a uma pesquisa constante a respeito de uma série de subjetividades que podem estar presentes, ou não, nos relatos das trabalhadoras. Conforme salienta Voldman (2006): Quando realiza entrevistas, certamente o historiador deve trabalhar segundo suas técnicas próprias, mas também deve ter em mente dois outros procedimentos, tomados de empréstimo a disciplinas vizinhas: por um lado, servir-se das contribuições da sociologia na condução e na formulação das pesquisas; e por outro, não negligenciar elementos de psicossociologia e psicanálise. Para ele, não se trata de propor interpretações da mensagem que 20 lhe é comunicada, mas de saber que o não dito, a hesitação, o silêncio, a repetição desnecessária, o lapso, a divagação e a associação são elementos integrantes e até estruturantes do discurso e do relato. (Voldman, 2006, p. 38). Nota-se que sobre o ofício do historiador adepto da história oral, é importante salientar que trabalhar com fontes orais já é por si só uma tarefa bastante complexa e delicada, pois envolve uma série de cuidados no processo de gravação/captação das entrevistas e no trato com as fontes como um todo. Além dos cuidados necessários para o trabalho com fontes orais, o pesquisador em questão necessita de um cuidado ainda maior – que deve ser tomado especificamente – com as pessoas entrevistadas. Esses cuidados são imprescindíveis, uma vez que se trata de um processo carregado de sensibilidades, receios, nervosismos e anseios. Ao trabalharmos com as memórias de trabalhadoras domésticas como objeto de pesquisa, buscamos nos manter atentos não só ao que nos foi dito pelas testemunhas, mas também ao que não foi dito, aos silêncios, aos gestos, às pausas e aos demais sinais expressados no decorrer de todo o processo de elaboração/realização de entrevistas e suas transcrições, bem como em todas as demais etapas (Alberti; Fernandes; Ferreira, 2000, p. 35). O processo metodológico que realizamos nesta pesquisa consiste em uma série de trabalhos que iremos descrever a seguir. O planejamento é o ponto de partida fundamental para uma pesquisa histórica. Em suma, podemos considerar que o nosso projeto de pesquisa de mestrado é o nosso planejamento. Nele, delineamos nossos principais objetivos, levantamos as nossas hipóteses e submetemos para a avaliação de nossos pares, de forma que suas críticas e contribuições nos auxiliassem nesse processo tão importante e crucial para o historiador, no caso, o planejamento. Após as avaliações de nossos pares (professores, orientadora e colegas discentes mestrandos e doutorandos em história), realizamos algumas alterações em nosso plano de trabalho. Essas mudanças foram essenciais para adequarmos o nosso projeto à realidade que estávamos vivendo no decorrer da pesquisa. Após as mudanças que realizamos em nosso projeto, passamos para a etapa seguinte, que foi a criação de um roteiro para realizarmos algumas perguntas nas entrevistas. É importante ressaltar que esse processo de criação de um roteiro não nos conduziu às entrevistas com respostas predefinidas. Muito pelo contrário, como historiadores adeptos da história oral, estamos atentos às questões que envolvem as memórias e as subjetividades dos sujeitos e até mesmo sobre o peso que existe para um historiador homem, cisgênero e heterossexual entrevistando mulheres trabalhadoras domésticas. 21 Outro passo importante foi o contato com as trabalhadoras domésticas que entrevistamos. Desde a escrita do projeto, já havíamos entrado em contato com algumas trabalhadoras que se colocaram à disposição para nos ceder uma entrevista. No entanto, a maioria das trabalhadoras com as quais havíamos entrado em contato inicialmente não pôde ser entrevistada, pois tivemos de lidar com uma situação não planejada. Além de todas essas questões, o ingresso no mestrado no segundo semestre do ano de 2020 nos trouxe um desafio ainda maior para a realização de nossa pesquisa: o desafio de realizarmos entrevistas com trabalhadoras domésticas em meio à pandemia do coronavírus. Esse enorme desafio, da realização da pesquisa histórica sob metodologias como a da história oral, em meio à pandemia, nos forçou a uma série de mudanças e, sobretudo, gerou atrasos na execução do planejamento. Como optamos por entrevistas presenciais, tanto pela questão da inacessibilidade e até mesmo pela questão das técnicas de gravações e dos riscos que poderíamos correr com a realização de gravações online, tivemos de esperar o avanço da imunização (vacinação contra a covid-19), que no Brasil sofreu grandes atrasos devido à negligência do próprio Presidente Jair Bolsonaro, que não comprou as vacinas quando teve a oportunidade, conforme relatado e apurado pela CPI da covid-19.5 Com o avanço do processo de imunização da população brasileira, somente após a 3ª dose (dose de reforço) e a flexibilização do isolamento social, sentimo-nos confiantes para darmos continuidade ao nosso próximo passo do processo de pesquisa, realizando assim as entrevistas presenciais com as trabalhadoras domésticas. O processo de realização das entrevistas ocorreu principalmente entre os dias 19 de março e 22 de maio de 2022, quando a maior parte das pessoas acima de 18 anos já havia sido vacinada com a 3ª dose na cidade de São Paulo. De toda forma, é importante salientarmos que as entrevistas foram realizadas respeitando todas as recomendações do protocolo sanitário estabelecido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo que as duas últimas entrevistas que realizamos se deram após o início de 2023, quando a situação já havia sido “controlada”. As gravações foram feitas utilizando um gravador de voz digital simples, modelo MT- 556, de memória interna de 8gb (grava até 17.620 minutos), alimentação a pilhas AAA, 5 Como é de conhecimento público, de acordo com os dados apresentados pela CPI da Covid-19 no Brasil, Jair Bolsonaro, na época Presidente do Brasil, teve a oportunidade de comprar as vacinas em um dos momentos de pico de mortes por covid-19 no país, mas recusou as propostas feitas pela farmacêutica Pfizer, mesmo enquanto outros países em situações até mais amenas do que a do Brasil já haviam comprado e estavam vacinando suas respectivas populações. Ver mais em: MAGENTA, Matheus. Vacinas teriam salvado 95 mil vidas se governo Bolsonaro não tivesse ignorado ofertas, calcula pesquisador. BBC News Brasil. Londres, p. 1-3. maio 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57286762. Acesso em: 26 set. 2022. http://www.bbc.com/portuguese/brasil-57286762 http://www.bbc.com/portuguese/brasil-57286762 http://www.bbc.com/portuguese/brasil-57286762 22 compatível com os formatos MP3 e WMA, com entrada para conexão de microfone externo (microfone de lapela), do qual fizemos uso para melhorar a qualidade da captação das vozes das trabalhadoras entrevistadas. De acordo com as orientações de Alberti (2013, p. 204), evitamos ao máximo as pausas ou até mesmo desligar o equipamento no meio das gravações. Praticamente todas as gravações foram realizadas nas respectivas casas das trabalhadoras domésticas, que nos receberam de forma muito acolhedora e nos cederam gentilmente as entrevistas. Conforme podemos observar na tabela a seguir, conseguimos realizar as entrevistas com 8 trabalhadoras domésticas, moradoras de zonas periféricas do estado de São Paulo. Vale ressaltarmos que o nosso objetivo não foi o de realizar uma pesquisa quantitativa, com uma quantidade maior de entrevistas, mas sim prezando pela categoria qualitativa, em que mesmo entrevistando um número relativamente baixo de trabalhadoras domésticas, conseguíssemos trazer à tona a voz dessas trabalhadoras que ainda clamam por justiça, mesmo após a aplicação da legislação de 2015. 23 Tabela 1. Informações sobre as trabalhadoras domésticas entrevistadas Nome6 Gênero Raça Idade Estado/Reg ião onde nasceu Escolarid ade Onde mora Início no trabalho doméstico Ocupação atual Célia Alves Mulher cisgênero Parda 68 anos Bahia 3° série do E.F. Osasco Aos 45 anos de idade Aposentada em 2017 Marlene Castro Mulher cisgênero Branca 64 anos Bahia 5° série do E.F. Osasco Não informado Dona de casa Cleusa Souza Mulher cisgênero Parda 45 anos Nordeste 4° série do E.F. Osasco Aos 15 anos de idade Trabalho doméstico Irenildes Silva Mulher cisgênero Parda 52 anos Bahia 4° série do E.F. Osasco Aos 11 anos de idade Trabalho doméstico Danielle Vieira Mulher cisgênero Negra 36 anos São Paulo Ensino médio completo Osasco Aos 14 anos de idade Trabalho doméstico Marcia Carvalho Mulher cisgênero Parda 50 anos São Paulo 8° série do E.F. Itu Aos 14 anos de idade Trabalho doméstico Iracema Ferreira Mulher cisgênero Parda 67 anos Pernambuc o 4° série do E.F. Diadema Aos 14 anos de idade Aposentada em 2021 Jamila da Costa Mulher cisgênero Parda/Indíge na 40 anos São Paulo Ensino médio completo Pirassun unga Aos 22 anos de idade Trabalho doméstico Fonte: Elaborado pelo próprio autor (2023). Todas essas experiências narradas contribuíram não só para a nossa trajetória profissional, mas também para a nossa própria trajetória pessoal, uma vez que suas histórias nos ensinam valores que dificilmente iremos aprender nos livros de história. A humildade e o 6 Prezando a ética – práxis das pesquisas científicas – e a fim de preservar a identidade de algumas das nossas entrevistadas, alguns sobrenomes são fictícios. 24 desejo de participarem desta pesquisa, contribuindo assim, a partir de seus relatos, para o preenchimento dessas lacunas, ainda muito presentes na própria historiografia brasileira, nos motivam a continuar pesquisando e trazendo à tona essas narrativas. Apesar de todas as dificuldades e das problemáticas relações que escutamos nos relatos dessas mulheres, suas vozes permanecem ávidas e clamam por dias melhores não apenas para si mesmas, mas também para toda a categoria da qual fazem parte. Nos relatos que analisamos, esse clamor, que visa a um futuro melhor para a categoria, se configura também como um movimento, uma forma de resistência vivenciada no tempo presente. Conforme Delgado (2009): O tempo é um movimento de múltiplas faces, características e ritmos, que inserido à vida humana, implica em durações, rupturas, convenções, representações coletivas, simultaneidades, continuidades, descontinuidades e sensações (a demora, a lentidão a rapidez). É um processo em eterno curso e em permanente devir. Orienta perspectivas e visões sobre o passado, avaliações sobre o presente e projeções sobre o futuro. (Delgado, 2009, p. 10). Para além da bibliografia acerca das questões metodológicas voltadas à história social do trabalho, história e gênero e história oral, também fizemos uso de bibliografias de perspectivas teóricas que dialogam a partir do alinhamento entre interseccionalidade, feminismo negro e decolonialidade. Dessa forma, acreditamos que tal levantamento bibliográfico nos ajudou a compreender melhor as questões ligadas às questões de gênero e raça, além de toda a questão de classe, que ocorre por meio da exploração total da força de trabalho dessas mulheres. Alguns textos como “Um feminismo decolonial” (2020)7, de Françoise Vergès, “Memórias da Plantação” (2019)8, de Grada Kilomba, e “Por um feminismo afro-latino-Americano” (2020)9, de Lélia Gonzalez, nos ajudam na compreensão de casos de racismo e de preconceitos ligados a questões sociais (de lugar de origem e de condições financeiras, grau de escolaridade etc.) enfrentados pelas trabalhadoras domésticas que entrevistamos. Tais teorias nos ajudam também na compreensão das formas de resistências que se transformaram ao longo dos séculos e que estão presentes, ainda que nas entrelinhas, nas narrativas das mulheres que entrevistamos. As relações provenientes do mundo do trabalho doméstico constituem objeto de pesquisa reconhecido pelas ciências humanas, sobretudo a sociologia e a antropologia. A 7 VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Tradução: Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Editora Ubu, 2020. 8 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 9 GONZALES, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2020. p. 39. 25 historiografia do trabalho, no entanto, ainda tem muito a ganhar com o mergulho histórico nesse universo. O mundo do trabalho como espaço de ação e conhecimento precisa ser compreendido não apenas nas clássicas categorias do operariado fabril, embora não possamos desconsiderá- las. Com efeito, para a compreensão das categorias e suas relações com a realidade experimentada por essas mulheres, trabalhadoras domésticas no Brasil, entendemos a necessidade de realizarmos nossas análises amparados pelo referencial teórico da interseccionalidade e do feminismo negro, compreendendo tais referências como centrais das relações humanas e sociais, de em que as questões de gênero, raça e classe convergem. Pretendemos analisar as subjetividades e micro-histórias das trabalhadoras domésticas que entrevistamos. Sendo assim, compreendemos a necessidade de discutir gênero ao delimitarmos as memórias de trabalhadoras domésticas como objeto de pesquisa histórica Nesse sentido, consideramos a responsabilidade de contribuirmos para romper com a invisibilidade dessas mulheres que ainda são excluídas de grande parte da historiografia. Dados da PNAD Contínua do IBGE10 revelam que no 4.º trimestre de 2022, o Brasil contava com 5,8 milhões de trabalhadores domésticos, equivalentes a 5,9% da força de trabalho em nosso país. Destes, 91,4% eram mulheres e 67,3% eram negras. (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIEESE, 2023). Sendo a maior parte das trabalhadoras domésticas no Brasil composta de mulheres negras (Ávila, 2016), ressaltamos a necessidade de nos ampararmos em uma perspectiva teórica que abarcasse as interseções entre gênero, raça e classe. É possível observarmos que as opressões de gênero, raça e classe às quais estão submetidas as trabalhadoras domésticas brasileiras estão intimamente ligadas às problemáticas da formação do Brasil e dos processos imbricados na transição do Brasil colonial para o Brasil república. Dada a interseccionalidade entre as opressões elencadas sobre a categoria de trabalhadoras domésticas, é necessário apontarmos com maior especificidade as categorias relevantes no que se refere às relações entre trabalho, gênero e raça. Conforme salienta Cruz (2016), que se dedicou à pesquisa sobre as trabalhadoras domésticas no Brasil na área do direito, Assim, às mulheres de cor (gênero + raça/cor), duplamente em situação de dominação, destina-se o trabalho doméstico, invisibilizado na composição social brasileira. Por reunir características inferiorizadas (raça/cor, gênero e divisão sexual do trabalho), o serviço doméstico remunerado ocupa espaços 10 Informações retiradas do infográfico sobre trabalho doméstico produzido pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), com base nos dados do 4º trimestre de 2022 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE. Ver mais em: https://www.dieese.org.br/infografico/2023/trabalhoDomestico2023.html. Acesso em 01 ago. 2023. http://www.dieese.org.br/infografico/2023/trabalhoDomestico2023.html http://www.dieese.org.br/infografico/2023/trabalhoDomestico2023.html http://www.dieese.org.br/infografico/2023/trabalhoDomestico2023.html 26 de negação de direitos e informalidades. Durante o século passado, toda a legislação criada para cuidar dos assuntos relacionados ao emprego doméstico não garantia às domésticas os mesmos direitos assegurados às outras categorias de trabalhadores, inferiorizando-as ainda mais. (Cruz, 2016, p. 72). Em uma sociedade que não se desfez das heranças escravocratas do período colonial, muito além da naturalização do trabalho doméstico como sendo obrigação de mulheres, permanece ainda a discriminação racial sobre a categoria de trabalhadoras domésticas. O racismo se revela enquanto base estrutural do trabalho doméstico, uma vez que as trabalhadoras domésticas são majoritariamente mulheres negras, exercendo suas jornadas duplas, triplas e até mesmo quádruplas de trabalho, sendo mal remuneradas e inferiorizadas por realizarem o trabalho doméstico. Dessa maneira, motivamo-nos a pesquisar sobre a história de vida de trabalhadoras domésticas, buscando contribuirmos para que suas vozes rompam com o silenciamento histórico ao qual as mulheres foram submetidas, sobretudo as mulheres negras e periféricas. Dessa maneira, sem nos prendermos apenas a autores/as que estudam sobre história das mulheres pela ótica ocidental, amparamo-nos em referências de autoras como Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge (2020), Cida Bento (2022) Sueli Carneiro (2023), Ynaê Lopes dos Santos (2022), Maria Lugones (2020) e Angela Davis (2016), entre outras, para que estivessem presentes em nosso recorte de gênero, raça e classe os elementos fundamentais para a compreensão das subjetividades, intersecções e particularidades dessas mulheres, as quais, em muitos casos, ainda se encontram como subalternas na sociedade brasileira e no mundo do trabalho. Nessa complexa teia de relações, algumas questões de raça necessitam ser levantadas. Percebemos que não apenas o racismo explícito se manifesta, mas também nas relações patriarcais, na intimidade e pertencimento familiar, na exploração infantil e até na sexualização dos corpos negros. Ele está cristalizado a posteriori no termo “quase da família”, dirigido às trabalhadoras domésticas que dedicaram grande parte das suas vidas aos cuidados das gerações de famílias de seus patrões. Essa expressão parece carregar consigo traços muito peculiares da história do trabalho reprodutivo no Brasil, marcado pela presença de escravizadas domésticas e amas de leite, da existência das mães pretas de filhos brancos. Historicamente, essas experiências estão marcadas pela incorporação das escravizadas “porta adentro” à rotina – e vigilância – da família, seja pelo motivo de certas ‘vantagens’ em relação ao trabalho nos campos e à vida nas senzalas, seja pela profunda ingerência na família escrava e nos corpos dessas mulheres, incluindo a violência. Séculos de distância temporal 27 separam as criadas e amas de leite do período escravista até a subordinação imposta à mulher no trabalho doméstico contemporâneo. É notório que houve avanços significativos para a categoria dos trabalhadores domésticos após o advento da Lei n° 150 de 201511, no que concerne às rupturas (e/ou mudanças) e aos impactos positivos na valorização dos direitos das trabalhadoras domésticas, como podemos observar em sua ementa: Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico; altera as Leis no 8.212, de 24 de julho de 1991, no 8.213, de 24 de julho de 1991, e no 11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do art. 3o da Lei no 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei no 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei no 9.250, de 26 de dezembro 1995; e dá outras providências (BRASIL, 2015). No entanto, diante das informações que analisamos, evidenciam-se as continuidades, uma vez que atualmente as trabalhadoras domésticas ainda estão submetidas a muitas formas de violências, preconceitos e explorações semelhantes àquelas que mulheres negras escravizadas sofreram no período escravista. As trabalhadoras diaristas não foram amparadas pela Lei Complementar de 2015, indicando que o trabalho doméstico ainda carrega muitos resquícios do desamparo trabalhista. A informalidade na qual as diaristas estão inseridas em condições semelhantes às domésticas nos convida a questionarmos até que ponto a legislação 11 Até a primeira década do século XXI, as trabalhadoras domésticas ainda não haviam se deparado com grandes avanços que não ocorriam desde o ano de 1972, o que também “constitui-se em um marco na compreensão dos trabalhadores e trabalhadoras domésticas enquanto sujeitos de direitos” (Santos, 2021, p. 281). Somente no ano de 2015, no primeiro dia do mês de junho, que fora promulgada uma Lei Complementar de n° 150, a qual tratou de atualizar a Lei 5.859 de 1972, assegurando novas garantias desses direitos conquistados com muitas lutas, marcando assim uma grande mudança histórica na legislação do trabalho doméstico no Brasil. Fruto das lutas das trabalhadoras domésticas e dos sindicatos e associações da categoria, que, desde a primeira metade do século XX, pressionaram o poder público exigindo igualdade de direitos para as trabalhadoras domésticas, a Emenda Constitucional n° 72, que ficou conhecida como PEC das domésticas, foi aprovada em 2 de abril de 2013, abrindo um importante caminho para promulgação da Lei n° 150 de 2015, que complementou ainda mais os avanços conquistados pela categoria. Essa lei, que estabelece quem são considerados os empregados domésticos, proibiu a contratação de menores de 18 anos para exercer a função de empregado doméstico, definiu a duração normal do trabalho doméstico como não excedente a 8 horas diárias e 44 horas semanais, estipulou o valor de hora extra, sendo no mínimo de 50% superior ao valor da hora normal, permitindo a compensação de horas extras, mediante acordo entre as partes envolvidas (empregado e empregador), entre outros pontos cruciais para a proteção dos direitos humanos e trabalhistas dessa categoria. No entanto, uma das principais críticas a essa lei foi em relação ao trabalho das diaristas, que não foram incluídas nessa legislação, e, por isso, não possuem os mesmos direitos assegurados por essas recentes atualizações. Ver mais em: BRASIL. Lei Complementar nº 150, de 01 de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico; altera as Leis no 8.212, de 24 de julho de 1991, no 8.213, de 24 de julho de 1991, e no 11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do art. 3o da Lei no 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei no 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei no 9.250, de 26 de dezembro 1995; e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 02 jun. 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm. Acesso em: 07 abr. 2024. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm 28 protege e garante os direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil, conforme salienta Teixeira (2021)12, Falar de diaristas é falar de uma maioria de mulheres que trabalham na informalidade, sem qualquer proteção social, e que exercem também um serviço mais intenso todos os dias, já que comumente organizado num cronograma de faxinas – limpezas mais pesadas – ao longo da semana em várias residências. Falamos de trabalhadoras que podem conseguir um rendimento médio por hora maior com a atividade de diarista, mas falamos também de um Estado omisso na proteção dessas trabalhadoras. (Teixeira, 2021, p. 56) Uma das entrevistadas nos relatou que começou a trabalhar como doméstica aos 15 anos e que, em todo esse tempo, só foi registrada “duas vezes”: uma em uma “firma” e outra em uma das inúmeras casas que trabalhou até hoje (Souza, 2022). Segundo a entrevistada, atualmente ela trabalha em duas casas como diarista, trabalhos estes que ocupam três dias por semana e que, de acordo com suas palavras, em uma destas “casa de família”, trabalha há dois anos cuidando de um “senhorzinho” e dos afazeres domésticos13. A historiadora e ativista Preta Rara (2019)14 nos convida a pensar sobre o trabalho doméstico na atualidade como um trabalho que tem suas origens no período colonial do Brasil. No título da obra, podemos nos deparar com uma triste realidade: a de que “a senzala moderna é o quartinho da empregada”, afirmação que podemos evidenciar a partir dos relatos de trabalhadoras domésticas expostos na sua obra. Alguns dos relatos que colhemos nas entrevistas que realizamos com trabalhadoras domésticas em São Paulo também sinalizam o que Preta Rara afirma na apresentação do seu livro, que nos “mostra o quanto o Brasil ainda bebe em fontes coloniais se banhando na servidão desde a escravidão” (Preta Rara, 2019, p. 7). Graham (1992) salienta como era a realidade das criadas antes do findar do século XIX: As criadas de dentro de casa eram responsáveis também por outras ocupações. A ama-de-leite, a mucama e a costureira prestavam serviços pessoais aos membros da família do patrão. Quando possível, uma família preferia selecionar dentre as criadas de sua casa uma escrava que tivesse dado à luz recentemente e usá-la para amamentar as crianças da casa; ou, então, alugava- se uma ama-de-leite para morar em casa. (Graham, 1992, p. 49). 12 A obra de Juliana Teixeira (2021), intitulada “Trabalho Doméstico”, faz parte da Coleção Feminismos Plurais, organizada e coordenada pela mestra em filosofia política, feminista negra, escritora e pesquisadora Djamila Ribeiro, ela própria filha de uma empregada doméstica. 13 SOUZA, Cleusa. Entrevista concedida a Anderson Vicente dos Santos. São Paulo, 2022. 1 arquivo .mp3. (30 min.). 14 PRETA RARA [Joyce Fernandes]. Eu, empregada doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada. Belo Horizonte: Letramento, 2019. 29 Grande parte das trabalhadoras domésticas ainda relatam que, em muitas casas das patroas, são obrigadas a dormirem no local de serviço e a cuidarem dos filhos de seus patrões, mesmo que tenham sido contratadas apenas para limpar a casa em período normalizado de trabalho de 8 horas diárias. Diante de tal constatação, nosso objetivo é compreender como se dão as relações de trabalho na atualidade e como estão sendo organizadas as lutas contra a precarização do trabalho doméstico. Acreditamos na importante tarefa dos sindicatos, das organizações, dos movimentos trabalhistas, do movimento de mulheres, coletivos feministas, entre outros, que realizam essa discussão acerca de todas as problemáticas voltadas ao trabalho doméstico: Certo, o trabalho sob as condições do capitalismo é um trabalho embrutecedor. Certo, não é criativo e é alienante. Ainda assim, com tudo isso, permanece o fato de que, se estão empregadas, as mulheres podem se unir a suas irmãs – e inclusive a seus irmãos – a fim de desafiar os capitalistas no local de produção. Como trabalhadoras, como militantes ativas no movimento operário, as mulheres podem gerar o verdadeiro poder de combater aquele que é o sustentáculo e o beneficiário do sexismo: o sistema capitalista monopolista. (Davis, 2016, p. 252). Para Davis (2016), as condições de superexploração das forças de trabalho, impostas a essas mulheres, podem ainda servir como a alavanca que impulsiona a organização dessas trabalhadoras para lutarem pelos seus direitos, seja quanto ao trabalho reprodutivo exercido pelas donas de casa, seja a partir do lugar das trabalhadoras domésticas remuneradas. Nesse sentido e de acordo com a autora, as mulheres passam a reivindicar suas pautas formuladas nos encontros com os grupos que se formam por meio desse contato, em que trocam informações umas com as outras sobre suas experiências de trabalho. E assim promovem discussões em reuniões, nas quais se organizam para conduzir a luta pela conquista de seus próprios direitos. Essas formas de organização podem se dar de várias maneiras, tanto de modo autônomo quanto por meio dos sindicatos, por meio dos movimentos sociais, como o movimento feminista, movimento negro, movimento indígena, movimento LGBTQIAPN+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais, pansexuais, não-binários e o símbolo de “mais” no final, que inclui outras identidades e orientações que não estão explicitamente representadas pelas letras anteriores), entre outros. De acordo com Akotirene (2019, p. 23), o “feminismo negro dialoga concomitantemente entre/com as encruzilhadas, digo, avenidas identitárias do racismo, cisheteropatriarcado e capitalismo”. Dessa forma, consideramos que diante da realidade da última década, exposta pelas trabalhadoras que entrevistamos e pela 30 análise de nossas referências, uma pequena minoria de trabalhadoras domésticas é sindicalizada. Dados da PNAD Contínua 2019/2022 apontam que a taxa de sindicalização de trabalhadores domésticos corresponde a 2,8% (IBGE, 2023), que significam 179 mil15 trabalhadores domésticos sindicalizados de um total de 6,2 milhões. Embora diminuto, o número de trabalhadoras domésticas sindicalizadas e a própria existência de sindicatos e associações de trabalhadoras domésticas nos permitem compreender essas relações no âmbito das resistências contra as camadas de opressões sofridas pelas trabalhadoras domésticas em São Paulo. As lutas que convergem na obtenção e/ou extensão de direitos demonstram a agência das mulheres trabalhadoras domésticas como sujeitos históricos. Suas narrativas fazem parte da história social do trabalho e do Brasil, as quais devem ser recuperadas Para rompermos efetivamente com mitos como o da democracia racial, ou de “quase da família”, os silenciamentos e as violências ainda presentes nas relações de trabalho doméstico. Essas questões levantadas se convergem com as problemáticas das trabalhadoras domésticas e denunciam a desvalorização do trabalho doméstico, a opressão da mulher como gênero e a exploração histórica dos negros e negras. Sobre a metodologia da interseccionalidade que utilizamos em algumas de nossas análises, Crenshaw (2002) a define como: A interseccionalidade é uma conceituação do problema às consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desemponderamento. (Crenshaw, 2002, p. 177). Historicizar essas relações por meio da lente analítica da interseccionalidade entre gênero, raça e classe contribui para que a história seja narrada a partir da voz daquelas que estão à margem da sociedade. 15 Dados revelados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do IBGE, em 2023. Ver mais em: BRUNO, Maria Martha. Segunda categoria mais beneficiada pelo Auxílio Emergencial, trabalho doméstico perde 1,5 milhão de postos de trabalho. Gênero e Número. fev. 2021. Disponível em: https://www.generonumero.media/reportagens/domestica-auxilio-emergencial-emprego/. Acesso em: 12 ago. 2023. http://www.generonumero.media/reportagens/domestica-auxilio-emergencial-emprego/ http://www.generonumero.media/reportagens/domestica-auxilio-emergencial-emprego/ 31 Dessa forma, acreditamos dialogar ainda com autoras e autores tais como Lorena Féres da Silva Telles (2011), Joaze Bernardino (2015), Soraia Carolina de Mello (2015), Juliana Teixeira (2021) e Maurício Reali Santos (2021), que, antes de nós, a partir de suas pesquisas, contribuíram para romper com o silenciamento historiográfico de determinados sujeitos, nesse caso em específico, das mulheres trabalhadoras domésticas no Brasil. Em outras palavras, buscamos contribuir com as historiografias que estão atentas ao discurso do “vencedor” presente nas narrativas historiográficas constituídas sob as perspectivas ocidentais. Em sua maior parte, abdicaram de trazer a história de sujeitos que ainda possuem pouca visibilidade na produção acadêmica. Histórias como a de Maria Nilza Alves dos Santos, mulher negra, atualmente com 66 anos, nascida em Inema, distrito de Ilhéus – BA, e mãe deste pesquisador, que também chegou a realizar trabalho doméstico assim que chegou em São Paulo, possuem grande relevância para a historiografia social do trabalho, bem como para os estudos de gênero e raça. Sua história de vida evidencia a história de muitas outras Marias, visto que não chegou a conhecer os pais biológicos e foi adotada ainda bebê, na virada da década de 1950 para a de 1960, na região do Sul da Bahia, onde o trabalho análogo à escravização ainda era muito presente na produção de cacau.16 Apesar de sua mãe adotiva nunca ter confirmado quem a entregou aos seus cuidados, é muito provável que os seus pais biológicos fossem trabalhadores que exerciam trabalhos análogos à escravidão nas lavouras de cacau.17 As histórias contadas pela família que a adotou falavam sobre pessoas negras e indígenas que foram escravizadas e não tinham condições de criar os seus filhos e os 16 De acordo com Dantas (2014), que se dedicou a pesquisar sobre os modos da produção agrícola de cacau no Sul da Bahia, a produção de cacau se fortaleceu na agricultura daquela região a partir do ano de 1830, quando cerca de 26 toneladas foram produzidas pelo modo de trabalho escravizado. Com base em nossa leitura dessa dissertação de mestrado, intitulada “Os meeiros do Cacau no Sul da Bahia: trabalho, corpo e documentação” (Dantas, 2014), é possível compreender um pouco mais a fundo as recriações desses diferentes modos de produção que se deram ao longo das transformações sociais, políticas, sociais e econômicas que passaram do trabalho escravizado, contratista, diarista, empreiteiro, arista e meeiro, conforme é possível observar no quadro que consta em Dantas (2014, p.22) sobre as relações de trabalho antes de 1989 até o surgimento da parceria (meeiros, que se deu entre os anos de 1999 à 2013). De acordo com nossos cálculos, existe a hipótese de que os pais de Maria Nilza tenham trabalhado nas lavouras de cacau entre os anos de 1940 e 1960, em que as principais categorias de trabalho nas lavouras eram as de “contratistas” e “diaristas” (Dantas, 2014, p.32-33). 17 Ainda segundo o autor, o contratista só recebia o seu salário ao término do seu trabalho, que consistia principalmente em desmatar a área nas terras de seu contratante, preparar a terra, plantar o cacau e realizar a colheita. Os contratos eram feitos de modo verbal e informal, na maioria dos casos, o que acarretava em não pagamento dos salários ao final do serviço realizado. No decorrer do trabalho, nenhum salário era pago e, na maioria das vezes, o contratista sobrevivia do que plantava no meio das roças de cacau (Dantas, 2014, p.35) Ver mais em: DANTAS, Emiliano Ferreira. Os Meeiros do Cacau do Sul da Bahia: trabalho, corpo e documentação. 2014. 176 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/12015. Acesso em: 05 maio 2024. 32 entregavam para adoção, junto às famílias de proprietários de terras, em casas de conhecidos daquela região. Maria Nilza sempre nos contou sua história de vida e, conforme os anos foram passando, foi possível entender o significado dos termos exploração, preconceito e resistência. Possivelmente seja esse o principal motivo e a justificativa para a escolha do tema para esta pesquisa. Ao relatar sua história, ela nos contou que migrou da Bahia quando ainda era criança. De acordo com os seus relatos, testemunhados pelas irmãs deste pesquisador, Maria Nilza migrou, no final dos anos 60, de Inema, distrito de Ilhéus – BA, para “tentar a sorte em São Paulo” e morar na casa de uma de suas irmãs mais velhas. Chegando a São Paulo, entre os 11 e 13 anos de idade (não se recorda ao certo), foi chamada para trabalhar, ainda adolescente, como babá de bebês gêmeos na residência de um casal, donos de uma padaria no bairro onde morava em Osasco-SP. Relata que passou algumas temporadas de férias na Praia dos Sonhos (Itanhaém – SP), na casa de praia dessa família para a qual prestava serviços domésticos. Apesar de aparentemente não questionar as relações de trabalho ou sua relação com a família para quem trabalhou, ela usa frases como “me tratavam bem”, “eu tinha meu quartinho”, “eu, bem dizer, não era uma empregada”. As narrativas deixam transparecer um tratamento pretensamente bom e alguma resistência. Ao retratar sua experiência de trabalhadora doméstica, Maria ilustra a condição de exploração do trabalho infantil, o tratamento preconceituoso pela sua origem e cor e a diversidade de suas experiências condicionadas ao trabalho informal para sua sobrevivência. Estudar e refletir sobre essas narrativas nos ajuda a recuperar a história de trabalhadoras e suas experiências de vida, bem como as dimensões da luta pela sobrevivência. Esse próprio pesquisador, antes de ingressar na vida acadêmica, foi também submetido a diversas opressões em um trabalho doméstico, em que as tarefas consistiam em cuidar da limpeza de uma enorme mansão, dos cachorros da patroa em uma região nobre da Grande São Paulo, onde era obrigado a passar 24 horas na casa, de segunda a sábado, pois a patroa não queria que os cachorros fizessem suas necessidades na casa sem a presença de um empregado doméstico para limpar imediatamente. A vivência deste pesquisador junto às experiências das mulheres da sua família proporcionou uma dimensão das dificuldades do trabalho exercido dentro de casa, bem como a dimensão do racismo estrutural, do machismo e de outras condições de subalternização. Saber da construção de seus direitos e refletir sobre a sua ausência nas relações de trabalho são de suma importância para a garantia tanto de direitos trabalhistas, quanto dos próprios direitos humanos. Ter direito à aposentadoria, ao recebimento correto do salário, não sofrer 33 perseguições/demissões ou a não contratação por serem negras ainda são lutas que se fazem presentes em suas vidas, sob a forma de direitos negados. Presume-se que todas as pessoas que também já exerceram trabalho doméstico no Brasil deveriam saber da importância de se conhecer os direitos e de ser valorizado pelo seu trabalho. O objetivo de historicizar essas narrativas justifica esta dissertação. 34 2 AS ORIGENS COLONIAIS DO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL Descendentes de escravocratas e descendentes de escravizados lidam com heranças acumuladas em histórias de muita dor e violência, que se refletem na vida concreta e simbólica das gerações contemporâneas. Fala-se muito na herança da escravidão e nos seus impactos negativos para as populações negras, mas quase nunca se fala na herança escravocrata e nos seus impactos positivos para as pessoas brancas. (Bento, 2022, p.23). Sabemos que o trabalho doméstico no Brasil teve início no período da colonização, quando muitas mulheres indígenas e negras africanas foram escravizadas pelos colonos portugueses, sendo obrigadas a trabalhar porta adentro da casa-grande. Lacerda (2010), pesquisadora do Departamento de Direito da PUC-Rio, aponta que desde os primeiros momentos do período colonial no Brasil, a mulher indígena foi submetida à exploração de seu corpo e cultura, recaindo-lhe a função de matriz fundamental. A pesquisadora ressalta que além dessa ‘função reprodutiva’, os povos originários serviram aos colonizadores portugueses como mão de obra escrava, principalmente a partir de 1532, com o regime das donatárias, em que o indígena passou a ser visto como mão de obra escravizável, sendo as mulheres captadas para o trabalho agrícola, “para a gestação de crianças e para o cativeiro doméstico” (Ribeiro, 2006 apud Lacerda, 2010, p. 41-43). Ainda segundo Lacerda (2010), a escravidão indígena foi predominante no século XVI, tendo a escravização dos povos negros superado apenas a escravização dos povos indígenas no segundo século da colonização. A contextualização da pesquisa acima elucida e reforça a ideia de que as mulheres indígenas foram as primeiras a serem escravizadas como domésticas no Brasil colonial, além de, logo em seguida, as mulheres negras vítimas do tráfico negreiro seguindo o ritmo da exploração de gênero, raça e classe perpetuada pelos colonizadores. É possível afirmar que as origens escravistas do trabalho doméstico no Brasil ainda reverberam inúmeras formas de preconceitos, desigualdades e explorações vivenciadas pelas mulheres que realizam o trabalho doméstico no país. As entrevistas feitas com trabalhadoras domésticas que residem nas periferias da grande metrópole São Paulo e exercem ou exerceram trabalho doméstico na última década nos dizem muito sobre algumas das principais formas de desigualdades tecidas no período escravocrata do Brasil, as quais se consolidaram de formas tão profundas a ponto de estarem presentes ainda hoje em nossa sociedade. Essas trabalhadoras brasileiras, que na maioria dos 35 casos são negras e pardas18, conforme evidenciamos em nossa pesquisa, ainda sofrem com os benefícios e privilégios que a branquitude proporcionou à elite branca, ao longo da história de formação da sociedade brasileira. As histórias de vida das trabalhadoras domésticas relatam um pouco sobre a realidade do racismo, da desigualdade social e demais impactos negativos enfrentados por elas ao longo dos anos. Porém, a percepção e a análise dos privilégios e dos benefícios herdados pelas pessoas brancas em uma sociedade racista como o Brasil também se fazem necessárias, uma vez que falamos sobre mulheres negras, pardas e afrodescendentes/descendentes de povos originários, que não tiveram as mesmas oportunidades ou privilégios dos quais pessoas brancas e descendentes diretas (ou majoritariamente) de famílias europeias foram detentoras no decorrer da construção dessa sociedade. Neste capítulo, discutiremos sobre as origens coloniais do trabalho doméstico no Brasil, buscando compreender de onde surgem e como se mantêm algumas das problemáticas atuais (como a exploração social do trabalho, o racismo, a desigualdade de gênero, a desigualdade social escancarada na desigualdade salarial, no atraso da garantia de direitos e na aplicabilidade e no cumprimento da legislação vigente) que as trabalhadoras domésticas continuam enfrentando no cotidiano do exercício de seu trabalho. 18 A utilização desse termo tem gerado um caloroso debate dentro e fora do meio acadêmico, sobretudo a partir das críticas por alas mais radicais do movimento negro brasileiro. Aqui, neste texto, fazemos o uso da terminologia “pardo”, que se justifica em consonância com a pesquisa “Impedidos de entrar em Wakanda: reflexões sobre parditude, manifestações midiáticas e desafios de pertencimento”, de Beatriz Bueno (2021), criadora da página “parditude” na rede social Instagram. Atualmente, esse debate ainda segue sendo permeado de grande polêmica, passando por discussões voltadas à questão do colorismo, ou até mesmo da negação da existência de uma “raça” parda e sim de uma diversidade de tons de pele e demais fenótipos entre pessoas negras, mas que afirma a inexistência de uma raça parda. Concordamos com Kabenguele Munanga (2023) quando em entrevista intitulada “Rediscutindo racismo, negritude e mestiçagem”, responde à pergunta de Sulamita Rosa, que, citando a pesquisa de Beatriz Bueno (2021), questiona se “Em síntese, é possível pensar parditude, separado da negritude no Brasil e também para além do contexto brasileiro?”. Em sua resposta, Munanga afirmou que não existe uma resposta correta para essa questão, uma vez que o Brasil é um caso à parte de outras regiões, como no caso dos EUA e da África do Sul, por exemplo, que tratam esse tema de formas distintas, devido aos processos de segregação e apartheid terem sido diferentes do que ocorreu no Brasil, a partir da miscigenação imposta como forma de embranquecimento da população, causando assim uma enorme mistura entre as raças a partir de violência, abuso e, muitas vezes, o estupro, como forma de punição do homem branco contra escravizadas negras e indígenas, tendo ocorrido desde o período colonial no Brasil. 36 2.1 A origem e a transição do trabalho doméstico do período escravocrata para o período pós-abolição “A falsa abolição fez vários estragos Fez acreditarem em racismo ao contrário Num cenário de estações rumo ao calvário Heróis brancos, destruidores de quilombos Usurpadores de sonhos, seguem reinando [...]” “A carne mais barata do mercado é a negra. A carne mais marcada pelo Estado é a negra.” (G.O.G. – Carta à Mãe África) O trabalho doméstico no Brasil passou por diversas fases e formatos ao longo da história, tendo sua origem com as mulheres indígenas originárias e negras africanas trazidas forçadamente no período colonial, desde então se consolidando no decorrer dos tempos da formação da sociedade brasileira. Ainda que o recorte temporal desta pesquisa esteja voltado ao período contemporâneo, que corresponde à última década do século XXI, julgamos importante o retorno ao período escravista para a compreensão de algumas situações experienciadas pelas trabalhadoras domésticas no(s) mundos(s) do(s) trabalho(s) contemporâneo(s). Uma vez que até mesmo após a implementação da Lei Complementar n° 150 de 2015, como veremos, muitas mulheres relatam situações como “a última carteira que eu tive, assinada foi esse emprego meu que eu trabalhei 10 anos nessa casa” (Alves,2022), tal retorno ao passado colonial se prova importante, ainda que brevemente,. Partindo do pressuposto de que as origens do trabalho doméstico no Brasil remontam ao período em que vigorou o sistema escravista, consideramos a necessidade de analisar algumas fontes dos séculos XVI ao XIX, em que podemos observar que o trabalho e os cuidados do lar eram destinados às escravizadas. Esses longos anos de escravização, nos quais tanto mulheres indígenas quanto mulheres negras foram escravizadas, não só, mas principalmente, para realizarem os afazeres domésticos nas casas do senhorio, causaram impactos que perduram até hoje. Mesmo no período pós-abolição, ex-escravizadas continuaram a trabalhar como domésticas e vivenciaram experiências semelhantes à escravização. Nesse período, as domésticas trabalhavam sem horário definido, por vezes sem receber dinheiro, morando na casa dos patrões e exercendo o trabalho doméstico muitas vezes em troca de comida e de um teto para dormir (Teixeira, 2021). 37 Contudo, Oliveira (2021) salienta formas diferentes de analisarmos o trabalho doméstico na contemporaneidade: Há processos históricos imbricados nas suas trajetórias e desnudar estas historicidades não significa conectar automaticamente o passado escravocrata e o presente experimentado por estas mulheres, mas apreender as nuances das rupturas, linhas de continuidades e recriações das formas de explorar e resistir que atravessam o tempo e seus sujeitos com formas diferentes num campo de trabalho cujas particularidades revelam relações sociais duradouras e características das elites patronais do tempo presente. (Oliveira, 2021, p. 621). Essa pesquisa dialoga com a nossa tese de que o trabalho doméstico no Brasil contemporâneo não é uma simples continuidade do período escravocrata, mas sim uma série de complexas ressignificações que, ao longo do tempo, foram sendo readaptadas para funcionarem de forma legal na sociedade brasileira. Basicamente, o trabalho doméstico no Brasil contemporâneo não é o mesmo exercido no sistema escravagista, mas não há como negar determinadas heranças e continuidades desse regime colonial do qual o trabalho doméstico surge no Brasil. A partir do relato da trabalhadora Célia Alves (2022), é possível observarmos a forma como muitos dos patrões e patroas tratam as trabalhadoras domésticas no cotidiano da realização de seus serviços. Ao perguntarmos para a trabalhadora se já havia sofrido algum abuso ou exploração por parte de seus empregadores, ela responde: Não, o abuso num digo, né? Mas humilhação eu tive de muitas patroas, entendeu? É, inclusive, que nem eu falei pra você... É... Deixar eu sem comer, sem café, eu ter que pegar meu dinheiro e comprar pão, comprar marmitex... Isso aí para mim foi uma humilhação (Alves, 2022). Esse tipo de situação de humilhação e preconceito (de raça, gênero e classe) não se trata de mera semelhança com o período escravagista. Na atualidade, tais relações estão baseadas em um novo regime em que o trabalho doméstico é realizado em um outro contexto, no entanto, não é possível distingui-lo por completo de suas raízes coloniais, principalmente por ser uma profissão que ainda é atravessada por diversas questões relacionadas a raça, classe e gênero que se interseccionam. Em seu artigo, Oliveira (2021) realizou uma importante análise dos depoimentos das trabalhadoras domésticas contidos na obra de Preta Rara (2019)19, estimulando o leitor a encarar a história do trabalho doméstico no Brasil por meio de um olhar 19 Joyce Fernandes, que também é conhecida pelo nome artístico Preta Rara, é autora do livro “Eu, empregada doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada”. Belo Horizonte: Letramento. 2019. 38 crítico, sensível e atento para as nuances contidas nas transformações e continuidades que ocorreram nos diferentes campos de espaço/tempo, bem como aos diversos caminhos pelos quais o trabalho doméstico transitou no decorrer desse longo processo. Nesse percurso, também tivemos acesso ao trabalho de Santos (2021)20, que se dedicou à pesquisa sobre as experiências e lutas de trabalhadoras domésticas em Porto Alegre no século XX. Ambos os trabalhos nos ampliaram o horizonte para a análise dos relatos das trabalhadoras domésticas que entrevistamos. Suas pesquisas nos revelam uma série de questões que nos provoca a refletir sobre as particularidades, tanto das rupturas quanto das continuidades e recriações dessas diferentes formas de abusos/explorações e resistências vivenciadas por essas mulheres. Além disso, é importante salientar que esses dois trabalhos nos trouxeram novos olhares e novas referências sobre a reutilização dos termos “mudanças” e “permanências”21. A principal pergunta que nos move nesse primeiro capítulo é: o que foi o serviço doméstico no Brasil? Para buscarmos essa resposta, é importante ressaltar que quando falamos desse tema, buscamos retroceder ao período de formação do Brasil, o período colonial. Para compreendermos o trabalho doméstico nesse período, temos de pensar no que eram as casas, os móveis, objetos e, sobretudo, suas ferramentas de trabalho. Conforme salienta Thompson (1987), abordando a realidade do trabalho doméstico na Inglaterra no contexto da industrialização: Foi necessário esperar cem anos antes que esta diferenciação trouxesse algum benefício para as trabalhadoras, na forma de aparelhos que auxiliassem no trabalho doméstico. Enquanto isso, a família era brutalmente separada todas as manhãs pelo sino da fábrica, com a particularidade de que a mãe assalariada se sentia vivendo no pior lado dos dois mundos, o doméstico e o industrial. (Thompson, 1987, p. 308). 20 SANTOS, Maurício Reali. Nas fronteiras da domesticidade: experiências e lutas de trabalhadoras domésticas por direitos em Porto Alegre (1941-1956). Jundiaí: Paco Editorial, 2021. 21 Em artigo publicado na fase inicial desta pesquisa, há uma abordagem sobre as “mudanças e permanências” (Santos, 2021) no que tange às relações entre gênero, raça e classe que se interseccionam nos relatos de trabalhadoras domésticas sul-mato grossenses, entrevistadas no período de graduação realizada entre os anos de 2016-2020 na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lagoas. As contribuições e as referências bibliográficas de Oliveira (2021) nos chamaram a atenção para repensarmos as expressões das mudanças e permanências que utilizamos como recorte, uma vez que estas soam como se tais relações fossem simples de se definir. Sendo assim, passamos a utilizar o uso dos conceitos de rupturas, continuidades e recriações, os quais acreditamos serem mais adequados para tratarmos dessas relações de forma mais atenciosa. Ver mais em: SANTOS, Anderson Vicente dos. Memórias e impressões de trabalhadoras domésticas de Três Lagoas-MS e as relações entre o trabalho, gênero e raça. Revista Outras Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 2, p. 55–77, 2021. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/outrasfronteiras/index.php/outrasfronteiras/article/view/447. Acesso em: 07 abr. 2024. 39 Apesar de serem realidades vivenciadas em tempos diferentes, a história narrada por Thompson (1987, p. 307) nesse trecho se trata de uma reflexão sobre essa “nova independência” do trabalho feminino nas fábricas, sobre os benefícios do processo industrial no que tange às ferramentas de trabalho criadas para agilizar o serviço doméstico, entre outros, além da sobrecarga das duplas e demais jornadas de trabalho, ainda muito comuns na realidade atual de trabalhadoras brasileiras. A literatura pode ajudar a compor o imaginário com a história de vida de Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo. A história se baseia no relato de uma mulher negra, neta de escravizados, e traz à tona um pouco da realidade do cotidiano doméstico no período pós- abolição. Ao falar sobre a mãe de Ponciá Vicêncio, presenciando os seus primeiros passos dados na área da cozinha, Evaristo (2017) pontua algumas questões importantes no que tange às formas do serviço doméstico. À primeira vista, notamos a questão das múltiplas tarefas destinadas à mulher, que no caso cozinhava ao mesmo tempo em que segurava a filha pequena no colo. A segunda está no próprio ato de cozinhar em si, que, naquele período, ainda era realizado em fogão à lenha, conforme ressalta no excerto abaixo: Um dia, a mãe com ela nos braços, estava de pé junto ao fogão de lenha, olhando a dança do fogo sob a panela fervente, quando a menina veio escorregando mole. Veio forçando a descida pelo colo da mãe e, pondo-se de pé, começou as andanças. (Evaristo, 2017, p. 16). De fato, até o final do século XIX, não havia fogão a gás, eletricidade, ou qualquer tipo de aparelho eletroeletrônico, tais como máquina de lavar roupas ou aspiradores de pó, à disposição para auxiliar as mulheres no serviço doméstico. Os instrumentos de trabalho que elas utilizavam eram rústicos e, na maior parte das casas, pelo menos até meados de 1870 e 1880, não havia nenhuma fonte de água encanada (Graham, 1992, p. 54). Sem um sistema de água encanada ou esgoto, a lavagem de roupas, louças e demais utensílios eram realizadas nos rios ou a partir da água de chafariz que era transportada em baldes pesados, os quais elas eram obrigadas a carregar na cabeça (Graham, 1992, p. 55). Os banheiros eram latrinas, a comida era feita em espaços lamacentos, inicialmente em fogueiras e mais adiante em fogão à lenha, o que tornava o serviço ainda mais pesado. Imagem 1. Anúncios de ama do Diário de Pernambuco (abril de 1876) 40 Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. As mulheres escravizadas domésticas, que eram chamadas de “ama”, como podemos ver nos anúncios na Imagem 1, ou de “escravas de casa”, foram obrigadas a realizar diversos tipos de serviços na casa dos seus senhores e sinhás. Além de limparem toda a casa (parte interna e externa), cozinhar, lavar e costurar as roupas, em alguns casos eram forçadas a amamentar os filhos e filhas do senhorio. As chamadas “amas de leite” eram vendidas como escravizadas, as quais, além dos serviços domésticos que comumente realizavam, eram obrigadas a servirem as vontades do senhorio, amamentando os seus bebês, conforme vemos no anúncio abaixo: Imagem 2. Anúncio de venda de mulher escravizada como ama de leite Fonte: NASCIMENTO (2013). O anúncio acima expressa algumas das principais “preocupações” dos senhores e sinhás que buscavam as mulheres escravizadas para servirem em suas casas, além de não deixar de 41 nos atentar para uma das diversas formas de resistência das mulheres negras naquele período. Nesse caso em específico, tratava-se de uma ama de leite que estava sendo vendida por “não querer mais servir aos seus antigos senhores”. São inúmeras as possibilidades do que a ama de leite desse anúncio sofreu nas mãos daqueles que a escravizaram, provavelmente não saberemos os detalhes dessa experiência, no entanto, a frase que demonstra uma forma de resistência, a da recusa em servir os seus algozes, é o que mais nos chama a atenção, pois comprova que as lutas travadas pelas domésticas (nesse caso, escravizadas domésticas) contra os abusos e explorações por parte dos empregadores existe bem antes de vigorarem as primeiras leis trabalhistas criadas para atender às demandas das trabalhadoras domésticas. Conforme salienta Muaze (2018), as amas de leite do século XIX, na maior parte dos casos, foram obrigadas a abdicarem dos cuidados dos próprios filhos, não apenas para amamentarem os bebês de seus respectivos senhores, sendo designadas ainda a outras tarefas envolvendo outras questões relacionadas aos cuidados dos bebês, mas, em muitos casos, também aos cuidados domésticos: Sua tarefa consistia principalmente em amamentar o filho do senhor, bem como cuidar de sua higiene e educação física para que o corpo do bebê fosse preservado sadio na primeira infância, quando seus serviços de aleitamento não seriam mais necessários. Houve casos em que a amamentação e os cuidados com o bebê eram tarefas exclusivas, mas foi recorrente a execução de outras atividades em paralelo. Todavia, na maioria das vezes, implicava “silenciar sua maternidade”, abrindo mão do aleitamento de seu próprio filho para cuidar do de outra mulher. (Muaze, 2018, p. 362). Tanto as habilidades atribuídas no serviço doméstico quanto o estado de saúde das próprias escravizadas eram colocadas em evidência nos anúncios. Outro ponto que chama a atenção nesse anúncio está relacionado à amamentação (moça com cria), pois, sendo assim, além de lavar roupas, realizar a limpeza da casa e cozinhar, também serviria aos seus senhores e sinhás como ama de leite. Graham (1992) salienta sobre a questão da preocupação que os senhores tinham com a alimentação “saudável” das amas de leite, não por se preocuparem com a mulher escravizada, mas sim com a saúde dos seus filhos que seriam amamentados por elas: Os patrões reconheciam que, para uma criança ser saudável, a ama-de-leite precisava de alimento “um pouco mais nutritivo”. Mas sua dieta não deveria ser totalmente diferente do que a ama costumava comer, pois a uma mulher acostumada a alimentos “menos delicados não se deverá absolutamente dar por único alimento galinhas”. Alho, cebola crua, alimentos picantes, ou comidas gordurosas, como carne de porco, iriam passar para o seu leite e provocar na criança de peito “digestivos irritantes”. Nem devia ser fácil de digerir: carne cozida e legumes, sopas grossas, nenhum álcool. (Graham, 1992, p. 111). 42 Nas referências bibliográficas sobre a formação do Brasil, é possível apreender nuances do imaginário, criado sobretudo pela literatura, a respeito das mulheres negras escravizadas domésticas. No entanto, é importante salientar que, enquanto historiadores, devemos estar atentos às fontes e referências. Imagem 3. Anúncio de aluguel de mulher escravizada (junho de 1821) Fonte: Diário do Rio de Janeiro (RJ), de 11 de junho de 1821, n. 11. Freyre (1933) discorre sobre a idealização do escravizado doméstico, exibindo alguns detalhes sobre a realização dos serviços dentro da casa-grande, para o qual eram escolhidos/as aqueles/as mais saudáveis e de melhor aparência aos olhos de seus escravizadores: A casa-grande fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos - amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos, mas o de pessoas de casa. Espécie de parentes pobres nas famílias européias. À mesa patriarcal das casas-grandes sentavam-se como se fossem da família numerosos mulatinhos. Crias. Malungos. Moleques de estimação. Alguns saíam de carro com os senhores, acompanhando-os aos passeios como se fossem filhos. Quanto às mães-pretas, referem as tradições o lugar verdadeiramente de honra que ficavam ocupando no seio das famílias patriarcais. Alforriadas, arredondavam-se quase sempre em pretalhonas enormes. Negras a quem se faziam todas as vontades: os meninos tomavam- lhe a bênção; os escravos tratavam-nas de senhoras; os boleeiros andavam com elas de carro. E dia de festa, quem as visse anchas e enganjentas entre os brancos de casa, havia de supô-las senhoras bem-nascidas; nunca ex-escravas vindas da senzala. É natural que essa promoção de indivíduos da senzala à casa-grande, para o serviço doméstico mais fino, se fizesse atendendo a qualidades físicas e morais; e não à toa e desleixadamente. (Freyre, 1933, p. 419). É importante pontuar as problemáticas a respeito da obra de Freyre. Apesar de ser vista por uma grande parcela dos acadêmicos como uma das principais referências brasileiras sobre a questão da escravização no Brasil, ao a utilizarmos como referência, não saímos em sua defesa. Sendo conhecida globalmente e utilizada em diversos setores da academia, é importante 43 ressaltarmos as críticas que a obra sofreu ao longo dos anos para compreendermos melhor os “perigos de uma história única”, do qual fala Adichie (2019).22 Alvo de duras críticas, realizadas principalmente por autores como Florestan Fernandes (2021) e Emília Viotti da Costa (1979)23, a obra “Casa-Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, tentou passar uma visão branda da escravização no Brasil. Além de ter sido muito criticado por esse seu posicionamento, Freyre também foi questionado com relação ao seu pensamento sobre o processo de miscigenação, que, na maioria dos casos, foi causado pelo estupro de mulheres negras e indígenas desde o início da colonização (Nascimento, 1978)24. As críticas à “Casa- Grande e Senzala” não param por aí e, de acordo com Cunha Junior (2013), possuem fundamentos ainda mais profundos, pois tratam do reforço de conceitos de inferioridade construídos e lançados sobre a população negra até a atualidade: Os cotidianos da população negra são gerados por um conjunto de pensamentos presentes no imaginário social. Não importa como eu esteja bem vestido ou quem eu seja profissionalmente, existe um pensamento sobre um coletivo da população. As pessoas são vistas relacionadas com o que a sociedade pensa sobre as culturas de origem, independente de quem elas sejam. Neste sentido é que podemos dizer que a edição do livro Casa-Grande & Senzala não representou nenhum impacto positivo sobre a vida da população negra. Apenas reforçou e formou de forma renovada vários conceitos racistas sobre a inferioridade civilizatória da população negra. (Cunha Junior, 2013, p. 88). De acordo com os dados das pesquisas obtidas no banco de dados do site “slave voyages”, estima-se que entre os anos de 1551 e 1875, ao menos 5.479.584 de africanos/as 22 No livro “O perigo de uma história única”, a autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (2019) fala sobre os perigos do epistemicídio, ou seja, da construção de uma história única, uma única narrativa realizada por parte dos ocidentais brancos. Nesse livreto, que é uma adaptação de uma de suas palestras, a autora aborda sobre sua infância, quando começou a escrever aos 7 anos de idade e sobre como as histórias que lia nos livros britânicos influenciavam o seu pensamento e a sua escrita. Segundo Chimamanda, todos os personagens de suas histórias eram brancos de olhos azuis, assim como nos livros que lia. Aí reside um bom exemplo do perigo de uma história única. Em vez de escrever como era viver na Nigéria, onde não havia neve, e comiam frutas direto do pé e sobre diversas outras questões culturais, relacionadas à história da África, Chimamanda, quando criança, seguia o que as histórias britânicas lhe ensinavam a partir de perspectivas ocidentais, brancas e das elites econômicas. Ver mais em: ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Tradução: Julia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 23 Ver mais em: FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 6. ed. São Paulo: Contracorrente, 2021. e COSTA, Emília Viotti. Da monarquia à república: momentos decisivos. 9. ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979. 24 De acordo com Abdias do Nascimento (1978, p. 69), “[para solucionar a ameaça da ‘mancha negra’] um dos recursos utilizados foi o estupro da mulher negra pelos brancos da sociedade dominante, originando os produtos de sangue misto: o mulato, o pardo, o moreno, o pardavasco, o homem-de-cor, o fusco”. Ver mais em: NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 44 foram vítimas do tráfico transatlântico realizado pelos portugueses. Provavelmente, esse foi um dos maiores movimentos de sequestro/tráfico de pessoas realizados até hoje25. É imprescindível ressaltar que essa grande dispersão dos africanos, também conhecida como Diáspora Africana26, não foi realizada por acaso, mas sim com objetivos bem articulados e definidos pelos colonizadores. Imagem 4. Ama de Leite e Menino Augusto (séc. XIX) Fonte: FREYRE (1933, p. 237). Em alguns casos, a ama de leite era tratada de forma diferente de outras escravizadas domésticas, vestindo roupas semelhantes às de suas senhoras, alimentando-se de comidas saudáveis para amamentar os “sinhozinhos” e “sinhazinhas” brancos/as, “assumindo um lugar afetivo importante” (Teixeira, 2021, p. 29) em suas vidas e, em alguns casos, eram escolhidas seguindo alguns critérios estéticos, físicos, morais e religiosos, uma vez que, para viverem 25 Ver mais em: https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates. Acesso em: 22 nov. 2023. 26 Conforme Silva e Xavier (2018, p. 2), “Diáspora pode ser entendida como um conceito com múltiplos significado