JULIANE BEZERRA SERAPHIM VIANA A IMPORTÂNCIA DA DESCRIÇÃO EM O GUARANI (1857), DE JOSÉ DE ALENCAR ASSIS 2014 JULIANE BEZERRA SERAPHIM VIANA A IMPORTÂNCIA DA DESCRIÇÃO EM O GUARANI (1857), DE JOSÉ DE ALENCAR Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestra em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientador(a): Profª. Dra. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti Co-Orientador(a): Profª. Dra. Sandra Aparecida Ferreira ASSIS 2014 FICHA CATALOGRÁFICA Viana, Juliane Bezerra Seraphim. V667i A importância da descrição em O Guarani (1857), de José de Alencar / Juliane Bezerra Seraphim Viana. - Assis: [s.n], 2014 144 f. Orientador: Maria Lídia Lichtscheidl Maretti Co-orientador: Sandra Aparecida Ferreira Dissertação (mestrado) - Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista Inclui bibliografia 1. José de Alencar. 2. O Guarani. 3. Descrição. I. Maretti, Maria Lídia Lichtscheidl. II. Ferreira, Sandra Aparecida. III. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras de Assis. IV. Título. Aos meus pais, meu marido, meu filho. AGRADECIMENTOS À UNESP, responsável pela minha formação acadêmica e aos profissionais admiráveis dessa Universidade, que amam o que fazem e transmitem esse gosto aos alunos. À minha orientadora Profa. Dra. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti, que esteve comigo no início do curso indicando-me caminhos a serem seguidos e dando-me ensinamentos de grande valia. À minha co-orientadora, Profa. Dra. Sandra Aparecida Ferreira, pela disponibilidade, pelas importantes contribuições e por ter me auxiliado em momentos difíceis da pesquisa. Às Profas. Dras. Brigitte Monique Hervot e Cláudia Valéria Penavel Binato, pela participação na Banca de Qualificação e pelas sugestões preciosas. Aos meus pais por me fazerem uma adulta sedenta de aprender sempre mais, por me ensinarem que o estudo é um dos bens mais valiosos da vida, por serem exemplos para mim, por entenderem minha ausência, por terem construído comigo esse sonho e me ajudado a torná-lo possível. Ao meu marido, Wellington, que esteve junto a mim desde o início, pelo apoio, pela paciência e compreensão durante as intermináveis horas de estudo, pelo amor incondicional. Ao meu filho, Marcus Vinícius, que, mesmo pequeno, auxiliou-me com seu abraço quente, seu olhar carinhoso, seu sorriso reconfortante, renovando as minhas forças. À minha irmã, Priscila, ao meu cunhado, Júlio, aos amigos, Ludmila, Valdenir, Lincoln, Miriã, Leni, Nilson, Valter e Sueli, pela torcida e ajuda prestada e aos meus tios, pelo interesse constante. Enfim, a todos que estiveram comigo, acreditaram em mim e contribuíram direta ou indiretamente para a concretização desse trabalho, o meu muito obrigada. “Lugar privilegiado, onde se organiza [...] a legibilidade de toda a narrativa, a descrição apresenta-se, pois, como uma espécie de ‘rede’ semântica fortemente organizada”. (Philippe Hamon) “A descrição serve ao romantismo brasileiro como instrumento de registro que vem responder à questão do que nós somos e como somos”. (Karin Volobuef) “O Guarani é um ato de fé. Alencar tudo engrandeceu e idealizou”. (Valéria de Marco) VIANA, Juliane Bezerra Seraphim. A importância da descrição em O Guarani (1857), de José de Alencar. 2014. 144 f. Dissertação (Mestrado em Letras). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2014. RESUMO A presente dissertação tem por objetivo estudar o funcionamento da descrição em O Guarani (1857), de José de Alencar (1829-1877), enquanto recurso decisivo para o desenvolvimento da narrativa. Para cumprir tal objetivo, selecionam-se enunciados descritivos sobre espaços e personagens principais da trama, bem como analisam-se traços estilísticos, com base nos pressupostos teóricos sobre descrição de Gerárd Genette, em Fronteiras da narrativa (1973) e de Philippe Hamon, em O que é uma descrição? (1976). Na análise da descrição dos espaços, aponta-se que Alencar, por meio de seu narrador, fixa cenários fundamentais da obra, que prenunciam e explicam ações ocorridas ou vindouras, além de auxiliar na definição do caráter dos indivíduos. A descrição das personagens compõe imagens que evidenciam seu aspecto físico e psicológico, além de gestos e trajes, decisivos para a composição do ponto de vista de cada personagem, particularizando-a. Os traços estilísticos utilizados nessas descrições seguem, geralmente, um padrão. Esta dissertação, portanto, discute a funcionalidade da descrição no enredo do romance analisado para, com base em estudos sobre o uso da descrição na narrativa, observar os expedientes descritivos como orientadores de leitura e facilitadores da compreensão global de O Guarani. Palavras-chaves: José de Alencar; O Guarani; Descrição; Imagens. VIANA, Juliane Bezerra Seraphim. The importance of the description of the book O Guarani (1857), José de Alencar. 2014. 144 f. Dissertation (Masters in Language). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2014. ABSTRACT This paper aims at studying the description functioning in O Guarani (1857), José de Alencar´s masterpiece (1829-1877), as a main resource for the narrative development. In order to achieve that, descriptive statements about spaces and main characters of the plot were chosen as well as the stylistic traits, based on theoretical assumptions in both Gerárd Genette ´s Frontiers of Narrative (1973) and Philippe Hamon ´s What is a description? (1976), were analyzed. In the analysis of the space description, it is realized that Alencar, through his narrator, sets up fundamental scenarios of the work that not only predict but also explain past or future actions, besides helping define the subjects´ character. The description of the characters make up images that highlight their physical and psychological features, as well as their gestures and costumes, which is considered decisive for composing each character´s point of view, making it individualized. The stylistic traits used for these descriptions generally follow a pattern. This paper therefore discusses the functionality of the novel plot description, which is used for observing the descriptive expedients both as O Guarani´s reading guides and global understanding, based on the narrative description use. KEYWORDS: José de Alencar; O Guarani; Description; Images SUMÁRIO 1.� INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11� 2.� Teoria da descrição ............................................................................................................ 22� 2.1.� O que é a descrição e sua inserção na narrativa ......................................................... 22� 2.2.� A construção dos enunciados descritivos .................................................................. 24� 2.3.� Tipologias descritivas ................................................................................................ 25� 2.4.� Sinais do descritivo .................................................................................................... 28� 3.� Descrição do Espaço ......................................................................................................... 31� 3.1.� Descrição do Espaço Externo .................................................................................... 32� 3.1.1.� O Rio Paquequer ............................................................................................... 32� 3.1.2.� A fortaleza dos Mariz........................................................................................ 39� 3.1.3.� A prece .............................................................................................................. 47� 3.1.4.� O dilúvio ........................................................................................................... 54� 3.2.� Descrição do Espaço Interno ..................................................................................... 61� 3.2.1.� Ambientes íntimos ............................................................................................ 61� 3.3.� O “castelo” de D. Antônio e sua filiação ao medievalismo europeu ......................... 67� 4.� Descrição das Personagens ................................................................................................ 70� 4.1.� D. Antônio de Mariz .................................................................................................. 70� 4.2.� Álvaro e Loredano ..................................................................................................... 76� 4.3.� Peri ............................................................................................................................. 81� 4.3.1.� E nasce um herói ............................................................................................... 90� 4.4.� Cecília e Isabel ........................................................................................................... 91� 4.5.� Aimorés .................................................................................................................... 101� 4.6.� Contraposição de perfis: D. Antônio de Mariz e Peri, personagens fundadoras ..... 108� 5.� Traços estilísticos da descrição de José de Alencar ........................................................ 112� 5.1.� Padrão de descrição dos espaços e das personagens ................................................ 112� 5.2.� A contribuição das notas de rodapé para as descrições ........................................... 115� 6.� CONCLUSÃO ................................................................................................................. 124� REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 127� APÊNDICE A - Trajes ........................................................................................................... 134� APÊNDICE B - As cores e suas representações .................................................................... 138� 11 1. INTRODUÇÃO José Martiniano de Alencar1, filho do padre e depois senador José Martiniano e sua prima Ana Josefina de Alencar, nasceu no dia 1º de maio de 1829, em Mecejana, Ceará e tornou-se mais tarde nacionalmente conhecido como um dos maiores escritores da literatura brasileira. Em viagens que faz ainda criança, as paisagens ficam marcadas em sua mente, refletindo, posteriormente, em sua obra. Leitor oficial da família quando menino e apaixonado por livros, aperfeiçoa seu francês e lê Alexandre Dumas, Chateaubriand, Balzac, Vitor Hugo e Alfredo Vigny. Após estudar Direito em São Paulo, inicia a carreira de escritor no jornalismo. Escreve seus primeiros artigos, que não tratam somente de literatura, em 1851, para o Correio Mercantil. A partir daí não para mais. Em 1856, trabalhando como redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro, publica, devido a uma polêmica travada com Domingos José Gonçalves de Magalhães, as Cartas sobre a Confederação dos Tamoios – uma série de oito cartas em que critica duramente a obra Confederação dos Tamoios (1856). Depois, estreia na ficção e tem sua primeira obra conhecida, chamada Cinco Minutos, seguida de A viuvinha, de 1857. Mas a consagração notória vem com a publicação em folhetim dos primeiros capítulos de O Guarani (1857), que, segundo Manoel Cavalcanti Proença, em José de Alencar na literatura brasileira (1966), teve grande receptividade popular. Iracema é publicado em 1865, mesmo ano em que sai o primeiro volume de As minas de prata. O volume dois dessa obra ficou para o próximo ano. Em 1873 e 1874, o primeiro e o segundo volume de Guerra dos Mascates são publicados. Além de romancista, Alencar foi dramaturgo. Escreveu várias peças teatrais marcadas por sucessos, fracassos e polêmicas, entre as quais O Crédito (1857), Verso e Reverso (1857), Demônio Familiar (1857) e O Jesuíta (1875). Em 1872 o escritor publica a obra Sonhos D’Ouro, cujo prefácio, intitulado “Benção Paterna”, tornou-se polêmico e recebeu grande destaque. Nele, o autor de O Guarani aponta a questão da nacionalidade e confere às suas obras a importante missão de compreender e 1 As informações biográficas sobre José de Alencar encontradas nesta dissertação foram colhidas em José de Alencar na literatura brasileira (1966), de Manoel Cavalcanti Proença e em A vida de José de Alencar (1979) de José Luís Viana Filho. PROENÇA, M. Cavalcanti. José de Alencar na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A., 1966, v. 5; VIANA FILHO, José Luís. A vida de José de Alencar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. 12 interpretar o processo histórico nacional. Destacamos, ainda, a autobiografia de Alencar, Como e porque sou romancista, escrita em 1873 e publicada postumamente, em 1893, importante documento para o conhecimento de sua personalidade e das bases de sua formação literária. José de Alencar, durante o seu período de produção, encontrava-se em momento de profunda agitação no país, pois este tinha acabado de conquistar sua independência política, mas ainda não tinha um passado estudado, com figuras representativas. Tratava-se de um Brasil sem passado literário. Assim, o autor sentiu que o próximo passo seria imprimir um caráter genuíno ao país que ainda não caminhava literariamente com as próprias pernas e que tivera a sua identidade nacional encarcerada por muitos anos. Era necessário “construir” a história do Brasil, que até então coincidia com a história de Portugal. Afrânio Coutinho, em A literatura no Brasil, ressalta que o autor “percebeu que não era possível haver independência cultural e literária se continuássemos a escrever segundo os modelos portugueses” (COUTINHO, 2002, p. 264). Então, um processo de autoafirmação tornava-se fundamental, ainda que fosse por meio de elementos mitológicos e históricos. Para o romantismo europeu, a literatura precisava ter um herói para representar sua pátria e, ao ser exaltado, engrandecer o passado da nação. Como o Brasil não possuía um passado medieval, recheado por cavaleiros fortes e destemidos, isso se tornava uma questão a ser imediatamente resolvida. Dessa forma, era preciso apresentar aos habitantes nascidos aqui os heróis dessa história, fazê-los brotar dessa terra. No entanto, o negro não poderia ser o representante, pois era estrangeiro e escravo e tampouco o branco, que remeteria ao colonizador europeu, ao explorador. Surge, com isso, a figura do índio, o primeiro habitante das terras brasileiras, e para Alencar, um exemplo de coragem e de luta em defesa do seu território. Assim sendo, para a ficção romântica do Brasil havia, agora, além da natureza, outro traço que o diferenciaria de Portugal: o forte e corajoso índio, o verdadeiro herói da nação. Nesse contexto, é possível compreendermos, como bem apontou Dante Moreira Leite, em O caráter nacional brasileiro, o fato de que alguns brasileiros, logo depois de conquistada a Independência, tenham seus nomes portugueses trocados e de que com nomes indígenas tenham sido elevados ao posto de heróis e proclamados donos dessa terra em oposição aos invasores lusitanos. O índio tornou-se uma figura de suma importância para os românticos brasileiros e “os escritores, políticos e leitores identificavam-se com esse índio do passado, ao qual atribuíam virtudes e grandezas” e que, portanto, constituía um tema literário e possuía conteúdo ideológico (LEITE, 2007, p. 225). 13 É importante percebermos que sob essa escolha do indígena como símbolo nacional de exaltação presente na obra do autor, há uma discussão intelectual e política para que se valorize a nacionalidade do país, desvinculando-a de Portugal, para mostrar que no Brasil também se fazia literatura. Para Nelson Werneck Sodré, em História da Literatura Brasileira (2004), o indianismo não era somente uma saída natural para o romantismo do país. Ia além, representava algo realmente brasileiro em oposição a tudo que era estrangeiro. Diante disso, José de Alencar, entre outros românticos, considera o índio e a natureza como representantes da brasilidade. Eles são peças-chave no processo de criação de uma nova nação, no descobrimento da identidade brasileira. Para o autor, sua função seria mostrar ao povo o que era o Brasil, incutir no público o espírito de patriotismo e resgatar o pensamento que se desenvolvia na alma das pessoas, fazendo com que isso se convertesse em algo verdadeiramente brasileiro. Esse sentimento nacionalista de criar algo novo em um país também novo encontrou no romance, segundo Antonio Candido, em Formação da Literatura Brasileira, a linguagem mais eficaz. “Nacionalismo, na literatura brasileira, consistiu basicamente, como vimos, em escrever sobre coisas locais; no romance, a consequência imediata e salutar foi a descrição de lugares, cenas, fatos, costumes do Brasil” (CANDIDO, 2007, p. 431). Foi o que naturalizou a literatura portuguesa no Brasil e fez do romance uma forma de pesquisa e de descoberta do país. Renato Ortiz, ao analisar a obra de Alencar, em O Guarani: um mito da fundação da brasilidade (1988), acredita que as personagens simbolizam papeis sociais. Desse modo, Alencar utilizava sua obra para contribuir para o processo de construção de uma identidade brasileira. O romancista cearense era um escritor programático, tinha um projeto de literatura e de discussão política para o país e foi o primeiro a fundar um programa que revelava o país de norte a sul. A formação da nação, para Alencar, estava definida pela literatura. Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira (1972), destaca que caberia ao autor, com toda justiça, o lugar central do nosso Romantismo, pela natureza e extensão da obra que produziu. José Antônio Pereira Ribeiro, em O romance histórico na literatura brasileira (1976), observa que se não foi Alencar o primeiro a dedicar-se ao indianismo ou ao romance histórico, foi com ele que esses gêneros literários brilharam como nunca na literatura brasileira. Cotejando estudos analíticos sobre José de Alencar como possível “fundador da literatura nacional”, observamos que o posicionamento da crítica se divide acerca de sua produção literária: por um lado, temos os que enxergam nela verdadeira obra de arte, dotada 14 de encantamento, de beleza e tradutora da cor nacional, e, por outro, temos os que a veem como simples imitação dos moldes europeus com exagero e idealização demasiados. No primeiro grupo, Ronald de Carvalho, em Pequena história da Literatura Brasileira, destaca que “aprendemos com ele [Alencar] a ter estilo, isto é, a considerar o romance como uma obra de arte, e não simplesmente como um divertimento” (CARVALHO, 1968, p. 252). O crítico considera, ainda, que as obras de Alencar são superiores: O Guarani e Iracema representam aqui o mesmo papel que, em França, os primeiros episódios de Chateaubriand. Nunca se tinha visto, nem no próprio Gonçalves Dias tanta frescura de emoção, tanta elegância de estilo, tanta graça nas ideias e nas narrativas. O indianismo de Alencar é superior ao de Gonçalves Dias, não só por ser mais sincero mas também por ser mais amplo e majestoso (CARVALHO, 1968, p. 250). José Luís Viana Filho, em A vida de José de Alencar, ao considerar o deslumbramento proporcionado pelo romantismo e seu universo fantástico, afirma: “sob esses aspectos O Guarani é maravilhoso. Passado mais de um século, permanece como um dos títulos mais famosos” (VIANA FILHO, 1979, p. 70). Ainda sobre tal obra, declara: “o estilo e a imaginação do romancista fariam da história simples uma narrativa maravilhosa e inesquecível. Dessas que o leitor interrompe com dificuldade, tal a sedução com que se prenuncia o desfecho” (VIANA FILHO, 1979, p. 71). Agrippino Grieco acredita que o índio de Alencar “pode ser, em vários detalhes, falso, pode ser, como asseveraram, um europeu pintado de urucu. [...] Mas o exato é que respiramos a pátria em quase tudo isso [...]” (GRIECO apud VIANA FILHO, 1979, p. 75). Segundo Valéria de Marco, em seu livro A perda das ilusões, “[...] Alencar não foi somente o romancista mais importante – um pai fundador do gênero – ou um razoável dramaturgo, ou um excelente crítico literário. Era também, no patamar dos literatos, o intelectual mais atuante” (DE MARCO, 1993, p. 225). Antonio Candido, apontando a versatilidade e o potencial do escritor cearense, destaca: Alencar foi capaz de fazer literatura de boa qualidade tanto dentro do esquematismo psicológico, quanto do senso da realidade humana. Por estender-se da poesia ao realismo quotidiano e da visão heroica à observação da sociedade, a sua obra tem a 15 amplitude que tem, fazendo dele o nosso pequeno Balzac (CANDIDO, 2007, p. 545). Por outro lado, temos os que não veem com bons olhos a idealização, o exagero, a imaginação hiperbólica e o irrealismo presentes na obra do romancista. Para Arthur Motta, na obra José de Alencar (o escritor e o político), as personagens do romancista não refletiam o mundo real e o seu temperamento as deturpava. Expõe o crítico: As paixões dos heróis e heroínas de seus romances eram amplificadas ao sabor de sua estesia. As vibrações da alma das personagens eram reguladas à descrição do seu temperamento de artista, desde o isocronismo monótono às crispações nervosas de extrema variabilidade. Possuía o dom de representar o físico, segundo as pompas do estilo descritivo; mas exagerava os contornos dos esboços psicológicos, intervindo sempre com a sua imaginação de artista, com a sua alma de poeta (MOTTA, 1921, p. 258). Olívio Montenegro, em O Romance Brasileiro, questionando a construção de suas personagens, diz: [Alencar] procurou criar o homem não à sua própria semelhança, mas à semelhança da sua paisagem, disforme como a natureza que ele inventa. [Suas personagens dão] mais a ideia de figuras de retórica do que de figuras de gente: são [...] puramente decorativas (MONTENEGRO, 1938, p. 42, 43). O guarani, objeto de análise dessa dissertação, foi publicado em folhetim – no rodapé do jornal O Diário do Rio de Janeiro, em 1857 - e, pouco tempo depois, devido ao seu grande êxito, foi editado em livro com alterações irrelevantes. As quatro partes originais mantiveram-se: “Os Aventureiros”, “Peri”, “Os Aimorés” e “A Catástrofe”. Esse romance apresenta paisagens e cenários pitorescos, por meio dos fragmentos descritivos da obra. Nessa dissertação procuramos analisar o uso literário da descrição em O Guarani (1857), de José de Alencar, obra em que o escritor sugere, com a união do casal Peri e Ceci, a origem mítica do povo brasileiro. É possível observarmos que a descrição orienta a leitura da narrativa, tem uma função reveladora sobre as personagens e presta informações, mesmo que 16 de forma indireta, sobre o futuro das mesmas. O autor utiliza também os enunciados descritivos para exaltar a natureza e esclarecer ações da trama. Para melhor compreensão de nosso estudo, faremos, a seguir, uma síntese do romance de Alencar. A narrativa de O Guarani é situada em 1604, às margens do rio Paquequer, afluente do rio Paraíba, na Serra dos Órgãos. A obra inicia-se com uma descrição do Paquequer e das moradias das personagens, espaços onde se desenrolam os eventos, seguidos pela apresentação das personagens que movimentam a trama. A primeira personagem apresentada é o fidalgo português D. Antônio de Mariz que participou da fundação da cidade do Rio de Janeiro. Após a derrota portuguesa em Alcácer- Quibir ele fixa morada no Brasil, nas terras que lhe foram dadas pelo governador Mem de Sá por serviços prestados à Coroa. O fidalgo é casado com D. Lauriana, com quem tem dois filhos: D. Diogo e Cecília, além de uma filha bastarda, Isabel, que também vive com a família Mariz na condição de criada. Essa família convive ainda com D. Álvaro, um nobre cavalheiro, Aires Gomes e os aventureiros, que buscam ouro e prata. A organização da fortaleza do patriarca segue o modelo de vassalagem medieval, no qual os empregados juram fidelidade ao senhor, e é dividida em partes: na frente moram o fidalgo e sua família e, nos fundos, separados, vivem os mercenários, que não têm acesso à primeira parte, com exceção de D. Álvaro, que transita pelos dois espaços. Há, ainda, o herói da narrativa, o índio Peri, da tribo dos Goitacás. Destina sua existência a proteger Ceci, desde que a salvou da morte e conquistou o apreço de D. Antônio. Peri, sempre atento aos acontecimentos na morada do português, descobre que Loredano, um dos aventureiros e ex-frei italiano, está naquelas terras para encontrar minas de prata, matar o patriarca e possuir sua filha. Enquanto isso, o chefe da residência preocupa-se com a provável vingança da tribo dos Aimorés, em razão de uma de suas índias ter sido assassinada acidentalmente por D. Diogo. Peri, para salvar os Mariz, vai ao encontro dos Aimorés, uma tribo antropófaga. Na cena da morte iminente de Peri, Álvaro aparece e liberta o índio, que, a pedido de Ceci, bebe um antídoto contra o veneno que tomara antes de se encontrar com os Aimorés, para que esses morressem ao devorar sua carne envenenada. Álvaro, que prometera casar-se com Cecília, apaixona-se por Isabel, que sempre o amara. No entanto, após mais um ataque dos Aimorés, Álvaro falece e sua amada suicida-se sobre seu corpo. D. Antônio descobre a traição de Loredano, que é morto em uma fogueira pelos demais aventureiros. Sem a possibilidade de continuar resistindo aos ataques da tribo, o fidalgo prefere explodir sua fortaleza, matando brancos e índios. Antes, batiza Peri e pede-lhe que salve Ceci. O índio leva-a da casa, adormecida por uma bebida. Quando a menina acorda, 17 ele relata-lhe o ocorrido. Cecília, contrariando o pedido de seu pai, pede para não ser levada ao Rio de Janeiro, pois prefere viver com o indígena nas matas. Uma tempestade muito forte surpreende o casal que, sem tempo para fugir, abriga-se no alto de uma palmeira. Quando as águas do rio sobem, Peri, com força descomunal, arranca uma palmeira e faz dela uma canoa. E os dois somem no horizonte. Com esse desfecho Alencar sugere que a união da moça branca com o jovem índio dá origem à raça brasileira. A fundação da nacionalidade é simbólica e voltada para o futuro, para o que se quer construir e não para o aconteceu, como nos mostra Renato Ortiz (1988). Acreditamos, conforme mencionou Alfredo Bosi, em Um mito sacrificial (1992), que O Guarani fundou, assim como Iracema, o romance nacional. Em oposição a outros textos, como por exemplo, Primeiros cantos (1846), de Gonçalves Dias, Alencar, nesse romance, não se propõe a uma destruição atroz das tribos Tupis, mas à formação ideal de uma nova nacionalidade: o Brasil emergindo do contexto colonial. Embora haja vasta pesquisa acerca de José de Alencar e sua obra, observamos certa lacuna com relação aos estudos teóricos sobre a descrição no Brasil e em especial sobre sua ocorrência nos romances do escritor cearense. Alguns estudiosos de Alencar tratam de determinados trechos descritivos de O Guarani, como Augusto Meyer, em Alencar e a tenuidade brasileira (1964); Manoel Cavalcanti Proença, na obra José de Alencar na literatura brasileira (1966); Affonso Romano de Sant’Anna, no livro Análise Estrutural de Romances Brasileiros (1973); Araripe Júnior, em Perfil Literário de José de Alencar (1980); Valéria de Marco, na obra A perda das ilusões (1993); Rui Lage, no trabalho José de Alencar e Chateaubriand (2004); e Eduardo Vieira Martins, no artigo Imagens da floresta (2010). Porém, nenhum deles tem as descrições da obra como foco de seus trabalhos. Dentre esses estudos críticos citados, o que mais se prolonga nesse estudo é o de Valéria de Marco. Ainda que não se aprofunde na análise das descrições, ela oferece vigorosas e oportunas sugestões para o nosso trabalho, indicando um caminho que considera a importância das imagens construídas para a compreensão da obra, a partir dos excertos descritivos. Segundo a estudiosa (1993), as imagens, em O Guarani, são fundamentais, uma vez que são marcantes, fixam-se em nossa memória, auxiliam-nos na recomposição da história na medida em que amarram os principais fios da narrativa e impõem-se especialmente por seu caráter plástico. O objetivo dessa dissertação é demonstrar a importância de algumas das principais descrições presentes em O Guarani, verificando como elas apresentam aspectos essenciais da narrativa que prenunciam as ações do romance, ao interligar começo, meio e fim, e 18 estabelecer a necessidade de se reconhecer o valor das descrições empregadas de modo estratégico, muito distante dos simples ornamentos geradores de pausas desmotivadoras. Nessa dissertação, é realizado o cruzamento da análise de algumas descrições do romance com o estudo do descritivo, baseado, principalmente, nas proposições dos teóricos franceses Gerárd Genette, com o texto Fronteiras da Narrativa (1973) e Philippe Hamon, com o artigo O que é uma descrição? (1976). Para a análise aqui proposta, interessa conhecer um pouco dos estudos sobre a descrição. Até o início do século XIX, a descrição não possuía uma teoria definida nem tinha um estatuto significativo. Era considerada apenas um recurso, um meio entre outros utilizados no texto. Tinha um caráter apenas informativo, equivalente a um simples comentário. Gerárd Genette (1973) destaca que na tradição literária clássica a descrição tinha uma função de ordem decorativa. A retórica tradicional classifica-a como um ornamento do discurso: a descrição longa e detalhada apareceria como uma pausa, uma recreação, na narrativa, de caráter puramente estético. Com o tempo, foi ganhando significação. Impõe-se com Balzac, na tradição do gênero romanesco, e tende a revelar e a justificar a psicologia das personagens. É a partir da estética romântica que o conceito da descrição começa a mudar efetivamente. Segundo Helena Buescu, ela passa a não ser mais um produto “paratextual”, que se pode retirar ou não do texto, para tornar-se parte “indissolúvel do real criado nele e por ele” (BUESCU apud PAZ, 2010). Etimologicamente, “descrever (de-scribere) significa escrever segundo um modelo”, afirmam Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, no Dicionário de narratologia (2002, p. 94). Dessa forma, pressupõe-se, na descrição, um mundo que nos é dado e pode ser representado por meio da escrita. Conforme esses autores, descreve-se sempre o “cenário” diegético. Caberia à descrição a tarefa de mostrar os elementos e os fragmentos do que é narrado, como os objetos, as pessoas, o tempo, etc. Ela possui, então, uma função de “serva da narração” (REIS; LOPES, 2002, p. 93). As primeiras reflexões sobre a descrição surgem a partir da narração e, portanto, é tarefa árdua tentar dissociar ambos os campos. Sendo assim, faremos um panorama sobre os questionamentos que os cercam, para auxiliar na compreensão de como os estudos da tipologia descritiva ocorreram e na reflexão sobre a importância literária desse tipo de texto na narrativa. O húngaro Georg Lukács, no ensaio Narrar ou descrever, de 1936, considera os dois processos, contrapondo o processo narrativo ao descritivo. Para ele, há primazia do ato de narrar sobre o de descrever, pois na descrição o escritor concebe uma realidade imutável, que 19 sempre será como é no momento em que ele descreve. Aquele que escreve parece não compreender que tudo se transforma, o que acarreta a perda da vivacidade na composição. Para Lukács, esse método é limitador, estático, artificial e transforma o homem em natureza morta. Conforme o escritor húngaro, a narração, em oposição à descrição, enxerga a realidade em contínua transformação. O narrador promove a observação de uma realidade sempre mutável e há uma significação profunda das coisas, uma ligação entre elas e a função que assumem nos acontecimentos humanos. O método descritivo, segundo ele, nivela as coisas; tudo adquire praticamente o mesmo nível de importância e as minúcias ganham significação desnecessária. As personagens são simplesmente espectadoras. Tudo é apenas reflexo do meio. A obra adquire um “caráter episódico”. Não se valorizam a unidade e a peculiaridade viva das personalidades. Ao contrário, “as qualidades humanas passam a existir umas ao lado das outras” (LUKÁCS, 1965, p. 74). A narração, em contrapartida, distingue e possibilita que o escritor se depare com o que ele e suas personagens podem vir a tornar-se, visto que estes saem da passividade e passam a agir mediante as muitas possibilidades e mobilidades que têm. A obra desenrola-se por meio dessa ação humana, que tem movimento e vivacidade diante de uma realidade que vive em mutação. Lukács (1965) apresenta a dicotomia narrar versus descrever observando que na narração o foco são as personagens que atuam em meio aos acontecimentos, enquanto no processo descritivo o enfoque recai sobre o meio, sendo este mais importante que as personagens em si. Enfim, para o escritor húngaro, no primeiro, vemos a atitude de quem participa ativamente das situações e no segundo a de quem se limita a observar os fatos. Georg Lukács mostra uma visão redutora do papel da descrição em um texto. Pretendemos demonstrar aqui que as descrições podem ter um papel ativo e contribuir de modo decisivo para a narração. Embora as análises propostas nesta dissertação contrariem alguns pressupostos lukacsianos, é inegável que as considerações do teórico trouxeram grandes contribuições para o desenvolvimento dos estudos sobre o descritivo, impulsionando- os e colaboraram com essa dissertação, na medida em que nos levou a refletir sobre o papel que a descrição e a narração desempenham. Gérard Genette, em Fronteiras da Narrativa (1973) também aborda a relação entre narração e descrição e ressalta que a descrição é mais indispensável que a narração, pois é mais fácil descrever sem narrar do que narrar sem descrever. “Em princípio, é evidentemente 20 possível conceber textos puramente descritivos, visando a representar objetos em sua única existência espacial, fora de qualquer acontecimento e mesmo de qualquer dimensão temporal” (GENETTE, 1973, p. 263). Segundo o estudioso, é mais fácil compor uma descrição sem que haja qualquer elemento narrativo do que fazer uma narração sem traços descritivos. Não é possível, porém, segundo Genette, encontrarmos a descrição em estado livre, pois tem sido tratada sempre dentro da narrativa e por mais que a narração seja “dependente” dela, esta, mesmo assim, mostra-se superior e à descrição cabe, apenas, ser sua “serva”, “escrava sempre necessária, mas sempre submissa, jamais emancipada” (GENETTE, 1973, p. 263). O autor francês ressalta ainda que, embora narrar e descrever exprimam atitudes antitéticas diante do mundo e da existência, sendo a primeira mais ativa e a segunda mais contemplativa, os dois processos realizam duas operações semelhantes, que colocam em jogo os mesmos recursos de linguagem. Philippe Hamon, também um dos iniciadores do estudo do descritivo, com o artigo O que é uma descrição? (1976), assume a complexidade da questão ao definir precisamente uma teoria do descritivo. Em linhas gerais, demonstra que a descrição “resulta frequentemente da conjunção de uma (ou várias) personagens, com um cenário, um meio, uma paisagem, uma coleção de objetos” (HAMON, 1976, p. 65). Feitas essas considerações iniciais sobre alguns dos pressupostos teóricos fundamentais da reflexão acerca do descritivo, essa dissertação, no primeiro capítulo, propõe- se a refletir sobre o conceito de descrição e sua composição, como se insere em uma narrativa e as funções que exerce em um texto. Abordamos as marcas introdutórias e conclusivas nessa tipologia textual e os sinais do descritivo. O segundo capítulo versa sobre a análise das descrições do espaço e se divide no estudo do espaço externo e interno compostos em O Guarani. Essas descrições espalham-se pela narrativa e são elaboradas sob a perspectiva romântica. Os espaços aqui destacados são os que têm significado primordial para o romance e servem de palco para as principais ações. As descrições das personagens são analisadas no terceiro capítulo. Selecionamos aquelas que movimentam a trama e estão intimamente ligadas ao mito de origem que José de Alencar sugere. Consideramos os enunciados descritivos que se ocupam do fidalgo português D. Antônio, do herói Peri e das pessoas que os cercam. Por meio da apresentação dessas personagens, evidenciaremos que a elaboração das descrições auxilia na composição do caráter de cada uma delas, em outras palavras, a partir da descrição física e da maneira como se comportam, é possível inferirmos suas características psicológicas. 21 O quarto capítulo trata dos traços estilísticos da descrição de Alencar na obra em pauta. Vemos que o autor segue um padrão de construção nos fragmentos descritivos, como o recurso à omissão de dados identificadores, a utilização de adjetivos em pares, a recorrência do enfoque nos traços do rosto e o reiterado emprego de pretéritos imperfeitos, de advérbios modais e temporais e de gerúndios. Analisamos, também, as notas de rodapé inseridas nas descrições estudadas, que auxiliam e esclarecem dados de algumas passagens do texto. 22 2. Teoria da descrição 2.1. O que é a descrição e sua inserção na narrativa Para o entendimento da importância da descrição em O Guarani, convém refletir inicialmente sobre as definições dadas pelos estudiosos para essa tipologia textual. A descrição pode ser encontrada em trabalhos científicos, em enciclopédias, em publicidade, em textos literários, em manuais técnicos, enfim, em diversos textos que circulam diariamente atendendo aos mais variados fins comunicativos. Philippe Hamon (HAMON, 1981 apud MARQUESI, 1996, p. 57) afirma que podemos descrever diversos elementos, como objetos reais, fictícios, a linguagem dos textos, as personagens ou os conceitos. Segundo o teórico, a descrição pode se fazer no presente, no passado ou no futuro e está viva em toda parte. O leitor distingue, ainda que por meio de um critério baseado na intuição, os fragmentos descritivos dos fragmentos narrativos de um texto, seguindo apenas a ideia de que a descrição serve para descrever coisas e a narração para descrever atos. Assim, a descrição identifica-se com o espaço, enquanto a narração relaciona-se ao tempo. Gerárd Genette (1973) afirma que, enquanto na narração são feitas as representações de ações e de acontecimentos, na descrição tem-se a representação de objetos e personagens. O narrador prolonga-se nesses elementos enquanto posiciona-os espacialmente, sem que haja preocupação temporal. Desse modo, vemos que a descrição espalha a narrativa no espaço, mas, suspende o curso do tempo, pois este não evolui no momento em que o narrador delineia personagens ou ambientes. A descrição, que tinha uma função apenas ornamental, torna-se, a partir do gênero romanesco, um elemento de exposição, com significado na economia geral da narrativa. Philippe Hamon (1976) define a descrição como um enunciado contínuo ou descontínuo, unificado do ponto de vista dos predicados e dos temas, cujo fechamento não abre nenhuma imprevisibilidade para o seguimento da narrativa, até porque a expande e a explicita. Conforme o teórico, ela é a memória da narrativa. Nas descrições ficam armazenadas informações imprescindíveis, as quais o leitor pode recorrer, ao longo do texto, para que compreenda determinado acontecimento ou para que “enxergue” com maior nitidez personagens, ambientes e cenas. 23 Essas são as definições dadas pelos estudiosos franceses para a descrição. A partir delas, ainda que os próprios especialistas reconheçam a dificuldade em conceituá-la precisamente, observamos que a descrição é considerada como uma unidade, que forma um todo autônomo, uma espécie de bloco semântico que pode ser inserido de forma mais ou menos livre em uma narrativa, a critério do autor, sempre que este desejar apresentar personagens ou espaços, conceder uma informação nova, desviar a atenção do leitor para a paisagem, e dar ritmo ao texto. Todavia, a finalidade primeira da descrição é mostrar, pôr à vista, levar o leitor a ver e a sentir algo ou alguém, utilizando, para isso, diversas estratégias linguísticas e métodos próximos dos usados na linguagem pitoresca: figuras de linguagem, adjetivos, determinados tempos verbais, ritmo, movimentação, sensações, coloração, perspectiva, luminosidade. Em uma narrativa composta por vários trechos descritivos, a função desses fragmentos vai além de caracterizar personagens ou ambientes. Eles servem, também, para que o leitor reconheça o caráter dos indivíduos, seu modo de viver, seus costumes, seu posicionamento dentro da obra. Sobretudo, atuam como “organizadores” da narrativa, pois introduzem enunciados que explicam ações ocorridas, anunciam fatos previsíveis da trama, esclarecem o ponto de vista das personagens e revelam conhecimentos do autor. Para Philippe Hamon (1976), ao inserir uma descrição em um texto, o autor precisa justificá-la, caracterizando-a por um preenchimento verossimilhante que funciona como álibi, e desenvolver uma série de subtemas que vão originando outros subtemas, numa espécie de cascata em que tudo é pormenorizado. Assim, o estudioso reflete sobre como a descrição se insere na narrativa, considerando que há signos introdutores e conclusivos em sua construção. Segundo ele, ao ser introduzida, ela se apresenta sob a forma de um “fragmento de texto”, composto por certo número de predicativos qualificativos ou de verbos. Aquele que descreve tem algumas posturas com relação ao que será descrito, tais como, “olhar”, “falar” ou “agir”; tendo em mente que essas posturas podem, também ser “permutadas”, “omitidas”, “combinar- se” ou “acumular-se.” O teórico francês (1976, p. 64) apresenta como marcas introdutórias da descrição alguns temas que dão coesão à obra e determinam como serão os temas conclusivos do fragmento. Destacamos, então, as “cenas-tipo”, constituídas por: a chegada adiantada a um encontro, a visualização de uma cena, o surpreender de um segredo, a visita a um ambiente, a intrusão em um lugar desconhecido, o passeio, a pausa, o intervalo, o pôr-se a uma janela, a subida a um lugar elevado, a observação de um cenário ou um indivíduo etc. Esses temas atuam como signos demarcativos e como marcas introdutórias a descrições e tem como 24 função evitar o hiato entre descrição e narração, além de preencher os intervalos da narrativa tornando verossímeis as interrupções, de forma que ela prossiga sem que haja quebra no texto. 2.2. A construção dos enunciados descritivos Em uma narrativa, as descrições relacionam dois elementos fundamentais dentro da organização de um texto descritivo, que são o descritor e o descrito. O descrito é constituído pelo tema-título2, que pode ser uma personagem, a natureza, um cenário etc., e o descritor pode ser representado pelo narrador, que estabelece o que deve ser visto e o modo como deve ser visto. Este é o responsável pelo fio condutor da descrição de maneira mais ou menos subjetiva, passando as suas próprias impressões para o leitor. No funcionamento interior da descrição, Hamon (1976) destaca que há uma previsibilidade lexical, cujas noções de inclusão e de semelhança são as que importam. Palavras e expressões se interligam dentro de uma sequência descritiva, mantendo uma unidade e uma relação semântica e lexical. Eis porque as descrições encontradas nas narrativas contêm hiperonímias/hiponímias e estão recheadas de metáforas, comparações, metonímias e derivações: para que se mantenha a coesão interna do texto descritivo. Enquanto na narrativa há uma previsibilidade lógica no encadeamento das ações e as noções de correlação e de oposição são de suma importância (um abrir de porta pede um fechar de porta, uma partida implica uma volta etc.), na descrição ocorre uma previsibilidade lexical, cujas noções de inclusão e de semelhança são essenciais (o termo flor, por exemplo, envolve pétala, jardim, amor, candura, pureza etc.). Nas descrições de O Guarani, Alencar, para a expansão do tema-título, lança mão de vocábulos que se ligam, se harmonizam e se completam, mediante o emprego de uma sequência de adjetivos que compõem o tema-título, conforme verificaremos nos excertos descritivos selecionados para essa análise. Hamon acredita que o grupo mais esperado em 2 O termo “tema-título” corresponde à palavra de entrada de uma sequência descritiva. É o referencial da descrição e sobre ele recai a focalização do descritivo. Nesse trabalho, é usado como sinônimo da noção de objeto-tema (NEIS, 1986), palavra de entrada (FÁVERO e KOCH, 1987) e designação (MARQUESI, 1996). NEIS, Ignácio Antônio. Elementos de tipologia do texto descritivo. In: FÁVERO Leonor Lopes e PASCHOAL, Mara S. Z. (Orgs.). Lingüística textual: texto e leitura, São Paulo: Educ. 1986, p. 47-63. (Série Cadernos PUC, n. 22); FÁVERO, Leonor Lopes; KOCH, Ingedore G. V. Contribuição a uma tipologia textual. Letras & Letras. Uberlândia, v. 3, n. 1, p. 3-10, jun. 1987; MARQUESI, Sueli. Cristina. A organização do texto descritivo em língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1996. 25 uma descrição é o grupo nome substantivo + nome adjetivo. Alencar, ao compor seus fragmentos descritivos e desenvolver o tema-título empregando vários adjetivos, pinta com palavras as personagens, o ambiente, o objeto e compõe imagens na mente do leitor, tentando convencê-lo da autenticidade do que é descrito. A partir de cada um dos temas são desencadeados vários subtemas, que podem igualmente sugerir uma expansão predicativa, qualificativa ou funcional que atua como uma espécie de comentário desse subtema. A nomenclatura que surge do desenvolvimento do tema-título liga-se a ele por uma dimensão espacial e por um estado de acronia, pois, conforme expusemos, enquanto ocorre a descrição, a narrativa não prossegue. Assim, na descrição, todas as palavras do estoque lexical encontram-se ligadas umas às outras de forma a se manter a coerência da frase. Esse conjunto lexical relaciona-se ao vocabulário do escritor, mas a descrição parece requerer a memória do leitor, configurando-se como o lugar onde este é interpelado no seu saber lexical e enciclopédico e onde a relação com o léxico de sua língua materna é atualizada e acentuada: “Apelo à competência lexical e enciclopédica do leitor, a descrição é, mais exatamente, uma competição de competências”, então, “a área circunscrita de uma descrição não depende da natureza do objeto a descrever, mas da extensão do estoque lexical do descritor que entra em competição de competência com a do leitor” (HAMON, 1981, p. 46 apud MARQUESI, 1996, p. 53, itálico nosso). Nesse caso, Alencar, por se debruçar sobre historiadores e livros que tratam da fauna e da flora brasileiras, possui grande estoque lexical para compor suas descrições, construindo-as com riqueza de palavras e expressões, tal o grau de conhecimento que tem, e possibilitando que o leitor mobilize o seu vocabulário para reconhecer e entender essas construções literárias. 2.3. Tipologias descritivas Philippe Hamon (1976) elenca seis possibilidades para o escritor trabalhar a previsibilidade e a homogeneidade semântica em suas descrições. No tipo I, constituído por tema-título (tema introdutor) e paradigma do léxico especializado, temos a descrição técnica. Esta compromete a legibilidade do texto; porém, junto a isso, o autor insere uma série de predicados qualificativos, explicativos, metafóricos que irão clarear a obscuridade dessa construção. Aqui temos a união de dois paradigmas lexicais, um de fraca previsibilidade e o 26 outro de forte previsibilidade. E para que isso seja possível, o autor lança mão de comparações, paráfrases e metáforas como forma de semantizar o léxico técnico da descrição. Um exemplo de sequência próxima da descrição técnica é uma descrição da personagem Cecília, cujos lábios são comparados à gardênia. Em razão disso, Alencar insere uma nota de rodapé para explicar ao leitor o significado de tal comparação e informá-lo sobre esta flor, evidenciando seus conhecimentos botânicos. No tipo II, formado por tema-título (tema introdutor) e paradigma do léxico de fácil identificação, ocorre o inverso, pois o tema-título e o léxico utilizados podem ser facilmente identificados de antemão. A maioria das descrições de O Guarani é o que Hamon denominaria “poéticas”, visto que o campo semântico e a nomenclatura relacionados a cada tema-título são previsíveis, entretanto, os predicados metafóricos servem para “lutar contra essa banalidade e essa forte previsibilidade” (HAMON, 1976, p. 69) e são usados distantes semanticamente dos temas ou subtemas. Em outras palavras, à nomenclatura já provável e esperada, unem-se os predicados compostos por metáforas, comparações, metonímias, prosopopeias, antropomorfizações que retiram da frase essa previsibilidade, tornando a descrição poética e próxima do fantástico, a exemplo do que ocorre com os traços descritivos da tempestade no fim da trama: “precipita-se furiosa, invencível”; “devora o espaço como algum monstro do deserto”; “é uma montanha branca fosforescente”; “vence na carreira o tapir das selvas ou a ema do deserto”; “seu dorso se estorce e enrola nas árvores” (ALENCAR, 1990, p. 218). No tipo III, comparam-se dois discursos técnicos especializados, há certa ilegibilidade e o autor combina um léxico especializado de termos técnicos a uma série de predicados de outro léxico especializado de termos técnicos. Em O Guarani, Alencar não emprega esse tipo de descrição. No tipo IV existe uma legibilidade máxima. É a descrição próxima da tautologia, do pleonasmo, é formada por clichés. Dentre as descrições do romance, é possível destacarmos duas ilustrações desse tipo de descrição. Na apresentação de Cecília, o narrador, aproximando-se do cliché, menciona a brancura da pele da menina: “Sua tez alva e pura como um floco de algodão” (ALENCAR, 1990, p. 24, itálico nosso); e na descrição dos aimorés compara os dentes dos índios aos de uma fera: “Os dentes agudos como a presa do jaguar” (ALENCAR, 1990, p. 165, itálico nosso). Trata-se de comparações que não aludem a elementos novos, não surpreendem o leitor, são, portanto, descrições previsíveis. A descrição do tipo V, cuja legibilidade é mínima, é composta puramente por termos técnicos, sem que haja predicativos próprios para o seu esclarecimento. A descrição fica, aqui, 27 próxima do prospecto de venda, de um anúncio ou de catálogos de inventário. Na apresentação da casa de D. Antônio podemos ver que o escritor cearense, ao mencionar o brasão da família, recheia-o de termos técnicos e não faz nenhum comentário que sirva de explicação ou de esclarecimento sobre os termos utilizados: “[...] desenhava-se um brasão de armas em campo de cinco vieiras de ouro [...]. No escudo, formado por uma brica de prata orlada de vermelho, via-se um elmo também de prata [...]” (ALENCAR, 1990, p. 13). De modo inverso, encontra-se ainda nesse tipo, um subgênero em que a descrição poderá ser construída a partir de uma série de predicados metafóricos importada de outros léxicos técnicos especializados ou de campos semânticos bastante distantes e de certa forma ilegíveis. Nos dois casos do tipo V, existe a probabilidade de fraca comunicação, porém o primeiro (apenas nomenclatura técnica) é percebido de modo negativo pelo leitor; já o segundo (apenas série de metáforas) é considerado, quase sempre, positivamente. No VI tipo, por fim, há combinação de diversos processos e técnica impressionista. A descrição mostra-se fortemente modalizada nos casos em que o autor, às vezes, não encontra para seu objeto uma série de predicados estereotipados, uma realidade pré-montada ou quando ele prefere não fazer uso do léxico existente. Assim, pela falta de nomenclatura, o autor pode compor sua descrição utilizando termos pertencentes aos cinco sentidos. Em alguns casos, a descrição é pré-organizada e utiliza paradigmas institucionalizados além dos cinco sentidos, como lista das cores; pares opositivos (dentro e fora, perto e longe); ordem alfabética, lógica, histórica e numérica. Em O Guarani, na descrição da prece conduzida pelo líder da fortaleza e no episódio da tempestade e cheia do Paquequer, Alencar constrói predicados por meio de elementos grandiosos, que dão amplidão à cena. Para completar esses quadros, apela para os sentidos e explora a sinestesia, baseando nela as suas descrições da natureza, enquanto cria uma impressão de mistério, terror, beleza e exagero: “essas gradações infinitas da luz pelas quebradas da montanha”; “a brisa traz um débil sussurro”; “os sons melancólicos de um clarim prolongaram-se pelo ar quebrando o concerto da tarde (ALENCAR, 1990, p. 32, itálico nosso); “O estrondo dessas montanhas de água que se quebravam, o estampido da torrente, os trôos do embate [...], que se pulverizavam enchendo o espaço de neblina espessa, formavam um concerto horrível”; “as trevas envolviam o quadro e apenas deixavam ver os reflexos prateados da espuma e a muralha negra que cingia esse vasto recinto” (ALENCAR, 1990, p. 218, itálico nosso). Philippe Hamon (1976) afirma que a tipologia descritiva não se encerra aqui. O autor pode utilizar mais de um tipo em seus fragmentos descritivos e empregar vários 28 mecanismos. De acordo com os objetivos e impressões que deseja causar no leitor, o autor lança mão dessa ou daquela modalidade ou conjuga-os em um só enunciado. Não há um tipo ideal de descrição, o que existe é aquela que mais se adequa ao quadro que se quer pintar, ou seja, a que melhor ajuda a compor, em todos os aspectos, um espaço, um objeto, uma personagem etc. 2.4. Sinais do descritivo As considerações anteriores sobre a descrição evidenciam a funcionalidade dos recursos sintáticos e lexicais nessa tipologia textual. Esses recursos, denominados por Hamon como “sinais indicativos do descritivo”, são abundantes nessa tipologia textual e o seu emprego justifica-se pelo fato de os enunciados descritivos, por se encaixarem em um “texto maior”, necessitarem de sinais autorreferenciais ou metalinguísticos que permitam a sua visualização no interior da narrativa. Destacam-se como sinais desse tipo aqueles que auxiliam na identificação de uma sequência descritiva. Assim, a descrição apresenta um léxico particular, com certo “efeito de lista”, em que há uma nomenclatura de campos semânticos ligada ao tema-título, uma sequência de termos relacionados ao que se descreve utilizando frequentemente a justaposição, que produz um ritmo próprio à descrição e em alguns momentos a faz parecer com uma listagem de características de algo ou alguém. Há o emprego de nexos onde se destacam as conjunções, as preposições, os advérbios; assim como ocorre a utilização de certas operações gramaticais e sintáticas, a exemplo do acúmulo de adjetivos e de orações adjetivas. Na descrição, ocorre amplo emprego das figuras retóricas – metonímia, sinédoque, sinestesia, comparação, metáfora. Essa última desempenha papel fundamental: além de acrescentar ou diminuir a legibilidade de uma nomenclatura técnica, “é o traço obrigatório que conota esteticamente a descrição” (HAMON, 1976, p. 150, nota 41). Essa figura ajuda a descrição a fixar um “efeito de real” e um “efeito de poesia” e o leitor é capaz de reconhecer essa contribuição da metáfora antes mesmo de entender o seu conteúdo. No romance em estudo, elas são responsáveis pelas analogias variadas de Alencar e ressaltam a capacidade poética e imaginativa do autor. 29 Os sinais antes explorados atuam como “índices obrigatórios das descrições”, conforme Hamon (1976, p. 74) e auxiliam na união entre descrição e narrativa. Além disso, esses sinais do descritivo têm o papel de introduzir o leitor no “efeito descritivo” (HAMON, 1981, p. 65 apud NEIS, 1986, p. 53). A descrição é uma rede semântica e retórica com forte organização em que os elementos próprios dessa tipologia aparecem, na maioria das vezes, interligados, e é onde a narrativa marca uma pausa e ao mesmo tempo organiza-se. Essas são algumas das funções dos fragmentos descritivos, as quais garantem a importância dos mesmos na obra literária. Os excertos descritivos em O Guarani apresentam cenários e personagens, fazem a ligação das cenas, antecedem fatos decisivos, prenunciam ações e preparam o leitor para o que virá. Cada descrição desenvolve-se em predicados e subtemas de acordo com a necessidade do narrador, dando origem a uma nova descrição, e essa, a outra, até que ele atinja seu objetivo. Conforme Ignácio Antônio Neis, em Elementos de tipologia do texto descritivo (1986), o uso da descrição nos textos, historicamente, apresentou algumas tendências que influenciaram a literatura. Dentre elas, a descrição expressiva, surgida na segunda metade do século XVIII e vigente até o século XIX, que consagrou a imaginação contra a imitação. Genette (1973, p. 264, 265) afirma que a descrição, nessa época, tornou-se ao mesmo tempo explicativa e simbólica, com tendência a revelar e a justificar a psicologia das personagens das quais eram simultaneamente tempo, signo, causa e efeito. A descrição passou a ter um real significado dentro da narrativa3. A análise das passagens descritivas em O Guarani, dado o potencial imaginativo dos elementos empregados por Alencar, sugere que essa corrente tenha orientado o pensamento do romancista. Diante do exposto nesse capítulo, a descrição – seja introduzida por um olhar, por uma observação, por uma chegada; seja constituída por tema-título no início ou no fim do fragmento, com subtemas desenvolvidos ou não, contenha determinados sinais do descritivo – possui, além da função de construir cenários, personagens e prenunciar ações, a função de pintar com palavras, de produzir uma impressão da realidade, de explicar e, da mesma forma, 3 Para saber mais sobre essas tendências descritivas, conferir em Análise estrutural da narrativa (1973), de Gerárd Genette e em Elementos de tipologia do texto descritivo (1986), de Ignácio Antonio Neis. GENETTE, Gérard. Fronteiras da narrativa. In: ______. Análise estrutural da narrativa. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 255-274; NEIS, Ignácio Antônio. Elementos de tipologia do texto descritivo. In: FÁVERO Leonor Lopes e PASCHOAL, Mara S. Z. (Orgs.). Lingüística textual: texto e leitura, São Paulo: Educ. 1986, p. 47-63. (Série Cadernos PUC, n. 22). 30 de obter um efeito persuasivo, porque tenta convencer o leitor da veracidade do que está sendo descrito pelo narrador. A partir desses pressupostos teóricos ora expostos, analisaremos, no segundo e no terceiro capítulos, amostras da tessitura descritiva de O Guarani, verificando como os recursos considerados são empregados por José de Alencar na composição dos enunciados descritivos. 31 3. Descrição do Espaço O Rio Paquequer, a fortaleza dos Mariz, a floresta brasileira, o dilúvio: José de Alencar indica nas descrições desses espaços traços marcantes da narrativa, que muito contribuem para a movimentação da trama. De acordo com Antonio Dimas, em Espaço e romance, o espaço “pode alcançar estatuto tão importante quanto outros componentes da narrativa, tais como foco narrativo, personagem, tempo, estrutura etc” (DIMAS, 1987, p. 05). O autor destaca que, em algumas narrações, o espaço encontra-se diluído pelo texto. Em outras, ao contrário, pode ser fundamental e até determinante no desenvolvimento da ação. Ou, em uma terceira hipótese, apresenta sua “funcionalidade” e “organicidade” gradativamente, em harmonia com os demais elementos, sem nenhuma prioridade sobre eles. Osmar Lins, em Lima Barreto e o espaço romanesco, afirma que o espaço, no romance, tem sido “tudo que intencionalmente disposto, enquadra a personagem” e que tanto pode ser absorvido como acrescentado por ela (LINS, 1976, p. 72). Esse elemento situa a personagem e suas ações, e quanto mais acontecimentos houver no enredo, maior será a afluência de espaços. O espaço, em O Guarani, é um componente estrutural imprescindível e, portanto, entender a sua descrição é fundamental. Há variedade de espaços nessa obra alencariana. A maioria deles mantém relação com a natureza. Esses espaços são encontrados no decorrer da obra e a sua descrição pode ser dividida em dois polos: espaço externo e espaço interno. Apesar de estarem, à primeira vista, separados, estes são interligados, tanto um quanto outro carregam a plasticidade, a poeticidade típicas do romancista e compõem imagens das cenas principais, dos tempos idos, constituindo-se como peças decisivas para o mito que Alencar almeja propor. Observamos que, no espaço externo, as personagens estão submetidas aos riscos e aos imprevistos da mata intocada e quase impenetrável, ao mesmo tempo em que desfrutam e admiram sua beleza; e no espaço interno elas encontram a segurança necessária para se proteger, antecipadamente, dos perigos e dos inimigos. Segundo Cândida Vilares Gancho, no livro Como analisar narrativas, o espaço caracteriza-se mais detalhadamente em trechos descritivos e estabelece uma interação com as 32 personagens, “quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, quer sofrendo eventuais transformações provocadas pelas personagens” (GANCHO, 1999, p. 17). No decorrer do romance, notamos que as descrições dos espaços, seja o externo seja o interno, contribuem para a definição dos contornos da trama à medida que prenunciam fatos ou sugerem o caráter das personagens e de seus atos, além de caracterizarem o ambiente social em que elas se encontram dentro da hierarquia proposta na obra. A seguir, analisaremos as descrições de alguns espaços essenciais da obra O Guarani, de acordo com a divisão que propusemos quanto ao posicionamento de cada uma delas: descrição do espaço externo, abundante na narrativa, seguida pelo estudo da descrição do espaço interno, menos frequente, porém, igualmente importante. 3.1. Descrição do Espaço Externo � � 3.1.1. O Rio Paquequer José de Alencar dedicou-se páginas às matas brasileiras de modo que estas reflitam hiperbolicamente as belezas naturais do país. Assim, no primeiro fragmento analisado, ao apresentar as paisagens que permearão toda a história, o narrador faz intensa exaltação da natureza vasta e intocada. Os aspectos da natureza sempre seduziam Alencar e faziam com que ele se voltasse para os “grandes espaços incultos”, pouco transformados pela ação do homem, como assinala Eduardo Vieira Martins, em A Fonte subterrânea (2005). Logo nas primeiras linhas, encontramos uma das mais marcantes descrições do romance, a do cenário- título do primeiro capítulo – o Rio Paquequer. Essa descrição marca a cena que inaugura o romance, pois fixa o enredo no espaço e abre brechas para que o leitor perceba a importância desse rio para a trama: De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige para o norte, e engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de dez léguas, torna- se rio caudal. 33 É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola majestosamente em seu vasto leito (ALENCAR, 1990, p.11). Essa descrição inicial, constituída por meio da expansão do tema-título “Rio Paquequer”, inaugura a narrativa e, para surpreender o leitor, o narrador já começa sua descrição sem fazer nenhum tipo de introdução, o que causa um misto de surpresa e de êxtase no leitor que prontamente se vê acompanhando essas águas. Assim, esse enunciado descritivo começa apresentando o nascimento de um rio, cujo papel é fundamental ao desenvolvimento do texto. O cenário, da forma como é descrito, ultrapassa o conceito de pano de fundo e torna-se participante ativo da narrativa, quase como uma personagem que precede e acompanha todos os acontecimentos, visto que age como um revelador das feições das personagens e das tramas da obra. Percebemos que esse excerto, em oposição ao que acredita Lukács (1965), não se configura em algo de “caráter episódico”, separado do texto, sem ligação com a narrativa. Ao contrário, ao iniciar seu romance por essa descrição, José de Alencar monta um álibi para sugerir, mesmo que indiretamente, fatos e ações que ocorrerão em sua história. A partir de uma postura contemplativa e de uma perspectiva elevada, o narrador vai demarcando o seu espaço na natureza e, por meio de orações adjetivas, deixa para o fim do primeiro parágrafo a progressão espacial e o efetivo nascimento do rio. Temos aqui um dos “sinais indicativos do descritivo”: as orações adjetivas, elementos constantemente utilizados em sequências descritivas, pois além de ajudarem a propiciar um ritmo próprio da descrição, como nos mostra Hamon (1976), auxiliam no reconhecimento de um fragmento como pertencente a essa tipologia textual. Esse sinal, ao ser empregado, explica o nascer do rio, particulariza-o, torna-o único, o que auxilia na construção da imagem que Alencar quer projetar na mente do leitor. A descrição anterior apresenta, também, uma situação de mudança de estado e oposição, ao transformá-lo de “fio de água” em “rio caudal”, graças ao verbo “torna-se”. Essa mudança de estado, própria do tipo descritivo, é importante para o desenvolvimento e a compreensão da obra, pois alude a outras mudanças de estado na narrativa, como a da personagem central, o índio Peri que, de certa forma, distancia-se de suas origens e segue rumo ao mundo do branco, e a da vida dos Mariz, que passa por provações sendo, ao final, quase toda dizimada. Assim que o rio adquire um nome, o narrador marca, paulatinamente, a temporalidade que até então elidia o tempo. Indica uma ação duradoura e repetida do rio, 34 entremeada por uma expressão que remete ao universo infantil, de tom gracioso, e por outra que, com a imagem da serpente, indica agilidade, leveza e sinuosidade. Esse efeito é conseguido pela utilização dos gerúndios “saltando de cascata em cascata” e “enroscando-se como uma serpente”. Essas duas orações reduzidas de gerúndio compõem o contorno do rio e se subordinam ao foco da descrição (“É o Paquequer”). Os traços marcados no nascimento do rio – leveza, graça, sinuosidade – lembram as características de Peri, e aludem, com a movimentação do Paquequer, à movimentação do transcorrer da narrativa, com os momentos iniciais calmos, intercalados por outros tumultuados. Nesse início, o narrador revela a condição do Rio Paquequer de afluente e começa a marcar também a oposição, o contraste entre ele e o rio principal, o Paraíba, por meio das expressões “fio de água” e “vasto leito”, “saltar” e “rolar” e do contorno brincalhão do primeiro e sereno do segundo. Podemos associar a relação entre os rios Paquequer e Paraíba à estabelecida entre Peri e D. Antônio de Mariz. O narrador, nessa descrição, une catacrese e uma série de prosopopeias para mostrar a intensa movimentação do rio. Elas encontram-se espalhadas no fragmento, porém, nos primeiros parágrafos são vistas com maior frequência. As catacreses são expressões cujo sentido figurado, devido ao uso contínuo, não é mais percebido. Elas ocorrem quando, pela ausência de um termo específico para designar um conceito, toma-se outro “emprestado”, como acontece em “desliza um fio de água”. Já as prosopopeias, representadas por “se dirige”, “saltando”, “se espreguiçar” e “embeber”, vivificam o rio, personificando-o, uma vez que consistem em atribuir predicados próprios dos seres animados a seres inanimados, nesse caso, o Paquequer. Prosseguindo no trecho descritivo, o narrador propõe uma estrutura hierárquica e uma relação de poder, elementos que serão reconhecidos na organização da trama e nas relações entre as personagens: Dir-se-ia que, vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano. Perde então a beleza selvática; suas ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltam contra os barcos e as canoas que resvalam sobre elas: escravo submisso, sofre o látego do senhor (ALENCAR, 1990, p. 11). Essa composição hierárquica é transmitida de forma nítida ao leitor. Até esse momento, o narrador fizera uso dos verbos no indicativo, porém, nesse parágrafo inicia com 35 modo subjuntivo, deixando, nessa oração, o tom admirativo para assumir um posicionamento analítico, pelo fato de fazer associação, para tal efeito, ao feudalismo: por um lado, temos o Rio Paraíba, metaforizado em “rei das águas”, e, por outro, o Rio Paquequer, tido como “vassalo e tributário”. O Paquequer – agora “pequeno rio” diante da grandeza do Paraíba, mas antes “altivo e sobranceiro” – curva-se perante o “suserano” e transforma-se em “escravo submisso”. É como se tivesse perdido a sua liberdade e irreverência, pois não pode mais elevar-se contra os rochedos e tampouco revoltar-se contra os barcos e canoas, visto que se tornou calmo, tranquilo como um lago, ou seja, “o rio irreverente e ruidoso paralisa-se e cala- se para configurar o clímax do processo de sujeição representado pela violência do látego do senhor, frase que concretiza a associação a outra ordem social – a ordem apoiada no escravo.” (DE MARCO, 1993, p. 23). Há, nesse processo, uma hierarquia na qual somos remetidos a uma organização semelhante à do sistema feudal com a utilização de vocábulos como “rei”, “majestosamente”, “vassalo”, “tributário”, “suserano” e “senhor”, além da oposição entre, de um lado, os adjetivos “altivo” e “sobranceiro” e, de outro, “submisso”. Ao descrever detalhadamente o Rio Paquequer, o narrador, sugerindo referências ao tempo, remete-se à época medieval da história. Silviano Santiago, em Liderança e hierarquia em Alencar (1982), apesar de não se debruçar sobre algum fragmento específico de O Guarani, encontra nas páginas de Alencar traços do feudalismo. Dante Moreira Leite acredita que o autor tentou criar uma “Idade Média Brasileira” (LEITE, 2007, p. 228). Em outras palavras, vemos, por meio do fragmento, a importância dessa descrição, porque já nessas primeiras linhas do romance Alencar sugere elementos essenciais da narrativa, como é o caso da organização social que predomina no ambiente de D. Antônio de Mariz. É a partir desse excerto descritivo de fundo histórico que observamos, mediante a relação entre os dois rios existentes na trama, como se organizava a sociedade daquela época, como a personagem de Peri se comportava ante o senhor daquelas terras, e, também, como este procedia frente aos que estavam sob seu domínio. O narrador, após apontar o curso do rio, desde a sua nascente até o Paraíba, leva o leitor a contemplá-lo onde ele “deve ser visto”, em seu momento de plenitude: Não é neste lugar que ele deve ser visto; sim três ou quatro léguas acima de sua foz, onde é livre ainda, como o filho indômito desta pátria da liberdade. Aí, o Paquequer lança-se rápido sobre o seu leito, e atravessa as florestas como o tapir, espumando, deixando o pelo esparso pelas pontas do rochedo, e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira. De repente, falta-lhe o 36 espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua um momento para concentrar as suas forças, e precipita-se de um só arremesso, como o tigre sobre a presa. Depois, fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra, e adormece numa linda bacia que a natureza formou, e onde o recebe como em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes (ALENCAR, 1990, p. 11). Nesse trecho, o narrador sugere a exuberância do rio e, fazendo uso da comparação (“é livre ainda como o filho indômito desta pátria da liberdade”), ressalta a sua principal qualidade: ser livre. Esse atributo passa a ser um traço forte da identidade do rio. Com base nesse fragmento descritivo, podemos fazer uma associação com a personagem de Peri, pois assim como ele, o Paquequer é, também, livre. Então, rio e índio são independentes porque são nativos. Depois de utilizar uma comparação para fazer o desenho do rio, que se enrosca como uma serpente, e afirmar que deve ser visto onde ainda é livre como o filho indômito, o narrador prossegue em sua descrição fazendo uso de mais três comparações. A primeira delas compara o Paquequer ao tapir, e reafirma a condição do rio de elemento genuíno e conhecedor de sua terra. Igual a um animal, ele invade, domina a paisagem sem hesitar, procurando ultrapassar os obstáculos. Como um guerreiro na luta, “lança-se rápido”, “atravessa as florestas”, “recua um momento”, concentra as suas forças e “precipita-se” rapidamente. Encontramos aqui, ainda, dois elementos que se completam e contribuem para compor a imagem final da frase, referente à segunda comparação que apontamos, que é a do tigre sobre a presa. Destacamos, primeiramente, os gerúndios (“espumando”, “deixando”, “enchendo”) que indicam a duração, o caráter contínuo dos movimentos e o crescimento do rio até preencher a paisagem deixando nos rochedos e nas florestas a sua marca e o seu som. Ressaltamos a parataxe (“falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra”), que enfatiza a velocidade dos movimentos, a agilidade e a firmeza com que eles se sucedem. Esses sinais indicativos do descritivo propiciam uma mudança de movimentação na frase, pois o que inicialmente era calmo torna-se apressado, após a introdução de uma locução adverbial (“De repente”) que causa agitação e dá ao parágrafo um tom de apreensão. Juntos, gerúndios e parataxe ajudam a desenhar a imagem do “tigre (que se precipita) sobre a presa”. Depois da tensão da luta sugerida no quinto parágrafo do texto tem-se, no parágrafo seguinte, o momento de relaxamento, de calmaria, o repouso do guerreiro que, diminuindo o seu ritmo, encontra o descanso e adormece na “linda bacia que a natureza formou” e que o recebe “como em um leito de noiva”. Temos aí a última das comparações desse trecho, que 37 envolve termos associados ao universo feminino (“leito de noiva”) contrapondo-se a outros do mundo masculino, como vigor, força e energia (tigre, tapir), como se esse momento harmonioso da natureza simbolizasse um encontro amoroso. Dessa forma, o rio é associado, em momentos distintos, aos animais – serpente, tapir, tigre – e a natureza, ao ser humano. Todos esses aspectos se complementam e estão envolvidos no propósito de dar mais vida ao rio. Após compor as feições do rio, o narrador apresenta, nos dois últimos parágrafos desse excerto, a vegetação circundante, descrevendo-a com metáforas arquitetônicas, segundo apontou Eduardo Vieira Martins (2010), com termos como “arcarias”, “capitéis” entremeados por outros vocábulos do universo da ornamentação, da plasticidade e da estética, como “ostentar”, “luxo”, “pomposo”, “sublime artista”, “decorado”, que a aproximam de um templo ou de um palácio. O fragmento é elaborado com a utilização do mesmo campo semântico que amarra os principais fios da descrição e dá sustentação para o desenvolvimento e a consistência da trama: “A vegetação nessas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vigor; florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio, que corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos leques das palmeiras” (ALENCAR, 1990, p. 11). A descrição do rio é construída, em sua maioria, com verbos no presente, o rio faz as ações e segue seu curso em um presente permanente (“desliza”, “se dirige”, “torna-se”, “curva-se”, “lança-se”, “atravessa”, “precipita-se”, “se estende”, “adormece”). O tom do narrador aqui é de comentário, de diálogo com o leitor devido ao uso dos verbos no presente. Esse é o tempo verbal próprio do mundo comentado, segundo Harald Weinrich, em Estructura y función de los tiempos en el lenguaje (1974). Quando empregado no interior da narrativa representa maior tensão com relação ao fato apresentado e solicita do leitor uma resposta, seja ela verbal ou não verbal, conforme afirmou Ingedore Koch, em Argumentação e Linguagem (1996). Em outras palavras, o narrador, nessa sequência descritiva, objetiva apresentar o primeiro “quadro” a ser fixado na memória do leitor para que este visualize o espaço onde se dará grande parte das cenas, sem deixar de persuadi-lo para que, assim como ele (narrador), considere a natureza capaz de representar positivamente o Brasil. Entretanto, depois de o narrador revelar a grandeza da natureza a partir da utilização de adjetivos, metáforas, hipérboles, comparações e continuando a marcar a temporalidade com uma nuance argumentativa, ele estabelece, agora, outro tempo, o tempo passado, que é o objeto da narrativa. Assim, o tempo histórico invade a paisagem. 38 Destaca-se aqui, também, o princípio que regerá a narrativa, a hierarquia que o texto propõe ao contrapor natureza e ser humano: a natureza, “sublime artista”, é superior ao homem, “simples comparsa”, somente pelo fato de existir, sem precisar fazer esforço algum, é uma qualidade inata, enquanto o homem necessita aprender a construir um lugar para si próprio. Na mata há imagens requintadas, como as “arcarias” e os “capitéis” desenhados pelas árvores e pelas palmeiras. Esse quadro, que o narrador descreve por intermédio de uma imagem arquitetônica, faz associação entre os elementos da natureza e os da civilização e contrapõe a naturalidade da floresta, para compor as suas formas, ao esforço do homem para adquirir as competências suficientes para construir as mesmas formas. Assim, a formação dessa imagem que revela a relação da natureza com a trama reforça a grandiosidade e a superioridade da natureza em relação ao homem: “Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos, em que o homem é apenas um simples comparsa” (ALENCAR, 1990, p. 11). Nesse enunciado descritivo, o tema-título “Rio Paquequer” é desenvolvido por meio de uma relação metafórica e metonímica. Há a descrição principal que vai causando outras microdescrições no interior do fragmento, sendo que todas mantém ligação com aquela. Assim, ao se relacionarem com o tema-título, compõem o léxico particular da descrição, pois pertencem ao mesmo campo semântico e lexical. Dessa forma, observamos que o Rio se decompõe em vários atributos, há um substantivo que é qualificado de acordo com os interesses e o conhecimento do narrador. Notamos que nesse excerto o ritmo é ditado pelo largo emprego de gerúndios e de parataxe, ocasionando momentos ora serenos ora agitados, e marcando o caráter movimentado do fragmento e, de certa forma, da trama. Observamos, também, intenso uso de figuras retóricas, principalmente comparações e metáforas. Hamon (1976) dá grande destaque a elas em uma descrição, conforme vimos, e afirma que em um sistema descritivo as metáforas são a colocação em equivalência de sistemas metonímicos e assim, toda descrição é a construção, sob forma de um texto, de uma rede semântica com forte densidade definida por uma hierarquia de relações. Essas figuras – metáforas e comparações – ligam-se ao tema-título e permitem que os elementos do texto sejam justapostos, propiciando, no interior da descrição, estreita ligação entre eles e possibilitando que cada item descrito dê origem a uma nova descrição. Enfim, nessa descrição que abre a obra e dá suporte para que o leitor se prepare para a trama, existe uma forte relação de inclusão e de semelhança (com hiperonímias/hiponímias, metáforas e comparações), proporcionando unidade entre as partes. Os sinais do descritivo 39 presentes aqui – como as figuras de retórica, as marcas durativas, os articuladores da frase, certos tempos verbais – são essenciais, porque propiciam o reconhecimento de uma sequência descritiva como tal e são conjugados pelo narrador para representar algo, para mostrar, extasiar, construir imagens. Dessa forma, cumprem a função didascálica da descrição ao fixar uma referência espaço-temporal ao texto e apresentar o cenário em que ocorrerão algumas cenas, além de oferecer indícios relevantes que serão retomados no desenvolvimento do enredo. Assim, a descrição inaugural de O Guarani ultrapassa os limites de ser apenas uma descrição estética. Aqui, ela deixa de ser “temática vazia” para se tornar “temática plena” (HAMON, 1976, p.75). 3.1.2. A fortaleza dos Mariz Para iniciar a descrição exterior da fortaleza de D. Antônio de Mariz, observamos que o narrador torna-se mais direto, mais técnico, sem tanta musicalidade e passa a enumerar uma série de circunstâncias, enquanto caminha pelos próximos ambientes: “No ano da graça de 1604, o lugar que acabamos de descrever estava deserto e inculto; a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia menos de meio século, e a civilização não tivera tempo de penetrar o interior” (ALENCAR, 1990, p. 11). Podemos considerar esse excerto, encontrado logo após a descrição do Rio Paquequer, tanto como signo conclusivo da descrição anterior quanto como signo introdutor da posterior. Como signo conclusivo, nele, o narrador se assume como descritor e arremata a descrição do Paquequer, utilizando uma locução verbal indicadora de finalização – “acabamos de descrever” – na qual declara, de forma precisa, que ela chegou ao fim, preparando para o prosseguimento do texto. Como signo introdutor, faz o leitor localizar-se historicamente no romance e lhe concede referências para que compreenda alguns fatos. O leitor é, então, conduzido, com o auxílio de adjuntos adverbiais, ao tempo e ao ambiente eleitos por Alencar, para desenvolver a trama de sua obra e levado a conhecer um pouco sobre a história daquela época, ao ser destacada a situação de despovoamento desse espaço. Sobre esse último aspecto, Eduardo Vieira Martins expõe que, devido ao fato de o romantismo acreditar que a floresta virgem ou pouco tocada pelo homem conserva a força da natureza, Alencar, frequentemente, “escolheu como cenário de suas narrativas lugares 40 distantes e desertos, onde a presença do colonizador e da civilização ainda não havia transformado o ambiente” (MARTINS, E. V., 2005, p. 239). Após preparar a inserção do fragmento descritivo, por meio do parágrafo anterior e da breve apresentação histórica, o narrador, que já revelara tratar-se de um lugar deserto, registra todos os detalhes da habitação a partir de um olhar externo e abre brecha para que, no parágrafo seguinte, uma conjunção adversativa contraponha o isolamento do lugar à construção imponente de uma casa: Entretanto, via-se à margem direita do rio uma casa larga e espaçosa, construída sobre uma eminência, e protegida de todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique. A esplanada, sobre que estava assentado o edifício, formava um semicírculo irregular que teria quando muito cinquenta braças quadradas; do lado do norte havia uma espécie de escada de lajedo feita metade pela natureza e metade pela arte. Descendo dois ou três dos largos degraus de pedra da escada, encontrava-se uma ponte de madeira solidamente construída sobre uma fenda larga e profunda que se abria na rocha. Continuando a descer, chegava-se à beira do rio, que se curvava em seio gracioso, sombreado pelas grandes gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens. Aí, ainda a indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar meios de segurança e defesa. De um e outro lado da escada seguiam dois renques de árvores, que, alargando gradualmente, iam fechar como dois braços o seio do rio; entre o tronco dessas árvores, uma alta cerca de espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável (ALENCAR, 1990, p. 12). Essa descrição, assim como a primeira, posiciona espacialmente um dos cenários do enredo, pois a descrição relaciona-se mais ao espaço do que ao tempo. Por isso, a narrativa só começa efetivamente a se desenvolver no término desse excerto. Todavia, durante a descrição, não há aquele “tempo em que não acontece nada” (NEIS, 1986, p. 58), porque ele é preenchido com imagens e informações que serão retomadas no decorrer do texto. Ou seja, esse momento, considerado por Hamon (1976, p. 75), por um lado, como uma “pausa na narrativa” é importante para que o leitor comece a entender a obra e se prepare para os dramas que surgirão. No começo da sequência, vemos a utilização de articuladores quando uma locução adverbial já coloca a casa “à margem direita do rio”, enquanto outros advérbios – “solidamente”, “gradualmente” – revelam como se encontram alguns elementos que fazem parte da construção do edifício. O narrador utiliza o verbo “ver” evidenciando que observa todos os detalhes desse espaço externo e revelando, de certo modo, que o leitor visualizará a 41 moradia por intermédio dos seus olhos (narrador), o que nos mostra que ele será o filtro da descrição e decidirá o que deve ser enxergado. Assim, por ter essa visão do alto, o narrador ressalta que a casa se encontra construída acima de tudo e inicia a descrição do tema-título, “a fortaleza dos Mariz”, expandindo-o por meio de vários subtemas, que seriam os detalhes concernentes a “portas”, “janelas”, “fundos”, “sala”, “paredes”, “teto”, “alcova” etc. e de predicativos qualificativos, como “larga”, “espaçosa”, “simples”, “grosseira”, ou verbais, tais quais “construída”, “era edificada”, “estendia-se”, “desenhava-se”. Esse fragmento descritivo é constituído de forte previsibilidade lexical, pois observamos que, em sua maioria, os termos utilizados pelo narrador pertencem ao ramo da construção e ligam-se uns aos outros ao mesmo tempo em que se completam. Ou seja, o uso de articuladores (sinais do descritivo) logo ao começar o enunciado ajuda a desenhar o cenário da casa, a mostrar como era o ambiente em que D. Antônio e sua família viviam e situam o leitor na realidade do fidalgo. Os detalhes da casa sugerem tratar-se da moradia de um homem de posses, que ocupava uma posição de destaque na hierarquia daquele lugar. A casa é um dos cenários principais da trama, e, juntamente com sua esplanada que forma um “semicírculo” remetendo à estrutura de um teatro, será o centro onde ocorrerão os conflitos. Para começar a descrevê-la, o narrador a amplifica com o emprego de adjetivos, de modo a não deixar dúvidas de que é uma construção grandiosa. Podemos observar, com o uso de alguns vocábulos e expressões ligados semântica e lexicalmente ao tema-título, dois importantes elementos que são evidenciados pelo narrador assim que começa a descrever a moradia. O primeiro é a proteção que ela fornece aos seus habitantes: “construída sobre uma eminência”, “protegida de todos os lados”, “ponte de madeira solidamente construída sobre uma fenda larga e profunda” e “uma alta cerca de espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável”, o que demonstra ser ela bem alicerçada e condizente com sua finalidade que é a de proporcionar “segurança e defesa”. O próprio narrador, posteriormente, declara: “a casa era um verdadeiro solar de fidalgo português, menos as ameias e a barbacã, as quais haviam sido substituídas por essa muralha de rochedos inacessíveis, que ofereciam uma defesa natural e uma resistência inexpugnável” (ALENCAR, 1990, p. 15). Eduardo Vieira Martins, em Apresentação a uma edição de O Guarani, afirma que a construção do solar de D. Antônio é regida por uma preocupação defensiva que une os elementos arquitetônicos aos acidentes da natureza para garantir a segurança dos moradores (MARTINS, 2000, p. 510). Alfredo Bosi (1992), ao refletir sobre o verdadeiro significado dessa eminente construção arquitetada por Alencar, considera que a ênfase de Alencar em 42 deixar nítido que a casa é bastante fechada, serve para defesa e oferece extrema proteção, liga os elementos naturais ao ambiente da comunidade que reproduz naquelas terras o modo de viver da Idade Média, oferecendo, então, a essa moradia a mesma segurança de um castelo medieval (BOSI, 1992, p. 187). O segundo elemento destacado pelo narrador é a forte ligação entre a natureza e o homem, entre o mundo natural e o mundo cultural, um é a extensão do outro e ambos parecem atuar em conjunto e se relacionar edenicamente: a casa estava protegida “por uma muralha de rocha cortada a pique” e por uma “escada de lajedo feita metade pela natureza e metade pela arte”. Aqui, o ser humano, essa “indústria do homem”, como é metaforizado pelo narrador, aproveita da melhor maneira, com toda a sua inteligência, a perfeição da natureza e os seus recursos para a construção desse espaço. Affonso Romano de Sant’Anna ressalta que há na relação entre natureza, casa e homem, nessa fase, algo de caixa chinesa, em que “uma contém a outra, que contém a outra dentro de um sistema de recorrências” (SANT’ANNA, 1973, p. 56), e pode ser vista dessa maneira em vários momentos da obra. Confirmando a união entre esses dois polos – homem e natureza – o narrador destaca como o homem faz uso da natureza ao redor e apropria-se dela, opondo esse recurso à necessidade de ele ter um aprendizado para construir algo (artificial), enquanto nas matas tudo acontece naturalmente (natural), em um movimento em que conjuga o fazer (do homem) e o ser (da natureza). De Marco, no tocante a essa questão, afirma que “oferece-se à contemplação um momento da convivência harmônica entre a natureza, ‘sublime artista’ – o mundo divino – e a ‘indústria do homem’ – o mundo profano” (DE MARCO, 1993, p. 30), isto é, o dom e o trabalho unidos. A relação entre esses elementos destaca a maneira de o “homem apossar-se da natureza, pródiga e paradisíaca, imprimindo a cada pedaço do espaço a marca de seus criadores ou habitantes e esboçando um sistema de valores e uma imagem do tempo histórico” (DE MARCO, 1993, p. 30). Nos primeiros parágrafos de descrição da casa, o narrador evidencia a combinação da inteligência do homem com as condições daquelas terras, no qual faz bom uso do terreno, sem deixar de respeitá-la e aproveitando-a como uma forma de refúgio dos perigos que poderiam sobrevir: A casa era edificada com a arquitetura simples e grosseira, que ainda apresentam as nossas primitivas habitações; tinha cinco janelas de frente, baixas, largas, quase quadradas. Do lado direito estava a porta principal do edifício, que dava sobre um pátio cercado por uma estacada, coberta de melões agrestes. Do lado esquerdo estendia-se até à 43 borda da esplanada uma asa do edifício, que abria duas janelas sobre o desfiladeiro da rocha. No ângulo que esta asa fazia com o resto da casa, havia uma coisa que chamaremos jardim, e de fato era uma imitação graciosa de toda a natureza rica, vigorosa e esplêndida, que a vista abraçava do alto do rochedo. Flores agrestes das nossas matas, pequenas árvores copadas, um estendal de relvas, um fio de água, fingindo um rio e formando uma pequena cascata, tudo isto a mão do homem tinha criado no pequeno espaço com uma arte e graça admirável (ALENCAR, 1990, p. 12). Pelo posicionamento da habitação na natureza, projetada bem no alto, acima de tudo, percebemos que ela domina a paisagem, impõe-lhe solidez e ao mesmo tempo simplicidade. A referência à solidez se confirma com o uso de palavras ou expressões que conotam rigidez, como “rocha”, “pedra”, “rochedo” ou ainda, “escada de lajedo”, “ponte solidamente construída” e “alta cerca de espinheiros”. Já a simplicidade pode ser vista se atentarmos para o despojamento da moradia, por meio da utilização de adjetivos, em “edificada com a arquitetura simples e grosseira” e para a sua claridade e linearidade a partir da menção às cinco janelas (favorecendo a entrada de luz) “quase quadradas”. As linhas retas predominam na arquitetura dessa habitação, impedem que prevaleçam as ondulações, a penumbra e opõem-se à sinuosidade da natureza, com suas curvas e à escuridão ocasionada pelas sombras das árvores. Fatores que só poderão ser admitidos com a reconstituição da natureza “rica, vigorosa e esplêndida” na fortaleza, em um cenário organizado pela mão humana, a que o narrador chama de jardim. As preposições e as locuções prepositivas relacionadas ao tema-título, também, contribuem – juntamente com os advérbios - para determinar a casa em um espaço: “de um e outro lado da escada seguiam dois renques de árvores”, “do lado direito estava a porta principal do edifício”, etc. A conjunção aditiva se destaca principalmente por ligar, em vários momentos, dois adjetivos que descrevem a fortaleza: “casa larga e espaçosa”, “arquitetura simples e grosseira”, como maneira de reforçar os atributos da moradia. É como se o segundo termo, além de completar o sentido do primeiro, acentuasse a sua característica, para que não restasse dúvidas de que se trata de uma moradia confortável, grandiosa. O narrador enumera os detalhes da floresta, inserida nesse espaço para arrematar a oração, coroando a união entre o homem e o meio, com a metonímia (“mão do homem”) e com os adjetivos escolhidos para que houvesse um efeito poético. A selva fora reconstituída, imitada, com os seus atributos e belezas. Isso aponta, novamente, não só para a capacidade do homem em fazer uso da natureza, domesticando-a – e organizando-a da forma que deseja – 44 mas também para a admiração, o encantamento que ela provoca e o respeito do homem para com ela a ponto de querer tê-la ainda mais perto em toda a sua variedade. Nesse contexto, D. Antônio tem poder de aproveitar para a sua construção a floresta com o que ela oferece, e sabedoria para decidir o que pode ou não ser utilizado e para distinguir aquilo que precisa ser substituído por elementos de outros lugares. Desse modo, esclarece De Marco: “a inserção da casa na selva quer apresentar-se como conduta exemplar de entrosamento entre os dois mundos: o branco colonizador deve ter a virtude de harmonizar em seu espaço vital elementos de seu mundo de origem e do mundo novo descoberto” (DE MARCO, 1993, p. 31), reafirmando, com isso, a harmonia entre os dois mundos: o cultural e o natural. O narrador, ainda desenvolvendo a descrição, mescla a arquitetura da casa com as formas esculpidas pela natureza e prossegue: À primeira vista, olhando esse rochedo da altura de duas braças, donde se precipitava um arroio da largura de um copo de água, e o monte de grama, que tinha quando muito o tamanho de um divã, parecia que a natureza se havia feito menina e se esmerara em criar por capricho uma miniatura (ALENCAR, 1990, p. 12). Contrapondo-se à rigidez e à seriedade utilizadas na descrição da casa, o narrador diminui o tom direto e grave para revelar a delicadeza da natureza e associar-lhe, com o auxílio de uma comparação indireta, termos com sentido mais gracioso, como “menina” e “miniatura”. Assim, vemos que o polo da cultura representa a austeridade e o polo do natural, a graciosidade e a beleza. Após demorar-se na apresentação da moradia vista de frente e do alto, o narrador segue em direção ao baixo e aos fundos. Nos parágrafos a seguir, sem a habitual riqueza de detalhes, descreve dois armazéns e uma cabana de sapé: O fundo da casa, inteiramente separado do resto da habitação por uma cerca, era tomado por dois grandes armazéns ou senzalas, que serviam de morada a aventureiros e acostados. Finalmente, na extrema do pequeno jardim, à beira do precipício, via-se uma cabana de sapé, cujos esteios eram duas palmeiras que haviam nascido entre as fendas das pedras. As abas do teto desciam até o chão; um ligeiro sulco privava as águas da chuva de entrar nesta habitação selvagem (ALENCAR, 1990, p. 12). 45 Os dois grandes armazéns ou senzalas estão, dentro desse espaço, mais afastados, e ocupam uma posição mais obscura, pois se encontram nos fundos, onde não há o mesmo requinte da fortaleza. A locução adverbial (“por uma cerca”) indica estarem espacialmente separados da casa principal e o verbo “tomar” revela que eles não são parte integrante dela e não mantêm entre si nenhuma conexão física. Também merece destaque o termo senzala, que segundo Houaiss, é um “alojamento ou conjunto de alojamentos onde ficavam os escravos” (HOUAISS, 1997, p. 1476). Apesar de se isentar de fazer referência à temática da escravidão nessa obra, Alencar pode ter feito a inserção deste vocábulo como uma forma de comparar indiretamente o tipo de construção e a situação precária dessas habitações a de uma senzala. De Marco (1993) registra, também, o caráter provisório dessas construções e relaciona os verbos “ser” e “servir”, destacando que os armazéns não “são” moradas, mas sim “servem” de morada porque se referem a “aventureiros e acostados” - homens que constantemente migram de um lugar para outros em busca de riquezas, pedras preciosas, entre outros. Sobre tais personagens, a mesma estudiosa afirma que esse plural, que lhes é atribuído, extermina qualquer individualidade, o que de certa forma combina com esse espaço impessoal em que vivem, que tem função, mas não identidade, ou seja, é feito para aqueles que estão de passagem. Assim, à eminência sobre a qual se encontra instalada a propriedade principal se opõem fisicamente os armazéns destinados aos que não têm morada fixa e muito menos própria. Entretanto, apesar dessa separação entre a fortaleza dos Mariz e os armazéns dos aventureiros, que mostra que essas personagens não habitam a mesma casa, há uma relação de dependência social entre essas moradias e entre os aventureiros e o dono das terras que lhes dá abrigo, porém este – que, até então, o leitor não sabe quem é - destina àqueles apenas a parte dos fundos da habitação, como mencionamos. Por um lado, med