UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS VINICIUS CRANEK GAGLIARDO IMPRENSA E CIVILIZAÇÃO NO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA FRANCA 2016 VINICIUS CRANEK GAGLIARDO IMPRENSA E CIVILIZAÇÃO NO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA Tese apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré- requisito para a obtenção do título de Doutor em História. Área de concentração: História e Cultura Orientador: Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França FRANCA 2016 Gagliardo, Vinicius Cranek. Imprensa e civilização no Rio de Janeiro oitocentista / Vinicius Cranek Gagliardo. – Franca : [s.n.], 2016. 260 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Jean Marcel Carvalho França 1. Brasil - Usos e costumes - Séc. XIX. 2. Imprensa. 3. Estilo de vida - Rio de Janeiro (RJ). I. Título. CDD – 981.04 VINICIUS CRANEK GAGLIARDO IMPRENSA E CIVILIZAÇÃO NO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA Tese apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Doutor em História. BANCA EXAMINADORA Presidente: ________________________________________________________________ Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França, UNESP/Franca 1º Examinador: ____________________________________________________________ Prof. Dr. Paulo César Garcez Marins, USP 2º Examinador: ___________________________________________________________ Prof. Dr. Nelson Schapochnik, USP 3º Examinador: ____________________________________________________________ Prof. Dr. Marcos Sorrilha Pinheiro, UNESP/Franca 4º Examinador: ___________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira, UNESP/Franca Franca, 23 de agosto de 2016. A meus pais, Rogério e Marcia AGRADECIMENTOS Durante o desenvolvimento desta tese de doutorado, algumas pessoas e instituições contribuíram para sua realização, às quais não poderia deixar de agradecer. À minha família, pelo apoio e confiança durante todos esses anos. Ao professor Jean Marcel Carvalho França, cuja orientação, desde a graduação, foi decisiva para minha formação de historiador e para o resultado final deste trabalho. À professora Susani Silveira Lemos França, pela simpatia e gentileza com que sempre me recebeu em sua casa, durante as reuniões de estudo. Aos professores Yllan de Mattos Oliveira e Virginia Célia Camilotti, pelas críticas e caminhos para o prosseguimento da pesquisa indicados durante o exame geral de qualificação. Aos professores Paulo César Garcez Marins, Nelson Schapochnik, Marcos Sorrilha Pinheiro e Ricardo Alexandre Ferreira, pelos apontamentos e sugestões feitos durante a defesa do doutorado, fundamentais para refletir sobre a própria tese e para expandir os horizontes de minha formação. Ao amigo Renato Aurélio Mainente, pela leitura atenta da tese e pelas várias sugestões feitas, que em muito favoreceram o resultado final. À Larissa Soldate Correia, por acompanhar cada passo da pesquisa e escrita do trabalho e pela leitura paciente de cada linha. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP -, pela bolsa de doutorado concedida durante a realização da tese (Processo FAPESP nº 2012/10966-7). O jornal é a liberdade, é o povo, é a consciência, é a esperança, é o trabalho, é a civilização. Machado de Assis Meu papel - mas este é um termo muito pomposo - é mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam por verdadeiros, por evidentes certos temas fabricados em um momento particular da história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída. O papel de um intelectual é mudar alguma coisa no pensamento das pessoas. Michel Foucault GAGLIARDO, Vinicius Cranek. Imprensa e civilização no Rio de Janeiro oitocentista. 2016. 252 f. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2016. RESUMO A partir do desembarque da corte portuguesa no Brasil, em 1808, teve início no Rio de Janeiro um intenso processo de urbanização da cidade e de civilização de seus habitantes, cujos referenciais eram os padrões europeus de modernização, progresso e sociabilidade. Esse processo foi responsável, grosso modo, por incentivar um novo tipo de experiência social, marcadamente urbana, que gradativamente alterou a paisagem social oriunda dos tempos coloniais, predominantemente rural. A partir de então, grande parte dos valores e hábitos da população sofreram um desprestígio frente a um novo modo de vida que se difundiu, o que ocasionou inúmeras transformações no cotidiano dos habitantes locais, as quais se estenderam da fisionomia das cidades até os valores morais e costumes do povo. Embora essas modificações tenham sido promovidas por diversas instituições e agentes, os letrados ocuparam aí um dos papéis de maior destaque, pois entendiam que a cultura escrita - em especial as belas- letras e as ciências - tinha o dever de propagar as luzes e a civilização. Dos gêneros escritos, o jornalismo era considerado um dos mais importantes instrumentos de civilização, uma vez que a imprensa tinha o privilégio de publicar em suas páginas os mais diferentes saberes e novidades, divulgando temas referentes a literatura, poesia, crônica teatral, artigos de promoção científica, história, higiene, moda, boas maneiras, moralidade, etc., conhecimentos que sugeriam à população um novo modus vivendi, considerado mais urbano e civilizado. O objetivo principal deste estudo é explicitar este discurso pedagógico construído nos periódicos oitocentistas, o qual visava à formação de um povo e de uma nação civilizados. Para tal, procurou-se mapear uma série de prescrições que foram dirigidas à população, com o intuito de especificar quais eram os principais traços físicos, morais e comportamentais que deveriam compor o homem e a mulher que se desejavam produzir. Palavras-chave: Imprensa. Civilização. Povo. Rio de Janeiro. Século XIX. GAGLIARDO, Vinicius Cranek. Press and civilization in the nineteenth-century Rio de Janeiro. 2016. 252 f. Thesis (Doctorate in History) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2016. ABSTRACT From the Portuguese Court arrival in Brazil, in 1808, an intense process of urbanization of the city and civilization of its inhabitants began in Rio de Janeiro, whose references were the European modernization, progress and sociability standards. This process was responsible, roughly speaking, for encouraging a new kind of social experience, markedly urban, which gradually changed the social landscape from colonial times, predominantly rural. Since then, many of the people's values and habits have suffered disrepute facing a new way of life that has spread, which caused many changes in the daily lives of the locals inhabitants, which extended from the physiognomy of the cities to the moral values and customs of the people. Although various institutions and agents have promoted these changes, the literates occupied then one of the most prominent roles, because they understood that the written culture - especially the belles-lettres and sciences - had a duty to spread the lights and civilization. Of the written genres, journalism was considered one of the most significant instruments of civilization, since the press had the privilege to publish in its pages the most different knowledges and news, disseminating themes related to literature, poetry, theatrical chronicle, articles of science promotion, history, hygiene, fashion, manners, morality, etc., knowledges that suggested to the population a new modus vivendi, considered more urban and civilized. The aim of this study is to make explicit this pedagogical discourse built in the nineteenth-century periodicals, which aimed at the formation of a civilized people and nation. To do this, I tried to map a series of prescriptions that were directed at the population, in order to specify which were the main physical, moral and behavioral traits that should compose the man and woman who wanted to produce. Keywords: Press. Civilization. People. Rio de Janeiro. XIX century. GAGLIARDO, Vinicius Cranek. Prensa e civilización en Rio de Janeiro del siglo XIX. 2016. 252 f. Tesis (Doctorado en Historia) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2016. RESUMEN Desde la llegada de La corte portuguesa en Brasil, en 1808, se inició en Río de Janeiro un intenso proceso de urbanización de la ciudad y civilización de sus habitantes, cuyas referencias eran los padrones europeos de modernización, progreso y sociabilidad. Este proceso fue responsable, a bulto, por motivar un nuevo tipo de experiencia social, marcadamente urbana, que gradualmente alteró el paisaje social oriundo de la época colonial, predominantemente rural. Desde entonces, muchos de los valores y hábitos de las personas han sufrido un descrédito frente a una nueva forma de vida que se ha extendido, lo que provocó muchos cambios en el cotidiano de la gente local, los cuales parten de la fisonomía de las ciudades hasta los valores morales y las costumbres de lo pueblo. Aunque estos cambios hayan sido promovidos por diversas instituciones y agentes, los literatos ocuparon uno de los papeles con más destaque, ya que entendían que la cultura escrita - especialmente las bellas letras y las ciencias - tenía el deber de difundir las luces y la civilización. Entre los géneros escritos, el periodismo era considerado como uno de los principales instrumentos de la civilización, ya que la prensa tenía el privilegio de publicar en sus páginas los más diversos conocimientos y novedades, difundiendo temas relacionados con la literatura, la poesía, la crónica teatral, artículos de promoción científica, la historia, la higiene, la moda, las costumbres, la moral, etc., conocimientos que proponían a la población un nuevo modus vivendi considerado más urbano y civilizado. El objetivo mayor de este estudio es explicitar este discurso pedagógico construido en los periódicos del siglo XIX, lo cual buscaba la formación de un pueblo y de una nación civilizados. Para tal, se trató de trazar una serie de prescripciones que fueron dirigidas a la población, con el fin de especificar cuáles eran los principales rasgos físicos, morales y comportamentales que deberían componer el hombre y la mujer que se querían producir. Palabras-clave: Prensa. Civilización. Pueblo. Rio de Janeiro. Siglo XIX. ‘ SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12 1 DA IMPRENSA ................................................................................................................... 22 1.1 Do nascimento ............................................................................................................... 22 1.2 Da censura e da liberdade ............................................................................................ 30 1.3 Da oralidade e do público receptor ............................................................................. 36 1.4 Da instrução e da imprensa política............................................................................ 44 1.5 Da imprensa literária e científica e do modelo europeu de civilização .................... 54 1.6 Da imprensa civilizadora ............................................................................................. 62 2 DA MULHER ...................................................................................................................... 74 2.1 Da casa e da rua ............................................................................................................ 74 2.2 Da sociabilidade ............................................................................................................ 77 2.3 Da moda ......................................................................................................................... 89 2.4 Da saúde e da higiene ................................................................................................. 100 2.5 Do casamento e do amor ............................................................................................ 111 2.6 Do marido e dos filhos ................................................................................................ 119 3 DO HOMEM ...................................................................................................................... 138 3.1 Da casa e da rua .......................................................................................................... 138 3.2 Da sociabilidade .......................................................................................................... 146 3.3 Da moda ....................................................................................................................... 157 3.4 Da saúde e da higiene ................................................................................................. 167 3.5 Do trabalho e do progresso da nação ........................................................................ 176 3.6 Da esposa e dos filhos ................................................................................................. 189 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 208 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 223 1 Documentação ................................................................................................................ 223 1.1 Periódicos ................................................................................................................ 223 1.2 Legislação ................................................................................................................ 225 1.3 Textos oitocentistas ................................................................................................. 226 2 Estudos............................................................................................................................ 228 ANEXOS ............................................................................................................................... 238 ANEXO 1 - Crinolina ........................................................................................................ 239 ANEXO 2 - Vestidos com crinolina .................................................................................. 240 ANEXO 3 - Vestidos com anquinha .................................................................................. 241 ANEXO 4 - Vestidos superornamentados ......................................................................... 242 ANEXO 5 - Vestidos de passeio ........................................................................................ 243 ANEXO 6 - Vestidos de baile ............................................................................................ 244 ANEXO 7 - Penteado ......................................................................................................... 245 ANEXO 8 - Cintura fina devido ao espartilho ................................................................... 246 ANEXO 9 - Traje dândi (Lorde George Bryan Brummell) ............................................... 247 ANEXO 10 - Trajes inglesados ......................................................................................... 248 ANEXO 11 - Trajes desornamentados............................................................................... 249 ANEXO 12 - Penteado (Manuel de Araújo Porto-Alegre) ................................................ 250 ANEXO 13 - Casaca e sobrecasaca ................................................................................... 251 ANEXO 14 - Imperador, pai de família ............................................................................. 252 ANEXO 15 - Periódicos .................................................................................................... 253 12 INTRODUÇÃO A vinda da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, marcou o início de um novo tipo de experiência social, marcadamente urbana, que aos poucos alterou a paisagem social herdada da colônia, predominantemente rural. A partir de então, grande parte dos valores e hábitos coloniais sofreram um desprestígio frente a um novo modo de vida que se difundiu com a presença da família real e dos demais estrangeiros que cruzaram o Atlântico, após a abertura dos portos. Ao longo de todo o Oitocentos, ocorreram inúmeras transformações no cotidiano dos habitantes locais, transformações que se estenderam da fisionomia das cidades até os valores morais e costumes de sua população.1 Inicialmente, essas modificações foram introduzidas no Rio de Janeiro, local escolhido para sediar a monarquia nos trópicos. A cidade, a partir de então, foi tomada por uma série de mudanças que tinham como base os ideais de civilização e progresso originários da Europa, transformando-se no epicentro deste novo modus vivendi que se procurava instituir no Brasil. A sede da corte tornou-se uma espécie de laboratório em que eram testadas as primeiras medidas civilizatórias implantadas no Brasil, as quais, posteriormente, poderiam ser ou não estendidas ao restante do seu território.2 Até o desembarque de Dom João e seu séquito, destacam alguns historiadores, o Rio de Janeiro, apesar de ser a capital da colônia portuguesa na América, não era considerado mais que uma acanhada estrutura urbana, notabilizando-se por apresentar traços essencialmente não europeus e patriarcais.3 Em vista disso, tornou-se imprescindível para a recém-chegada coroa portuguesa transformar esta cidade pouco atrativa na sede da monarquia lusitana, dotando-a de padrões de sociabilidade e de civilidade típicos de uma sociedade de corte do Velho Mundo. Assim, foram várias as instituições criadas pelo príncipe regente que se empenharam em civilizar o território e a população, o que fez deles objetos de conhecimento e de intervenção, cujo propósito original era assegurar a prosperidade do reino português e a sobrevivência da monarquia.4 Entre as instituições pioneiras fundadas por Dom João no Rio de Janeiro com propósitos civilizatórios, a Intendência Geral de Polícia, criada em 5 de abril de 1808, assumiu entre suas 1 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2004, p. 106. 2 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004, p. 264 et. seq. 3 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, p. 139. 4 MACHADO, Roberto et. al. Danação da norma: medicina social e construção da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 160-162. 13 responsabilidades tarefas que iam desde zelar pela manutenção da ordem pública até encarregar-se da urbanização da cidade, com um sem número de atividades relacionadas ao policiamento do espaço urbano, ou seja, à civilização do Rio de Janeiro e de seu povo.5 No desempenho de suas funções, a Intendência voltou-se, principalmente, para a modernização do perfil da malha urbana, procurando promover a salubridade da cidade, trazer a iluminação pública e construir praças, ruas, pontes, casas e muitas outras obras fundamentais para o melhoramento da infraestrutura carioca. Além dos intendentes de polícia, outros agentes integraram, ao longo do Oitocentos, essa missão civilizatória inaugurada a partir de 1808: estadistas, juristas, médicos, pedagogos, poetas, cronistas, romancistas, jornalistas e uma série de outros praticantes das mais diversas artes e ciências - em síntese, os homens de letras.6 Se a Intendência se ocupou, sobretudo, da fisionomia da cidade, os letrados destacaram-se entre os principais agentes de civilização dos habitantes do Rio de Janeiro, tornando-se responsáveis por formular um projeto pedagógico que tinha por finalidade promover inúmeras alterações nos costumes e nos valores da população, com o objetivo de civilizá-la em prol do progresso do Brasil.7 Para isso, contaram com o incentivo governamental às mais diversas manifestações culturais empreendidas na cidade, o que incutiu novos rumos às letras, artes e ciências.8 A partir do século XIX, houve uma proliferação de instituições e espaços de apoio às letras, às ciências e à cultura em diversas regiões do Brasil, como bibliotecas, gabinetes de leitura, tipografias, livrarias, sociedades e academias artísticas, literárias e científicas, teatros e estabelecimentos de ensino regular, técnico e superior. Tais espaços contribuíram para difundir a instrução entre a população e alavancar a importância da palavra escrita no Brasil, esta, ainda bem pouco prestigiada em uma sociedade composta por ampla maioria de analfabetos. Até esse momento, o gosto pela instrução e pelas letras impressas não era nem incentivado pela metrópole nem estimado pela população local, que vivia seu cotidiano com base em outros pactos e preocupações. O desembarque da corte nos trópicos, no entanto, deu início a novos tempos para a cultura letrada, ao colocar em cena um número mais expressivo de consumidores 5 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. “A Intendência-Geral da Polícia: 1808-1821”. In: Acervo: Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, julho-dezembro, 1986, p. 187-204. 6 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Literatura e sociedade no Rio de Janeiro oitocentista. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999, p. 10. 7 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Intelectuais Brasileiros nos Oitocentos: a constituição de uma família sob a proteção do poder imperial (1821-1828)”. In: PRADO, Maria Emília (org.). O Estado como vocação: idéias e práticas políticas no Brasil Oitocentista. Rio de Janeiro: Acess, 1999, p. 30. 8 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, p. 230. 14 regulares de arte e literatura e propiciar, pela primeira vez, a organização de uma vida intelectual mais estável no Brasil.9 Os letrados envolvidos no movimento pedagógico de civilização dos habitantes eram, entretanto, ainda raros em uma sociedade em que o setor cultural dava seus primeiros passos; por isso, um mesmo indivíduo desempenhava as mais diferentes atividades: produzia romances, poesias, peças teatrais, teses médicas e, ainda, crônicas e artigos que eram publicados nos mais diversos jornais e revistas. Suas ideias, portanto, circulavam em variados gêneros de escritos, dentre os quais será abordado pela presente pesquisa, detalhadamente, apenas um: os periódicos. A Impressão Régia, criada por decreto expedido em 13 de maio de 1808, foi mais uma das instituições estabelecidas por Dom João e que colaborou com a civilização da população. A tipografia régia tornou-se a primeira oficina com autorização de funcionamento, responsável pela impressão de uma série de papéis em solo brasileiro; publicava desde decretos, avisos, editais e ordens régias, necessários para a administração da nova sede da corte, até jornais, revistas, livros e panfletos. Foi com a sua fundação que se inaugurou a produção de jornais e revistas no Brasil, os quais se tornaram ainda mais frequentes a partir de 1821, quando se estabeleceu a liberdade da palavra impressa e surgiram outras casas tipográficas, que se associaram à Impressão na publicação de folhetos e periódicos.10 Uma vez assegurada a liberdade de imprensa e, no ano seguinte, 1822, declarada a Independência, o jornalismo integrou-se de uma vez por todas aos esforços de civilização da população e de construção da nação, estampando em suas páginas uma série de novidades acerca da vida cotidiana dos habitantes e da organização do jovem império brasileiro.11 Desse período em diante, a cidade passou a contar cada vez mais com a edição regular de periódicos e com a presença de um público mais receptivo aos impressos e às ideias, saberes e tendências que por eles circulavam.12 A escolha por analisar especificamente os jornais e revistas, em detrimento de outros gêneros escritos que também marcaram presença no afã civilizatório que tomou conta dos letrados oitocentistas, não foi aleatória; deveu-se ao papel ocupado pela imprensa na sociedade 9 LUSTOSA, Isabel. “Cairu, panfletário: contra a facção gálica e em defesa do trono e do altar”. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; MOREL, Marco; FERREIRA, Tania Maria Bessone da Cruz. História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A/Faperj, 2006, p. 275. 10 BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de Janeiro, Mauad X, 2010, p. 40. 11 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira, p. 26. 12 ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura: ensaios de história do livro e da leitura na América portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2004, p. 161. 15 de então. O Brazil Litterario, em 1865, destacou “o verdadeiro e genuíno fim para que foi inventada a imprensa”: Sua bandeira é e será: Moralidade, Justiça e Progresso. O programa de suas publicações é o seguinte: Pugnar pela educação e instrução do povo brasileiro. [...] Ilustrar as artes, as ciências e as letras, dando exatas notícias das diferentes produções primorosas que forem aparecendo. Pugnar pela moralidade e estrita execução das nossas leis. [...] Propor todos os melhoramentos que a redação julgar conveniente.13 Cinco anos antes, o periódico Acajá também havia comentado: [...] de todas as invenções, de todas as descobertas, a de que o homem com mais razão se glorifica é a da imprensa; dessa tribuna onde ele exprime o seu pensamento, as suas ideias, que, atravessando distâncias incomensuráveis, vão derramar a instrução e os conhecimentos no seio dos povos!14 Desse modo, diziam os jornalistas, foi pela instrução e pela propagação das Luzes entre o povo por meio da imprensa que teria sido conquistada “a civilização de que hoje tanto se honra a Europa”15 e que deveria servir de modelo a ser alcançado pelo Brasil. A imprensa não era considerada apenas um veículo informativo, mas sobretudo um importante instrumento de formação do povo e do País. Ao instruir a população, os jornalistas procuraram formar um leitor mais civilizado, mais apto a contribuir para o progresso do Brasil. Ainda que partilhasse com outros discursos o papel de instrumento de civilização, caso da literatura, por exemplo, a imprensa era considerada o mais completo, por parte expressiva dos letrados. Isso porque ela detinha o privilégio de poder reunir em suas páginas uma série de conhecimentos provenientes dos mais diferentes saberes, conhecimentos que foram organizados nos periódicos em diversas seções: história, filosofia, literatura, biografia, variedades, poesia, teatro, romances, higiene, indústria, agricultura, botânica, química, catequese, ciências, artes, viagens, política, miscelânea, medicina prática, medicina doméstica, economia doméstica, belo sexo, moda, etiqueta, costumes, educação moral, etc. 13 Brazil Litterario: propriedade de uma associação, Rio de Janeiro, n. 1, ano 2, 1 de janeiro de 1865, p. 1. 14 Acajá: jornal de instrucção e recreio, Rio de Janeiro, n. 1, ano 1, 15 de novembro de 1860, p. 3. 15 Archivo Medico Brasileiro: gazeta mensal de medicina, cirurgia, e sciencias accessorias, Rio de Janeiro, n. 6, tomo 2, fevereiro de 1846, p. 131-132. 16 O lugar privilegiado atribuído ao periodismo em relação aos outros escritos produzidos ao longo do século XIX na missão pedagógica conduzida pelos letrados deu-se em razão de a imprensa funcionar como um espaço de convergência dos demais gêneros da cultura escrita, cedendo lugar, em suas páginas, ao romance, à poesia, ao teatro, aos sermões, ao ensaio médico, ao artigo de divulgação científica, etc. Ela era, em suma, a que apresentava a maior abrangência de conhecimentos necessários para a civilização dos habitantes e o progresso do Brasil. É o que destacou a Revista Popular, em 1859: “As ciências, as letras, as artes, a indústria, o comércio, a política e, em geral, todos os ramos em que se subdivide a inteligência e atividade humana, lucraram com a imprensa, e todos lhe devem ser gratos”.16 No ano seguinte, o mesmo periódico ainda afirmou que o jornalismo tinha [...] a vantagem de ter tudo, de falar sobre tudo, de tratar de todas as questões, de discutir todos os pontos das ciências, das letras, de aprofundar ou não as matérias, de revelar as invenções, de remontar-se às grandes questões sociais, analisando-as ponto por ponto, com o escalpelo da crítica, com o critério da reflexão ou apenas tocando-as na superfície, como a borboleta, que caprichosa oscula a flor.17 A imprensa, em suma, ocupou um lugar de destaque no movimento civilizatório desenvolvido pelos letrados durante o século XIX. Em vista disso, o objetivo principal deste estudo é explicitar este discurso pedagógico construído nos periódicos oitocentistas, discurso que visava à formação de um povo e de uma nação civilizados. Para tal, procurei mapear uma série de prescrições formuladas pelos jornalistas que foram dirigidas ao povo, as quais relacionavam-se, sobretudo, com três principais alvos de intervenção sobre as mulheres e os homens: o aspecto “externo” (o corpo), o aspecto “interno” (a moral) e as práticas cotidianas (os costumes). De modo mais claro: uma vez que os periódicos oitocentistas, inspirados nos ideais europeus, prescreveram à população novos pactos e padrões de sociabilidade e civilidade que diziam respeito a esses aspectos, busquei identificar tais prescrições com o intuito de especificar quais eram os principais traços físicos, morais e comportamentais que deveriam compor o homem e a mulher que se desejavam produzir. A prioridade dos homens de imprensa, no entanto, era civilizar um segmento bastante específico da população do Rio de Janeiro: as elites locais, compostas pela parcela mais culta e 16 Revista Popular: noticiosa, scientifica, industrial, historica, litteraria, artistica, biographica, anecdotica, musical, etc., etc., Rio de Janeiro, tomo 4, ano 1, outubro a dezembro de 1859, p. 217. 17 Revista Popular, Rio de Janeiro, tomo 8, ano 2, outubro a dezembro de 1860, p. 79. 17 abastada do povo do Rio de Janeiro.18 As prescrições dos jornalistas foram dirigidas, sobretudo, a estas elites, ou seja, aos indivíduos culturalmente brancos19 e pertencentes à boa sociedade, considerada detentora de um potencial mais decisivo para contribuir com o progresso do Brasil. Não era fundamental para os homens de imprensa investir na modificação de condutas das parcelas mais pobres da população, principalmente se integrassem o rol de indivíduos desclassificados, como escravos, mendigos, ciganos, vagabundos, doentes, prostitutas, libertinos, etc., os quais foram incorporados às prescrições como antinormas do comportamento que se procurava produzir nas elites.20 Ao prescrever novos cuidados e significados em relação ao corpo, à moral e aos costumes desses indivíduos, a imprensa tornou-se uma ferramenta de formação do povo, procurando moldar uma nova mulher e um novo homem apropriados aos interesses nacionais. Mais que isso: tornou-se um instrumento privilegiado de exercício do poder21, um “modo de ação de uns sobre outros”.22 Os jornalistas desempenharam a função de conduzir as condutas da população, formulando um conjunto de normas que tinham por finalidade “governar” as ações daqueles homens e mulheres, ou seja, “dirigir a conduta” daqueles indivíduos.23 A imprensa como guia de condutas visava a solapar os comportamentos associados ao passado colonial e reconstruí-los dentro de novos pactos considerados mais adequados: os preceitos da civilização europeia. Ao procurar conduzir as condutas das mulheres e dos homens, o periodismo fez uso de novas tecnologias e estratégias positivas de produção de sujeitos.24 Ao prescrever novas regras que disciplinassem e controlassem o corpo, os princípios morais e os 18 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. “A construção de um público”. In: DINES, Alberto; LUSTOSA, Isabel. Hipólito José da Costa e o Correio Braziliense. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002, p. 601. 19 No sentido de que havia certo lugar social que deveria ser ocupado pela mulher e pelo homem brancos, lugar que exigia determinadas condutas, comportamentos, expectativas e modos de ação e de imaginação, ainda que nem sempre se restringisse aos indivíduos propriamente brancos. 20 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p. 33. 21 Tais práticas de poder exercidas pela imprensa, entretanto, não se baseavam em uma “concepção tradicional” do poder, que o entendia como um “mecanismo essencialmente jurídico, o que diz a lei, o que proíbe, o que diz não, com toda uma ladainha de efeitos negativos: exclusão, rejeição, barragem, denegações, ocultamentos”. Ao contrário, mais do que “em termos de direito”, o poder passou a ser praticado, a partir do século XVIII, “em termos de tecnologia, em termos de tática e de estratégia”. FOUCAULT, Michel. “As relações de poder passam para o interior dos corpos”. In: ______. Genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. (Ditos & escritos; IX), p. 35-36. 22 FOUCAULT, Michel. “O sujeito e o poder”. In: DREYFUS, Hubert Lederer; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 287. 23 FOUCAULT, Michel. “O sujeito e o poder”. In: DREYFUS, Hubert Lederer; RABINOW, Paul. Michel Foucault, p. 288. 24 Isso significa que o poder não possui somente uma via repressiva, um aspecto negativo, mas sim que ele é dotado de uma positividade, que “o poder produz”. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 185. 18 costumes da população, os jornalistas procuraram formar positivamente uma nova mulher e um novo homem, mostrando-lhes não as armas da repressão, mas, sim, os benefícios que poderiam ser conquistados pela adoção de tudo aquilo que lhes era sugerido.25 Em vista disso, no primeiro capítulo procurei analisar o desenvolvimento da imprensa no Rio de Janeiro, quando dediquei especial atenção aos seguintes aspectos: os impactos culturais promovidos após a criação da Impressão Régia, os mecanismos de censura, a instituição da liberdade de imprensa, as marcas da oralidade presentes na sociedade, a difusão do gosto pela instrução e a formação de um público receptor dos jornais e revistas. A partir daí, busquei explicitar o lugar reservado ao jornalismo na sociedade de então, com destaque para o papel civilizatório que lhe era conferido. Para isso, ressaltei as transformações do periodismo no decorrer do século XIX, nomeadamente o fracasso da proposta pedagógica desenvolvida pela imprensa política, que predominou até o final do período regencial, e a consolidação da imprensa literária e científica como o auge do projeto educacional dos jornalistas. Refletir sobre o desenvolvimento da imprensa e o lugar ocupado pelo jornalista na sociedade oitocentista foi um modo de analisar alguns pontos da formação de um dispositivo26 de regulação do discurso27 civilizatório construído por estes letrados. Considerando esse discurso pedagógico “uma prática que obedece a regras”,28 esta análise da imprensa, promovida no primeiro capítulo, teve entre seus objetivos evidenciar os procedimentos que permitiram a formulação e a regulação deste discurso, os quais procuraram determinar as condições de seu funcionamento e impor certo número de regras que excluísse quem não fosse capacitado a pronunciá-lo.29 De modo mais claro: procurei evidenciar as condições que determinaram “quem”, “quando e “o que” se podia falar sobre a civilização do homem e da mulher. Este dispositivo de enunciação e controle do discurso garantiu a formulação de um “lícito” projeto de construção do Brasil e de seu povo, uma vez que atribuiu ao sujeito que falava - o jornalista - o status de que seus dizeres eram verdadeiros. Isso também quer dizer que suas novas ideias divulgadas entraram em disputa com as concepções anteriores sobre o que 25 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar, p. 31. 26 Para uma definição de dispositivo, ver: VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 54. 27 A noção de discurso aqui empregada ampara-se num arcabouço teórico suscitado pelas reflexões do filósofo francês Michel Foucault, que entende o discurso, grosso modo, como “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 55. 28 FOUCAULT, Michel. “Michel Foucault explica seu último livro”. In: ______. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. (Ditos & escritos; II), p. 152. 29 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 36-37. 19 deveria ser entendido por homem e mulher, substituindo-as conforme se tornavam aceitas e, por isso, verdadeiras para a população. Foram justamente estas novas ideias que este trabalho se dedicou a explicitar nos dois últimos capítulos ao responder a seguinte questão: qual foi este discurso construído pela imprensa, ou seja, quais foram os preceitos comportamentais, corporais e morais que ela formulou para o povo? No segundo capítulo, me voltei a mapear as prescrições cujo objetivo era civilizar a mulher. Partindo de uma análise sobre a transformação de sua relação com a rua - o que teria desenvolvido uma nova sociabilidade para o belo sexo -, esquadrinhei primeiramente os novos comportamentos sugeridos para espaços como teatros, bailes e saraus. Em seguida, analisei o que foi proposto pela imprensa em relação ao cuidado com o corpo feminino, tanto no que diz respeito às formulações de ordem puramente estética - como as vestimentas e a adoção de determinados adornos e penteados - quanto às recomendações higiênicas e ao incentivo às atividades físicas. Além disso, perscrutei o que teria sido uma alteração na sensibilidade amorosa da população, o que resultou em uma modificação nos pressupostos morais que fundamentavam o matrimônio e a maternidade. A partir daí, examinei justamente as prescrições relativas às ações que eram consideradas moralmente adequadas, enfatizando tanto os padrões de moralidade aceitos como os que seriam considerados desviantes, caso da esposa-mãe e da prostituta, respectivamente. Por fim, identifiquei o debate promovido nas páginas dos periódicos acerca da educação feminina - apenas educar ou também instruir o sexo frágil? -, tendo em vista os principais papéis destinados à mulher civilizada durante o século XIX: o matrimônio e a maternidade. Se a mulher construída pelos jornalistas foi o objeto de reflexão no segundo capítulo, busquei explicitar, no terceiro, o projeto de civilização do homem veiculado na imprensa oitocentista. O percurso adotado neste capítulo foi bastante semelhante ao do anterior: inicialmente, mapeei o desenvolvimento de uma nova sociabilidade masculina, para identificar quais comportamentos foram apresentados como mais adequados, como o hábito de frequentar o teatro, os bailes, as corridas de cavalo e as reuniões realizadas nos espaços domésticos. Em relação ao corpo masculino, a análise também se concentrou nas prescrições de ordem puramente estética, como a utilização de novas formas de vestimentas e o uso de ornamentos tidos como mais apropriados, e nas recomendações higiênicas, que incluíam um novo modo de se alimentar e o incentivo às atividades esportivas. Por fim, esquadrinhei novos valores propostos a determinadas ações masculinas, que passaram a ser vistas como moralmente indicadas aos homens, constituindo-se suas principais funções a partir do Oitocentos: a função 20 de esposo-pai e de homem trabalhador e patriota, que tinha por antinorma o libertino, o celibatário, o pederasta e o ocioso. Para a construção dessa história, o principal grupo de fontes que compôs o corpus documental deste estudo constituiu-se, naturalmente, por periódicos publicados no Rio de Janeiro durante o século XIX. Uma vez que tal missão pedagógica teve seu auge com a imprensa literária e científica, que predominou entre 1841 e 1870, como veremos em detalhes adiante, a seleção dos periódicos privilegiou - mas não se restringiu a eles, já que este processo se desenvolveu durante todo o Oitocentos - títulos literários e científicos publicados durante este período, os quais debateram de modo mais intenso as questões voltadas ao povo que se procurava produzir, sobretudo as que diziam respeito ao corpo, à moral e aos costumes da população. Além dos jornais e revistas, utilizei como documentação algumas narrativas de viagem, sobretudo de estrangeiros que vieram ao Brasil antes de 1808. Tais fontes foram importantes para analisar algumas características do que foi dito do homem e da mulher durante o período colonial, confrontando-as com as prescrições formuladas pelos jornalistas. Definida a documentação principal da pesquisa, resta saber dentro de quais critérios ela foi analisada e estruturada no decorrer da tese. Em primeiro lugar, não recorri à documentação sob a perspectiva de sua correspondência ou não a uma suposta “natureza intrínseca da realidade”, ou seja, de se o que foi proposto pelos jornalistas chegou a ser a mulher e o homem oitocentistas “em si mesmos”.30 Procurei, ao contrário, expor o discurso civilizatório dos jornalistas a partir da possibilidade de ele ter se afirmado - em disputa com outras concepções de homem e mulher - como um pretenso arauto da verdade. Nesse sentido, analisei os periódicos não como uma série de informações que, devidamente interpretadas pelo historiador, possibilitariam reconstruir plenamente os aspectos da época a que se referem. Isso porque acredito em uma história parcial e lacunar31 em que seria possível apenas avaliar, a partir do corpus documental selecionado - jornais e revistas -, uma pequena parcela do que ainda podemos saber sobre como determinados grupos - no caso, os jornalistas - construíram a realidade para si próprios. Nas páginas seguintes, portanto, o leitor encontrará um texto elaborado a partir de descrições, compostas por uma série de citações desta documentação, as quais “falam por si próprias”. Isso quer dizer que procurei restituir - ainda que parcialmente - a voz a estes 30 Compartilho a ideia de parte da filosofia de que não há nada de útil em se ater as seguintes noções: “como as coisas são em si mesmas”, “natureza intrínseca da realidade” e “distinção aparência-realidade”. Cf. RORTY, Richard. Verdade e progresso. Barueri, SP: Manole, 2005, p. VII-XIX. 31 VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 26-27. 21 indivíduos, com base na crença de que o documento é capaz de mostrar como uma determinada época definiu socialmente o que era ou não verdadeiro para si. O que não quer dizer, de modo algum, que os documentos tenham sido utilizados de maneira acrítica; ao contrário, a seleção, o recorte e a organização das inúmeras citações dos jornais e revistas são frutos de um labor metodológico, em que as interpretações decorrentes da análise das fontes realizam-se no modo como organizei a documentação no decorrer do texto, ou seja, na ordem e na escolha “do que” e “de como” apresentá-la ao leitor. Foi a partir deste método de análise que, enfim, procurei interrogar como os jornalistas formularam um discurso pedagógico sobre a mulher e o homem e qual foi este discurso. 22 1 DA IMPRENSA 1.1 Do nascimento Tendo-me constado que os prelos que se acham nesta capital eram os destinados para a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, e atendendo à necessidade que há da oficina de impressão nestes meus Estados, sou servido que a casa onde eles se estabeleceram sirva interinamente de Impressão Régia, onde se imprimam exclusivamente toda a legislação e papéis diplomáticos que emanarem de qualquer repartição do meu real serviço; e se possam imprimir todas e quaisquer outras obras, ficando interinamente pertencendo o seu governo e administração à mesma Secretaria. D. Rodrigo de Souza Coutinho, do meu Conselho de Estado, ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, o tenha assim entendido e procurará dar ao emprego da oficina a maior extensão, e lhe dará todas as instruções e ordens necessárias e participará a este respeito a todas as estações o que mais convier ao meu real serviço. Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1808.1 Em 1808, com o decreto apresentado acima, expedido poucos meses após a transferência de Dom João e sua corte para o Brasil, o príncipe regente pôs fim ao longo período de proibição de funcionamento de tipografias na então mais importante colônia do Império português.2 Até a data da fundação da Impressão Régia, o governo metropolitano coibiu o estabelecimento da imprensa no Brasil,3 controlando a circulação da palavra impressa e fazendo de sua publicação um crime contra a coroa.4 Apesar de inicialmente voltada para as necessidades administrativas da nova sede do governo português, uma vez que a própria burocracia demandava a publicação de “toda a legislação e papéis diplomáticos”, a criação de uma tipografia no Rio de Janeiro foi também o ponto de partida para que, com a publicação de “todas e quaisquer outras obras”, a imprensa pudesse se desenvolver no Brasil. A criação da Impressão Régia constitui um dos marcos da abertura cultural do Brasil para o mundo: se, inicialmente, foi instituída como tipografia oficial e detentora do monopólio 1 Coleção de Leis do Império do Brasil - 1808, vol. 1, 13 de maio de 1808, p. 29. 2 Contrariamente a esta afirmação de que as tipografias eram proibidas na América portuguesa, José Marques de Melo, em Sociologia da imprensa brasileira, destaca que “não existiu uma legislação expressamente restritiva à instalação de tipografias no Brasil”. Ainda segundo o autor, “na realidade, o governo português não chegou a expedir disposições legais que vedassem taxativamente a instalação e funcionamento de tipografias no Brasil”. Apud BRAGANÇA, Aníbal. “António Isidoro da Fonseca: um precursor na história do livro brasileiro”. In: MELO, José Marques de (Org.). Imprensa brasileira: personagens que fizeram história. São Paulo: Universidade Metodista de São Paulo/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005, vol. 4, p. 45. 3 FONSECA, Gondin da. Biografia do jornalismo carioca (1808-1908). Rio de Janeiro: Livraria Quaresma, 1941, p. 11. 4 BAHIA, Benedito Juarez. História, jornal e técnica: história da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009, p. 18. 23 de publicação das letras impressas, a Impressão tornou-se, ao mesmo tempo, a primeira editora brasileira, com a publicação de inúmeras outras obras de diversos campos do conhecimento.5 Com isso, se teriam estreitado os laços entre as culturas do Brasil e da Europa, o que resultou, de modo geral, no cada vez mais acentuado desenvolvimento cultural brasileiro.6 Ao imprimir títulos de grande valor para o início da vida editorial brasileira, ultrapassando, de certa maneira, os limites iniciais de suas obrigações e deveres oficiais,7 a tipografia régia teria contribuído de maneira significativa para o progresso dos espíritos, como se dizia no século XIX. Isso porque possibilitou ao Brasil figurar não apenas como consumidor de livros, jornais e demais papéis impressos que chegavam a seus portos, como acontecia até então, transformando-o também em produtor destes suportes de construção e divulgação dos saberes.8 A importância da criação da Impressão Régia não passou desapercebida entre os próprios contemporâneos. Em suas memórias, Luiz Gonçalves dos Santos, o padre Perereca, ressaltou: O Brasil, até o feliz dia 13 de maio de 1808, não conhecia o que era tipografia: foi necessário que a brilhante face do príncipe regente nosso senhor, bem como o refulgente sol, viesse vivificar este país, não só quanto à sua agricultura, comércio e indústria, mas também quanto às artes e ciências, dissipando as trevas da ignorância, cujas negras e medonhas nuvens cobriam todo o Brasil e interceptavam as luzes da sabedoria. Assim, por decreto datado deste mesmo dia dos seus felizes anos, Sua Alteza Real foi servido mandar que se estabelecesse nesta corte a Impressão Régia, para nela se imprimirem exclusivamente toda a legislação e papéis diplomáticos que emanarem de qualquer repartição do real serviço, e também todas e quaisquer obras, concedendo a faculdade aos seus administradores para [...] que se imprimam na América portuguesa obras muito interessantes que [...] jazem na poeira do esquecimento e do desprezo [...].9 5 Entre 1808 e 1822, a Impressão Régia teria publicado, segundo Alfredo do Valle Cabral, 1.251 títulos. Já Ana Maria de Almeida Camargo e Rubens Borba de Moraes teriam identificado a impressão de 1.428 títulos. Cf. CABRAL, Alfredo do Valle. Annaes da Imprensa Nacional do Rio de Janeiro de 1808 a 1822. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1881. Cf. CAMARGO, Ana Maria de Almeida; MORAES, Rubens Borba de (Orgs.). Bibliografia da Impressão Régia. São Paulo: Edusp/Kosmos, 1993, 2v. 6 MINDLIN, José. “Impressão Régia: seu significado e suas realizações”. In: BRAGANÇA, Aníbal; ABREU, Márcia (Orgs.). Impresso no Brasil: dois séculos de livros brasileiros. São Paulo: Editora Unesp, 2010, p. 20. 7 MARTINS, Wilson. A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca, com um capítulo referente à propriedade literária e, em apêndice, as convenções de Berna, de Washington e Universal, sobre os direitos autorais. São Paulo: Editora Anhembi Limitada, 1957, p. 349-350. 8 OLIVEIRA, Paulo Motta. “E a imprensa chegou ao Brasil: reflexões sobre livros, invasões e mercados”. In: FERREIRA, Tânia Maria Bessone da Cruz et al. D. João VI e o Oitocentismo. Rio de Janeiro: Contra Capa/Faperj, 2011, p. 56. 9 SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir à História do Reino do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 207. 24 Outro coetâneo, Hipólito José da Costa, redator do que é considerado o periódico fundador da imprensa brasileira, o Correio Braziliense ou Armazem Literario, publicado em Londres de 1808 a 1822, também enalteceu a criação da tipografia régia: Saiba o mundo e a posteridade que, no ano de 1808 da era cristã, mandou o governo português, no Brasil, buscar à Inglaterra uma impressão, com os seus apendículos necessários, e a remessa que daqui se lhe fez importou em libras esterlinas!!! Contudo, diz-se que aumentará esse estabelecimento, tanto mais necessário quanto o governo ali nem pode imprimir as suas ordens para lhes dar suficiente publicidade. Tarde, desgraçadamente tarde: mas, enfim, aparecem tipos no Brasil; e eu de todo o meu coração dou os parabéns aos meus compatriotas brasilienses.10 Apesar do que informa o redator do Correio Braziliense, o material tipográfico empregado na Impressão Régia não foi mandado buscar por Dom João quando o monarca já governava seu Império a partir do Brasil. Os prelos encontravam-se em Lisboa antes da vinda do príncipe regente para a América, adquiridos pela Secretaria de Negócios Estrangeiros e da Guerra. Foi Antônio de Araújo de Azevedo, ministro de Dom João em Portugal antes da transferência ao Brasil e futuro conde da Barca, que, no momento da fuga, teria mandado colocar no porão do navio em que veio, o Medusa, o material tipográfico comprado para aquela Secretaria e que se encontrava ainda encaixotado. Com a fundação da Impressão Régia, o material tipográfico trazido por Antônio de Araújo foi instalado em sua própria residência, onde passou a funcionar no mesmo dia de sua criação, 13 de maio de 1808. O primeiro título impresso11 foi a Relação dos despachos,12 um folheto de 27 páginas publicado no aniversário do príncipe regente e vendido na loja do livreiro Manuel Jorge da Silva, localizada na rua do Rosário.13 A Impressão Régia, entretanto, não foi a primeira tipografia que se tentou estabelecer no Brasil. Entre 1703 e 1706, teria funcionado em Recife uma pequena casa tipográfica para impressão de letras de câmbio e orações religiosas, dirigida pelo jesuíta Antônio da Costa.14 Tal 10 RIZZINI, Carlos. O jornalismo antes da tipografia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977, p. 170. 11 Márcia Abreu, no entanto, afirma que “o primeiro documento produzido pela Impressão Régia foi a ‘Carta regia ao Conde da Ponte: Abrindo os Portos do Brazil ao Commercio directo Estrangeiro’, impresso em 28 de janeiro de 1808. O decreto de criação da Impressão Régia foi publicado em 13 de maio de 1808”. ABREU, Márcia. O caminho dos livros. Campinas, SP: Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil (ALB); São Paulo: Fapesp, 2003, p. 83 (nota 97). 12 Título completo da obra: “Relação dos Despachos Publicados na Corte pelo Expediente da Secretaria de Estado dos Negocios Estrangeiros, e da Guerra no Faustissimo Dia dos Annos de S. A. R. o Príncipe Regente N. S. E de todos mais, que se tem expedido pela mesma Secretaria desde a feliz chegada de S. A. R. aos Estados do Brazil até o dito dia. Rio de Janeiro”. 13 RIZZINI, Carlos. O jornalismo antes da tipografia, p. 177. 14 HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005, p. 88 25 oficina, por mais que sua existência seja controversa,15 teria sido extinta pela Carta Régia de 8 de junho de 1706, a qual determinava que se devia “sequestrar as letras impressas e notificar os donos delas e os oficiais de tipografia que não imprimissem nem consentissem que se imprimissem livros ou papéis avulsos”.16 Em Vila Rica, em 1806, por mais que não tenha sido criada propriamente uma tipografia, foi impresso pelo padre Joaquim José Viegas de Meneses, em chapas de cobre, um opúsculo intitulado Canto encomiástico de Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcellos.17 O esforço mais significativo para estabelecer uma casa tipográfica parece, no entanto, ter ocorrido no Rio de Janeiro, em 1747. Antes da instalação da Impressão Régia, Antônio Isidoro da Fonseca, antigo impressor em Lisboa, montou uma pequena oficina com os prelos que trouxe na bagagem ao se transferir para o Brasil. Nela, imprimiu quatro pequenos trabalhos, entre os quais a Relação da Entrada,18 redigida por Luís Antônio Rosado da Cunha, com 17 páginas de texto, o que teria sido o primeiro folheto impresso no Brasil.19 Entretanto, a tipografia de Antônio Isidoro da Fonseca teve vida curta: assim que a notícia de seu funcionamento chegou a Lisboa, o governo metropolitano expediu, em 10 de maio de 1747, uma Ordem Régia determinando seu fechamento: [...] por constar que deste Reino tem ido quantidade de letras de imprensa para o mesmo Estado, no qual não é conveniente se imprimam papéis no tempo presente, nem pode ser de utilidade aos impressores trabalharem no seu ofício aonde as despesas são maiores que no Reino, de qual podem ir impressos os livros e papéis no mesmo tempo em que dele devem ir as licenças da Inquisição e do Conselho, sem as quais não se podem imprimir nem correrem as obras, pelo que se lhe ordena que, constando-lhe que se acham algumas letras de imprensa nos limites dos governos de cada um, lhes as mandem sequestrar e remeter para este Reino, por conta e risco de seus donos, a entregar a quem eles quiserem, e mandem notificar aos donos das mesmas letras e aos oficiais de imprensa que houver para que não imprimam, nem consintam que se imprimam livros, obras ou papéis alguns avulsos, sem 15 Wilson Martins, em A Palavra Escrita, põe em dúvida toda essa história da criação de uma tipografia em Recife, sugerindo que, por uma falha na transcrição de datas, a Ordem Régia de 8 de junho de 1706 teria sido, na verdade, emitida em 1747, ordem essa que se referiria às atividades tipográficas no Rio de Janeiro de Antônio Isidoro da Fonseca. MARTINS, Wilson. A palavra escrita, p. 338. No entanto, como aponta Laurence Hallewell, “Serafim Leite afirma ter visto alguns trabalhos desse prelo recifense e, inclusive, ter estado na posse de alguns deles”. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil, p. 88. 16 Carta Régia de 8 de junho de 1706 apud RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil, 1500- 1822: com um breve estudo geral sobre a informação. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1988, p. 310. 17 ABREU, Márcia. “Duzentos anos: os primeiros livros brasileiros”. In: BRAGANÇA, Aníbal; ______. (Orgs.). Impresso no Brasil: dois séculos de livros brasileiros. São Paulo: Editora Unesp, 2010, p. 41 (nota 1). 18 Título completo da obra: “Relação da Entrada que Fez o Excellentissimo e Reverendissimo Senhor D. F. Antonio do Desterro Malheyro, Bispo do Rio de Janeiro, em o Primeiro Dia Deste Presente Anno de 1747, havendo sido seis annos Bispo do Reyno de Angola, donde por nomiação de Sua Magestade, e Bulla Pontificia, foy promovido para esta diocese. 19 SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 18. 26 embargo de quaisquer licenças que tenham para a dita impressão, cominando- lhe a pena de que, fazendo o contrário, serão remetidos presos para este Reino, à ordem do Conselho Ultramarino, para se lhes imporem as penas em que tiverem incorrido, na conformidade das leis e ordens de Sua Majestade.20 Para infortúnio de Antônio Isidoro da Fonseca, como se lê na Ordem Régia, Portugal não via com bons olhos a publicação de quaisquer impressos em sua colônia da América: sua oficina foi confiscada e o tipógrafo retornou para Portugal. No entanto, em 25 de maio de 1750, por não ter meios de se restabelecer como impressor em Lisboa, Isidoro pediu permissão ao soberano para instalar sua oficina novamente no Rio de Janeiro ou em Salvador, afirmando que, se fosse necessário, “fará termo, com as penas de que V. M. for servido impor-lhe, de que não imprimirá livros sem licença de V. M. e do Santo Ofício, nem outro algum papel, de que se siga dano ao Reino ou a algum vassalo dele”.21 A resposta do governo português foi categórica: “escusado”. As poucas tentativas de se criarem casas tipográficas no Brasil colonial esbarraram na intransigência das autoridades portuguesas.22 Até a chegada de Dom João, as letras impressas permaneceram proibidas: de um lado, não se podia imprimir qualquer tipo de papel, de outro, o governo português procurava conter a importação dos impressos que chegavam aos portos brasileiros, o que resultava em um controle sobre a circulação interna de livros na Colônia,23 por meio da liberação ou não das obras na Alfândega.24 No entanto, se na América portuguesa os impressos e as tipografias eram proibidos, isso não impediu a existência de oficinas clandestinas - ainda que de duração efêmera - e a produção e circulação de manuscritos, responsáveis por disseminar notícias, ideias e opiniões.25 Também não evitou que jornais produzidos na Europa fossem recebidos no Brasil, por meio de contrabando realizado em seus portos, pelo menos desde o século XVIII.26 20 Ordem Régia de 10 de maio de 1747 apud BRAGANÇA, Aníbal. “António Isidoro da Fonseca: um precursor na história do livro brasileiro”. In: MELO, José Marques de (Org.). Imprensa brasileira: personagens que fizeram história. São Paulo: Universidade Metodista de São Paulo/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005, vol. 4, p. 44. 21 Requerimento de 25 de maio de 1750 apud RIZZINI, Carlos. O jornalismo antes da tipografia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977, p. 167. 22 LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 7. 23 ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura: ensaios de história do livro e da leitura na América portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2004, p. 138. 24 Sobre a posse de livros na colônia, ver: VILLALTA, Luiz Carlos. “O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura”. In: NOVAIS, Fernando Antonio (Coord.); SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, vol. 1. 25 BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de Janeiro, Mauad X, 2010, p. 20. 26 MOREL, Marco. “Entre estrela e satélite”. In: DINES, Alberto; LUSTOSA, Isabel. Hipólito José da Costa e o Correio Braziliense. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002, p. 306. 27 Em uma sociedade marcada pelo baixo letramento e pelo controle sobre os papéis impressos, era natural que a circulação de palavras - às vezes impressas ou mormente faladas e manuscritas - ocorresse de formas variadas: manuscritos, correspondências particulares, papéis e folhas avulsas pregadas nas paredes e muros espalhados pela cidade ou que circulavam de mão em mão.27 E mais: antes da impressão de jornais no Rio de Janeiro, as notícias eram também transmitidas pelo padre à hora da missa, pregadas à porta da igreja ou, na maioria das vezes, simplesmente comunicadas oralmente pelas ruas.28 Assim, não é de estranhar que uma intensa oralidade marcasse a cultura do Brasil colonial: tratava-se de uma sociedade em que a palavra impressa era vítima de censura, as casas tipográficas eram expressamente proibidas e a maior parte da população brasileira era constituída por analfabetos - tanto entre as elites quanto entre os escravos.29 O Rio de Janeiro, malgrado contar com três colégios religiosos (os seminários de São José, de São Joaquim e o da Lapa), as aulas régias e alguns professores particulares contratados para ensinar no interior das casas, não detinha ainda difundido entre sua população o gosto pela instrução e pelas letras impressas. A partir da Impressão Régia, como se vê, a cultura escrita ganhou uma nova dimensão no Brasil. O primeiro jornal publicado por esta tipografia foi a Gazeta do Rio de Janeiro,30 que teve seu número inaugural editado em 10 de setembro de 1808, por frei Tibúrcio José da Rocha,31 seu primeiro redator.32 Apesar de ser o primeiro periódico impresso em território brasileiro, muitas foram as críticas dirigidas a seu conteúdo, que priorizava a divulgação de notas oficiais do governo e do que se passava na Europa, em detrimento de um jornalismo 27 MOREL, Marco. “Os primeiros passos da palavra impressa”. In: MARTINS, Ana Luiza; DE LUCA, Tania Regina (Orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2013, p. 28. 28 FONSECA, Gondin da. Biografia do jornalismo carioca, p. 18. 29 Como aponta Oliveira Lima, “As condições da instrução pública no Brasil colonial dos começos do século XIX eram reconhecidamente deficientes: pode mesmo dizer-se que eram no geral quase nulas [...]”. LIMA, Oliveira. Dom João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 159. 30 Como destaca Marialva Barbosa: “De 10 de setembro de 1808 a 29 de dezembro de 1821, publicam-se 1413 edições da Gazeta do Rio de Janeiro e 204 números extras, num total de 1617 exemplares. A Gazeta, inicialmente, saía às quartas-feiras e aos sábados. Já as Extraordinárias eram impressas ao sabor dos acontecimentos que se julgavam importantes. A partir de 1821, o jornal passa a sair às terças, quintas e sábados. A partir de janeiro de 1822, o título é mudado para Gazeta do Rio [...]. Em 14 de dezembro de 1822, no suplemento do número 150 noticia-se ao público a substituição do periódico pelo Diário do Governo”. BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa, p. 37-38. 31 Juliana Meirelles analisa o trabalho do redator da Gazeta do Rio de Janeiro. Segundo ela, “ler, resumir, traduzir, escolher as informações de interesses vindas das folhas europeias e inseri-las na forma de notícias no jornal era a atividade profissional do redator”. MEIRELLES, Juliana Gesuelli. “A Gazeta do Rio de Janeiro e o impacto da circulação de ideias no Império luso-brasileiro (1808-1821)”. In: ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula (Orgs.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico, séculos XVI- XIX. São Paulo: Alameda, 2009, p. 568. 32 Foram os seguintes os redatores da Gazeta do Rio de Janeiro entre 1808 e 1821: entre 1808 e 1812, o frei Tibúrcio José da Rocha; de 1812 a 1821, Manuel Ferreira de Araújo Guimarães; entre agosto e dezembro de 1821, Francisco Vieira Goulart. MEIRELLES, Juliana Gesuelli. Imprensa e poder na corte joanina: a Gazeta do Rio de janeiro (1808-1821). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008, p. 74. 28 supostamente mais opinativo.33 Era praticamente uma versão adaptada da Gazeta de Lisboa, limitando-se a publicar traduções de artigos veiculados na imprensa mais conservadora da Europa.34 Eis o que disse o inglês John Armitage sobre a Gazeta do Rio de Janeiro: Por meio dela só se informava com toda a fidelidade ao público do estado de saúde de todos os príncipes da Europa, e de quando em quando as suas páginas eram ilustradas com alguns documentos de ofício, notícia dos dias natalícios, odes e panegíricos a respeito da família reinante; não se manchavam essas páginas com as efervescências da democracia, nem com a exposição de agravos. A julgar-se do Brasil pelo seu único periódico, devia ser considerado como um paraíso terrestre, onde nunca se tinha expressado um só queixume.35 Hipólito José da Costa também teceu, em março de 1812, o seguinte comentário sobre o jornal publicado no Rio de Janeiro: [...] visto que já em Portugal se imprimem vários jornais de novidades, e já em uma gazeta de agricultura, impressa em Lisboa, se recomenda o estabelecimento de sociedades de agricultura. Estes melhoramentos em Portugal, que se admitem, sem se incorrer na nota de jacobinismo, deveriam passar para o Brasil, aonde não há senão a mísera Gazeta do Rio de Janeiro, em que se gasta tão boa qualidade de papel em imprimir tão ruim matéria, que melhor se empregaria se fosse usado para embrulhar manteiga.36 Malgrado todas estas críticas, a Gazeta de frei Tibúrcio José da Rocha inaugura a impressão e a circulação regular de periódicos no Brasil, os quais se tornaram cada vez mais acessíveis à população.37 Considerado um periódico bastante diferente da Gazeta do Rio de Janeiro38 - o jornal oficial de então, no qual se publicava “tão ruim matéria” -, o Correio Braziliense ou Armazem 33 No entanto, Juliana Meirelles destaca o caráter opinativo do jornal, especificamente na seção “Rio de Janeiro”, espaço em que o “redator fazia seus comentários sobre os numerosos fatos políticos (ocorridos na Europa e/ou no Brasil), bem como sobre os assuntos cotidianos da cidade”. MEIRELLES, Juliana Gesuelli. “A Gazeta do Rio de Janeiro e o impacto da circulação de ideias no Império luso-brasileiro (1808-1821)”. In: ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula (Orgs.). O Império por escrito, p. 572. 34 LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência (1821-1823). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 68. 35 ARMITAGE, John. História do Brasil: desde a chegada da família de Bragança, em 1808, até a abdicação do Imperador D. Pedro I, em 1831. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1837, p. 14. 36 Correio Braziliense ou Armazem Literario, Londres, n. 46, vol. 8, março de 1812, p. 289. 37 BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa, p. 21. 38 De acordo com Marco Morel, “É comum colocar-se, em estudos históricos, a contraposição entre a Gazeta do Rio de Janeiro (enquanto jornal oficial) e o Correio Braziliense (que fazia críticas ao governo). Porém, uma comparação atenta indica que, além dessa evidente dicotomia oposição/situação, existiam convergências entre estes dois periódicos. Tanto a Gazeta quanto o Correio defendiam idêntica forma de governo (monárquica), a mesma dinastia (Bragança), apoiavam o projeto de união luso-brasileira e comungavam o repúdio às ideias de revolução e ruptura, padronizado pela crítica comum à Revolução Francesa e sua memória histórica durante a restauração”. Ainda segundo Morel, “a partir de meados de 1821 (após a Revolução do Porto e com o ministério de José Bonifácio e convocação da Constituinte brasileira), a Gazeta do Rio (o título é reduzido) passa a defender 29 Literario39 tinha por característica a crítica à política e à administração portuguesa.40 Fundado, dirigido e redigido por Hipólito José da Costa Furtado de Mendonça, que se manteve à frente do periódico por todo o tempo em que este perdurou, de 1808 a 1822, o Correio teve seu número inaugural impresso em 1 de junho de 1808, em Londres, três meses antes da publicação da Gazeta do Rio de Janeiro no Brasil. Apesar de impresso na Inglaterra, o jornal de Hipólito da Costa é considerado integrante da imprensa brasileira, o que faz da publicação de seu primeiro exemplar o marco inicial de nosso periodismo.41 Criador do periódico de língua portuguesa reputado o mais influente do período,42 Hipólito da Costa via seu Correio Braziliense como uma forma de “aclarar os [...] compatriotas sobre os fatos políticos, civis e literários da Europa”. Para isso, procurou “traçar as melhorias das ciências, das artes e, numa palavra, de tudo aquilo que pode ser útil à sociedade em geral”.43 Mas o redator fez mais do que isso: defensor do modelo de governo da monarquia constitucional inglesa, Hipólito tecia críticas às práticas políticas e administrativas do governo de Dom João, alertando para a incapacidade delas em prol do desenvolvimento brasileiro.44 Por suas críticas a Dom João e à sua corte, o Correio Braziliense foi proibido, apreendido e censurado - o governo português editou avisos e mobilizou a polícia para impedir sua circulação, o que fazia com que, no Brasil e em Portugal, sua leitura fosse considerada violação da lei.45 o liberalismo e a modernidade política (citando Rousseau e outros da mesma linha). E acompanha de perto o processo de separação entre Portugal e o Brasil, posicionando-se a favor da independência deste antes mesmo do Correio Braziliense, que levava a desvantagem da distância geográfica e das comunicações demoradas entre os dois Hemisférios. MOREL, Marco. “Os primeiros passos da palavra impressa”. In: MARTINS, Ana Luiza; DE LUCA, Tania Regina (Orgs.). História da imprensa no Brasil, p. 31-32. 39 Alberto Dines, no artigo intitulado “Hipólito da Costa, hoje”, apresenta o projeto de Hipólito para o Correio Braziliense, destacando o jornalismo como mecanismo de instância política e detentor de importante função social. A importância de Hipólito, segundo o autor, viria do fato de ter sido “o primeiro jornalista interpretativo, o primeiro jornalista cultural, o primeiro jornalista científico”, entre uma série de outros atributos elencados por Dines. Ainda segundo ele, ao procurar realizar uma abertura cultural internacionalista, Hipólito teria contribuído na formação da elite intelectual brasileira, uma vez que “sua ideia era transformar aquele público restrito, pré-iluminista, numa liderança intelectual moderna através da veiculação em vernáculo das novidades em matéria científica, tecnológica, cultural e política que circulavam na América do Norte e na Europa”. DINES, Alberto. “Hipólito da Costa, hoje”. In: LUSTOSA, Isabel (Org.). Imprensa, história e literatura. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2008, p. 38-41. 40 LIMA, Oliveira. Dom João VI no Brasil, p. 166. 41 SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil, p. 21-22. 42 SAFIER, Neil. “Abolição à distância: a luta de um maçom pela emancipação brasileira por meio da imprensa”. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das (Org.). Livros e Impressos: Retratos do Setecentos e do Oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009, p. 34. 43 Correio Braziliense, Londres, n. 1, vol. 1, junho de 1808, p. 4. 44 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Pensamentos vagos sobre o Império do Brasil”. In: DINES, Alberto; LUSTOSA, Isabel. Hipólito José da Costa e o Correio Braziliense. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002, p. 470. 45 BAHIA, Benedito Juarez. História, jornal e técnica, p. 32. 30 1.2 Da censura e da liberdade A partir da criação da Impressão Régia tornou-se possível a publicação de papéis em solo brasileiro, mas a liberdade na escolha do que imprimir demorou ainda alguns anos para ser alcançada.46 Se passaram a ser impressos decretos, avisos, editais e ordens régias, bem como, ainda que paulatinamente, jornais, revistas, livros e panfletos, tais publicações inicialmente não eram feitas ao bel-prazer de escritores e redatores, havia todo um aparato censório estruturado para regular e controlar previamente o que poderia ou não ser impresso. A tipografia régia, assim que criada, passou a contar com uma comissão designada para administrá-la; integravam- na José Bernardino de Castro, oficial da Secretaria de Negócios Estrangeiros e da Guerra, Mariano José Pereira da Fonseca, futuro marquês de Maricá, e José da Silva Lisboa, futuro visconde de Cairu, homens responsáveis, segundo determinação do monarca, por “examinar os papéis e livros que se mandassem publicar e fiscalizar que nada se imprimisse contra a religião, o governo e os bons costumes”.47 Mas a censura prévia não se restringia ao funcionamento da primeira tipografia brasileira; pelo decreto de 27 de setembro de 1808, Dom João fez “por bem aprovar e nomear para censores régios” os seguintes súditos: o frei Antônio Arrábida, Luís José de Carvalho e Melo, padre João Manzoni e José da Silva Lisboa, este último, também membro da Junta Diretora da Impressão Régia.48 Tais censores eram subordinados à Mesa do Desembargo do Paço, instituição criada no Brasil em 22 de abril de 1808 para substituir os mesmos tribunais existentes no Reino, “nos quais é por ora impraticável que se tratem e decidam, pela bem conhecida interrupção de comunicação com a Capital”.49 Cabiam aos censores o privilégio e o dever de controlar a circulação de textos no Brasil50 - nada poderia ser impresso sem a devida avaliação prévia da Mesa, bem como nenhuma obra importada poderia deixar as alfândegas sem sua aprovação.51 O interessado em retirar os livros que chegavam ao Brasil precisava enviar um inventário dos títulos que desejava à Mesa do Desembargo do Paço. Com as listas em mãos, 46 LUSTOSA, Isabel. “Insultos impressos: o nascimento da imprensa no Brasil”. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 243. 47 Instrução de 24 de junho de 1808 apud RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil, 1500- 1822: com um breve estudo geral sobre a informação. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1988, p. 317. 48 Coleção de Leis do Império do Brasil - 1808, vol. 1, 27 de setembro de 1808, p. 144. 49 Coleção de Leis do Império do Brasil - 1808, vol. 1, 22 de abril de 1808, p. 17. 50 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Intelectuais brasileiros nos Oitocentos: a constituição de uma ‘família’ sob a proteção do poder imperial (1821-1838)”. In: PRADO, Maria Emília (Org.). O Estado como vocação: ideias e práticas políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Access, 1999, p. 17. 51 Segundo Márcia Abreu, sabe-se que, entre 1808 e 1824, ao menos “84 pessoas dirigiram-se à Mesa com o intuito de obter a liberação de 1.190 títulos de belas-letras, vindos da Europa – considerando-se os múltiplos pedidos para uma mesma obra, chega-se ao total de 1.956 livros. ABREU, Márcia. O caminho dos livros, p. 59. 31 os censores régios emitiam seus pareceres: caso favoráveis, as obras eram liberadas ao requerente; se os títulos eram proibidos ou suspeitos, negavam-se as licenças; em caso de dúvida, solicitava-se nova avaliação de outro censor ou o encaminhamento da obra à Mesa para leitura e avaliação. Permanecendo a indecisão, era o monarca que, em última instância, deliberava sobre as solicitações.52 Além da Junta Diretora da Impressão Régia e dos censores da Mesa do Desembargo do Paço, couberam também à Intendência de Polícia, criada pelo alvará de 5 de abril de 1808, a fiscalização e o controle sobre a circulação e a publicação de impressos no Brasil. Em edital publicado pela polícia, o intendente comunicou que “aos que publicarem escritos sem exame e licença, serão presos na cadeia pública e pagarão de pena 200 mil réis, além das mais que se impõem aos que procuram quebrantar a segurança pública”.53 Além disso, logo após sua criação, a Intendência mandou divulgar um aviso em que proibia os livreiros de anunciarem à venda, em locais públicos, quaisquer obras que possuíssem em suas lojas sem que antes fossem entregues à polícia para exame e liberação.54 Com a chegada de Dom João e sua corte ao Brasil, o controle sobre os impressos abrandou-se em relação ao restante do período colonial, pois tornou-se possível o estabelecimento de uma tipografia no Rio de Janeiro, quando se inaugurou a circulação de periódicos e livros publicados pela Impressão Régia. O governo português, entretanto, ainda tentava controlar o que se podia ou não escrever, publicar e ler por meio de um aparato censório estabelecido pelo monarca, o qual funcionou como um instrumento pelo qual a monarquia lusitana procurou evitar a propagação das ideias ditas perigosas. No entanto, a censura não constituiu um obstáculo intransponível para a circulação de textos de qualquer espécie, fossem livros, jornais, revistas ou folhetos avulsos, uma vez que não existiam critérios suficientemente rígidos e sistemáticos que regulassem seu exercício. Somava-se a isso a própria formação ilustrada dos censores, que acabou por afrouxar as amarras da censura, tendo-se em vista que seus responsáveis hesitavam entre manter um controle rigoroso dos impressos e uma certa 52 Entretanto, como aponta Leila Mezan Algranti, “o processo de liberação não transcorria de forma tão cristalina assim, interpondo-se a ele uma série de situações que demonstram a ausência de procedimentos isentos e de normas claras, tanto dos que exerciam a censura, quanto dos interessados na liberação das listas”. ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura, p. 140. 53 Edital da Intendência de Polícia apud BAHIA, Benedito Juarez. História, jornal e técnica: história da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009, p. 25. 54 Leila Mezan Algranti ainda destaca que “a instituição da censura no Brasil passou por três momentos. O primeiro, quando da nomeação dos censores para a tipografia régia; o segundo, ao se estabelecer a função censora do Desembargo do Paço aqui na América, o que resultou na escolha dos censores civis; por último, a colaboração da recém-criada Intendência de Polícia do Rio de Janeiro. [...] Esses órgãos (tipografia, Desembargo do Paço e Intendência da Polícia) eram instituições e organismos régios, isto é, encontravam-se submetidos diretamente à autoridade do rei”. ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura, p. 139. 32 liberalidade para com os papéis, pois estes carregavam consigo o potencial para a efetivação de reformas esclarecidas, cujos ideais eram partilhados por aqueles homens.55 Ainda assim, a censura se fazia presente, exercida por meio dessas instituições. Para se ter uma ideia de sua dimensão, basta ouvirmos o que disse o redator do Correio Braziliense, Hipólito José da Costa, assíduo defensor da liberdade de imprensa. Por mais que tenha enaltecido a criação da Impressão Régia e dado os “parabéns aos meus compatriotas brasilienses” por tal empreendimento, Hipólito teceu inúmeras críticas à censura existente “em Portugal e seus domínios”: Eu não neguei [...] que a nação portuguesa tem muitos homens de talentos e alguns de erudição e conhecimentos; somente disse que os entraves que se põe às ciências, as perseguições que sofrem os homens de letras e outras causas que eu atribuo ao governo, fazem com que esses talentos estejam sopitados e não haja nem possa haver produções literárias. Aquele freio de que se não possa publicar obra alguma em matéria nenhuma sem que seja aprovada por uns poucos de homens, em quem o governo de Portugal lhe aprouve, por uma ficção de direito, depositar todos os conhecimentos humanos, é um absurdo, só por si capaz de aniquilar inteiramente o gênio da nação em tudo o que é produção literária.56 Hipólito ainda continuava sua condenação da censura ao afirmar que muitas obras eram proibidas [...] porque os censores não sabem do que elas tratam. E toda a produção que estes focos da ciência não aprovam é má. Todo o mundo sabe que se o autor a quem se proíbe uma obra proferisse a menor queixa, teria finalmente ou uma mordaça na Inquisição, ou uma prisão de segredo, por ordem da chamada polícia.57 Por mais que a impressão e a importação de livros e jornais ocorressem no Brasil, elas ainda eram feitas de maneira razoavelmente controlada pelas autoridades luso-brasileiras. Esse foi um dos motivos para Hipólito ter publicado seu periódico, o Correio Braziliense, em Londres. Em março de 1819, o redator lembrou a [...] dificuldade de publicar estas obras periódicas no Brasil, já pelo entrave da censura prévia, já pelo perigo a que os redatores se exporiam, falando livremente das ações de homens poderosos, fez cogitar o expediente de 55 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Antídotos contra obras “ímpias e sediciosas’: censura e repressão no Brasil de 1808 a 1824”. In: ABREU, Márcia (Org.). Leitura, história e história da leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras/Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Fapesp, 1999, p. 393. 56 Correio Braziliense, Londres, n. 5, vol. 1, outubro de 1808, p. 383. 57 Correio Braziliense, Londres, n. 5, vol. 1, outubro de 1808, p. 383-384. 33 imprimir semelhantes obras em países estrangeiros. A França e a Inglaterra foram principalmente os pontos de reunião destas publicações, desde a época em que a Família Real passou a ter a sua residência no Rio de Janeiro. Aberto este canal, pode-se dizer que se estabeleceu a liberdade de imprimir para o Brasil, posto que não no Brasil.58 Para Hipólito da Costa, a “falta da liberdade da imprensa é tão prejudicial aos povos como aos monarcas”,59 pois impossibilitaria o pleno desenvolvimento das nações, uma vez que o progresso do indivíduo e da pátria não poderiam ser alcançados sem a liberdade de comunicação. Era preciso, então, “facilitar-lhe [ao povo] a leitura das gazetas e jornais”,60 pois somente a “liberdade da imprensa faz com que o povo seja instruído de seus verdadeiros interesses”.61 A postura de Hipólito da Costa de combater a censura foi repetida por grande parte dos redatores dos periódicos oitocentistas publicados no Brasil. Para se ter uma ideia, 51 anos depois da afirmação de Hipólito, o periódico Acajá trazia a seguinte frase do marquês de Maricá como epígrafe: “O progresso da inteligência é infalível havendo liberdade de falar, escrever e publicar o que pensamos”.62 Os anos que se seguiram à chegada de Dom João, no entanto, foram marcados pelo controle do que se podia ou não publicar e ler. Apenas após a Revolução do Porto, em 1820, é que aparecem os primeiros ensaios de liberar definitivamente a palavra impressa.63 Em 21 de setembro de 1820, o governo interino de Lisboa emitiu uma portaria decidindo “facilitar a impressão e a leitura dos bons livros e papéis nacionais e estrangeiros, para que se não retarde a notícia dos acontecimentos nem a comunicação de ideias úteis para se dirigir a opinião pública, segundo os princípios de uma bem entendida liberdade civil”.64 No Rio de Janeiro, acompanhando as novas ideias que sopravam de Lisboa, o monarca decretou, em 2 de março de 1821, que ficasse “suspensa a prévia censura que pela atual legislação se exigia para a impressão dos escritos que se intente publicar”, uma vez que “a prévia censura dos escritos opunha [embaraços] à propagação da verdade”. Entretanto, essa suposta liberdade não passou de um simulacro; no mesmo decreto, o soberano continuava: Todo o impressor será obrigado a remeter ao Diretor dos Estudos, ou quem suas vezes fizer, dois exemplares das provas que se tirarem de cada folha na 58 Correio Braziliense, Londres, n. 130, vol. 22, março de 1819, p. 315. 59 Correio Braziliense, Londres, n. 11, vol. 2, abril de 1809, p. 416. 60 Correio Braziliense, Londres, n. 46, vol. 8, março de 1812, p. 289. 61 Correio Braziliense, Londres, n. 16, vol. 3, agosto de 1809, p. 153. 62 Acajá: jornal de instrucção e recreio, Rio de Janeiro, n. 1, ano 1, 15 de novembro de 1860, p. 1. 63 BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa, p. 23. 64 Portaria de 21 de setembro de 1820 apud RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil, 1500- 1822: com um breve estudo geral sobre a informação. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1988, p. 328. 34 imprensa, sem suspensão dos ulteriores trabalhos; a fim de que o Diretor dos Estudos, distribuindo uma delas a algum dos Censores Régios, e ouvido o seu parecer, deixe prosseguir na impressão, não se encontrando nada digno de censura, ou a faça suspender, até que se façam as necessárias correções, no caso unicamente de se achar que contém alguma coisa contra a religião, a moral e bons costumes, contra a Constituição e Pessoa do Soberano, ou contra a pública tranquilidade.65 Praticamente nada mudou: a censura apenas migrou dos manuscritos para as provas tipográficas. Os impressores, como é possível imaginar, continuaram a não publicar que quer que fosse sem a vistoria previa dos censores, pois permanecia o risco de perderem a tiragem com as correções exigidas ou com o confisco do material, sem contar o perigo pessoal de ter que arcar com as penas de multa e de prisão impostas pelo decreto.66 Foi apenas com o decreto das bases da Constituição, promulgado pelas cortes de Lisboa, em 9 de março de 1821, que a liberação da imprensa começou a mudar no Brasil. Nele, afirmava-se que “todo cidadão pode, consequentemente, sem dependência de censura prévia, manifestar suas opiniões em qualquer matéria, contanto que haja de responder pelo abuso desta liberdade nos casos e na forma que a lei determinar”.67 Na esteira deste decreto, Dom Pedro promulgou, finalmente, em 28 de agosto de 1821, um Aviso que extinguia a censura prévia a qualquer escrito, tornando livre a palavra impressa no Brasil, mas mantendo as penas para o abuso da liberdade de imprensa:68 Tomando Sua Alteza Real em consideração quanto é injusto que, depois do que se acha regulado pelas Cortes Gerais Extraordinárias da Nação Portuguesa sobre a liberdade de imprensa, encontrem os autores ou editores inesperados estorvos à publicação dos escritos que pretendem imprimir: é o mesmo Senhor servido mandar que se não embarace por pretexto algum a impressão que se quiser fazer de qualquer escrito, devendo unicamente servir de regra o que as mesmas Cortes têm determinado sobre este objeto.69 A partir de então, toda pessoa podia manifestar suas opiniões sobre qualquer assunto sem precisar se submeter previamente a algum tipo de censor. Liberdade de imprensa significava, nesses moldes, a liberdade de falar, debater e julgar os múltiplos objetos e aspectos 65 Coleção de Leis do Império do Brasil - 1821, vol. 1, pt. II, 2 de março de 1821, p. 25. 66 Define o decreto: “O impressor ou livreiro que faltar em cumprir com o disposto neste Decreto incorrerá na pena pecuniária, que não será menos de 100$000, nem mais de 600$000; e, além disso, na correcional de custódia, de oito dias ao menos, ou de três meses ao mais, nos casos de maior gravidade; confiscados, em ambos os casos, os livros apreendidos”. Coleção de Leis do Império do Brasil - 1821, vol. 1, pt. II, 2 de março de 1821, p. 25. 67 Decreto de 9 de março de 1821, p. 22. Disponível em: http://debates.parlamento.pt/Constituicoes_PDF/bases_crp1822.pdf 68 Sobre os abusos da liberdade de imprensa e as penas decorrentes, ver o decreto de 12 de julho de 1821. Cf. Coleção de Leis do Império do Brasil - 1821, vol. 1, pt. I, 12 de julho de 1821, p. 19. 69 Aviso de 28 de agosto de 1821 apud BAHIA, Benedito Juarez. História, jornal e técnica: história da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009, p. 26 (nota 5). 35 da vida social,70 mas desde que o indivíduo que se manifestasse respondesse pelos abusos cometidos de acordo com as determinações legais. Para responsabilizar os autores, que quase sempre publicavam seus papéis anonimamente, Dom Pedro decretou, em 19 de janeiro de 1822, que “não [se] deve embaraçar a impressão de escritos anônimos, pois pelos abusos que contiverem deve responder o autor, ainda que o seu nome não tenha sido publicado, e na falta deste, o editor ou impressor, como se acha prescrito na lei que regula a liberdade de imprensa”.71 Mesmo Hipólito da Costa, apesar de ser um assíduo defensor da liberdade de imprensa, não era radicalmente contra certos regulamentos que coibissem as violências e excessos divulgados pelos jornais: Quanto aos abusos, a imprensa livre remedeia-se a si mesma; porque não pode haver razão para que a mentira, sendo igualmente livre como a verdade, prevaleça contra esta; a discussão livre fará sempre sucumbir o erro. Restam, ainda, alguns casos em que as leis devem interpor sua autoridade sobre a imprensa, assim como a impõe sobre os manuscritos e sobre a fala; mas estes casos são poucos, bem conhecidos e de fácil remédio.72 A partir de 1821, quando foi decretada a liberdade da palavra impressa no Brasil, proliferaram as tipografias73 e, com elas, os folhetos e os periódicos.74 Neste ano, surgem duas tipografias no Rio de Janeiro: a Nova Tipografia e a de Moreira e Garcez. No ano seguinte - o da Independência -, instalaram-se mais quatro: a de Silva Porto e Cia., propriedade de Felizardo Joaquim da Silva Morais e Manuel Joaquim da Silva Porto; a de Santos e Sousa; a do Diário do Rio de Janeiro, de Zeferino Vito de Meireles; e a de Torres e Costa, cujos proprietários eram Inocêncio Francisco Torres e Vicente Justiniano da Costa.75 No decorrer do século XIX, houve também grande aumento das instituições e espaços de apoio às letras, às ciências e à cultura, como livrarias, bibliotecas, gabinetes de leitura, sociedades e academias artísticas, literárias e científicas, colégios regulares e técnicos, seminários, faculdades, inicialmente as de Direito e Medicina, teatros, entre uma série de outros estabelecimentos76 que auxiliaram, ainda que 70 RIBEIRO, Lavina Madeira. Imprensa e espaço público: a institucionalização do jornalismo no Brasil (1808- 1964). Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2004, p. 57. 71 Portaria de 19 de janeiro de 1822 apud RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil, 1500- 1822: com um breve estudo geral sobre a informação. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1988, p. 330. 72 Correio Braziliense, Londres, n. 150, vol. 25, novembro de 1820, p. 570. 73 De acordo com Carlos Rizzini, “Até a proclamação da Independência havia, portanto, no Brasil: a Impressão Régia e as oficinas da Bahia, do Recife, do Maranhão e do Pará, autorizadas, e mais as duas de Vila Rica e as seis do Rio de Janeiro, estas fundadas após o Alvará do Príncipe-Regente, de 28 de agosto de 1821, proclamando a liberdade de imprensa. Ao todo treze”. RIZZINI, Carlos. O jornalismo antes da tipografia, p. 186 74 BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa, p. 40. 75 SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil, p. 36. 76 Sobre as instituições culturais criadas no Rio de Janeiro a partir da chegada de Dom João e sua corte ver: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. “A construção de um público”. In: DINES, Alberto; LUSTOSA, Isabel. 36 lentamente, a transformação de uma sociedade colonial extremamente oralizada para uma nação cada vez mais letrada, na qual a palavra impressa conquistava mais espaço e importância. 1.3 Da oralidade e do público receptor Até o desembarque de Dom João, o Rio de Janeiro era uma cidade relativamente acanhada, com raras atividades intelectuais.77 Os indivíduos letrados eram poucos, e a circulação de seus escritos, bastante restrita, ocorrendo quase sempre em forma de manuscritos, uma vez que a impressão ainda era proibida. Até então, os consumidores de cultura eram basicamente os mesmos que a produziam, o que limitava em muito a circulação de ideias e saberes a uma pequena parcela da população.78 Após 1808, a raridade de produtores e consumidores de escritos e de outras formas de cultura alterou-se sensivelmente, porém de modo relativamente lento. Uma anedota publicada no jornal A Grinalda, em setembro de 1848, ilustra muito bem o que era o mundo letrado carioca em meados do século XIX: Um sujeito tendo recebido uma carta de sua família pediu a um seu conhecido o favor de a ler; este, fingindo fazê-lo, de vez em quando interrompia a falsa leitura, dizendo: chore, chore senhor F...; o outro perguntava-lhe pelo que, se havia morrido alguma pessoa de sua família, ou se tinha acontecido alguma desgraça... chore, chore, senhor F... pela desgraça de Vm. não saber ler... nem eu.79 A Chronica Litteraria, em junho de 1848, também destacou a escassez de leitores e a pacata atividade intelectual existente no Rio de Janeiro do período: “Ah! Escrever! Por que aprendi eu a escrever! Escrever! Acreditei na sua liberdade de imprensa! Onde tinha eu a cabeça? Oh! E para quê? Para imprimir cinco ou seis pobres ideias muito medíocres, lidas somente por aqueles que as amam [...]”.80 O desembarque da corte no Brasil deu início a novos tempos para a cultura letrada, com o surgimento dos primeiros consumidores regulares de arte e literatura, momento em que Hipólito José da Costa e o Correio Braziliense. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002, p. 553-604. 77 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. “A construção de um público”. In: DINES, Alberto; LUSTOSA, Isabel. Hipólito José da Costa e o Correio Braziliense, p. 554. 78 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Literatura e sociedade no Rio de Janeiro oitocentista. Lisboa: Imprensa Oficial/Casa da Moeda, 1999, p. 101. 79 A Grinalda: jornal dos domingos, Rio de Janeiro, n. 6, vol. 1, 3 de setembro de 1848, p. 92. 80 Chronica Litteraria: jornal de instrucção e recreio, Rio de Janeiro, n. 24, vol. 1, série 1, 11 de junho de 1848, p. 186. 37 começou a se organizar, pela primeira vez, uma vida intelectual mais robusta no Brasil.81 Com a Impressão Régia e as demais tipografias fundadas depois de decretada a liberdade de imprensa, por mais limitada que ainda fosse a vida intelectual durante as primeiras décadas do século XIX, o Rio de Janeiro passou a contar cada dia mais com a proliferação de periódicos e livros, com um número cada vez maior de estrangeiros letrados que chegavam aos trópicos e com o aumento do interesse da população local pelas manifestações culturais, formando-se um público mais receptivo aos impressos e, com isso, às ideias e tendências da época que por eles circulavam.82 Malgrado a intensificação da atividade intelectual, o público letrado era ainda bastante restrito, mesmo entre